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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.15 no.2 São Paulo dez. 2010

 

FUNDAMENTOS

 

A invenção da psicanálise e a correspondência Freud/Fliess

 

The invention of psychoanalysis and the Freud/Fliess correspondence

 

La invención del psicoanálisis y la correspondencia Freud/Fliess

 

 

Paulo Eduardo Viana Vidal

Psicólogo, psicanalista, professor associado da Universidade Federal Fluminense. pvidal@vm.uff.br

 

 


RESUMO

O presente artigo procura demonstrar que a correspondência Freud/Fliess foi um dispositivo essencial para invenção da psicanálise por Freud. A leitura das cartas nos permite acompanhar a emergência dos novosconceitos (fantasia, Édipo etc.) e como seu surgimento exigiu de Freud um percurso subjetivo que culminou na invenção do analista, lugar que não cabe na relação entre médico e paciente. O que confere portanto a essa correspondência, que Freud não quis publicar, o estatuto de resto da invenção do laço analítico.

Descritores: correspondência Freud/Fliess; invenção da psicanálise; invenção do psicanalista.


ABSTRACT

This paper aims to demonstrate that the Freud/Fliess correspondence was an important apparatus to Freud psychoanalysis invention. The letters reading allows us to follow the emergence of new concepts (phantasy, Oedipus, etc.) and how they required from Freud a subjective journey that culminated in the invention of the psychoanalyst, a place which is different from the relation between a physician and a patient. Hence it follows that this correspondence, that Freud didn't want to publish, has the meaning of the analitical link invention's rest.

Index terms: Freud/Fliess correspondence; invention of psychoanalysis; invention of psychoanalyst.


RESUMEN

Este artículo propone demonstrar que la correspondencia Freud/Fliesse fue un dispositivo esencial para la invención freudiana del psicoanálisis. La lectura de las cartas nos permite acompañar la emergencia de los nuevos conceptos (fantasma, Edipo, etc.) y como su surgimiento exigió de Freud un recorrido subjetivo cuja culminación fue la invención del analista, lugar extranjero a la relación médico y paciente. Lo que confiere por lo tanto a la correspondencia citada, la qual Freud no quiso publicar, el estatuto de resto de la invención del lazo analitico.

Palabras clave: correspondencia Freud/Fliess, invención del psicoanálisis; invención del psicoanalista.


 

 

Introdução

Uma passagem célebre da Interpretação de sonhos (Freud, 1900/1980a), considerada obra inaugural da psicanálise, revela o quanto a sua escrita foi inseparável de um percurso subjetivo que seu autor denomina "autoanálise": "porquanto este livro tem para mim pessoalmente outro significado subjetivo – um significado que só aprendi após tê-lo concluído. Foi, assim verifiquei, uma parcela de minha própria auto-análise, minha reação à morte de meu pai – isto é, ao evento mais importante, à perda mais pungente, da vida de um homem" (p. XXXIV).

Segundo Ernest Jones (1953), dois eventos escandiriam o que Freud nomeia acima de "autoanálise": a interpretação do chamado "sonho da injeção de Irma", a primeira análise que levaria a cabo de um sonho; e a morte do pai, pois no verão seguinte a esta, a autoanálise ganharia impulso, sistematicidade e finalidade. Portanto, dois acontecimentos cruciais, que levaram o fundador da psicanálise a se deparar com o enigma da feminilidade, sob a forma da paciente Irma, e com a "perda mais pungente" da existência de um homem: a morte do pai.

É uma análise cujo dispositivo inclui a correspondência, o endereçamento de uma escrita (cartas, rascunhos de artigos) a um Outro, personificado pelo amigo e colega médico W. Fliess, e ocasionais encontros entre os missivistas, ironicamente denominados por Freud "congressos"(1). Preservados em Freud (1986), os restos dessa troca de cartas comprendem entre outros assuntos anotações sobre pacientes, resultados e achados de pesquisas em andamento (comunicados no corpo das cartas ou em manuscritos anexos), relatos de sonhos e formações do inconsciente relacionados à chamada autoanálise e juízos de Freud relativos a si mesmo e ao amigo.

Conforme tentaremos mostrar, tais documentos testemunham que esse dispositivo de escrita foi o cadinho do qual Freud se serviu não apenas para a invenção da psicanálise, mas também do psicanalista, como se a nova construção conceitual tivesse por condição que ele próprio se deslocasse para um lugar inédito, não prescrito na relação entre médico e paciente: o lugar de analista.

Fundamental para Freud nesse momento, pois organiza toda a sua existência, tal endereçamento a Fliess pôde segundo Lacan "tanto servir de obstáculo quanto assinalar a passagem do que se achava em vias de se constituir, ou seja, esse vasto discurso a Fliess que será em seguida toda a obra de Freud" (1954-55/1978, p. 150).

Folheando o livro em questão, salta à vista que as reflexões dirigidas por Freud ao amigo têm como ponto de partida o que não anda, não funciona na relação entre os sexos. Lemos assim que as neuroses atuais resultariam da inadequação entre o encontro sexual e a satisfação obtida: o sujeito que a masturbação satisfez excessivamente, se acharia predisposto à neurastenia e à impotência quando do encontro com o outro sexo. Inversamente, quando a insatisfação sela o encontro, o exemplo princeps sendo o coito interrompido, a tensão sexual, o apelo ao gozo se transmutaria em angústia e o sujeito se veria às voltas com uma neurose de angústia.

