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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.16 no.1 São Paulo jun. 2011

 

DOSSIÊ

 

Diagnóstico diferencial entre psicose e autismo: impasses do transitivismo e da constituição do outro

 

Differential diagnosis psychosis and autism: impairments of transitivism and constitution of the other

 

Diagnóstico diferencial entre psicosis y autismo: impasses del transitivismo e de la constitución del outro

 

 

Sandra PavoneI; Yone Maria RafaeliII

IPsicanalista, Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, membro do Setor de Psicologia e docente do Aprimoramento da Derdic/Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. spavone@pucsp.com.br
IIPsicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro do Setor de Psicologia e docente do Aprimoramento da Derdic/Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. yrafaeli@pucsp.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo propõe tratar o diagnóstico diferencial entre psicose e autismo infantis considerando que ambas as psicopatologias referem-se a diferentes impasses no transitivismo materno, função constituinte do sujeito e do Outro do bebê. Autismo e psicose são abordados como distintas funções do Outro.

Descritores: diagnóstico; psicose; autismo; transitivismo; Outro.


ABSTRACT

This article proposes to deal with differential diagnosis between infantile psychosis and autism whereas both psychopathologies relate to different impairments of maternal, constituent function of the subject and baby's Other. Autism and psychosis are treated as separate functions of the Other.

Index terms: diagnosis; psychosis; autism; transitivism; Other.


RESUMEN

Este trabajo se propone abordar un diagnóstico diferencial entre la psicosis y el autismo infantil, considerando que ambas psicopatologías se refieren a diferentes impases en el transitivismo materno, función constituyente del Sujeto y del Otro del bebé. El autismo y la psicosis son tratados como distintas funciones del Otro.

Palabras clave: diagnóstico; psicosis; autismo; transitivismo; Otro.


 

 

A clínica das patologias graves da infância indica um diferencial entre os autismos e as psicoses infantisindica um diferencial entre os autismos e as psicoses infantis. Ainda que num primeiro momento possamos assim considerar de modo intuitivo, propomos neste texto buscar alguns elementos conceituais e ferramentas teóricas do campo psicanalítico para a elaboração do diagnóstico diferencial entre autismo e psicose na infância. Pensamos esse diferencial considerando que ambas as psicopatologias estão marcadas por diferentes impasses nos tempos da constituição do sujeito e da função simbólica do Outro.

Antes de abordarmos as operações psíquicas que transcorrem na primeira infância e o diferencial para as psicopatologias, propomos situar algumas questões sobre os diagnósticos e mais propriamente do diagnóstico em psicanálise.

Lerner & Kupfer (2008) apresentam os resultados da Pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil, financiada pela FAPESP e Ministério da Saúde, que verificou que até 1980 o autismo não era tão popularizado, ou seja, não comparecia tanto quanto aparece hoje na produção científica e cultural. Isso fazia com que as crianças chegassem tardiamente para o diagnóstico e tratamento. Eles constataram que a partir de 1990, com a popularização da patologia, as crianças começaram a chegar com dois anos ou menos, o que viabilizou o diagnóstico precoce e as intervenções preventivas.

No campo psicanalítico esta popularização e a precocidade com que se pode diagnosticar e tratar viabilizou e convocou aqueles que disso se ocuparam a discernir com acuidade esses tempos tão primordiais e as operações aí implicadas na constituição do sujeito. Assim se fomentaram as pesquisas e a construção de hipóteses sobre as psicoses e o autismo na infância, a partir de diferentes impasses na constituição do sujeito.

Sabemos que a diferença entre autismo e psicose nem sempre está colocada e que, por vezes, as duas patologias são englobadas numa categoria bem ampla. É o caso do DSM-IV (1994) que denomina as perturbações graves da primeira infância como transtornos globais de desenvolvimento. Diferimos da proposta contida no DSM-IV. Primeiro porque não considera autismo e psicose infantis como estruturas diferenciáveis, e segundo, porque define o diagnóstico a partir da descrição e agrupamento de fenômenos (estereotipias, movimentos de correr, falas bizarras ou mutismos, maneirismos, déficits intelectuais e outros). Nesse caso o diagnóstico se conclui pela classificação de uma patologia desde que apresente certo número de fenômenos descritos para o quadro.

