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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.14 n.26 São Paulo 2009
ARTIGO
"O brincar e a realidade"... virtual: videogame, assassinatos e imortalidade
"Playing and reality"... virtual: videogame, murders and immortality
"Realidad (virtual) y juego": videojuegos, asesinatos e inmortalidad
Viviana Carola Velasco Martinez
Docente do curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisa em Psicanálise e Civilização. vcvmartinez@hotmail.com
RESUMO
Este artigo tem como objetivo enfocar as mensagens sobre a sexualidade que o adulto transmite enigmaticamente à criança, através dos jogos de videogame. Proponho a realidade virtual como uma espécie de realidade intermediária entre a realidade material e psíquica, que permite a realização das interdições: o parricídio e o incesto, porém sem as consequências punitivas, sejam estas internas ou externas. Nesse sentido, é possível considerar que o recurso à violência banalizada, principal recurso lúdico dos jogos de videogame, diga respeito menos a um perigo real de "criar jovens e adultos perigosos" e mais ao entrelaçamento e satisfação pulsional dentro dos limites de proteção da realidade virtual.
Descritores: psicanálise; infância; videogame;sexualidade infantil; parricídio.
ABSTRACT
This article has as objective focuses the messages about the sexuality that the adult transmits enigmatically to the child, through the videogame games. I propose the virtual reality, as a type of intermediate reality among the material and psychic reality, that it allows the accomplishment of the interdictions: the parricide and the incest, however without the punitive consequences, intern or extern. In that sense, it is possible to consider that the resource to the vulgarized violence, main ludic resource of the videogame, concern a real danger of "creating young and dangerous adults" and more to the interlacement and pulsional satisfaction inside of the limits of protection of the virtual reality.
Index terms: psychoanalysis; childhood; videogame; infantile sexuality; patricide.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo enfocar los mensajes sobre la sexualidad que el adulto transmite enigmaticamente al niño, a través de los juegos de video. Propongo la realidad virtual, como un tipo de realidad intermediaria entre la realidad material y psíquica, que permite la realización de las interdicciones: el parricídio y el incesto, pero sin las consecuencias punitivas, sean éstas internas o externas. Es posible, en este sentido, considerar que el recurso a la violencia vulgarizada, principal recurso lúdico de los videojuegos, diga menos acerca de un peligro real de "crear jóvenes y adultos peligrosos" y más al entrelazamiento y satisfacción pulsional dentro de los límites de protección de la realidad virtual.
Palabras clave: psicoanálisis; infancia; videojuegos; sexualidad infantil; parricidio.
O homem deseja bastar-se... de ser inteiro e possuir-se por dentro, de imaginariamente voltar a ser um só com as fontes de satisfação. Sou o seio materno, sou a natureza, meu corpo e o que o atende são o mesmo, o mundo é minha extensão natural. Mas foi exatamente a essa nostalgia de um estado jamais havido que o sujeito renunciou para se humanizar, este é o cerco das coisas, a fisiologia extensa. (F. Herrmann, 1993, p. 26. In memoriam)
Introdução
Como resultado de um longo percurso de pesquisa com o videogame (Martinez, 1994, 2003), este artigo tem como objetivo tomar essa atividade lúdica como um canal de expressão do inconsciente. Para isso, parto da consideração freudiana de que os jogos e as brincadeiras exprimem, em primeiro lugar, um desejo. E o que deseja a criança ao brincar? A criança deseja ser grande como o adulto, deseja crescer, afirma Freud em Escritores criativos e devaneios (1908/1989) e, para isso, imita precisamente o que ela conhece da vida dos adultos.
E o que exatamente a criança imita dos adultos?
Mas continuemos com Freud.
Nesse desejo da criança ser grande, a atividade lúdica, além de permitir uma certa satisfação, também mediará, de uma forma menos dolorosa, a necessária passagem para o princípio de realidade. Assim, aos poucos, a atividade lúdica dará lugar a outras atividades, ocupando cada vez menos espaço na vida adulta. E do adulto, diz Freud (1908/1989), espera-se que atue no mundo real, mas, como não se renuncia a um prazer já experimentado, o brincar cederá espaço para a fantasia. Assim, "o que parece ser uma renúncia é, na verdade, a formação de um substituto ou sub-rogado. Da mesma forma, a criança em crescimento, quando para de brincar, só abdica do elo com os objetos reais; em vez de brincar, ela agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios" (p. 128).
Fantasia não declarada, não explicitada, pois tem como fonte desejos, e são de tal gênero, continua Freud (1908/1989), que é essencial ocultá-los. "Assim, o adulto envergonha-se de suas fantasias por serem infantis e proibidas" (p. 129).
Temos assim, que o adulto é alguém que fantasia, como uma forma substituta do brincar, do brincar de ser grande, ou do brincar do que se supõe que seja coisa de gente grande. E quando ele fantasia, porque teve de renunciar ao brincar, cria dessa fonte os objetos lúdicos, entre outros produtos, para oferecê-los, por sua vez, à criança. É dessa maneira que necessariamente teremos em toda atividade lúdica uma marca, uma marca do desejo sub-rogado do adulto, deslocado ou, mesmo, sublimado nos objetos lúdicos que são oferecidos à criança.
Então, o que desejará o adulto?
É assim que propor brinquedos para a criança não somente permitirá fazê-la compartilhar do universo social e cultural da sua espécie, mas implicará em características e possibilidades simbólicas - eis o Fort-da - por onde circularão também o desejo, a fantasia, o devaneio de um, o adulto, em direção ao outro, a criança, principalmente aquilo que, segundo Freud, é essencial ocultar. Algo apropriado pela criança que, por sua vez, desejará o desejo do outro, imitará o adulto.