Freud (1894/1980b) chega a denunciar que este – o coito interrompido – é "quase sempre prejudicial" aos parceiros, para logo acrescentar que o ônus recairá sobre a esposa "se o marido praticá-lo descuidadamente – isto é, se interrompe o intercurso quando está perto da emissão, sem ocupar-se quanto ao curso da excitação nela. Se, por outro lado, o marido aguarda a satisfação da mulher, o coito apresenta-se normal para ela, mas ele padecerá de neurose de angústia" (p. 118).

É uma lógica da distribuição do dano entre os parceiros, cujo critério é a distinção entre um gozo que leva em conta o Outro e um gozo que não o leva em conta, distinção que se revela subjacente à oposição entre neurastenia e neurose de angústia. Para adequar o gozo à relação entre os sexos, muito libertariamente para a época Freud advoga "as relações sexuais livres entre rapazes e moças liberadas", embora advertindo que "isso só poderia ser adotado se houvesse métodos inócuos de evitar a gravidez" (Freud, 1986, p. 44) ou seja, métodos diversos do prejudicial coito interrompido. De fato, a causalidade sexual das neuroses atuais (neurastenia e neurose de angústia) é extrínseca e contingente, o que as torna permeáveis às influências da reforma moral, da educação e do progresso técnico.

Tais recursos se revelam incapazes todavia de minorar as causas das neuroses de defesa, cujos sintomas não provêm da dilapidação (neurastenia) ou do represamento (neurose de angústia) de uma energia, mas do recalque de lembranças tornadas retroativamente traumáticas. Nestas psiconeuroses, os efeitos se manifestam independentemente do excesso ou da carência de satisfação que aflijam na atualidade a vida do sujeito.

 

O grande segredo clínico de Freud

Na carta a Fliess de 15/10/1895, Freud lhe revela o que chama de "grande segredo clínico" das neuroses de defesa: "a histeria é conseqüência de um pavor sexual pré-sexual. A neurose obsessiva é conseqüência de um prazer sexual pré-sexual, que se transforma posteriormente em auto-recriminação. 'Pré-sexual' significa, a rigor, anterior à puberdade" (Freud, 1986, p. 145).

Se a histeria é consequência de um desprazer sexual enquanto a obsessão deriva de um prazer sexual, o denominador comum de ambas é a experiência de uma sensação de desprazer/prazer antes da puberdade: o grande segredo clínico de Freud é que há uma experiência primária de gozo, um gozo primário. Tal gozo primário se divide em dois tipos conforme a linha de fratura que observamos antes nas neuroses atuais. Na histeria, o gozo primário, experimentado passivamente, é o gozo do Outro. Já na obsessão esse gozo é do próprio sujeito, por isto dá lugar na puberdade a uma autorrecriminação.

Entretanto, não há propriamente simetria entre os dois gozos, sendo melhor reservar o termo "primário" apenas para o gozo do Outro: na verdade, o obsessivo não faz mais que repetir ativamente o que primeiro sofreu passivamente. Traumático, desprazeroso, é o "pavor sexual pré-sexual" que, ao por assim dizer contaminar a experiência ativa, induz ao seu recalque em função do princípio do prazer.

 

Die Vaterätiologie

Na carta de 06/12/1896, o mau encontro com a sexualidade, com o gozo do Outro – tomado no sentido subjetivo, do Outro que goza – é imputado explicitamente ao pai, ao pai perverso sedutor: "Parece-me cada vez mais que o aspecto essencial da histeria é que ela decorre da perversão por parte do sedutor, e parece cada vez mais que a hereditariedade é a sedução pelo pai" (Freud, 1986, p. 213). Ao redefinir em termos de sedução paterna a hereditariedade, Freud torce, subverte a teoria de seu mestre Charcot, que faz da disposição neuropática – uma potencialidade hereditária atualizada por agentes provocadores (o trauma por exemplo) – a causa necessária da histeria.

Pouco depois, em 08/02/1897, a teoria da sedução leva de roldão o próprio pai de Freud, não sem que ele deixe transparecer o quanto a hipótese da sedução paterna o divide: "a freqüência dessa situação, muitas vezes, causa-me estranheza" (Freud, 1986, p. 232).

Cognominada por Freud Vaterätiologie na missiva de 28/04/1897, essa teoria da etiologia ou causalidade paterna das neuroses, omitida aliás nos artigos que por então publica, atenta decerto contra os seres mais queridos. Na mesma carta, Freud narra que uma moça chegara à consulta dizendo que um obstáculo a impedia de continuar

o tratamento. Não se incomodava de fazer má figura diante de Freud, mas precisava "poupar as outras pessoas". Solicita então a Freud que lhe permita preservar os nomes das pessoas envolvidas. Este responde que os nomes não têm importância, mas os relacionamentos, sim. E, quanto aos relacionamentos, Freud é taxativo: "não é possível esconder nada". Conduzida pela série de perguntas que Freud lhe formula, a jovem acaba por confessar o seu segredo: seu pai, "supostamente nobre e respeitável, costumava levá-la para a cama, regularmente, quando ela estava com oito a doze anos, e se servia dela sem penetrá-la" (Freud, 1986, p. 239).

