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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.14 no.27 São Paulo  2009

 

ARTIGOS

 

Questões sobre a alteridade no autismo infantil

 

Questions about otherness in infantile autism

 

Cuestiones sobre la alteridad en el autismo infantil

 

 

Fúlvio Holanda Rocha

Psicólogo Escolar do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). rochafh@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Apesar das controvérsias, desde sua invenção o autismo é caracterizado como um prejuízo severo do laço com a alteridade. Com o conceito de Outro, recolocamos a pergunta sobre a alteridade no autismo: essa condição subjetiva decorreria da ausência de relação ou da presença de um laço específico com o Outro? A posição autista parece-nos implicar uma tentativa de se proteger do verbo, do campo da linguagem, sendo determinada por um laço específico com um Outro invasivo, que traz a ameaça de tomar os autistas completamente em seu gozo absoluto.

Descritores: psicanálise; autismo infantil; Outro.


ABSTRACT

Since its invention, despite some controversy, autism has usually been characterized as a severe damage to the bond between the autistic child and the otherness. In this work, we discuss otherness in autism by means of the concept of Other: would this subjective condition come from the absence of a relationship with the Other or from the presence of a specific bond with the Other? It seems to us that the autistic situation implies an attempt of protecting oneself from the verb, from the field of language. As a consequence, autism becomes determined by a specific bond to an invasive Other, who threatens to swallow the autistic children in its absolute jouissance.

Index terms: psychoanalysis; autism in the childhood; Other.


RESUMEN

Desde su invención, pese a las controversias, el autismo es caracterizado como un déficit severo del lazo con la alteridad. Con el concepto de Otro, reinstalamos la pregunta sobre la alteridad en el autismo: ¿Esa contradicción subjetiva sucedería de la ausencia de relación o de la presencia de un lazo específico con el Otro? La posición autista parece implicar un intento de resguardarse del verbo, del campo del lenguaje, siendo determinada por un lazo específico con un Otro invasivo, que amenaza sujetar completamente los autistas a un goce absoluto.

Palabras clave: psicoanálisis; autismo infantil; Otro.


 

 

O que se quer dizer quando se denomina uma criança de autista?1 Esse questionamento nos parece ainda importante hoje, pois – a despeito do lugar social (científico ou não) destacado que o tema do autismo infantil vem ocupando – verificamos tentativas de respostas controversas e divergentes, formando um contexto excessivamente polêmico, semelhante ao que já havíamos assinalado (Rocha, 2003).

Apesar de hoje ser considerado por setores científicos como um dos principais transtornos do desenvolvimento infantil, o campo do autismo denota, pelas querelas e posições antinômicas, possuir contornos ainda imprecisos. Além das disputas decorrentes das distintas bases epistemológicas e metodológicas, observamos definições diferentes até entre os de mesmo referencial teórico (Tamanaha, Perissinoto & Chiari, 2008; Rocha, 2003).

Diverge-se também quanto às descrições dos ditos autistas, não estando claro se se fala sobre os mesmos sujeitos. Seguindo os manuais das áreas médica e psicológica com fins de objetividade no diagnóstico do Transtorno Autista (TA), chegamos a inúmeras combinações fenomênicas (APA, 2002). Ademais, cada prejuízo relacionado nas três dimensões determinantes do TA pode se apresentar na prática de maneira diversa. Como exemplo, o prejuízo qualitativo na interação social pode se manifestar em um não-interesse por amizades ou no interesse por amizades, sem a compreensão das convenções sociais (ibid., p. 99). Outrossim, para alguns é índice de autismo tanto uma atitude demasiado abstrata quanto concreta em excesso.

Para os que baseiam o diagnóstico na presença de sintomas, essa situação causa certa dificuldade, fazendo do diagnóstico e da delimitação do autismo "uma decisão clínica um tanto arbitrária" (Gadia, Tuchman & Rotta, 2004, p. 84). O resultado de se introduzir a noção de espectro autista parece ser apenas disfarçar fragilmente a imprecisão da categoria autismo (Maleval, 2003).

A coexistência de quadros clínicos tão variados é um dos principais fatores que faz oscilar enormemente as taxas de prevalência. Dependendo da teoria e dos critérios diagnósticos adotados, a prevalência do autismo oscila entre 0,5 e 16 por 10.000, ocupando o terceiro lugar entre os transtornos de desenvolvimento e sendo mais frequente do que as malformações congênitas do sistema nervoso central e a síndrome de Down (APA, 2002; Carvalheira, Vergani & Brunoni, 2004; Gadia et al.; Rocha, 2003). Se considerarmos também o espectro autista, os índices chegam a 50 por 10.000, levando alguns a acreditar em uma epidemia dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (Gadia et al. , 2004).

Diante disso, foi de grande relevância constatar que, de um modo ou de outro, desde sua invenção como síndrome por L. Kanner, a relação do dito autista com a alteridade parece central (Rocha, 2003).

 

Autismo e alteridade

O termo "autismo" – ao ser formulado por Bleuler polemicamente em relação a Freud – foi cunhado para expressar o isolamento do mundo externo como sintoma da esquizofrenia. O termo foi retomado por Kanner quando da invenção da síndrome, mantendo certa ideia de afastamento do mundo externo, embora em uma perspectiva diferente e de certo modo distorcida daquela proposta por Bleuler (Rocha, 2003; Tafuri, 2002; Cavalcanti & Rocha, 2001).