Dessa maneira, voltamos o olhar para um dos brinquedos mais bem sucedidos desde os anos 80, o VG (videogame), que se transformou não somente numa fonte de lazer-prazer para a criança, mas também para o adulto, já que é uma das indústrias mais lucrativas no mundo. Proponho, assim, fazer algumas considerações sobre a fantasia do adulto, seu desejo, que de forma especular se apresenta à criança através dos jogos e define seu ser. Uma sedução, diríamos com Laplanche (1992), do adulto em direção à criança1, no que diz respeito à sua humanidade.
O videogame e a potência técnica e imaginativa do adulto
Nascido nos anos 60, apenas como um entediante jogo de ping-pong em preto e branco, foi esquecido até final dos anos 80, quando volta amplamente modificado e enriquecido pela mágica da tecnologia. Do Japão e Estados Unidos, o VG se espalha pelo mundo.
Vários fatores determinaram esse sucesso, tais como a diversificação dos materiais, os avanços da microeletrônica, a mulher no mercado de trabalho, a redução dos espaços públicos para crianças e o perigo do mundo das ruas. Nesse contexto, criaram-se as condições adequadas para a invasão tão bem sucedida dos jogos eletrônicos, contando com a aceitação familiar, pois entre quatro paredes a criança parecia segura (Martinez, 1994a).
Assim, nesses anos 80, o VG prometia levar o mundo, através dos seus jogos, para a criança, e para isso contou com um poderoso recurso. Em menos de dois anos, mais de sete revistas especializadas em VG foram lançadas mensalmente, constituindo numa espécie de canal de intermediação entre o mundo do VG e o usuário-criança. É dessa maneira que, numa linguagem muito simples e ao longo de muitas páginas coloridas, os fabricantes ensinavam tudo à criança sobre VG: tecnologia, preços, modelos, jogos, lançamentos e um setor de "dicas", isto é, explicações para vencer os jogos. O próprio setor de classificados dessas revistas revelaram o sucesso do VG, pois publicavam-se anúncios trocando brinquedos destinados para os espaços livres por um VG, ou instrumentos musicais, animais de estimação e diversos objetos (Martinez, 1994b).
Vejamos um exemplo curioso: "Troco VG 8000 completo, mais joystick de Phantom, um cartucho, adaptador A-60, 4 rodas skate, Pro Life, 4 rolamentos importados NHBB, par de sapatos Kaito n. 36, canivete alemão, carteira Town & Country, um cartucho de Atari, dois chaveiros, fone de walkman, fita TDK, mini-lanterna National, estojo de pronto-socorro, adesivos e outros objetos, por qualquer videogame padrão Nintendo..." (Videogame, n. 7, p. 21, 1991).
Instala-se também um espírito competitivo que culminará em grandes eventos nacionais e internacionais. No setor de classificados das revistas, os usuários lançam seus desafios. Um exemplo engraçado que coloca a prêmio o tão sonhado VG é assinado por uma menina (o que é raro; também não sabemos a sua idade): "Desafio qualquer 'moleque' a me vencer no jogo Indiana Jones e a Última Cruzada, do Master System. Aposto o Bit System do meu irmão" (Ação Games, n. 10, p. 5 - clasificados, 1992).
No decorrer do tempo, a potência dos aparelhos foi ampliada inusitadamente. Os 16 bits, que caracterizavam os VGs sofisticados dos anos 80, multiplicaram-se gradativamente até chegar aos 128 bits atuais; os antigos cartuchos foram substituídos primeiro pelo CD e hoje pelo DVD. A velocidade de processamento também se modificou, os 7,6 MHz, dos anos 80, eram sinônimo de sofisticação tecnológica, já no início deste século aumentaram até os 200 MHz com acesso à Internet. Mas hoje, o conhecido Playstation 2 (Sony) conta com 293 MHz, o Playstation 3 (sétima geração de VG e recentemente lançado) com 430, enquanto o poderoso Xbox (Microsoft) já trabalha com 733 MHz! Essa potência tem como resultado cenas muito realistas em 3D, excelente som, maior interatividade, movimentos e detalhes nunca vistos no VG, o que se transformou numa fonte milionária de rendimentos, sustentada pelos constantes lançamentos, seja dos aparelhos, seja dos jogos, ou dos acessórios (Martinez, 2003). A cada lançamento, o desejo pelo novo é estimulado e algo da ordem fálica parece se definir: é possível se apropriar de toda essa potência.
As criações de novas personagens também são incansáveis. Grandes equipes de profissionais trabalham nisso, incluindo cineastas, mas não deixa de haver uma certa repetição: o soldado, o jogador, o lutador, o bichinho dos desenhos, o carro, a nave, o astro dos esportes, o guerreiro etc. As personagens criadas pelos japoneses, cujos traços são predominantemente ocidentais, também conquistaram o seu lugar para além dos ninjas e dos épicos de samurais.
Já as personagens adultas, virtualmente criadas, parecem ser reais, pelas suas feições expressivas, apesar do excesso de músculos no corpo, e, também, mais humanas, no sentido que podem ser tanto "do bem" como "do mal". Aliás, essa é uma das grandes mudanças introduzidas, na medida em que o VG se sofistica. Se na década de 80 os enredos colocavam a figura do herói apenas do lado de ideais de grandeza, nobreza e sacrifício (Martinez, 1994), sempre em oposição ao mal, na atualidade a personagem principal pode ser "do mal", "do bem" ou ambos e os objetivos perseguidos não ficam restritos ao bem que possa se proporcionar à humanidade, mas ao bem-estar totalmente particular. Isto é, o herói pode ser, por exemplo, um demônio, fazendo do gênero terror e suspense um sucesso ou, mesmo, um mafioso com feições psicopáticas.
Temos, assim, que os temas são mais reais, brinca-se com drogas, assassinatos, vinganças, horror, dinheiro... Vejamos este último.