 

A fantasia, fachada psíquica

Prosseguindo na sua tentativa de formular a "solução da histeria", Freud avançará pela primeira vez, na carta a Fliess de 06/04/1897, uma peça, uma "produção do inconsciente" cuja eficácia na causalidade do sintoma até então lhe escapara e que o levará a reformular suas teorias: as "fantasias histéricas" (Freud, 1986, p. 235). Mas, em que consistem as fantasias? Provenientes de "coisas que foram ouvidas, mas só posteriormente entendidas"(2), as fantasias são qualificadas, na carta de 02/05/1897, de estruturas ou ficções "protetoras" que sublimariam, embelezariam os fatos; ao mesmo tempo serviriam para o "alívio pessoal", possuindo talvez por origem acidental as "fantasias de masturbação" (Freud, 1986, p. 240). Acompanha a carta o Rascunho L, A arquitetura da histeria, no qual as fantasias são chamadas de "fachadas psíquicas" por impedirem o acesso direto à lembrança, impondo ao trabalho analítico um desvio no caminho rumo às "Urszenen", às "cenas originárias" (Freud, 1986, p. 243).

Depois de aprendermos que uma parte da lembrança jamais emergirá do esquecimento, lemos já no Rascunho M que as fantasias substituem a parte faltante da recordação, tornando impossível rememorar, na sua autenticidade, a lembrança: "combinação inconsciente de coisas vivenciadas e ouvidas, de acordo com certas tendências", as fantasias tornam "inacessível a lembrança da qual provieram ou podem provir os sintomas" (Freud, 1986, p. 248).

Para ilustrar o caráter compósito da fantasia, Freud toma por modelo a análise química: a fantasia é formada por um processo que decompõe, recombina e amalgama os elementos da lembrança, negligenciando as relações cronológicas e combinando um "fragmento da cena visual" com um "fragmento da cena auditiva", o que tem por resultado que "a conexão original torna-se impossível de rastrear" (Freud, 1986, p. 248). A fantasia combina assim "acontecimentos passados (da história dos pais e antepassados)" ouvidos pelo sujeito – em outros termos, provenientes do Outro (do discurso parental que precede o sujeito e no qual ele deve advir e se localizar) – com coisas que foram vistas "pela própria pessoa" (Freud, 1986, p. 241).

Por conseguinte, a fantasia articula sujeito e objeto, termos implicados o primeiro, pelo emprego da noção teatral de cena, o segundo, pela referência ao visto e ouvido. Ficção protetora, a fantasia também se aproxima e aproxima Freud do ficcional, como evidencia o manuscrito imediatamente posterior, o Rascunho N, no qual lemos que fantasia e ficção recorrem a mecanismos idênticos.À guisa de exemplo, Freud lembra as origens da criação por Goethe dos Sofrimentos do Jovem Werther, obra na qual o poeta haveria combinado algo que experimentara (a paixão por Lotte Kastner) com algo que ouvira (o suicídio do jovem Jerusalém), lhe emprestando uma motivação oriunda de seus próprios percalços amorosos. A conclusão de Freud é que, "por intermédio dessa fantasia", o escritor "protegeu-se das conseqüências da sua experiência" (Freud, 1986, p. 252). Resposta do sujeito, a fantasia é uma maneira de lidar com o sexual traumático.

 

Do impulso à pulsão

Ademais de qualificar a fantasia de ficção protetora, a carta de 02/05/1897 traz uma segunda noção que Freud considera de importância para a teoria das neuroses: "as estruturas psíquicas que, na histeria, são afetadas pelo recalcamento, não são, na verdade, lembranças, já que ninguém se entrega à atividade mnêmica sem um motivo, e sim impulsos decorrentes de cenas originárias" (Freud, 1986, p. 240). Oriundos das cenas primárias, os impulsos são o motivo, o motor que leva o sujeito a rememorá-las em análise. A noção igualmente permite a Freud distinguir entre perversão e neurose: quando os impulsos persistem gerando prazer, o resultado é a perversão; quando ocasionam desprazer, são recalcados e se dá a neurose.

Quase simultaneamente à postulação da noção de fantasia, Freud antecipa com a noção de impulso o conceito de pulsão, Trieb, o qual subsumirá, a partir dos Três ensaios sobre A teoria da sexualidade (1905/1980c), os "impulsos decorrentes de cenas originárias". Etimologicamente ligado a trieben (flutuar ao sabor dos ventos, ir à deriva), o conceito freudiano de Trieb acentua a mobilidade da pulsão, a variabilidade de seu objeto, por oposição à pré-determinação do objeto que caracteriza o instinto. Outra propriedade distintiva da pulsão é que tem por meta uma "satisfação, que só pode ser obtida eliminando-se o estado de estimulação na fonte da pulsão" (Freud, 1915/ 1980d, p. 142), como se a pulsão se sustentasse num movimento circular, partindo e retornando à fonte para obter satisfação.

Em consequência, por referência à finalidade biológica da sexualidade, a reprodução, as pulsões são parciais, se satisfazem no próprio trajeto de ir e vir. Embora o objeto lhe faça falta, a pulsão não se satisfaz com o objeto, mas gira a seu redor, o contorna, fazendo dele antes de tudo um vazio, ocupável por qualquer objeto na sua contingência.