Em seu texto inaugural, consideramos possível afirmar que as várias características enumeradas por Kanner dependem basicamente de dois fatores: desejo de isolamento extremo e obsessão pela imutabilidade; posição que assume explicitamente em 1956 (Tafuri, 2002; Lampreia, 2004). Esse autor se refere a crises de raiva, de desespero, medos de objetos e situações inusitadas, apego a rotinas, problemas de linguagem, boa memória e potencialidades cognitivas etc. (Kanner, 1997, p. 165). Todavia, tudo parece convergir para a função de garantir o isolamento e a anulação de qualquer marca de diferença.

Em 1943, Kanner (1997, p. 156) afirma que o traço patognomônico seria a "'incapacidade dessas crianças de estabelecer relações' de maneira normal com as pessoas e situações, desde o princípio de suas vidas". As dificuldades de contato com as pessoas seriam bastante características: ou inexistiria (como se as crianças bastassem a si mesmas ou estivessem fechadas em uma concha, agindo com se os outros não estivessem ao seu redor…) ou o contato seria apenas o suficiente para se desvencilhar das pessoas (atendendo as ordens de modo mecânico, sem iniciativa), parecendo ser-lhes indiferentes e sem afeição.

Já a relação com os objetos seria diversa. Ainda que mostrassem pobreza imaginativa, podiam passar o dia manuseando-os. Inclusive, assinala que, quando partes do corpo do outro eram tratadas como objetos, essas crianças poderiam mesmo aceitar o contato. Destacamos que, a despeito de Kanner tender a interpretar nesse texto os comportamentos e falas de autistas apenas como expressão do deficit, parece haver por trás dessa aparente passividade uma tentativa de evitar a interferência do outro, que, quando não obtida, ocasionava grande agitação, ansiedade, pânico ou cólera, como se as crianças vivenciassem como um ato intrusivo assustador. Preferimos, então, afirmar que há mais propriamente uma exclusão ativa do outro (Rocha, 2003; Cavalcanti & Rocha, 2001). De toda maneira, parece-nos ser a relação com a alteridade que se sobressai na descrição inaugural de Kanner.

Para os psicanalistas que acolheram entusiasticamente de imediato a invenção de Kanner, as vicissitudes da relação criança-mundo exterior mantiveram-se como centrais. Não obstante as peculiaridades teóricas de cada autor, parece comum a visão do autismo como a patologia mais primitiva que desvelaria um mínimo ou mesmo a ausência de subjetividade. Em geral, podemos dizer que esses autores se apegam à imagem de que o dito autista se encontraria em um mundo pré-verbal, primitivo e dominado por sensações, tornando deficitário o reconhecimento da realidade (do outro), em virtude de uma indiferenciação eu-mundo externo (Rocha, 2003; Maleval, 2003).

Entre as denominadas teorias cognitivistas e afetivas (desenvolvimentistas), que nas últimas décadas ganham força no debate sobre o autismo, a interação social sofreria aí de um deficit básico. A oposição nos anos 1970-80 entre essas teorias era em saber se o dano na interação social, característico do autismo, seria primário ou secundário ao prejuízo no desempenho linguístico. A tendência atual é "considerar que está implícita, no conceito de interação social, a ideia de comunicação e que nesta está implícito o conceito de interação social" (Lampreia, 2004, p. 112). Assim, integram os aspectos sociais e linguísticos, compreendendo o autismo como um deficit relacional.

Dessa maneira, se é a relação com a alteridade que parece perpassar a história do autismo, formulamos a hipótese de que a leitura lacaniana da obra de Freud pode contribuir para esse debate ao oferecer outra inteligibilidade ao tema por sua maneira peculiar de conceber a alteridade.

 

Sujeito, outro e Outro

Para Zenoni (1991), as correntes psiquiátricas, psicológicas e a psicanálise de viés psicogenético realizaram inúmeras pesquisas visando à comprovação de que as anomalias orgânicas ou as falhas do ambiente seriam os fatores responsáveis pelo deficit autístico. Mais atualmente, verificamos ainda esse apego a essas duas ordens causais (Grupta & State, 2006). Contudo, parece-nos que, mesmo com todo avanço dos estudos em genética, permanece polêmico afirmar a etiologia orgânica e/ou ambiental, embora alguns autores professem essa crença como princípio. Assim, permanece produtiva a crítica de Zenoni (1991, p. 102) de que por um passe de mágica o fracasso de que nem uma e nem outra hipótese fora comprovada como causação do autismo se converteu em uma e outra simultaneamente, ou seja, sem justificativa epistemológica plausível, transformaram a não verificação da validade da hipótese biológica ou da ambiental na comprovação da ação interativa das duas. Isso só se explica se o plano de causalidade psicopatológica for reduzido ao confronto eu-outro, isto é, aos termos orgânico (inato) e ambiente (representado pela estimulação produzida por outro semelhante, em geral a mãe). O raciocínio seria mais ou menos o seguinte: se não é uma nem outra isoladamente só pode ser as duas concomitantemente, uma vez que não há mais nenhuma outra determinação causal para explicar a existência desses pequenos sujeitos batizados pelos adultos de autistas.

Por isso, vale lembrar a afirmação de Zenoni de que aquele plano de causalidade psicopatológica, quando adotado por psicanalistas, engendra uma contradição por ser pré-freudiano. O autor afirma que a referência de Freud à pré-história, filogênese, mito, assassinato do pai primordial, fantasia são algumas formas de firmar que o plano de explicação da psicopatologia humana é prévio à interação do indivíduo com seu ambiente, uma vez que esta interação já está no campo dos efeitos.

Assim, além daquela criticável operação epistemológica, essa perspectiva esbarra sempre na dificuldade de estabelecer na relação concreta, recíproca (simétrica) com o outro a motivação do autismo. Isso só serviu para incentivar uma disputa de culpabilização parental: de um lado, historicamente, a tese da ação (real, observável) inadequada da "mãe" (primeiro cuidador), levou a acusações aos pais de serem frios emocionalmente, de não amar os filhos suficientemente, de não saberem estimulá-los. Por outro lado, a proposição de um dano orgânico primário retirava qualquer implicação dos pais na vicissitude dos filhos.