No jogo UT2003 (Unreal Tournament 2003), por exemplo, o herói é um competidor e administra uma liga de esportes futuristas: "Como no mundo real dos esportes profissionais, seus jogadores ganham dinheiro de acordo com a performance. Há até uma certa quantia salarial para administrar. Se você não está contente com o desempenho de um de seus jogadores; pode simplesmente despedir o cara, a garota ou a 'coisa' que integra o seu time" (EGM2, outubro de 2002, p. 47).
Em jogos como Onimusha compram-se amizades, cuja importância será proporcional ao valor dos presentes dados. Também se compram golpes, como em Street Fighter, e quanto mais se paga por eles, mais eficazes serão.
Mas tal é a realidade do dinheiro que até o pobre do Homem Aranha deve suar para comprar sua teia, nos jogos de VG. Afinal, neste mundo não há nada de graça!
Também, e diferentemente do VG dos anos 80, hoje nos jogos de corrida o usuário pode decidir e equipar o carro como bem entender. Da mesma forma, o usuário pode criar as personagens, em alguns jogos, definindo não somente as características físicas, mas, também, as psíquicas, e assim brinca-se com a criação, com a potência.
Porém, a introdução de personagens ou situações mais realistas não descarta a permanência de personagens clássicas "do bem", embora um tanto modificadas como vimos no exemplo do Homem Aranha.
Temos, então, que a grande sofisticação tecnológica e o abandono da lógica maniqueísta para os jogos e personagens, trouxeram como resultado uma ampliação surpreendente do público usuário3, o que nos faz pensar numa espécie de maturidade dos jogos de VG. As possibilidades crescentes de cores, som e definição gráfica deixam os jogos cada vez mais próximos de um filme interativo. Serão esses recursos potentes, que atraem cada vez mais usuários, ou tratar-se-á de algo diferente? Por exemplo, e a pretexto do atrativo das inovações tecnológicas, jovens adultos atraídos para uma atividade que proporcione intenso prazer infantil. Assim nos diz um usuário: "saiu escrito na revista que (o jogo) Silent Hill 2, devido ao seu clima ultramacabro, talvez não seja lançado nos EUA!! Que absurdo! Games precisam de classificação e não de censura! Chega de infantilização!" E a resposta do editor: "Já foi o tempo que videogame era coisa de criança. Não há nada de errado em jogos macabros ou sangrentos!" (Gameforce4, ano 1, n. 2, p. 5, novembro de 2000).
Ser monstro, bandido, demônio e até deus não será um desejo universal? Se no jogo GTA 3 (Grand Thief Auto) a diversão está em ser o próprio bandido para matar, estourar carros e morrer, num outro jogo, Stuntman - dublê de filmes em manobras com carros - o diretor do jogo dá uma dica de diversão para uma das fases: "Experimente colocar quatro rampas, uma em direção da outra, depois lance quatro carros para causar uma colisão aérea na intersecção. A chuva de destroços é algo incrível" (EGM, n. 7, outubro de 2002, p. 20; Martinez, 2003). É como se estivéssemos diante de um laboratório virtual onde é possível a experimentação, do interdito, sem nenhum risco, como é o caso do uso de simuladores nos jogos, baseados nos simuladores para a aeronáutica. A diferença está no fato de se tratar de diversão pura e simplesmente, em todos os âmbitos das manifestações humanas, onde circulam as paixões.
Outro aspecto interessante nos jogos atuais é a presença feminina marcante, não somente pela força, mas pela erotização (a mãe fálica?). Mesmo as meigas figuras dos desenhos japoneses, quase crianças, exibem um par de seios "turbinados". Uma coxa, um bumbum, um decote, prostitutas, mercenárias, detetives, lutadoras, bruxas, fantasmas, aventureiras, todas elas são mulheres atraentes e fortes. Essa erotização da figura feminina alcança seu ápice em 2000, quando o Tókio Game Show, a maior feira de VGs na Ásia, apresenta com grande sucesso mulheres virtuais com todos os atributos desejados, tais como juventude, beleza, corpos esculturais e, claro, muito exibicionismo (Made in Japan5, ano 3, n. 32, 2000).
Quanto à manipulação dos jogos, é interessante observar que, desde os anos 90, muitas modificações foram introduzidas nos controles. As combinações que permitem a manipulação das personagens ficaram mais complexas. Os controles do Xbox e Playstation 2 e 3, por exemplo, vibram na mão do usuário quando o seu herói está lutando, quando apanha, quando perde energia etc. E toda ação do jogo está reduzida à movimentação de um botão diferenciado de direção e de outros botões complementares que permitem não só o movimento do herói, mas a sua ação completa, isto é, lutar, atacar e se defender, o que exige uma grande habilidade do usuário. A combinação dos botões □, Δ, O e X que significam, por exemplo, atirar, pular, rolar, agachar, chutar, bater etc., com os botões de direção do herói: ← → - ↓ (esquerda, direita, para cima, para baixo) e as combinações decorrentes , possibilita a ampliação de efeitos determinados para cada jogo específico. Temos, ainda, as funções L1, L2, R1, R2 e R3, que complementam a manipulação e, ainda... Verdadeira loucura que o jovem usuário facilmente consegue dominar (Martinez, 2003), numa franca manifestação de controle e de potência.
Assim vai se fazendo o herói, no desenrolar do jogo, de recompensa em recompensa, tentativa e erro, perdas e recomeços. Não importa se foi premiada a ação real, isto é, a coordenação de movimentos dos dedos do usuário nos controles frente a cada imagem e que movimentam o herói em cada cena, o importante é que um golpe certeiro atingiu o inimigo. O prêmio se traduz em "mais vidas" para a vitória, ou em castigos que levam à morte, pois perderam-se todas as vidas. Mas, o que faria o usuário recomeçar sempre de novo se não fosse a fantasia da imortalidade e o heroísmo prometido? (Martinez, 1994). Para isso, o herói do VG deve mergulhar num tipo de violência lúdica, que é precisamente uma das fontes do prazer que esse brinquedo proporciona, como veremos a seguir. Porém, mesmo nessa liberação e escancaramento da violência no lúdico, algo há aí para envolver o herói com um manto de desconhecido, do não-revelado. Esse realismo tão aberto, por isso suspeito, talvez esconda algo, um desejo, desejo do adulto?