Aflorada já em outras cartas, essa indeterminação primária da sexualidade humana é explicitada em 14/11/ 1897: "na primeira infância, a liberação da sexualidade ainda não é tão localizada quanto depois, de modo que as zonas que são abandonadas mais tarde (e talvez também toda a superfície do corpo) também provocam algo que é análogo à liberação posterior da sexualidade" (Freud, 1986, p. 280). Inicialmente difusa, espalhada pelo corpo da criança à maneira de um fluido ou corrente elétrica, com a puberdade a libido se concentraria em determinadas zonas erógenas, delimitadas retroativamente pela fantasia. Fonte de prazer, a zona erógena dá corpo à ideia de um gozo parcial, circunscrito no plano dos órgãos (boca, ânus) pela ação da fantasia, conceito que se revela assim decisivo.

Verificamos deste modo que não é fortuita a quase concomitância na emergência dos conceitos de fantasia e impulso. Proteção, véu, defesa contra o traumático, a fantasia é também para Freud fator de "alívio pessoal", de extração de prazer, como se fosse uma maquininha, um transformador encarregado de converter o impulso traumático em prazer, de regulá-lo homeostaticamente. Igualmente se nota que a fantasia serve de ponte entre elementos disjuntos e heterogêneos: ao prover uma cena e um roteiro para o impulso, conjuga a pulsão com o Outro.

Tais achados levam Freud à articulação da seguinte sequência clínica: trauma-fantasia-sintoma-eu. O eu considera o sintoma um corpo estranho, a causa do sintoma é a lembrança – impossível de ser rememorada – do trauma, em cujo lugar vem a fantasia, a qual é recalcada. Há portanto uma espécie de mentira primordial, o real mente por intermédio da fantasia. Como escreve Lacan, "Se existe fantasia, é no mais rigoroso sentido da instituição de um real que cobre a verdade" (1966, p. 873). A fantasia visa tamponar o que Freud chama de "lacuna na psique" (1986, p. 170), ajudando assim o sujeito a se proteger desse furo no Outro. O que nos leva a redefinir como traumático o encontro no qual alguma coisa cessa de se apresentar nessa hiância. Notamos também que o trauma não é universal, mas relativo a cada sujeito, à posição que ele ocupa frente ao próprio gozo.

 

O segundo grande segredo clínico de Freud

A 21/09/1897, Freud anuncia a Fliess que chegou o momento de lhe revelar o "grande segredo" – é a segunda vez que faz uso da expressão – que nele vinha tomando forma nos últimos meses: "Eu não acredito mais em minha neurotica" (1986, p. 265). São quatro as razões que o levaram a tal conclusão: primeiramente, a fuga dos pacientes diante das suas tentativas de chegar às cenas infantis; em segundo lugar, a inverossimilhança da generalização a todos os pais da perversão; em terceiro lugar, a impossibilidade de distinguir, no inconsciente, a verdade da ficção afetivamente investida; em quarto lugar, a impossibilidade de fazer emergir tal cena inconsciente até mesmo na psicose, de tal forma que "o segredo das experiências da infância não é revelado nem mesmo no mais confuso delírio" (Freud, 1986, p. 266).

Ficção investida afetivamente que tem curso na realidade de quem a narra, a fantasia é um conceito que obriga a considerar que, na configuração da realidade, falta o referente: onde se esperava a coisa do mundo, a exatidão do fato a ser verificado, o que se encontra é o fato fantasmático. A conceituação do inconsciente como saber referencial, presente ainda na teoria da sedução, é substituída pela do inconsciente como saber textual a ser decifrado no dispositivo analítico.

Quanto à segunda objeção à neurotica, se é impossível acusar o pai de perversão em todos os casos, o pai não é necessariamente culpado pela neurose dos filhos. Na Vaterätiologie, o pai detinha uma função, patógena decerto, mas precisa; agora, Freud é levado de novo a se perguntar sobre o lugar do pai. Afinal de contas, o que é um pai?

Ainda nessa carta de 21/09/ 1897, Freud escreve que só lhe "restaria a solução de que a fantasia sexual se prende invariavelmente ao tema dos pais" (Freud, 1986, p. 266). O que Freud quer dizer com "tema dos pais?" A resposta comparece na famosa carta de 15/10/1897, na qual Freud formula a hipótese de que todos nós fomos "um dia, um Édipo em potencial na fantasia" (p. 273), por isto nos fascina e horroriza de tal modo a encenação de Édipo Rei, com seu herói incestuoso e parricida, embora a tragédia seja um gênero que em nada mais nos atrai, calcada numa noção de destino que não mais sensibilizaria a nós, modernos.

A essa carta na qual Freud lhenoticia a hipótese do Édipo, Fliess não respondeu, fazendo com que, doze dias mais tarde, Freud lhe escreva que não consegue mais aguardar a resposta. Em 5/11/1897, ele colocará o amigo contra a parede: "você não disse nada sobre a minha interpretação de Oedipus Rex e de Hamlet. Como não falei com mais ninguém a esse respeito, pois bem posso imaginar antecipadamente a rejeição atônita, gostaria de receber de você um comentário sucinto sobre ela. No ano passado, você rejeitou muitas de minhas idéias, com boas razões" (Freud, 1986, p. 278).