Contudo, a conceituação lacaniana acerca da alteridade pretende ultrapassar essa dicotomia da causalidade psicopatológica no indivíduo, uma vez que o campo da alteridade é cindido entre o outro (o semelhante) e o Outro. Mas, assinalar que o nascimento subjetivo não coincide com o biológico não significa que o orgânico e o ambiental devam ser descartados, mas sim inseridos no campo da linguagem. Em Lacan, isso é possível, pois a constituição de um sujeito se dá relativamente ao Outro.

 

Outro lacaniano

O conceito de Outro foi elaborado por Lacan durante toda a sua obra, tendo vários usos. Não pretendemos aqui acompanhar todas as suas matizes, mas delimitar aspectos centrais que frequentemente são postos em jogo por psicanalistas que refletem sobre o autismo.

A definição inicial de Outro aparece nos anos 1950, no cerne do projeto lacaniano de retorno a Freud, a partir da máxima de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, ou seja, de que há uma analogia estrutural entre o inconsciente e a linguagem, sendo esta a condição daquele. Isso significa que são com as leis do significante que nos havemos no funcionamento inconsciente, pois a estrutura da linguagem desvela o predomínio da ordem do significante sobre a do significado.

O Outro é o lugar da cadeia de significantes, o tesouro dos significantes fundamental na constituição subjetiva. Lacan o define também como o lugar da cultura, o campo da linguagem, sendo um sistema mediante o qual podemos referenciar as manifestações fenomênicas, pois não possuem sentido em si na proporção em que "a realidade é marcada de saída pela aniquilação simbólica" (Lacan, 1988, 171). O Outro é o lugar de onde se toma emprestado as palavras para que se possa dizer algo, ou seja, para um sujeito se servir de sua língua é preciso o atamento ao Outro. Em consonância, Miller (1988, p. 22) define: "o Outro é o grande Outro (A) da linguagem, que está sempre já aí. É o Outro do discurso universal, de tudo o que foi dito, na medida em que é pensável". O Outro é, assim, o universo prévio da linguagem, a partir do qual a existência pode adquirir algum sentido.

Essa noção radicaliza a ideia de exterioridade ao sujeito. Se falamos com quem nos identificamos, dirigimo-nos a algo que se perfila atrás desse semelhante. Esse lugar terceiro (o Outro) se põe além da relação imaginária entre o eu (especular) e o outro, mas é o que permite a estabilidade dessa relação, uma vez que garante haver sentido no que se diz (logo, constituindo o sujeito como falante).

É interessante ressaltar que, não só na sua estabilidade, mas na própria instauração da relação imaginária, o Outro já toma parte. Isto repele uma lógica desenvolvimentista para pensar a subjetividade que põe a instauração da relação especular (imaginária) primeiro, para depois ocorrer a entrada do significante. No Estádio do Espelho, se produz uma miragem de unidade corporal com a qual o infans irá se identificar, antecipando (pois, imaturo organicamente) de modo ortopédico uma forma de totalidade de seu corpo. Mas Lacan (1998a, p. 685) assinala ser um equívoco esquecer que, já nesse momento, é necessário o Outro para autenticar a assunção da imagem por parte do sujeito (para ocorrer a identificação especular), pois o Outro deve destinar aí um lugar no Ideal do eu de quem o encarna; bem como adverte que a "estrutura de presença" aí evocada para este reconhecimento é de um lugar terceiro (simbólico) que "não deve nada à anedota do personagem" que o encarna.

A importância do Outro na constituição subjetiva fica ainda mais evidente no processo de inscrição da metáfora paterna, central no pensamento lacaniano na década de 1950. A incidência da ordem da cultura sobre o infans, permitindo-o sair de sua condição de organismo, se dá no campo da fantasia e desejo "parental" (desses adultos do entorno). A criança ao nascer já tem que se haver com um lugar simbólico destinado a ela. Alguém desse entorno ocupa o lugar de Outro, tomando, conforme seus desejos, sons e movimentos do infans como portadores de sentido, logo, supondo um sujeito que demanda.

À criança não resta outra saída senão se assujeitar a essa investida do Outro para que algum sentido possa surgir e a experiência de satisfação seja tecida, de modo que "se o desejo da mãe é o falo, a criança quer ser o falo para satisfazê-lo" (Lacan, 1958/1998a, p. 700). Dessa forma, o Outro (encarnado por mãe, pai, babá…) submete o infans a seu saber, fixando-o sob certos significantes, a partir dos quais é recortada a imagem do corpo unificado.

Para sair dessa condição de objeto de desejo é necessária a intervenção da Lei paterna (Lacan, 1988; 1998b). Essa Lei opera quando é inscrito no lugar do Outro o significante Nome-do-Pai, provocando um furo no saber do Outro, até então, completo, absoluto. Isso significa que se trata de uma lei que interdita a captação do outro como falo imaginário e que o pai entra em jogo como significante.

A inscrição do Nome-do-Pai se faz por uma operação metafórica (substituição significante) denominada de metáfora paterna (Lacan, 1998b). Esse novo significante se inscreve no Outro ao metaforizar os significantes do desejo "materno", aquele primeiro saber a que se submete o infans. O Nome-do-Pai é o agente dessa metáfora "que coloca esse Nome em substituição ao lugar primeiramente simbolizado pela operação de ausência da mãe" (Lacan, 1998b, p. 563). Os efeitos metafóricos podem ser resumidos na possibilidade de significação fálica: a inscrição do falo como "o significante destinado a designar, em seu conjunto, os efeitos de significado, na medida em que o significante os condiciona por sua presença significante" (Lacan, 1998c, p. 697). Isso possibilita a condição de se atribuir significado ao objeto de desejo "materno" (ao enigma do que o infans era nesse desejo), permitindo ao sujeito se situar no tocante ao sexo e à sua existência: como homem ou mulher na sexuação e a possibilidade de não ser.