Nem sempre a questão do diagnóstico está diretamente ligada à classificação do quadro a partir da fenomenologia. Por vezes, os diagnósticos detêm uma preocupação quanto à causalidade da patologia.

Segundo Zenoni (1991) essas proposições sobre as hipóteses causais carregam, porém, alguma problemática. Há aquelas que situam a causalidade no biológico. Essa hipótese aparece como uma das tendências da psiquiatria atual que tem pautado a etiologia das afecções em critérios orgânicos. Nesse sentido, não apenas o autismo e a psicose, mas diversas patologias estão relacionadas à causalidade biológica. No caso das patologias graves da infância essa hipótese parece se sustentar pela possibilidade que ela dá de explicar perturbações tão precoces e tão graves do ser humano. Se aparece tão cedo só pode ser atribuível ao hereditário, ao congênito.

Há proposições que situam a hipótese causal das patologias graves na relação com o meio ambiente (na depressão materna, ausência ou excesso de reações maternais, um parto difícil, um luto não elaborado etc.). Zenoni (1991) aponta que a proposição da causalidade ambiental nessas patologias pode ser interrogada nos próprios estudos de observações de interação mãe-bebê que buscaram confirmar a hipótese. Para fundamentar sua discussão o autor apresenta duas situações:

A primeira refere que em alguns casos, mesmo quando uma interação mãe e filho poderia ser considerada portadora de risco para uma evolução autística, o desenvolvimento da criança desmentia isso.

A segunda refere que quando se tomava para observação uma interação mãe-criança acreditando se observar o plano da causalidade, na verdade o que se observava é o plano dos efeitos, já que se tratava de observações de interação quando a criança já havia sido diagnosticada como psicótica.

O autor interroga não apenas as hipóteses sobre a causa das psicopatologias quando apresentadas isoladamente, mas também as abordagens que propõem a interação entre elas. Ele aponta que alguns autores por não encontrarem a confirmação da causalidade nem no plano neurológico/ genético nem no meio ambiente, partiram para a interdisciplinaridade dizendo que a causalidade dessas patologias estaria na correlação entre elas.

O que o autor aponta de fundamental nesse texto é que para a psicanálise o plano da causalidade é outro, distinto das predisposições inatas do sujeito e de suas relações com as características do meio-ambiente, nem se trata tampouco do plano da interação entre elas.

Ainda a esse respeito, Kupfer e Voltolini (2008, p. 96) lembram que "para a psicanálise, a causalidade no campo do psíquico não opera segundo a lógica de causa e efeito", isto é, quando um elemento ocupa a condição de causa necessariamente teremos um efeito. Por exemplo, se aproximamos a pele do fogo o efeito é a queimadura. Assim, nessa lógica, quando se apresenta uma depressão materna, necessariamente, o efeito seria a evolução psicopatológica da criança para um autismo. Não é essa a lógica dos acontecimentos psíquicos. Um abuso sexual, por exemplo, não necessariamente tem os mesmos efeitos traumáticos para cada um dos sujeitos. Isso não é o mesmo que dizer que esse acontecimento não terá consequências, apenas não temos como indicar, a priori, quais seriam.

 

Diagnóstico em psicanálise

Para a psicanálise os fenômenos não têm o mesmo valor de verdade que têm para as ciências empíricas, ou seja, o dado clínico não é o único critério de verdade para afirmar um diagnóstico ou o tratamento. Quando observamos, quando estamos no plano do visível, do que se dá a ver, não observamos a dimensão em que tomam parte, as condições da patologia humana. Ao contrário, ignoramos a dimensão que a psicanálise freudiana introduziu no campo da clínica: a realidade psíquica.

Figueiredo e Machado (2000) apontam como o diagnóstico no campo do sujeito precisa estar referido a uma indicação psicanalítica de que "toda relação do sujeito com o mundo é mediada pela realidade psíquica". As autoras remontam a Interpretação dos sonhos de Freud (1900) que ali afirma que o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica e que, dessa realidade, só aparece uma parcialidade, em forma de palavras e ações prenhes de sentido tal como um lapso, um sonho ou um sintoma. Ou seja, a leitura do que se passa no campo do sujeito, da realidade psíquica, pode apoiar-se nos efeitos indiretos que ela produz, nos fenômenos que permitam supô-la. Entretanto, a realidade psíquica ela mesma, é uma realidade, uma dimensão fora do campo do observável.