 

"Eu te escrevo tão pouco somente porque muito para ti escrevo"

(Freud para Fliess, 23/09/95)

Para entendermos como e porque Fliess silencia quanto ao Édipo, deixemos de lado os achados de Freud e focalizemos os lugares e funções que o dispositivo mesmo de correspondência propicia aos missivistas. Iniciada por Freud sob o pretexto de dar continuidade a um primeiro encontro com Fliess, essa invenção de um outro a quem escrever lhe possibilitará dar forma ao que apenas se concebe a pena deslizando sobre o papel: "Foi só ao tentar expor o assunto a você que todo ele se tornou evidente para mim" (1986, p. 147). Dirigida a um outro virtual, próximo na distância, a correspondência suspende no intervalo da escrita o juízo do outro, concede ao sujeito a oportunidade de se deixar invadir e conduzir pelo brotar das ideias. A virtude heurística da correspondência não se detém contudo aí: transitiva, posto que se escreve para outrem, leva Freud a extrair hipóteses, a formalizar com clareza e rigor o material trazido pela clínica, mesmo que seja para transmitir o que ainda ignora.

Primeiro destinatário dos achados psicanalíticos, essa função conferiu portanto a Fliess um lugar ao qual faz jus o oxímoro "público privado" de Freud. Como assinala Porge, "O conjunto da correspondência tem um estatuto que faz dela um lugar intermediário entre o público e o privado" (1998a, p. 25). Charneira entre ambos os domínios, a correspondência com Fliess prepara a publicação. Comporta cartas propriamente ditas e uma série de rascunhos indexados de A a N, esboços muitas vezes de futuros artigos. As cartas convocam seu destinatário para a intimidade de quem escreve, lhe relatando sonhos, atos falhos, afetos e desafetos, notícias sobre familiares etc., mas trazem também hipóteses, observações clínicas, projetos, leituras. Quanto aos rascunhos, o primeiro chegou a Fliess no final de 1892, curiosamente dois meses depois que Freud passou a tuteá-lo, assinando "Do teu, Sigm. Freud" (1986, p. 33).

A correspondência compõe assim um gênero híbrido não apenas entre o público e o privado, mas entre o íntimo e o potencialmente publicável, visto que os rascunhos, embora sujeitos à revisão (é o que os define), já provêm de uma elaboração do íntimo (próprio e dos pacientes), de uma decantação do particular, presente nas cartas. Trabalho do qual os rascunhos preservam ainda frescas as marcas na enunciação, de tal forma que, num mesmo escrito, o pronome "eu" cede lugar ao "nós", se eclipsa em seguida num enunciado cientificamente impessoal, para retornar ao final.

Redigidos febrilmente por um Freud que suas descobertas excedem, os rascunhos solicitam um outro leitor, capaz de acusar recepção e de incentivar a vinda a público porque supostamente animado pelo mesmo desejo de saber e de enfrentar a paixão da ignorância tanto própria quanto social. Imantados pela ambição de conquistar para a ciência o continente ignoto da sexualidade, os amigos avançam unidos por uma divisão de trabalho: caberia a Fliess a infraestrutura, a biologia; a Freud, a superestrutura, a psicologia. Terceiro entre ambos, a obra a vir, a ciência futura os faz corresponder numa transferência de trabalho.

Se a correspondência faz de antessala da publicação, Fliess perderá a função de primeiro leitor uma vez saída do prelo a Traumdeutung, embora Freud ainda continuasse por algum tempo a lhe dar notícias de seus trabalhos. Missivista contumaz e copioso, Freud trocará posteriormente milhares de cartas com Ferenczi, Jung, Jones, Binswanger e outros, recolhidas atualmente em calhamaços cuja pilha não para de crescer e cujo volume rivaliza com o da obra(3). Todavia, nenhum desses correspondentes ocupará o lugar antes concedido a Fliess. Para usar o nosso subtítulo, depois dele Freud escreverá a e não mais para alguém, para um correspondente que justifique o ato de escrever.

As cartas acompanham também a deterioração progressiva da relação entre os amigos e deixam entrever por qual motivo Fliess perde esse lugar privilegiado: ele não tem como responder às descobertas de Freud, que giravam, como vimos, em torno da causalidade sexual das neuroses. Ou melhor, Fliess responde com os recursos de que dispõe: a noção de bissexualidade, entendida à maneira de uma complementaridade entre os sexos. Fliess reintroduz assim a harmonia na coisa sexual, marcada como vimos para Freud pelo trauma, pela assimetria, inadequação e insatisfação. Seguimos aqui a hipótese de Porge: "podemos indagar-nos se a noção fliesseana de bissexualidade não foi um modo de reagir ao impacto traumático da etiologia sexual das neuroses com que Freud lhe enchia os ouvidos" (1998a, p. 20).

O seguinte trecho de uma carta de Freud deixa evidente como seu interlocutor traduz sexualidade por bissexualidade: "Você se recorda de eu lhe ter dito, anos atrás, quando você ainda era especialista e cirurgião nasal, que a solução estava na sexualidade. Muitos anos depois, você me corrigiu, dizendo que estava na bissexualidade" (1986, p. 449).