Com a operação da metáfora paterna, o Outro está irremediavelmente dividido. Dado que a inscrição do falo no Outro, como significante do desejo "materno", remete a uma falta estrutural, não há nesse lugar um significante último ao qual todos os outros se remeteriam, fazendo com que inexista um Outro do Outro. O significante falo, assim, aponta que o objeto primordial do desejo está além da ordem simbólica. Logo, a questão sobre o objeto do desejo do Outro permanece em aberto, não podendo ser fixada em certo significado ou imagem absoluta à qual o sujeito deveria se colar. O Nome-do-Pai retira a significação do objeto de desejo do capricho de um Outro absoluto, inscrevendo o Outro não só mais como lugar dos significantes, mas também como o portador da lei que orientará a busca e a identificação com atributos fálicos. A ordem simbólica não pode significar tudo, mas isso não impede de se obter alguma significação para a existência. Portanto, com a inscrição da lei paterna no Outro temos a emergência de um sujeito do desejo (condição da estrutura neurótica).

Essas considerações sobre a função do Outro na constituição subjetiva são redimensionadas (e não meramente abandonadas) com as operações de causação do sujeito elaboradas por Lacan em 1964 (Lacan, 1993). A alienação e a separação devem ser entendidas como momentos lógicos e não cronológicos, o que não autoriza pensar as vicissitudes subjetivas como paradas no desenvolvimento.

A operação de alienação corresponde à tese de que o sujeito nasce sob um significante que o petrifica. Assim, se "o sujeito, in initio, começa no lugar do Outro, no que é lá que surge o primeiro significante" (p. 187), então, a posição subjetiva inicial para qualquer sujeito é a de ser falado, representado pelos significantes provindos do Outro. Soler (1999) afirma que essa posição é a de ser suposto, subposto, posto embaixo dos significantes do Outro, à proporção que se é objeto da fala do Outro, que antecede o surgimento de qualquer sujeito.

Mas a operação de alienação implica uma escolha em que sempre há uma perda, divisão, pois o sujeito só pode surgir na captura significante e esta não contempla a totalidade de seu ser. Para ter representação, só resta ao sujeito desconhecer o que pode ser além do significante. Para Lacan (1993, p. 188), "o sujeito é esse surgimento que, justo antes, como sujeito, não era nada, mas que apenas aparecido, se coagula em significante", ou seja, o significante reduz o sujeito "a não ser mais do que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com que o chama a funcionar, a falar, como sujeito" (p. 187). Essa cristalização sob significante corresponde a afânise, desaparecimento letal do sujeito.

Lacan (1993) representa essa operação, diferenciando o vel da alienação de dois outros usos do conector latino "ou" (o vel exaustivo e o inclusivo). O vel da alienação se expressa na forma lógica da reunião e implica uma escolha forçada, pois um mesmo termo sempre está excluído. A operação que faz surgir o sujeito no campo do Outro, leva aquele a optar entre o ser (condição de puro vivo) e o sentido (existência sob o significante). O termo sempre excluído é o ser, uma vez que, para existir como sujeito, é preciso que se petrifique sob o significante, perdendo uma parte do seu ser.

Contudo, para a emergência de um sujeito do desejo, é preciso ainda a torção lógica operada pela separação. A forma lógica aqui é o produto, ou seja, a interseção entre o que é comum a dois conjuntos. Mas, entre o sujeito e o Outro, o ponto comum é a existência de duas faltas que se recobrem, sendo a separação o produto de dois vazios.

Uma falta é posta em jogo pelo discurso do Outro primordial. Isto é verificável na medida em que "nos intervalos do discurso do Outro, surge na experiência da criança o seguinte, que é radicalmente destacável – ele me diz isso, mas o que é que ele quer?" (p. 203). Soler (1997) destaca que aqui não é mais um Outro cheio de significantes, na separação há um Outro a que falta algo. Esta impossibilidade de tudo dizer, em outras palavras, do dito estar sempre aquém ou além do que se quis dizer, faz emergir a dimensão do desejo do Outro. A outra falta é trazida pelo próprio sujeito, por sua condição de perda de ser: "uma falta engendrada no tempo precedente que serve para responder à falta suscitada pelo tempo seguinte" (Lacan, 1993, p. 203). O recobrimento dessas duas faltas significa uma torção na medida em que promove um retorno ao ponto inaugural de sua afânise, como resposta à falta no Outro primordial.

O efeito desse produto é a queda do objeto a. Pela função desse objeto, "o sujeito se separa, deixa de estar ligado à vacilação do ser, ao sentido que constitui o essencial da alienação" (p. 243). Ao cair esse objeto, é produzida uma subtração de gozo em relação ao qual o sujeito ainda terá que se haver, ou seja, com algo não representável, não abrangível pelo significante. Assim, desde que a separação opere, o sujeito tenta representar o gozo no interior do Outro, mas, só pode inscrever aí um gozo parcial (Laurent, 1997, p. 38). No entanto, por outro lado, pode sair da posição de ser objeto da fantasia "materna", condensador de gozo para tentar se definir mediante sua fantasia, sustentando-se como sujeito de desejo.