A primeira conseqüência disso é que não são os fenômenos que definem o diagnóstico. Entretanto, o plano da fenomenologia, apesar de ser o plano do visível no qual os acontecimentos se dão a ver a um observador, não deixa de ter as mais íntimas relações com o plano estrutural.

O importante é destacar que se trata de dois planos: o da fenomenologia, que descreve minuciosamente os signos e comportamentos da patologia e o da estrutura, que vem apontar a relação do sujeito com o Outro. Para a psicanálise os fenômenos (sejam eles falas, comportamentos, a motricidade, a percepção, a interpretação que alguém tem das coisas no mundo) estão condicionados pela estrutura que os antecede e determina, ou seja, se ordenam a partir do campo significante.

O diagnóstico em psicanálise é estrutural e não fenomenológico. Por diagnóstico estrutural podemos entender um diagnóstico que se dá sob transferência, em que os fenômenos são efeitos da realidade psíquica, da relação ao Outro, ou seja, de um modo de incidência na linguagem. Como afirma Calligaris (1989, p. 910), "Podemos fazer o diagnóstico mesmo na ausência de fenômenos, por exemplo, podemos fazer diagnóstico de psicose na ausência de qualquer crise psicótica e suas manifestações.... A clínica psicanalítica não é uma clinica descritiva nem fenomenológica, mas é uma clinica estrutural, na medida em que o diagnóstico se estabelece na transferência."

Soler (2007) adverte a esse respeito que a clínica psicanalítica não nega os fenômenos, mas que Lacan os situa como efeitos da função significante ou de sua inoperância. Lacan definiu a foraclusão como ausência de um significante, o Nome-do-Pai e de seu efeito metafórico, hipótese pela qual ele designa a causalidade significante da psicose. Entretanto, como diz Soler, a foraclusão não é um fenômeno e "a foraclusão não faz parte do fenônemos....não identificamos a foraclusão, mas seus efeitos". (Soler, 2007, p. 12)

Assim aquilo que observamos a nível fenomenológico, seja uma alteração na fala, na motricidade ou na percepção indica que as percepções e outras funções corporais não funcionam apenas pela ordem natural como se poderia imaginar, mas são uma função de fenômenos significantes. O próprio corpo e suas funções precisam ser transformados a partir da estrutura do significante.

Uma percepção não recortada e ordenada pela eficácia do significante, ou seja, uma alucinação. Uma enunciação não governada pela relação com o Outro, então delirante. Uma fala não orientada pelo campo da palavra, portanto ecolálica. Uma motricidade não governada pela separação e alterização, portanto, uma gestualidade ecomímica. (Jerusalinsky, 1996, p. 153)

Para o diagnóstico na clínica das psicopatologias graves da infância levamos em conta os efeitos indiretos dessa realidade psíquica, de sua relação com o Outro: a) os fenômenos – seja um atraso de fala, uma alucinação, estereotipias, alterações na motricidade, maneirismos, ecolalias; b) o ato de brincar de uma criança; c) a pluralidade de discursos que a apresentam – a fala dos pais, dos profissionais, da criança.

Mas vale ressaltar ainda nesse ponto a referência que Alfredo Jerusalinsky faz em diversos momentos de seu ensino e de sua obra sobre as estruturas na infância serem não-decididas, permeáveis a novos arranjos significantes, pela disposição que existe na infância de deslocamentos da posição do Outro. Tais afirmativas permitem-nos concluir que no tempo da infância nenhum diagnóstico pode ser definitivo.

 

O transitivismo materno e a constituição do Outro do bebê

Para falar sobre a constituição do sujeito e das patologias em que essa constituição sofreu impasses, propomos inicialmente tratar da constituição do Outro, função simbólica, a partir da antecipação do sujeito presente no transitivismo da mãe com o bebê. O transitivismo materno como constituinte do sujeito e do Outro do bebê aparece em vários pontos da obra de Bergès & Balbo (1997, 2002 e 2003) e vai nos servir mais adiante para tratar do diferencial psicose e autismo infantil como modalidades diversas, como distintas funções do Outro, assim apresentadas no livro Psicose, autismo e falha cognitiva na criança (2003).