Ainda de acordo com Porge (1998a), a bissexualidade se tornará a peça central de um sistema delirante que Fliess começou a elaborar em 1895, quando a primeira gravidez da esposa o confronta com a paternidade. Anunciou então a Freud que resolvera o problema da concepção, pelo que se deve entender a determinação do momento da fecundação no ciclo da mulher e igualmente do sexo da criança.

No sistema de Fliess, a sexualidade é uma substância, um fluxo de toxinas que banha o vivo (humanos, animais e plantas) ao ritmo de períodos de tempo masculinos (23 dias) e femininos (28 dias) cuja combinatória explicaria os acontecimentos cruciais da existência: o nascimento, a morte, a doença. Napoleão por exemplo teria perdido as batalhas de Dresde e Borodino porque estaria no seu "período" nessas ocasiões(4).

A teoria de Fliess estende a ritmicidade da menstruação aos seres orgânicos em geral, reconhecendo períodos nos homens e demais seres vivos. De característica da menstruação, a periodicidade se torna uma verdadeira lei universal do orgânico, que rege a substância sexual combinando as unidades, as toxinas de 23 e 28 dias. Natural, dada biologicamente, a existência de dois sexos – a bissexualidade – é assimilada à bilateralidade (oposição esquerda/direita) disseminada nos fenômenos da natureza, da qual guarda a propriedade de simetria: cada sexo contém recalcado em si o outro. Pois todo indivíduo teria recebido da mãe – frisemos que sem a intervenção paterna – ambas as periodicidades (feminina e masculina) assim como a dominância de uma delas. Como não lembrar a esfericidade do andrógino platônico?

Parte de um grande todo, a sexualidade para Fliess é cósmica, perspectiva estranha a Freud, o qual aceita as idéias de periodicidade e bissexualidade, mas rejeita a correlação que o amigo estabelece entre ambas. Aliás, mesmo que tome emprestada de Fliess a noção de bissexualidade, dela se serve antes de tudo para desestabilizar a idéia de uma bipolaridade sexual, ao estilo do "Deus os fez homem e mulher" bíblico. Essa função crítica da noção de bissexualidade freudiana transparece no seguinte trecho do artigo A psicogênese de um caso dehomossexualismonuma mulher: "a psicanálise possui uma base em comum com a biologia, ao pressupor uma bis-sexualidade original nos seres humanos (tal como nos animais). Mas a psicanálise não pode elucidar a natureza intrínseca daquilo que, na fraseologia convencional ou biológica, é denominado de 'masculino' ou 'feminino': ela simplesmente toma os dois conceitos e faz deles a base de seu trabalho. Quando tentamos reduzi-los mais ainda, descobrimos a masculinidade desvanecendo-se em atividade e a feminilidade em passividade, e isso não nos diz o bastante" (1920/1980f, p. 211).

Para Fliess, os períodos não agiriam apenas sobre um indivíduo, mas sobre toda uma família, estabelecendo correlações significativas entre seus membros. Deste modo, ele relata que um amigo foi tomado por dores no momento em que sua irmã começava o trabalho de parto, isto no dia do aniversário de um terceiro irmão. Tudo passa a significar, a se corresponder em espelho num determinismo absoluto, que não deixa margem para o acaso, o sujeito, o ato.

Freud chega a identificar em Fliess um "novo Kepler"(5), que desvendará "as regras rígidas do mecanismo biológico" (1986, p. 337). De fato, Fliess não deixa de emular a física de Kepler e Newton ao tentar desvendar, escrever as leis que guiam a trajetória, não dos planetas, mas da relação entre os sexos, do encontro dos sujeitos com o outro sexo. Contudo, o uso que faz do número não deriva da ciência galileana, para a qual o número é pura letra desprovida de significação e que inscreve o resultado de uma mensuração, aferição empírica. Para Fliess, antes numerante que numerado, o número é figura dotada de significação, cósmica aliás: a chave mesma do destino dos seres se encontraria nas suas combinações. O projeto fliesseano de uma ciência do sexual deságua num autêntico delírio científico.

Embora companheiros na descoberta científica, nutridos pelo mesmo ideal de pesquisa e indagação, haveria segundo Freud um descompasso entre ambos: o colega o precederia na certeza, se acharia léguas à frente, imagem para a qual contribui a certeza diamantina de Fliess. Freud o elege "representante do Outro" (Freud, 1986, p. 375), do Outro da ciência, para que avalize a cientificidade do seu empreendimento. Na divisão de trabalho entre ambos, o campo da biologia que cabe a Fliess tem por atributos a clareza solar, o firme estabelecimento de leis, conduzindo ao reconhecimento social e ao êxito profissional; ao passo que o domínio do psíquico, no qual Freud tateia, é o reino da obscuridade, da inquietude, da ignorância, da solidão.

Por mais que Freud admire o amigo, interpreta contudo por um viés próprio suas elucubrações – como a noção de bissexualidade – e não sem reticências, que vão se acentuando. A paternidade é uma das causas maiores do desacordo entre ambos, como se nota na seguinte restrição levantada por Freud aos cálculos que Fliess vinha realizando a partir de registros de óbitos: "Sei que, no momento, sua teoria não se interessa pelos pais" (Freud, 1986, p. 377).