 

Autismo e Outro

Diante desses delineamentos da função do Outro na subjetivação, a primeira pergunta sobre o que se quer dizer com autismo no referencial lacaniano passa a ser se essa condição desvela uma ausência de relação com o Outro ou qual relação peculiar se constitui, que não leva a um sujeito do desejo.

Percorremos textos de psicanalistas lacanianos e percebemos grande dificuldade em conceber uma relação do dito autista com o Outro (Rocha, 2003). Isso, principalmente, em virtude do alheamento e de sintomas indicando uma fragmentação do corpo cujos orifícios parecem não fazer borda, em que saliva e excrementos muitas vezes escorrem incontinentes. Desse modo, muitos, ante à constatação unânime do dito autismo desvelar uma problemática pré-especular (denotada na não construção de uma unidade corporal), sustentaram a tese da ausência de Outro, assinalando também como índices de ausência: o mutismo ou emissão de sons isolados, frases, mas sem enunciação; escassa vida imaginativa; indiferença a pessoas; não-sustentação do olhar; surdez à voz humana; apresentar-se amorfo e mesmo a regularidade mecânica no funcionamento orgânico, enfim, fenômenos clínicos que aparentam passividade.

Esse posicionamento parece ter se originado em certas teses de M.-C. Laznik que definem o autismo como "o fato de permanecer aquém do registro da alienação" (Laznik-Penot, 1997, p. 178), ainda que em textos mais recentes a autora indique ter recuado em algumas delas, como sobre a falta do olhar fundador do Outro primordial como determinante do autismo (Laznik, 2004). No entanto, como constataram Rocha (2003) e Kupfer, Faria e Keiko (2007), pode-se encontrar esse posicionamento em outros autores ao pensarem o autismo como um fracasso da operação de alienação, uma vez que ninguém do entorno da criança ocuparia o lugar de Outro, impossibilitando a emergência de um sujeito.

Apoiados, em geral, naquelas teses de Laznik, afirmam que esse fato repercutiria nas dimensões simbólica (relativa à falta de significantes que demarcassem a criança), real (à não instalação do circuito pulsional) e imaginária (à não instauração da imagem especular), que, na verdade, fazem parte de um mesmo e único processo de alienação. Acerca da primeira, apoiam-se na afirmação de que, sem a alienação, o infans não se submeteria aos significantes do Outro, fazendo as produções infantis (gestos, sons…) caírem no vazio por falta do reconhecimento simbólico, assemelhando-se a puras descargas motoras (Laznik-Penot, 1998).

No que tange à dimensão real, formula-se que só surgiria um sujeito da pulsão se houvesse a efetivação de um terceiro tempo do circuito pulsional. Esse seria o tempo de se fazer objeto de um outro que, assim, se encontra no lugar do Outro. Sem o fechamento do circuito, o corpo do autista não formaria limite, bordas, ou seja, poder-se-ia pensar o autismo como um quadro clínico que desvela a ausência de Eros, "sem que se possa retorquir que, já que há vida, manutenção da vida, é porque há pulsão em funcionamento" (Laznik-Penot, 2000, p. 79). Repete-se aí, de certo modo, Bleuler para quem autismo é autoerotismo sem Eros. Portanto, o dito autista sobreviveria somente como um organismo regulado pela necessidade e não pela pulsão.

O fracasso da alienação também significaria o impedimento da assunção da imagem especular formadora do eu ideal. Não se constituiria uma imagem que deveria se formar previamente para e no Outro, a partir da qual o infans demandaria confirmação ao Outro de que seria ele (o infans) nessa imagem. Seria esse tempo da afirmação da imagem – uma oferta do Outro, ao imaturo infans antes de qualquer demanda deste – que faltaria no autismo. Dessa forma, a condição autista seria explicada pela ausência de laço com o Outro.

Contudo, também verificamos enormes dificuldades em negar a existência desse laço com o Outro (Rocha, 2003). Primeiro, observamos que a hipótese de não haver relação com o Outro e sua correlata de que inexiste pulsão no autismo impõem o seguinte dilema teórico: ou o autismo é uma subjetivação sem pulsão e Outro (obrigando a reconhecer os limites da Psicanálise como demasiados estreitos, pois aí a pulsão é um conceito fundamental para se entender a vida humana) ou inexiste subjetivação no autismo. Essa última leva a recusar às crianças que nomeiam de autistas o que é peculiar à condição humana e faz pulular, em certos textos expressões, indicando a necessidade de fazê-las entrar no mundo humano, apesar de serem raras as descrições clínicas nas quais se possa ir tão fundo nessa suposição. Se estão fora do que é humano, onde as situar?

Para a Psicanálise, afirmar que a constituição subjetiva não se processou faz existir o dito autista apenas na qualidade do vivo, do nada a que se refere Lacan. Consideramos que essas conjunturas só podem ser aceitas se equivocadamente tomarmos a neurose como sinônima de mundo humano, analogamente à nulificação subjetiva dos "loucos", historicamente promovida pelo saber psiquiátrico na medida em que se recusava pensar a diferença senão como erro, deficit, patologia a ser corrigida quando possível ou então a reclusão.

Mas, seria possível afirmar a inexistência de laço com Outro? É preciso observar de início que, em geral, os pais falam destas crianças, inclusive constroem teorias nas quais expressam saber com toda certeza sobre o avatar subjetivo dos filhos – como atestam os depoimentos nas consultas com uma infinidade de especialistas procurados para tratamento, situação reforçada pelas crianças estarem em muitos saberes especialistas apenas como objeto, só importando em sua doença. Parece haver aí a condição dessas crianças serem faladas pelos outros, tomadas em um saber absolutizante de especialistas.