Se a mãe formula a hipótese de que o filho ao berrar lhe demanda, logicamente ela fez a suposição primordial de um sujeito em seu rebento. O transitivismo entre uma mãe e seu filho aparece e é constituído pela hipótese que a mãe formula ao filho sobre as demandas que ele dirige a ela. Ela faz ao mesmo tempo a suposição de um sujeito e de um saber no filho. E não somente de um saber, mas também de um Outro do filho.

Assim também podemos reconhecer na antecipação feita pela mãe daquilo que o filho experimenta. Se ela lhe diz "Você tem frio" revela que é afetada em seu corpo pela experiência de frio vivida no corpo de seu filho, sem tê-la sofrido.

Há uma negação própria do pensamento transitivista, que é sempre negação do real experimentado pelo outro, a fim de que o outro experimente, especular e realmente, o que é suposto dever experimentar, por parte daquele que o situa em seu transitivismo....Para que eu refira no outro a dor quando ele se machuca, afim de que eu mesmo a manifeste como se minha dor caísse de sua perna, não é o exemplo de um experimentado entre o corpo do outro e o meu? (Bergès & Balbo, 1997, p. 98).

A partir da leitura do que esses autores apresentam, propomos pensar a estrutura do transitivismo materno como uma operação que se desdobra em pelo menos dois tempos lógicos:

 

1º tempo: ele sou eu

Esse tempo se dá por uma identificação que se passa do lado da mãe e sustenta a suposição de um sujeito na criança e a constituição do corpo da criança na linguagem. Quando a criança chora e a mãe diz "você tem frio," a mãe se faz afetada pelo que se passa no corpo da criança. O corpo da criança não é outro senão o seu próprio corpo. Ao se identificar com o corpo do filho, com seu discurso, inscreve o corpo do filho em um corpo de linguagem, constituído de significantes. É um saber sobre o real do corpo que faz a passagem do corpo como puro real para o corpo simbólico. É por esse saber sobre o frio que o corpo lhe é atribuído. Ela força seu filho a aceitar a atribuição de um corpo, que ela lhe faz.

Por meio do transitivismo emerge uma forma de identificação na qual a mãe por meio de seus enunciados força a identificação a se produzir na criança. A criança não se identifica somente ao discurso de sua mãe, mas também ao saber que esse discurso lhe transmite sobre a experiência de frio.

É impossível pensar a identificação independente da atribuição; uma não vai sem a outra. Se uma não vai sem a outra podemos pensar que é porque a mãe atribui um corpo a seu filho que este se identifica ao discurso da mãe, ao que ela sustenta a respeito do frio. Configura-se assim o momento de passagem do real do organismo para corpo significante.

 

2º tempo: ele é outro

Se ela lhe diz "você tem frio" quer dizer que ela apela a um saber no filho, a um sujeito que sabe. São significantes que a mãe endereça a este filho na medida em que ele saberia, ou seja, em que ele seria sujeito de um saber. Uma vez que a mãe supõe seu filho habitado por um saber, quando lhe faz a hipótese, testemunha com isso, não que ela seria ela mesma o sujeito suposto saber, mas que ela está marcada pelo Nome-do-Pai, referindo seu discurso transitivista a uma lei terceira.

O que Bergès e Balbo (2003) propõem é muito diferente de pensarmos que o Outro da criança constitui-se numa diferenciação gradativa do Outro da mãe. A tese clássica propõe um Outro comum à mãe e ao filho, do qual pouco a pouco a criança vai se diferenciar, se individuar. Nesse caso a criança precisaria tomar emprestado o Outro materno, até que possa constituir o seu próprio. Para os autores essa tese ignora a questão do sujeito tal como proposta por Lacan e, assim eles propõem situar que o transitivismo materno indica uma criança sujeito e o Outro na criança.