Não é de estranhar que, como vimos, Fliess tenha deixado sem resposta nada mais, nada menos que a carta na qual Freud lhe noticia a descoberta do Édipo. Dois anos depois, a 29/12/1899, Freud saudará o nascimento do terceiro rebento de Fliess compondo um poema em sua homenagem, provavelmente o único conhecido de sua autoria. Hino à glória do pai, a poesia celebra o seu nome:

"Salve
o filho valente, que, por ordem do pai
apareceu no bom momento,
para lhe ser de auxílio e colaborar na
ordem sagrada.
Salve também contudo o pai que,
pouco antes, no fundo de seus cálculos
achou meios de represar a potência
do sexo feminino
para que este cumpra sua parte de
obediência à lei;
não mais convencido pela aparência
sensível, como a mãe,
ele convoca, por sua parte, também
as potências superiores, a dedução,
a fé e a dúvida;
logo, armado de força, à altura das
armas do erro, posta-se
na saída o pai, de desenvolvimento infinitamente
amadurecido.
Que o cálculo seja exato e, como trabalho
herdado do pai,
se transfira ao filho, e que através da
separação dos séculos,
nodule-se numa unidade no espírito
aquilo que, na mudança da vida, se
desagrega" (citado por Porge, 1998b,
p. 47, tradução nossa).

Citamos o poema na sua integralidade pelo que tem de resposta ao delírio de Fliess e pelo seu conteúdo verdadeiramente programático, posto que traz em germe desdobramentos ulteriores da obra de Freud. Diversamente do espelhamento infinito dos seres produzido pelas combinações numéricas do amigo, a decifração freudiana inclui o pai como limite, ponto de parada. Ao celebrar o pai, que transfere para o filho o cálculo, esta nega cabalmente o postulado fliesseano da transmissão materna dos períodos. Termos heterogêneos, pai e mãe possuem propriedades distintas. A razão, o cálculo, a lei do pai são contrapostos ao pendor da mãe pela aparência sensível, devendo mesmo o pai fazer com que o sexo feminino cumpra "sua parte de obediência à lei", sem que fiquemos sabendo entretanto qual parte e por que "parte" e não todo.

A partir de 1898, um ano depois do silêncio de Fliess sobre o Édipo, Freud cessa de lhe enviar manuscritos e passa a prescindir da colaboração teórica do amigo. Tal afastamento progressivo chegará à ruptura entre ambos em 1904, quando Fliess acusa Freud de haver plagiado justamente o seu conceito de bissexualidade. Freud destruirá logo depois as cartas recebidas do ex-amigo, ao passo que as recebidas por Fliess foram parar, após sua morte, nas mãos de um antiquário que as vendeu em 1937 à princesa e psicanalista M. Bonaparte. Freud queria destruí-las, a princesa não concordou, propondo que sua publicação fosse retardada. Submetidas a uma triagem e censura realizadas por M. Bonaparte, Anna Freud e E. Kris, 153 cartas foram publicadas numa primeira versão em 1950, ao passo que a nova edição alemã de 1986 comporta 287.

Se Freud chama muitas vezes Fliess de seu "público", inclusive seu "público benevolente", Viltard (1985) assinala que ele se serve no caso da palavra Publikum, a qual se aplica a um público restrito, diversamente de Öffentlichkeit, termo que reserva para o público aberto, qualquer, anônimo – aquele que receberá a Interpretação de Sonhos (1900/1980a). Ora, é uma aposta de Freud na ciência que faz de Fliess seu Publikum. No momento em que Freud dispensar os encorajamentos de Fliess, substituir em ato pelos próprios juízos as formulações do amigo, retirá-lo enfim do lugar de garantia da cientificidade, a Traumdeutung tomará o lugar da correspondência, a publicação fará com que a Öffentlichkeit substitua o Publikum na transmissão da psicanálise.

Essa virada do privado ao público compreende um trabalho de simbolização, depuração da função do destinatário, no qual tem lugar uma dialética entre o obstáculo – em última instância o próprio não querer saber de Freud – e seu franqueamento, a passagem do que será a psicanálise. Principia escoimando o que tem de superegóico, inibidor o endereçamento, passa pela instalação de um correspondente "benevolente" até reduzí-lo por fim ao oxigênio necessário à invenção: um Outro que não mais responde porque nada mais tem a dizer, que não serve de garantia da verdade porque carece da última palavra, da palavra final. Embora transitiva, a correspondência, por suspender a reciprocidade, a massagem mútua de egos, prepara o ato intransitivo de escrever, a possibilidade de dar forma àquilo que apenas se concebe escrevendo. É o que Proust conclui num trecho de Contra Saint-Beuve: "Pois só há uma maneira de escrever para todos, é escrever sem pensar em ninguém" (1988, p. 54). Ou seja, seguindo o fio das articulações lógicas em vez de tentar corresponder ao saber suposto do público.