Além disso, há outra forte razão para não aceitarmos a tese de ausência de relação com o Outro no autismo, ainda mais decisiva porprovir da clínica (Egge, 2008, p. 149; Rocha, 2003). É possível constatar nos relatos de tratamento feitos por vários psicanalistas, inclusive entre os que negam o laço com o Outro, a existência no discurso parental de significantes balizadores das vicissitudes subjetivas das crianças e mesmo o assinalamento de lugar na fantasia "materna", ainda que seja o de nada. Também surgem nesses relatos momentos em que as crianças são ativas, agitadas e mesmo automatizadas, de modo que o quadro não pode ser descrito somente como desvitalização (Rocha, 2003).

Ademais, mesmo nos ditos comportamentos passivos há algumas peculiaridades. Mais do que não olhar, não sustentar o olhar, por exemplo, os denominados de autistas parecem desviar, evitar o contato direto pelo olhar, como se pode observar na descrição de um bebê torcendo o pescoço para o lado oposto de quem o segura. Em outros casos, apresentam uma seletividade na sustentação do olhar, que pode ocorrer em certas situações e não em outras – constatação relatada também por representantes de outras teorias (Lampreia, 2004, p. 115). Mais do que não sustentar, não fixar o olhar, essas crianças talvez não possam olhar, ou, mais precisamente, não possam não evitar o olhar, não possam não desviar, pois não nos parece haver aí uma mera casualidade, mas uma ativa exclusão do encontro com os olhares dos adultos, denunciada pela seletividade nos quais ocorrem. Logo, isso não seria somente constatar a negatividade de uma ação (não olhar), mas assinalar para uma ação negativa (rejeitar, repelir, evitar o olhar).

O mesmo parece assinalável para a surdez de certos autistas. Parece ser específica à voz humana e/ou se nota que se muitas vezes agem com indiferença ante a fala dos outros, em outros momentos acompanham atenta e seletivamente. Também a repetição "mecânica" dessa ou daquela frase não pode ser simplesmente reduzida à passividade, visto que há uma seleção do que se repete, são umas, mas não outras frases que são fixadas. Mas, se evitam, se desviam, do que se protegem? Como, então, explicar essa exclusão ativa?

Poderíamos argumentar que esse evitamento decorreria exatamente da falta de Outro fazendo com que, por exemplo, a criança ao notar a ausência de construção da imagem primordial pelo Outro se defenderia desviando o olhar, virando o rosto? Mas, se de início é o Outro quem oferta, a criança não tem intenção, não demanda a priori, o que a predisporia esperar dali tal imagem? Poderíamos, então, dizer que sem investimento do Outro não se formaria o aparelho psíquico e só restaria ao autista fechar seu campo perceptual ante um estímulo forte e a investida dos outros? Mas, como explicar a seletividade manifestada no que é evitado ou o fato de que às vezes o contato é possível? Se a criança não está concernida na dinâmica subjetiva dos adultos de seu entorno, sendo apenas um mero organismo, como entender que o tratamento os mobiliza subjetivamente?

Ora, mas se alguns psicanalistas assinalam que os adultos do entorno lidam com a criança autista "silenciosamente", apenas na necessidade ou ainda de forma mecanizada, isso não se deveria ao fato dela ser colocada na posição de objeto para tais adultos que se arvorariam inconscientemente de donos absolutos de seu corpo, como, por exemplo, quando alguém retira um objeto da boca da criança sem pedir ou falar nada, como se removesse algo da própria boca?

Para Zenoni (1991), o autismo desvela uma tomada absoluta, sem limite, da criança no campo da linguagem. Não se trata de uma parada ou um bloqueio na via de humanização, mas que as crianças autistas estão presas completamente nesta dimensão do Outro que nos especifica como humanos. Os fenômenos de não apontar, tomar a mão do outro para pegar um objeto, por exemplo, demonstrariam que a criança só tem lugar no simbólico como prolongamento do Outro, fato decorrente da posição infantil como objeto do gozo absoluto de um Outro intrusivo que se apodera sem lei do ser do infans.

Também para Egge (2008), o autista está na linguagem. Isso significa que, como qualquer um, recebe sua condição da relação com o significante. Porém, não se faz representante do significante, uma vez que vem saturar a falta no Outro alienante e mortífero, ao realizar no real a presença do objeto da fantasia.

Mas, então, a hipótese de haver um Outro absoluto pode explicar a desvitalização e automatização da criança dita autista?

Soler propõe que a posição subjetiva das crianças autistas é a de puro significado do Outro. Isso significa que "essas crianças são sujeitos, mesmo que elas não falem, uma vez que são tomadas no significante pelo fato de se falar delas; no Outro há significantes que os representam". Essa é a posição de ser "representado, sub-posto/suposto, posto embaixo dos significantes que o representam no Outro … aliás esta é a primeira emergência de todo sujeito, qualquer que ele seja" (Soler, 1999, p. 222, grifo nosso). Essa posição é a de objeto do discurso do Outro; o que nos faz relembrar a situação do autista que é falado incessantemente pelo saber dos especialistas (sejam pais ou não). Essa posição indica que mesmo sendo sujeitos, os autistas não são capazes de enunciação, não sendo possível inverter a mensagem do Outro.