Quando a mãe lhe demanda apropriar-se do que ela diz, partindo do princípio de que o filho já sabe, há então um sujeito na criança, ela lhe demanda apropriar-se, começar seu tesouro de significantes. Trata-se de significantes que lhe são próprios e que vão, por seu turno, atrair para eles, significantes que são aqueles dos discursos dos outros em torno de si, em particular os da mãe. É precisamente a mãe, que constitui o Outro do filho a partir do transitivismo. Dizendo-lhe "você tem frio" quer dizer que ela apela a um sujeito que sabe, ela atribui um saber ao filho: VOCÊ tem, é você que tem. (Bergès & Balbo, 2003).

São, portanto, os significantes que a mãe endereça a este filho na medida em que ele saberia, ou seja, em que seria sujeito, que vai constituir "um novo sujeito". O filho se faz sujeito identificando-se por um significante que ele escolhe no Outro de sua mãe, junto a um significante que ela designa no Outro dele. Aí está o encontro.

Não é o Outro da mãe que transborda sobre o filho e que o Outro da criança é constituído de significantes que a mãe tomou de seu próprio Outro para impingi-lo ao filho, para embutir na criança. É então, ao Outro da criança que a mãe endereça um significante. Logo seriam dois Outros e dois sujeitos.

Essa suposição materna quanto a um sujeito no filho, instaura nele uma posição de disparidade em relação à sua mãe, ela mesma como sujeito. Se ela lhe diz "você tem frio" não é unicamente à temperatura que ela faz referência. Além disso, é uma referência a um saber sobre o que se passa com o filho como outro. Ela faz referência à presença desse frio que ela toma de seu Outro, para um outro significante que a mãe distingue como sendo do filho, do Outro do filho.

A disparidade é necessária para, enfim, pensar a relação mãe e filho, que não é somente especular, pareável. Sem essa suposição de dois Outros e dois sujeitos, a relação seria estritamente imaginária, vivida somente no eixo a-a'. Conceber dois sujeitos e dois Outros torna necessário o recurso ao simbólico. Por isso esse tempo ter sido chamado de "ele é outro".

A clássica observação – ele tem o nariz do papai, os olhos do vovô, a pinta de, a beleza de etc. somente é feita porque a mãe, sem que o saiba, vê nele seu próprio corpo. Por outro lado, essa atribuição faz com que a criança seja não todo o corpo de sua mãe.

Assim também podemos pensar com o sorriso: Quando a mãe espera do bebê um sorriso, ela dota a criança da capacidade de sorrir, já que é ela que lhe concede essa antecipação, esse crédito, essa hipótese. A partir do instante em que o filho responde com um sorriso, existe uma alternância de posturas da mãe e do filho, cada uma antecipando a outra. O traço no rosto da criança que exprime o sorriso, não é o mesmo que aquele antecipado pela mãe. O sorriso é um significante do Outro da criança, que a representa para o outro significante que é o próprio sorriso antecipado pela mãe a partir de seu Outro.

A mãe que transitiva, instala também a operação constituinte denominada estabelecimento da demanda. Primeiramente ela dá um lugar ao filho em função da hipótese que faz de uma demanda nele. Não é apenas uma antecipação, mas um empréstimo, uma suposição, uma teorização sobre uma demanda na criança. Depois, pelo jogo de alternância presença-ausência, a mãe não se apresenta como toda-presença ou como pura ausência, isto é, se ela alterna , instaura um primeiro funcionamento simbólico em relação aos objetos da pulsão: fome-saciedade, sono-vigília, olhar-ausência do olhar, fala-silêncio. A alternância da mãe engaja o bebê na busca do reencontro do perdido, na busca de que a mãe retorne. Esse ponto será fundamental para que o bebê se implique na produção de uma demanda.

O crédito dado pela mãe eleva o filho além da posição de Coisa. A partir do momento em que a própria mãe não está mais na posição da Coisa, é que ela vai lhe falar essa demanda, ela vai lhe enviar significantes desde a sua posição de sujeito. "E, é sem dúvida, desse lugar que advém o grande Outro do bebê, tesouro do que ela tem a dizer ao filho". (Bergès & Balbo, 2003, p. 9-10)

 

O Outro nos impasses do transitivismo

Bergès e Balbo (2003) propõem abordar a questão do autismo e da psicose na criança a partir destes referentes clínicos, ou seja, de impasses que se dão nos dois tempos do transitivismo que é o fato da mãe: 1) não fazer nenhuma hipótese de um saber no filho e 2) que este saber lhe seja outro. É dizer que ela faz de um modo que não haja, para ele, nenhum Outro possível. Nos casos em que falha um dos tempos do transitivismo, o Outro do filho não tem nenhum significante ou está referido a significantes que não lhe são próprios. Essas teses colocam a problemática tanto do autismo como da psicose.