Além disso, tudo o que vimos: os seios proeminentes em mulheres poderosas; o aumento da força dos heróis no aumento da velocidade dos MHz; a conquista de armas nas conquistas tecnológicas; a acumulação de vidas, pontos e dinheiro no consumo, parecem convergir numa direção só: a elisão da morte e em diversos registros - oral, anal e, sobretudo, fálico - o que pode ser traduzido na seguinte tríade de equivalência: falo/desejo/poder. Avancemos.
O outro virtual: entre a realidade psíquica e a realidade material
Nesse caminho de heroísmo, a lógica que predomina é a eliminação do outro. Por isso, desde o seu nascimento, o VG toma como elemento lúdico principal a violência, mas trata-se de uma violência racionalizada6, virtual, chamemo-la que, retirada da realidade material, não estaria necessariamente contra as regras civilizatórias. Nesse âmbito, no fazer de conta, encontra-se um espaço onde é possível fazer circular as paixões humanas, os desejos, em todos os níveis, o princípio de prazer.
Mas se matar esse outro não fere a civilização, pois trata-se de algo virtual dissemos, o desejo por ser o autor dessa morte é autêntico, ele nasce e está latente no universo do inconsciente a que Freud deu o nome de realidade psíquica. Contudo, precisamente por estar no âmbito da realidade psíquica, não pode ser igualado à realidade virtual, que age mais nos níveis consciente e pré-consciente. É dessa maneira que podemos pensar que o VG e seu recurso à violência instalariam uma espécie de lugar limite diretamente entre o inconsciente e a realidade virtual, oferecendo-se como um cenário onírico e, portanto, como fonte de satisfação, garantindo assim o recalque. Assim, o assassinato do outro, que obedece a um dos desejos mais ocultos do ser humano7, pode ser realizado com a vantagem de, aparentemente, não ferir a civilização, pois tratar-se-ia de ações mantidas exclusivamente dentro dos limites da fantasia8, na realidade virtual. Isto nos remete à ideia winnicottiana de uma área intermediária de experiência ou um espaço transicional, onde fantasia e realidade se encontram e onde precisamente as brincadeiras têm um lugar privilegiado9.
Se, nos anos 90, Michael Jackson era o principal herói do jogo Moonwalker, há poucos anos tornou-se personagem de novo jogo (embora caseiro) em que aparece, com suas feições demasiado plásticas, lançando bebês do alto. Esse jogo se inspirou no episódio acontecido na Alemanha, onde o cantor exibiu seu filho para os fãs do alto da janela do hotel, num movimento que ameaçava lançar a criança, causando grande tumulto e a exigência do pedido de "perdão" pelo excesso. Mas, quantos anseios escondidos no íntimo da multidão que, como no jogo improvisado de VG, sentiria algum prazer em deixar e ver cair alguns bebês. O mesmo pode-se dizer dos acontecimentos relativamente recentes, quando diversos "Medéios", deixaram seus filhos morrer.
É que a morte do outro sempre foi desejada, diz Freud em Considerações sobre a guerra e a morte (1915/1990), o que atesta a própria história da humanidade, e o primeiro crime teria sido um parricídio, tal como o autor apontou, alguns anos antes, em Totem e Tabu (1912/1991). Esse assassinato será precisamente a fonte do sentimento de culpa nascido da constatação de uma intensa ambivalência, o outro é também alguém a quem se ama, mesmo desejando-se fervorosamente a sua morte. Portanto, se a civilização transforma o homem num ser moral, ainda permanecem inerentes à sua humanidade tanto o sentimento de culpa quanto o desejo de ser o autor da morte do outro. Temos aí algo da história da nossa humanidade, o sentimento de culpa persistindo de geração em geração, "sem que a memória dos fatos tenha sido conservada". Trata-se, ainda nas palavras de G. e N. Nicolaïdis (1997, p. 24), da história de um desejo que nasce de "uma continuidade fantasmática malgrado ou devido a uma descontinuidade de eventos".
É dessa maneira que, nos jogos de VG, o outro virtual se oferece como vítima para a imolação, com a fantástica característica de isolar, precisamente pela virtualidade, os desdobramentos desse desejo: as punições internas e externas e o afeto (isso nos faz pensar no mecanismo de isolamento da obsessão). Assim podemos explicar o sucesso de jogos como GTA, em que a personagem principal, um bandido, pode se servir de inúmeros meios para matar quem aparecer no seu caminho, velhinhas, crianças, amigos... são o outros.
Em seu livro Les jeux vidéo (1994), Jolivalt, recorrendo a Freud, relaciona a brincadeira, a criatividade, o sonho e o imaginário como características favoráveis para o desenvolvimento da criança (?). No entanto, pergunta-se o autor se Freud diria a mesma coisa sobre os jogos de VG, nos quais a característica do sonho é pobre. E sua crítica: "podemos ainda falar da parte do sonho enquanto um jogador é convidado a destruir um carro a pontapés, a se bater em duelo de armas ou de tacos de baseball numa explosão de animação gesticulante, de cores berrantes, de vociferações e de barulhos agressivos? Ou é preciso procurar esta parte do sonho nos jogos cuja publicidade utiliza um slogam como 'É preciso matá-los para que aprendam a viver' (Star Control II, editado por Accolade) ou a promessa que 'Sobre a terra, você não estará ligado a nenhuma restrição moral, ataque à mão armada, assassinatos, raptos, tudo te será permitido!'." (The Shortgrey, Accrosoft, p. 99).