Nessa condição, o sujeito autista estabelece uma relação com o Outro que é o paradoxo da posição primeira de todo sujeito: de como puro efeito do significante provindo do Outro, pode devir falante, desejante e animado de libido, ou seja, como articular sujeito do significante e gozo. O autista confrontado com um Outro absoluto (no qual não foi inscrito nenhuma falta), suposto em seus significantes, quando surge animado de libido, essa só pode ser do Outro, o que permite, ainda segundo Soler (1999, p. 222), "sua inclusão no lugar do Outro". Mas a estabilidade da posição autista dependeria de certa imobilidade do Outro, pois este, ao se "mexer", proliferar demandas, acrescentar significantes, pode produzir o apagamento do sujeito autista, uma vez que inexiste uma cadeia significante para suportá-lo. Isso faz com que toda atividade do autista vise a "manter uma espécie de homeostase, em travar a dialética da palavra" (Soler, 1999, p. 226), agarrando-se a umas poucas demandas estereotipadas. Nesse sentido, Egge (2008) afirma que essas atividades repetitivas são tentativas do dito autista de frear o gozo, a bem dizer, tentativas falhas, apesar do ritmo e da repetição já serem um primeiro esboço do simbólico.

Em decorrência, Soler assinala que as crianças autistas se comportam como se fossem perseguidas pelos signos de presença do Outro, sendo que a autora inclui aí tudo que é imprevisível, que sai da rotina (desde um deslocamento brusco a um ínfimo movimento). Outros comportamentos das crianças autistas são tentativas de anulação do Outro, com a evitação do olhar, da voz. Haveria também rejeição da palavra do Outro que intima, tendo a ausência de apelo como contrapartida. Por fim, decorreria ainda uma dificuldade concreta de se separar do adulto (que ocupa o lugar de Outro).

Essa posição subjetiva do dito autista é representada por Soler (1999, p. 229) mediante a fórmula da alienação: "ou ele é puro vivente, sem libido, no sentido do desejo, portanto, inerte, ou ele se torna uma máquina significante, ele é maquinizado". Em outras palavras, o campo do ser e do sentido, postos em diagramas por Lacan no Seminário 11, de uma parte, não se interpenetrariam, contudo, de outro, estariam reunidos por um ponto no qual o Outro invade o vivo, capturando o dito autista, mecanizando-o pelo significante. Daí, compreendemos que quando a autora assinala que o dito autista estaria em um "aquém" da alienação, é no sentido de permanecer na "borda", posição que não deixa de estar marcada pelo significante, logo, pelo Outro em relação ao qual aparece quer como em continuidade, quer desvitalizado quando o Outro se afasta. Dessa maneira, os comportamentos se distribuiriam, grosso modo, em dois estados: ou de torpor, no qual a criança parece uma massa amorfa, inerte; ou de automatização.

Segundo Egge (2008), o trabalho da criança autista se estruturaria em uma dupla operação. Por um lado, a autodefesa (o autoisolamento, evitando se tornar marionete do Outro), por outro, a autoconstrução (contando apenas com a estrutura elementar do simbólico do ritmo e da repetição).

Portanto, na condição autista o balizamento das fronteiras com o Outro é afetado, resultando nos problemas de constituição imaginária, assim como do funcionamento pulsional, porquanto depende das demandas do Outro. Com isso, podem surgir ora o deficit motor (no controle dos esfíncteres, andar, coordenação do movimento, por exemplo), visual, da linguagem..., ora, os desempenhos superiores (Soler, 1999). Dessa forma, a aparente passividade e a atividade que assinalamos acima se apresentam nos relatos clínicos, a partir de um laço peculiar com o Outro.

 

Comentários Finais

Em nosso percurso, chamaram-nos a atenção, de forma decisiva, os dados dos tratamentos das crianças autistas. Apesar das explicações dos psicanalistas tradicionalmente apontarem para uma inércia psíquica em que se sobressai uma não-ação dessas crianças, em seus relatos nos deparamos com uma atividade infantil de virar-se de costas para não se defrontar com o outro, tapar os ouvidos, torcer o pescoço, baixar, desviar o olhar. Não se trata apenas da não sustentação do olhar, mas, possivelmente, de não poder não evitar o olhar. Ora, então, o que evitam, do que se furtam, senão da invasão avassaladora do Outro?

Julgamos, assim, pertinente pensar a condição das crianças ditas autistas como uma vicissitude na alienação. Não se trata de uma ausência de subjetivação, mas exatamente da forma como o campo da linguagem as concerne, da incidência do Outro como uma "presença" invasiva, excessiva, não confrontada com um vazio, com um tempo de ausência. É desse Outro não subtraído de gozo que essas crianças parecem se proteger.

Essa concepção parece se aproximar das esparsas observações explícitas de Lacan sobre esse tema. Em uma delas, em outubro de 1975 na conferência de Genebra sobre Le symptôme, Lacan (1998d, p. 12), ao serquestionado sobre os autistas e após dizer que é difícil imaginar seres que nunca escutam nada, pois escutar faz parte da palavra, propõe: "como o nome indica, os autistas escutam a si mesmos. Eles ouvem muitas coisas … nem todos os autistas escutam vozes, mas eles articulam muitas coisas e trata-se, precisamente de entender onde escutaram o que articulam". Na continuação, afirma a seu interlocutor que essas crianças não o escutam enquanto se ocupa delas, lembrando que ainda assim há algo a dizê-las e conclui: "trata-se de saber por que há algo no autista, ou no chamado esquizofrênico, que se congela, se se pode dizer isso. O senhor, porém, não pode dizer que ele não fala. Que o senhor tenha dificuldade para escutá-los, para dar seu entendimento ao que dizem, não impedem que sejam, finalmente, personagens bastante verbosos." (Lacan, 1998d, p. 12).