No autismo a mãe não se afeta pelo que afeta o bebê e assim ela não fará a suposição nem de um sujeito, nem de um saber na criança. Essa ausência terá como consequência o caso em que a mãe diz "isso vomita, isso chora, isso mija."

Na psicose o que a mãe articula não supõe que o significante que estaria do lado dela, também estaria presente do lado do filho. Ela priva-o de seu Outro. Há saber e há Outro, mas apenas um – o da mãe.

No autismo o que se apresenta é a impossibilidade materna de fazer a hipótese de uma demanda do lado do filho.

A mãe de um garoto autista em tratamento diz à analista:

Ele fala algumas coisas, doutora: PAPAPA, MAMAMA, palavras que não têm sentido.

A mãe não faz a hipótese de um grande Outro no filho: este não é mais que um puro real e ela não força esse real a fim de que surja um Outro....Eis então uma criança que tem um grande Outro vazio de qualquer significante e que tem como grande Outro apenas um signo real: o grande Outro da criança é apenas um puro real, um buraco. (Bergès & Balbo, 2003, p. 123).

Assim também podemos ouvir no relato emocionado da mãe de um autista, que olhava de canto de olho. A analista lhe diz:

– Tá me provocando, hein? Quer brincar de pega-pega?!

A mãe espantada pergunta:

– Como você consegue se enganar assim? Eu gostaria muito de poder me enganar assim!

Esse pequeno relato revela que é por meio de seu imaginário, no seu discurso, por seu discurso, que uma mãe imaginariza a demanda do filho. Como consequência dessa impossibilidade o filho não poderá encontrar no discurso de sua mãe o significante que o representaria no Outro dela. No autismo é justamente o imaginário que faltou no discurso da mãe a propósito de seu filho. Lidamos com mães educativas, elas descrevem o que faz a criança. Elas estão no fazer, jamais no dizer.

Quando a mãe transitiva, se o bebê cai ela diz, "nenê se machucou"; essa fala tem um endereço: o filho. Ao passo que no discurso da mãe do autista existem as palavras, mas ausentes de um dizer. Falas sem destinatário nem remetente. Como disse a mãe de um paciente: "Não há nada que eu possa dizer a ele, até que ele fale comigo."

A criança é apenas um real: não somente não tem Outro, nada que seja da ordem do simbólico, como também não terá mais acesso ao imaginário.

Para falar dos impasses do transitivismo na psicose, Bergès e Balbo (2003), recorrem ao mito de Narciso, tal como Ovídio1 o narra, distinguindo dois tempos desse mito:

1º tempo do mito: Em que Narciso crê relacionar-se com um outro que o ama e em direção ao qual se inclina, a quem beija a boca e toma nos braços. Ele se relaciona enquanto supõe que essa imagem é de um outro. Narciso não está apaixonado de modo algum por seu reflexo, nem por si, ele está apaixonado por um que ele crê ser outro. Sem que o saiba, esse outro é apenas ele mesmo, seu duplo especular.

2º tempo do mito: É quando Narciso se dá conta que esse outro não é ninguém, senão ele mesmo. Decide então morrer, formando apenas Um, mas sem sua imagem.

O primeiro tempo do mito permite pensar a operação de constituição do sujeito do narcisismo da mãe em direção à criança como objeto de seu investimento libidinal. A mãe que se encontra nesse primeiro tempo, transitiva. Essa operação conjuga dois tempos: ele sou eu, ele é outro. Ela vê no filho a imagem dela mesma, sem que o saiba e é por isso que ela pode crer que ele é outro. Ao contrário, se a mãe não pode se ver no filho, aparece a impossibilidade de que a própria criança venha a ter uma imagem. A criança não é esse outro do qual o narcisismo da mãe poderia enamorar-se.