Provavelmente Freud diria que sim. Não é para ele o sonho uma realização de desejos? E esses desejos realizados no sonho não dizem respeito a experiências da infância ou da nossa pré-história, como o afirma em A interpretação dos sonhos (1900/1989)? E, finalmente, os nossos desejos não estão precisamente vinculados às demandas pulsionais, para o que Freud inventa um princípio de realidade - e não é realidade virtual - que permite a satisfação das mesmas, porém dentro do mundo real e regido pela cultura?
Talvez seja a descoberta sinistra (umheimlich) desse nosso desejo tão recalcado que faz com que surjam certos discursos alarmistas considerando esses jogos um perigo (entre outras produções tecnológicas), um estímulo à violência e por isso a necessidade de censurá-los. Voltaremos a este tema mais adiante. Mas, lembremos com Freud "O que nenhuma alma humana deseja não é necessário proibi-lo" e a proibição "não matarás" é a prova de que somos descendentes de uma "longa série de gerações de assassinos, que carregavam no sangue, como talvez nós mesmos o fazemos hoje, o prazer de matar" (Freud, 1915/1990, p. 297). Talvez seja por isso mesmo que aprendemos a rezar, pedindo proteção contra as nossas tentações e perdão pela hora da nossa própria morte.
Mas há entre o nosso desejo e a sua realização a realidade virtual que, como vimos, permite de alguma maneira preservar os contornos da nossa civilidade. A própria palavra virtual, do latim virtualis, indica algo que não se realizou, mas suscetível de realizar-se, porém no sentido de uma simulação, no âmbito do fictício, embora curiosamente esteja aliada à palavra "realidade".
Desse ponto de vista, temos a criação de uma realidade plástica, que nos permite manipular de tal maneira a "realidade", com a garantia que podemos ficar imunes frente a qualquer perigo, inclusive o de romper com as regras civilizatórias virtualmente, é claro!
Dessa maneira, ludibriado o sentimento de culpa e as proibições internas (diques da nossa sexualidade infantil) é possível também fantasiar que nós mesmos não corremos o risco de ser vítimas do mesmo desejo do outro. Assim, o universo virtual dos jogos permite a realização, não só de matar sem remorsos, mas de um outro desejo complementar: a imortalidade.
A imortalidade: desejo do adulto - criança
"No inconsciente todos nós estamos convencidos da nossa imortalidade". Com essa afirmação, também em Considerações sobre a guerra e a morte (1915/1990) Freud se refere ao medo do homem frente à morte, motivo pelo qual ele a nega. Contudo, a realidade da morte do outro obriga a fazer uma transação, admite-se a morte, porém nega-se o seu sentido de aniquilamento da vida. Já a criança, continua Freud, encara a morte sem grandes problemas, mas o peso da educação e da cultura inicia o trabalho silencioso de negação e recalcamento e, por que não dizer, de construção da uma neurose.
Decorrente dessa constatação do inevitável da morte, afirma Freud, nos conduzimos com cuidado, tentando excluir tudo o que seja perigoso, empobrecendo assim a nossa vida. Agindo dessa maneira, sem dúvida, estamos no âmbito da renúncia para a qual buscar-se-ão substitutos no campo da fantasia, na ficção, na literatura e no teatro. Nesse campo da ficção, continua Freud, se nos deparamos com a morte é, porém, com a possibilidade de sobreviver, pois "no campo da ficção encontramos aquela pluralidade de vidas que precisamos. Morremos na nossa identificação com o protagonista, mas sobrevivemos à sua morte e estamos dispostos a morrer outra vez, igualmente com outro protagonista" (1915/1990, p. 292).
É dessa maneira que o adulto vai oferecer à criança, através dos jogos de VG, embora dentro do que poderíamos chamar de uma cultura virtual, tanto a possibilidade de satisfazer sua ânsia assassina, quanto de se imaginar imortal. Porque as forças motivadoras das fantasias, diz Freud em Escritores criativos e devaneios (1908/1989), são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória. Realidade insatisfatória, afirmará também Freud em Mal-estar na civilização (1930/1990) porque implica na renúncia da satisfação pulsional em nome da civilização. Assim temos em Freud que, ao tratar das neuroses, vai nos falar do reconhecimento do homem no seu desejo, mas submetido ao princípio de realidade. Talvez possamos trazer aqui algo da sabedoria grega da Antiguidade Clássica, principalmente duas das máximas10 que se encontram inscritas no Oráculo de Delfos, Conhece-te a ti mesmo (atribuída a Tales) e Nada em excesso (atribuída a Sólon), separadas por uma letra E11, a que Delcourt (1981) dá a sua própria interpretação. Segundo a autora, o significado da enigmática letra E, nos remeteria à ideia de És, de tal modo que o Conhece-te a ti mesmo e o Nada em excesso significaria "Sejas modesto porque, a princípio, tu és apenas um homem, em seguida, porque tu não és mais do que és" (pp. 210-211). O que poderíamos atualizar dizendo "tu és apenas um homem" frente à falta, frente ao excesso, frente à sexualidade, a castração, o desejo...
É dessa maneira que, com todos os recursos sofisticados da tecnologia, o adulto constrói um universo virtual onde as mesmas regras civilizatórias podem ser transgredidas. E são precisamente esses desejos transgressores da civilização que o adulto comunicaria enigmaticamente à criança.
Contudo, o enigmático, o excesso, não está em torno da violência, como dissemos, mas precisamente naquilo que não pode ser facilmente decodificado e isso se torna extremamente ameaçador até para o próprio adulto, o sinistro que se repete de geração a geração. Talvez seja por isso que, diante desses novos valores, chamemo-los de valores virtuais, aparentemente mais agressivos e transgressores, porque mais explícitos e prazerosos, encontramos argumentos alarmados, como mencionamos. Ora sustentam que o VG incentiva a criança à violência, ora que ele anula toda a capacidade criativa e lúdica da mesma. Surge, então, a censura numa tentativa de preservar a criança. Mas preservar do quê? É possível preservar uma criança da sexualidade, da sua e da do adulto? Ou mesmo, por que supor que há jogos inofensivos e outros não? Vejamos.