Algumas semanas depois, em dezembro de 1975, nas conferências e entrevistas nas universidades americanas, Lacan observa que "há aqueles para quem dizer algumas palavras não é tão fácil. Chama-se isso de autismo.É ir rápido demais. Não é em absoluto necessariamente isso. Simplesmente são pessoas para quem o peso das palavras é muito sério e que não estão facilmente dispostas a estar à vontade com essas palavras." (Lacan, 1976, pp. 45-46, tradução nossa)

Essas considerações nos parecem apontar para a imersão dos autistas na linguagem, em uma captura sem limite, sendo personagens bastante verbosos, ainda que não falem, ou ao menos não os escutemos, quando os sujeitamos aos nossos cuidados. Ora, por que falar, se estão invadidos pela linguagem, escutando a si mesmos? Trata-se, então, não do Outro da separação, mas de um Outro não barrado, submetendo a criança dita autista a um significante S1, tornando o peso das palavras sério, na medida em que a dialética da palavra ameaça essa posição infantil. Portanto, para lidar com a criança dita autista é preciso levar em conta o posicionamento subjetivo presente, de maneira que não se reforce essa postura de saber absoluto, auxiliando em seu trabalho de construir uma alternativa para um invasivo Outro absoluto, o que de modo geral não difere da ação de qualquer outro sujeito, uma vez que "toda formação humana tem por essência, e não por acidente, refrear o gozo" (Lacan, 1992, p. 3, grifo nosso).

Dessa maneira, afirmar uma invasão avassaladora do Outro é considerar que, atualmente, não obstante tensionar os limites teóricos, a tese levantada por alguns psicanalistas de inexistência de laço com o Outro no caso do dito autismo não parece se sustentar (embora, a clínica sempre possa nos apresentar novos casos que exijam reformulações teóricas). Ademais, é lembrar que, malgrado nossa vontade, a linguagem produz efeitos, porém de modo diverso em cada condição, disponibilizando a uns maiores recursos psíquicos e outorgando estilos diferentes para refrear o gozo que é o labor fundamental de todo ser humano. Portanto, é se permitir aprender – ao não encontrarmos as formas subjetivas a que nos habituamos, como por exemplo, as da neurose e seus recursos subjetivos que permitem certa inscrição do gozo no campo do Outro – outros modos de existir.

Logo, por mais que se argumente a recusa deste sujeito ao que nos fundamenta como humanos, afirmamos que, com os recursos subjetivos que lhes são disponíveis, essas crianças denominadas de autistas fazem o que todo sujeito humano precisa fazer para manter-se subjetivamente.

Por último, gostaríamos de assinalar que o campo do autismo, apesar das controvérsias, mostra-se potencialmente fecundo para novas pesquisas. Dentre os temas de maior relevância, mas que não desenvolvemos aqui por fugir de nosso objetivo que foi se perguntar sobre a relação entre autismo e alteridade, está o debate sobre os tratamentos clínico-institucionais com essas crianças, como os que se fazem na perspectiva de um tratamento do Outro (Egge, 2008; Zenoni, 1991).

Considerando que o dito autista dispõe de limitados recursos simbólicos, em virtude da fragmentação significante, no tratamento é necessário sair da posição de todo saber, de dar sentido a tudo o que faz a criança, de um Outro que goza plenamente deste sujeito. Para tanto, é preciso suportar o movimento inicial da criança de anular radicalmente o outro. Tratar o Outro não é refazê-lo ou enxertá-lo onde ausente, mas criar outra Alteridade, uma que seja alternativa a existente, permitindo pacificar, abrandar esta invasão de gozo. Isto nos parece corresponder ao depoimento unânime de que os tratamentos dessas crianças foram alvo de uma reviravolta, quando este que estava no lugar de Outro confessa de forma não calculada sua impotência em entender a criança, em consentir em algum ato, em saber o que fazer; enfim, enunciando de sua própria falta na qualidade de Outro barrado.

Contudo, outro campo de pesquisa que se delineia são estudos que retracem historicamente a produção da ideia de autismo infantil. Temos como hipótese, após pesquisa anterior (Rocha, 2003), que o lugar no imaginário social angariado pelo autismo e a sedução provocada em muitos – manifestada no fascínio e no horror tão comumente relatados, inclusive pelo próprio Kanner (1997) na primeira frase de seu escrito inaugural – não parecem se dever somente à novidade do que se acredita ter sido a descoberta do autismo. Talvez, não seja mera coincidência que a dificuldade de se relacionar, compartilhar os afetos, medo do outro seja comumente associadas à contemporaneidade. Por outro lado, não esqueçamos que a invenção de Kanner pode ser considerada a categoria essencial na fundação da psicopatologia e psiquiatria infantil moderna – derradeiro ato de um processo iniciado por J.-M. Itard 150 anos antes – na medida em que é o primeiro quadro nosográfico construído sem ter como modelo as categorias da psicopatologia do adulto (Gineste, 2000). Como aponta Maleval (2003), rapidamente a ideia de autismo foi relacionada com a de originário e se substituiu o adjetivo precoce por precocíssimo, o que faz situá-lo em um suposto tempo anterior aos dos mitos de origem: em uma espécie de elo perdido ou ponto zero da subjetividade, sem que se pergunte se não seriam, antes, os limites de nossas teorias de compreensão da vida humana que se mostram estreitos demais. Quiçá, ao fazer a genealogia das relações entre as referências ao originário, o precocíssimo, autoisolamento, laços sociais frágeis e a infância também entendamos um pouco mais sobre o autismo e como se produzem as subjetividades atualmente.

 

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NOTA

1 Essa pergunta norteou a elaboração da dissertação de mestrado – Elementos psicanalíticos para se pensar o autismo na infância – desenvolvida no LEPSI/FeUSP (Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais Sobre a Infância na Faculdade de Educação da USP), financiada pela CAPES e orientada pelo prof. Dr. Leandro de Lajonquière, a quem se faz um agradecimento especial.

 

 

Recebido em junho/2009.
Aceito em outubro/2009.

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