Por outro lado, se a criança está englobada nessa imagem que é a da mãe, ela não é nada por si mesma, ela não é o outro, ficando assim aprisionada no reflexo, na imagem enquanto puro especular. Há uma ausência da referencia simbólica, da alteridade, ausência de suposição de um Outro na criança.

A mãe não sofre assim o efeito da castração que levaria a constituir um buraco em seu Outro e rejeita o Outro do filho. A hipótese de um Outro no filho, constituiria um buraco no Outro materno, ou seja, efeito da castração nela, conseqüência do Nome-do-Pai na mãe.

Nesse sentido os autores afirmam que na psicose há Outro, mas apenas um- o da mãe. Para o psicótico "há somente UM Outro, embora sua mãe e ele sejam dois". (Bergès & Balbo, 2003, p. 67)

Quando uma criança psicótica se comporta quebrando as coisas da sala, abrindo as torneiras, derrubando objetos pelo espaço, debruçando-se na janela, a mãe pode sobre isso fazer uma descrição, e até mesmo uma atribuição: "ele é agitado, agressivo", ou ainda anunciar "Pára com isso!". Como se diz no senso comum "ela lhe põe limites".

Por que isso que ela lhe diz não opera? Porque não passa pela atribuição de um significante do lado da criança, de um saber e de um Outro da criança. A fala materna não tem efeito, porque é uma mera descrição ou um ato destituído da hipótese de que nesse agir da criança tem um saber que lhe escapa.

Murilo chega ao consultório de sua analista e vai direto ao banheiro abrir o chuveiro para se molhar. Sua mãe, que não o vê, mas escuta, grita da sala de espera:

– "Murilo, sai daí".

Essa fala não o afeta e ele segue se molhando. A mãe interfere; entretanto, não supõe que haja nele um saber a respeito de seu próprio corpo. Sua fala não cumpre assim a função de um interdito.

Nesse momento, sua analista intervém em duas direções dizendo primeiro à mãe:

– "Agora deixa que eu cuide. Aqui é comigo."

Depois ela diz à criança:

– "Será que você está com calor? É para lavar seu pé?" Ele se detém, enxuga o pé e entra na sala.

Quando uma criança psicótica supõe ao analista um saber sobre seu corpo e demanda que o analista lhe responda algo a respeito, e este, por sua vez, lhe diz que ELE sabe o que tem que fazer, o analista faz a hipótese de que há um Outro, um significante na criança que corresponde ao significante que a criança supõe ao analista. Quando o analista diz "você sabe o que tem que fazer" não se trata de uma falta de significante do lado do analista, nem um recuo ou apenas um silêncio. "Isso é dar conta de dois grandes Outros". (Bergès & Balbo, 2003, p. 124). Ao contrário, se ele responde e diz o que fazer, ele empurra o analisante em direção a um dispositivo no qual o analista é o Outro, tal qual a mãe única.

A hipótese central de Bergès e Balbo (2003) poderia então ser resumida assim: para que o sujeito se constitua do lado da criança, para que se possa ver ali surgir um novo sujeito é preciso insistir nessa articulação: o filho se confirma como sujeito ao ser representado por um significante que ele escolhe no Outro de sua mãe, junto a um significante que ela designa no Outro dele. Se há dois Outros, dois sujeitos, nasce assim um novo sujeito.

Esse arranjo permite mostrar que a noção de disparidade é absolutamente central, pois ela incide ao mesmo tempo sobre o sujeito e sobre o Outro. É porque o Outro existe em um e em outro, que o inconsciente da criança vai poder se constituir. Ele vai se constituir a partir de uma divisão, a divisão do sujeito em cada um deles. Somente a disparidade permite pensar a castração no sentido do recalcamento. Sem recalcamento, isto é, sem castração, há foraclusão.

Para Jerusalinsky (1996b) no autismo não há inscrição do sujeito, pelo contrário, há exclusão do sujeito e no lugar onde se deveria encontrar a inscrição encontra-se o real, ou seja, ausência de inscrição.

Na psicose, o significante que a mãe viria a designar no Outro do filho está foracluído. Para Jerusalinsky (1993) na psicose "se produz uma inscrição do sujeito, mas numa posição tal que esta inscrição não pode ter consequências na função significante". O psicótico recebe a demanda do Outro na via de um traço que não pode ser simbolizado, ou seja, trata-se de um puro significante, uma inscrição sígnica, uma inscrição que permanece no campo da foraclusão.