A interdição
Primeiro, os jogos devem passar por uma censura? Sim e não. Sim, porque há jogos que, devido à sofisticação tecnológica, exprimem com muito realismo situações dramáticas que podem ser excessivas para a capacidade do usuário, instalando algo da ordem do traumático. Cito alguns exemplos: os bem sucedidos jogos de terror, levados também ao cinema, como Resident Evil, Silent Hill e todas as suas versões. O suspense em Fear effect, onde prostitutas se transformam em criaturas demoníacas e sequestros, poder e dinheiro são os ingredientes dos jogos. A interatividade propiciada também pela tecnologia dá mais realismo. O jogo Eternal Darkness é um exemplo que traz uma inovação curiosa. Na medida em que o jogo se torna mais complexo, a personagem ficará com medo, e isso será avaliado com um "medidor de sanidade", uma marca verde na tela que oscila segundo a intensidade do medo. Quando essa marca está muito baixa ou desaparece, significa que o medo da personagem é intenso e trará como consequência uma restrição no acesso às informações do jogo. Isso dentro da sequência do jogo e acontecendo com a personagem. Já do lado do usuário, diversas mensagens, porém falsas, aparecerão na própria tela indicando, por exemplo, que o aparelho está com defeito, ou que o controle está desconectado, ou aparecerá um sinal de erro no jogo e até haverá uma simulação de desligamento do VG (Martinez, 2003), isso poderá ser bastante perturbador para quem não conhece o jogo e é precisamente essa a surpresa. Também na série de jogos violentos, o jogo Hitman 2: Silent Assassin apresenta como personagem principal - o herói - um assassino de aluguel que viaja por terras exóticas enquanto mata, ou o contrário. Seus crimes arrancam gritos, expressões de dor, desespero e terror das vítimas que sangram e se contorcem ao serem atingidas. Vimos em GTA 3 (Grand Theft Auto) o herói-bandido recém-saído da prisão que, além de poder matar qualquer um e com diversas armas, pode destruir carros, muros e vitrines, assim como pode se destruir pulando de altura ou se jogando no mar, recomeçando tudo na seguinte cena. Ao mesmo tempo, o herói pode usufruir de sofisticados ambientes, bebida e sedutoras mulheres. Algumas delas aparecem em poses demasiadamente insinuantes. O mesmo acontece no jogo Onimusha 2, carregado de cenas sedutoras de Oyu, a personagem feminina descrita como princesa sensual que atrai olhares. Também na apresentação do jogo Dead or Alive 2, destaca-se, além de lutas acirradas e muito realismo, o apelo erótico das mulheres (Martinez, 2003). Headhunter do mesmo modo se apresenta como um convite a um mundo sem leis, assim é descrito o cenário: "O futuro tornou-se um tempo onde é preciso matar para poder sobreviver12. O mundo está em decadência, com um extremo comércio de órgãos e partes humanas, os caçadores de recompensas ditam as regras, somente os mais fortes sobrevivem" (Gamestation13, ano 1, n. 3, p. 16).
Talvez os clamores pela interdição seja o horror ante a suspeita de que o que se pretende proibir é precisamente o que tanto se deseja... E, obviamente, não se pode censurar esses jogos apenas porque se pensa que eles levam a criança a confundir realidade material com a virtual. Há entre a realidade material e a virtual uma série de mediações que impedem uma passagem ao ato, contudo, a mobilização pulsional e a fantasia não podem ser negadas. Lembremos que Ferenczi considera, como Freud, os perigos do excesso de certas vivências humanas: "O ego ainda rudimentar da criança assusta-se com as quantidades inesperadas de libido e de possibilidades libidinais, com as quais ainda não sabe - ou não sabe mais - o que fazer" (1919/1992, p. 371). De tal maneira que, as imagens de assassinatos, roubos, atropelamentos, sexo (embora não explícito), sangue e trapaças, com feições tão realísticas, podem se apresentar como verdadeiras cenas: cena primária.
Por outro lado, chamo a atenção para os jogos considerados "aptos" para crianças que, embora não estejam censurados, porque aparentemente inofensivos, também apresentam sua face violenta, embora menos explícita e remetem da mesma maneira a situações que seriam angustiantes. Tomemos como exemplo o jogo Sonic Adventure 2, feito para o Game Cube da Nintendo, o VG mais sofisticado fabricado pela Nintendo há alguns anos. A cena é a seguinte: em qualquer cidade muito graciosa - não esqueçamos que se trata de um desenho animado com feições ao estilo Disney - há uma placa que indica a proibição de entrada em uma determinada rua. Obviamente a criança, nesse mundo virtual, vai precisamente transgredir a proibição encarnando o herói14, o porco espinho Sonic, penetra e cai numa descida, onde um enorme e assustador caminhão correrá atrás do herói-bicho. Os controles não respondem a nenhum outro comando a não ser para fugir sempre na mesma direção e tentar escapar do monstro de muitas rodas sempre atrás. A única maneira de escapar do perigo é recomeçando o jogo. Sem dúvida, temos aí algo de pedagógico dirigido principalmente para a criança "desobediente", contudo, surpreende constatar que, mesmo "punida", a criança penetra inúmeras vezes no espaço do proibido, tentando achar uma solução para vencer.
Mas vejamos a mesma situação num outro jogo "inocente". Trata-se do clássico Castle of Illusions, apto para todo público, onde o célebre camundongo Mickey deve salvar a companheira Minnie das garras da bruxa.