 

O pecado original da análise

Ao desistir da sugestão hipnótica como instrumento terapêutico, Freud limitou os meios do tratamento a uma fala convidada a dizer o que não sabe saber. Para dar conta do que assim encontrava, do que as histéricas lhe sopravam aos ouvidos, ele conjeturou a hipótese do pai sedutor, na qual ainda ecoam resquícios da terapia hipnótica, baseada na extração de um segredo do paciente. Já a noção de fantasia enquanto teoria graças à qual os sujeitos interpretam, inscrevem o trauma, faz do inconsciente um texto, verdadeiro palimpsesto que a fala do sujeito traz para ser lido e reescrito na prática analítica.

Podemos dizer que as cartas a Fliess são o resto da invenção desse laço social diverso da relação entre médico e paciente, pois surge quando Freud deixa de ocupar o lugar de paciente que se queixa a Fliess para transmitir via Interpretação de sonhos (1900/1980a) um saber que adquirira por meio da sua análise com Fliess, Breuer, alguns pacientes e outros sujeitos. Sublinhemos que, para ocupar esse novo lugar, Freud teve antes que se desfazer, na carta de 14/11/1897, da própria ideia de auto-análise: "minha própria auto-análise continua interrompida. Apercebi-me da razão. Só posso me analisar com o auxílio de conhecimentos objetivamente adquiridos (como uma pessoa de fora). A verdadeira auto-análise é impossível, caso contrário não haveria doença neurótica" (1986, p. 282).

Dedicada ao tema do recalque, essa carta assinala uma virada, uma mudança da posição enunciativa, que se concretizará na missiva de 09/02/1898: "Minha auto-análise está em repouso, em prol do livro dos sonhos" (Freud, 1986, p. 300). A Selbstanalyse não foi uma autoanálise, impossível análise de si por si, que rejeita a divisão do sujeito, o termo designa antes o se tornar analista de Freud. Terá sido retroativamente uma análise porque Freud inventou a posição de analista e transmitiu a outros a sua experiência, a qual em consequência não permaneceu "auto", encerrada em si mesma.

No já clássico ensaio A análise original, o autor se faz a seguinte pergunta, por sinal extremamente pertinente: "onde passa exatamente a linha sutil e quase inapreensível que separa o delírio de Fliess do saber de Freud?" (Mannoni, 1973, p. 119). De fato, retomando uma expressão de Freud, ambos lidam com o mesmo "órgão enigmático" (1986, p. 175) – a sexualidade, a libido. Se há um divisor de águas, é traçado como vimos pelo fato de que Fliess encontra uma função para esse órgão na ordem do cosmos, ao passo que Freud convoca para tanto no seu poema a lei do pai.

Por mais que seja necessário para barrar o delírio, o mito do pai oficiará também como obstáculo para a invenção freudiana, pois esta jamais precisará que o mito edípico serve para que o sujeito ficcionalize como proibido um gozo a bem dizer impossível: se ele não se satisfaz o bastante, é porque, lemos em Totem e Tabu (1913/1980e), o pai morto interditou e levou o gozo para o seu túmulo. Mito freudiano do pai no qual Lacan apontará "o pecado original da análise", pois "É bem preciso que haja um [pecado original]. O verdadeiro não é talvez senão uma coisa, é o desejo do próprio Freud, a saber que alguma coisa, em Freud, jamais foi analisada" (1964/1990, p. 16).

 

REFERÊNCIAS

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______ (1986). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887/1904 (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

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NOTAS

1 Lacan não é propriamente entusiasta quanto à análise de Freud: "A auto-análise de Freud era uma writing-cure, e eu creio que foi por isso que falhou. Escrever é diferente de falar. Ler é diferente de escutar. A writing-cure, não acredito nela" (1975, p. 36).

2 Freud se espanta com a idade precoce em que a criança entreouve tais coisas: a partir dos seis, sete meses (1986, p. 235).

3 Para o inventor da psicanálise, decerto se aplica bem o autodiagnóstico de Mário de Andrade: "sofro de gigantismo epistolar" (2003, Andrade & Andrade, 2003, p. 12).

4 A respeito da noção fliesseana de toxinas sexuais, compartilhada por Freud, observa. Levin (1978) que, no final do século XIX, se achava em voga a concepção de que as anormalidades neurológicas e psiquiátricas estivessem relacionadas à atuação de toxinas endógenas. A fonte de inspiração de tal concepção foi provavelmente a observação dos efeitos produzidos por intoxicantes como o álcool e opiáceos, os quais seriam semelhantes aos sintomas de transtornos neuropsiquiátricos, sugerindo que estes poderiam resultar de alguma autointoxicação. Resíduos de processos metabólicos normais, as toxinas endógenas se tornariam patógenas quando acumuladas. A concepção recebeu um enorme impulso com as investigações de Moebius, as quais relacionaram a doença de Graves com as secreções da tireoide. Salientemos contudo que, embora a medicina da época pensasse que a produção da sexualidade envolveria diversos órgãos, a hipótese de que toxinas sexuais pudessem causar neuroses e psicoses é própria de Freud e Fliess, cabendo exclusivamente ao último a noção da existência de toxinas sexuais periódicas (masculinas e femininas).

5 Convencido de que deus criou o universo de acordo com um plano matemático, Kepler era obcecado pelos padrões matemáticos da natureza, tendo passado boa parte da vida a procurá-los no comportamento dos planetas, cujas leis foi o primeiro a formular.

 

 

Recebido em junho/2010
Aceito em agosto/2010

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