Numa das fases do jogo, ele entra no quarto de brinquedos - todo cor-de-rosa, quarto de criança - e, ao som de uma alegre e repetitiva musiqueta, deverá destruir soldadinhos de chumbo, que interminavelmente aparecem marchando, bem como outras personagens. São palhaços equilibristas, palhaços de molas, moscas, e caixas de surpresas - aquelas que se abrem repentinamente. O mais leve toque de um desses brinquedos em qualquer parte do corpo de Mickey significa a perda de energia e, depois, a perda de uma vida, fazendo o nosso herói-criança, a criança real que joga, exclamar: "morri!" Obrigado a recomeçar, o herói deverá vencer as dificuldades e conta com duas armas. Uma, é uma pequena bola para atirar e matar os brinquedos-inimigos. Outra é o próprio corpo: as "bundadas" do Mickey (pressionando por duas vezes consecutivas o botão de salto dos controles). Assim, cair de "bunda" num dos brinquedos ou moscas significa eliminá-los e ganhar pontos. Descobrimos assim que o inocente Mickey tem bunda! Mas o recurso de colocar o corpo de Mickey em evidência diz respeito a um recurso de comicidade15, lembremos do Chiste e sua relação com o inconsciente (1905).
Porém, a situação mais angustiante do jogo, além dos elementos persecutórios presentes nas cenas, está no momento em que o camundongo deve atravessar três piscinas cheias de gelatina vermelha. Quando ele pula na primeira, começa a ser sugado até submergir engolido, como num pântano, apesar do usuário pressionar desesperadamente o botão direcional dos controles. Se passar, provavelmente na segunda piscina ele perde por causa do esgotamento dos dedos (do usuário). Enquanto isso, inúmeras moscas voam em torno das piscinas tentando atingir o herói e a musiqueta continua. Passar as três piscinas é uma condição para mudar de fase. Uma solução é o herói atravessar as piscinas de "bundada em bundada", o que requer muita energia e movimentos precisos nas mãos do usuário, sem esquecer as moscas assassinas. Outra solução seria utilizar um controle mais sofisticado, vendido à parte e muito mais caro que o convencional. Em toda sua travessia, Mickey, para sobreviver, deve eliminar os inimigos, assim, até o pacífico bichinho se transforma num assassino e enfrenta situações de risco, afinal ele se quer imortal!
Vemos, assim, que mesmo nos jogos "inocentes", o herói está liberado para exercer uma ação sem limites, na intimidade com o "mal"16. Então, censurar o quê?
Talvez o questionamento mais importante esteja em torno de saber se é possível censurar a humanidade que está em nós.
Umas palavras para o trágico Édipo
Vimos o desejo de imortalidade se satisfazendo dentro dos limites da realidade virtual. Desejo que se sustenta a partir da morte do outro, do outro assassinado. Mas sabemos que na origem desse desejo de matar o outro se encontra o pai. O parricídio é consumado não somente por se tratar de um pai tirano, mas porque ele toma todas as mulheres para si. Assim, podemos supor que nessa realização do desejo de assassinato realiza-se justamente o desejo incestuoso. Morto o rival, a fusão com a mãe e o desejo de imortalidade se confundem. A morte do outro se instala como poder fálico, pois retira sua potência do pai vencido e, renovado, permite ao herói17 se oferecer falicamente à mãe. Afastada a ameaça de castração, no universo virtual, não é necessária a renúncia da satisfação dos desejos.
Dois desdobramentos podem ser apontados. Nessa espécie de regressão propiciada pela realidade virtual, temos, por um lado, a manifestação de diversos aspectos da sexualidade polimórfica perversa, e é ai precisamente onde o VG propicia uma forma de satisfação. É dessa maneira que observamos elementos perversos como chutar, esfaquear, matar, atropelar, golpear, assassinar, cortar, fazer sangrar, voyeurismo, exibicionismo, acumulação/retenção enfim, todas as contravenções18 que permitem que o jogo seja muito atraente e principalmente fálico.
Vimos também que a agressividade é um dos recursos lúdicos do VG, porém banalizada, dissemos inicialmente, e essa banalização seria o produto da deformação, da defesa. Isso significa que, mesmo que a atividade lúdica permita a manifestação de elementos do inconsciente, trata-se de subprodutos. É dessa maneira que o usuário não sabe que em cada jogo vencido, em cada vitória frente ao inimigo, realiza parcialmente o desejo de assassinar o pai e de possuir a mãe. Temos assim que a agressividade como uma característica do predomínio fálico está, segundo Green (1991), complementada pelo desejo de penetrar e de vencer (p. 88).
Talvez seja por isso que predomine o público masculino no mundo do VG, em torno de 90% dos usuários (Martínez, 2003). Quanto às meninas, há inúmeras tentativas, pouco frutíferas, de atraí-las como usuárias do VG, por exemplo, no atual jogo da Barbie.
O outro desdobramento, pois, diz respeito a considerar que efetivamente nessa regressão haveria um truncamento de qualquer atividade criativa que possa ser efetuada, já que o acesso à cultura estaria impedido pela fusão com a mãe. Green (1994) considera essencial o desenrolar do drama edípico para que haja criatividade, para que a criança separada da fusão com a mãe possa ser colocada, através do pai, nas vias da cultura. Assim, é possível supor que sem lei não há civilização, sem pai não há criação. Isso talvez justifique uma das grandes críticas ao VG, que supõe que os jogos impedem a manifestação da criatividade do usuário. Contudo, como vimos, talvez o VG seja uma das manifestações mais criativas da nossa atualidade, capaz de realizar, dentro da civilização, desejos tremendamente humanos. "É no brincar, afirma Winnicott (1975, p. 79), e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação."
Diremos que a realidade virtual, de alguma maneira corresponderia ao que Killeen (2004) citada por Meurée (2004), chama de uma estética da pós-modernidade capaz de nomear algo da ordem do indizível. E nessa ordem do indizível haveria, entre outros paradoxos, o "paradoxo de cumplicidade entre a lei e sua violação". A realidade virtual encontra-se precisamente nesse paradoxo, pois, vimos, ao mesmo tempo em que marca a lei pelos seus limites, enquanto possibilidades de realização e realidade, transgride-a na medida em que permite uma satisfação, embora às custas da alienação do afeto e do pensamento, isto é, um mecanismo análogo ao da neurose obsessiva. Assim teremos, por um lado, a satisfação e, por outro, pelo isolamento dos afetos, uma "garantia" da não-realização do incesto e da vingança no parricídio frente à ameaça de castração. E essa garantia estaria constituída em torno da realidade virtual de tal maneira que o que se realiza no jogo não faz sentido imediato. Telles (2005) sustenta que o isolamento funciona como uma defesa frente a pensamentos incestuosos que possam irromper. Cria-se assim uma nova realidade, a realidade virtual, que é falsa, contudo agradável. Assim a contradição e o caráter ambivalente se manifestam e garantem simultaneamente a proibição e realização dos desejos no mesmo ato.
Contudo, mesmo que o VG comunique à criança o desejo do adulto de ser imortal, um deus onipotente e onisciente que se manifesta no impossível, no proibido, no desejado, capaz de provocar o aniquilamento do outro e capaz, como o pai da horda primitiva, deter para sim os prazeres, entre eles o de ter exclusividade sobre a mãe, o predomínio da realidade nos indica constantemente e no final de cada partida de jogo que isso não é verdade. "Sejas modesto porque, a princípio, tu és apenas um homem, em seguida, porque tu não és mais do que és." (Delcourt, 1981, pp. 211-212).
Aceitar ou não, isso é outra questão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NOTAS
1 Aqui podemos mencionar Laplanche (1992) com a sua teoria da sedução generalizada, no sentido do adulto estar constantemente enviando mensagens enigmáticas da sua própria sexualidade para a criança, que dificilmente poderá decifrá-las, constituindo algo traumático em torno dessa "comunicação".
2 Electronic Gaming monthly, revista especializada em VG, da Conrad Editora do Brasil, São Paulo.
3 A ideia de expandir os domínios do VG para além do usuário criança faz parte das novas tecnologias. O Xbox, por exemplo, propõe um novo conceito: deixa de ser o brinquedo do filho para ser "uma estação de lazer" e um bem da família, com jogos de alta definição, DVD, conexão com a Internet etc. (Gamestation magazine, Ano 1, n. 3, abril de 2002, pp. 20-21).
4 Revista especializada em VG, da Editora Escala, São Paulo.
5 Revista mensal, publicada no Japão e no Brasil, sobre cultura, tecnologia, comportamento etc., da Editora JBC (Japan Brazil Communication), São Paulo.
6 Três grandes temas foram definidos em torno do VG (Martinez, 1994): a estranheza frente ao outro; a racionalização da violência e; o discurso audiovisual de condicionamento operante.
7 Em o Futuro de uma ilusão (1927/1990) Freud se refere aos três grandes desejos da humanidade - o canibalismo, o assassinato e o incesto - como forças pulsionais que nascem com cada criança e contra as quais a cultura cria formas de contenção.
8 Com exceção da passagem ao ato nas perversões e nas psicoses.
9 Assim nos diz o autor: "Trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas." (Winnicott, 1975, p. 15).
10 As outras máximas são: A maioria é malvada e Pelo fardo se conhece o homem, atribuídas a Bias; Aproveita o dia de hoje, de Pítaco; Leva a sério as coisas importantes, de Sólon; O melhor é a medida (ou Tudo na medida certa), de Cleóbulo; Procura as palavras nas coisas, e não as coisas nas palavras, de Míson e, finalmente, de Quílon, Cuida de ti mesmo e Não desejes o impossível (Abbagnano, 1998, p. 866).
11 No seu livro L'Oracle de Delphos (1981), Delcourt se refere ao desconhecimento do significado dessa letra "E" que se encontra gravada no templo de Apolo, no meio de dois grupos de máximas, o que convida à interpretação.
12 Essa é precisamente a função do herói mitológico, atacar e se defender. Remeto o leitor ao artigo "A figura do herói na mitologia: um guerreiro além do bem e do mal" (Martínez, 1996).
13 Revista especializada em VG, da JBC (Japan Brazil Communication) e Progames, da Plural Editora, São Paulo.
14 É característica do herói extrapolar o que os gregos chamavam de métron, a medida certa, a lei, que deve reger os mortais. Mergulhado em hýbris, o excesso, o herói tenta se aproximar do divino, mas pagará caro por sua ousadia, terá uma morte trágica. Por isso a máxima do sábio Sólon: "Nada em excesso" (Martinez, 2003).
15 A analidade e a oralidade parecem ser dois elementos fartamente explorados nas atividades de lazer. Lembremos de um dos filmes Scooby-Doo, que mostra in loco o certame de eructação e flatos, entre o cachorro e o dono, arrancando gargalhadas e gritos de prazer no público em geral. Também no jogo de VG, D.J. Boy, a flatulência está em destaque numa das fases, é arma poderosa de uma das personagens "do mal" uma mulher negra, gorda, que veste um avental branco (Martinez, 2003).
16 Siebers (1993) considera que o herói, de maneira especular, se mimetiza ao mal para poder vencê-lo, isto é, a sua natureza se torna ou está muito próxima do mal. Constatação que não é difícil de se fazer nos diversos filmes de terror e suspense; em nome do bem, o herói também se transforma em cruel assassino para acabar com o que aterroriza.
17 Em Psicologia de massas e análise do eu (1921/1990), Freud se refere ao herói como o autor da morte do pai da horda primitiva. Ainda sobre a relação do herói e o inconsciente, remeto o leitor ao artigo A nudez (Martinez, 2001).
18 Isso nos lembra a observação de Lacan sobre a agressividade manifesta nos jogos infantis, onde arrancar a cabeça, abrir o ventre de uma boneca e outras "brincadeiras" são naturais, e remete o leitor para os quadros de Hyeronimus Bosch, onde vemos retratadas muito bem essas imagens infantis (Bleichmar & Bleichmar, 1992).
Recebido em agosto/2008.
Aceito em novembro/2008.