É por isso que na psicose infantil a linguagem aparece, mas de forma ora ecolálica – que é uma repetição fônica de palavras sem encadeamento do sentido – ora de forma a produzir pequenas unidades de sentido, frases feitas. Vamos fazer comidinha? Que bonito! São frases repetidas, com sentido, mas que não desdobram nenhuma significação além do que está dito ali mesmo. Pelo fato da criança psicótica estar referida a uma inscrição é que ela fala, mas a partir de uma inscrição que lhe refere um traço único, sem possibilidades de simbolização e é por isso que ela o faz guiada por esta colagem do lado Outro materno.

Jerusalinsky (1996b) propõe a diferença entre o psicótico e o autista. Se para o psicótico cada palavra carrega seu próprio e definitivo sentido, para o autista cada palavra carrega seu próprio apagamento. No autismo não há significantes em seu Outro, se é que há um, e é por isso que os significantes lhe dão medo e ele recua frente a eles.

 

Transitivismo e o corpo na psicose e no autismo.

Podemos ainda tratar o diferencial autismo e psicose a partir de efeitos clínicos que se apresentam no corpo na ausência do transitivismo. Para pensar os efeitos do transitivismo no corpo tomemos o exemplo da mãe que não faz nenhuma intervenção sobre a criança que se agita, que sobe e desce, que grita na sala, que mexe em tudo indistintamente. Neste caso, poderíamos pensar que essa ausência de intervenção do lado da mãe refere-se a uma falha da função educativa, pedagógica, uma falha do lado dela em por limites. Propomos pensar, porém, que trata-se de uma impossibilidade na função transitiva, de tomar a experiência corporal da criança para si, como se fosse sua própria e pronunciar a esse respeito um significante. É por falha na função transitiva que ela nada diz, é por isso que ela não intervém ou seu dizer não opera, vem esvaziado da condição de interdição.

Na psicose, o corpo do filho não se constituiu como uma unidade imaginária separada da imagem do corpo da mãe. Está referido a um saber, mas esse é um saber que a mãe sabe sobre seu próprio corpo. Por outras vezes é um saber apenas sobre o funcionamento do corpo, impedindo assim que o corpo do filho possa se constituir no que Bergès & Balbo (2006) chamam de desconhecimento. Para que o discurso opere sobre o corpo, ele não pode ser todo saber sobre o corpo, nem tudo do corpo pode estar sabido. Por exemplo, o excesso de intervenção materna está orientado por uma defesa à castração, um não querer saber do desconhecimento sobre o corpo do filho.

A ausência da constituição dessa borda imaginária-simbólica faz com que a criança psicótica possa experimentar a angústia de que seu corpo ao ferir-se, pode vazar. Outras, para marcar o corpo de alguma forma, precisam buscar no real a experiência do que faz corpo – se esfregam no tapete, precisam molhar as mãos muitas vezes, passar a tinta pelo corpo ou até mesmo se machucar. Ela não tem outra forma de passar pela experiência da borda corporal que não seja no registro do Real.

Thais de seis anos afirma à sua analista:

"Minha avó diz que se eu não tomar muita água, todo meu cabelo vai cair".

Para um neurótico, essa fala leva a um estranhamento e ele pode interrogar sobre o funcionamento de seu corpo. Ele interroga na condição de constituir um saber que lhe seja próprio e não tão sabido. Para Thais esse dito não é dialetizável e ela, nessa hora, só pode separar-se do dito, cortando ela mesma um fio de seu cabelo. Essa separação acontece no real.

Thaís, enquanto termina uma pintura no papel, curiosamente passa o dedo pela tinta e depois sobre sua mão. Em seguida, olha para a analista pedindo uma confirmação para a continuidade. Ela desloca, então, da mão para o rosto e imprime ali os traços de um indígena. Quando a analista a questiona sobre essa pintura Thais, lhe responde:

_ "É um disfarce".

_ "E para que um disfarce?"

_ "Essa é a única forma de surpreender a minha mãe".

As mães de psicóticos não introduzem o imaginário como uma suposição, mas como uma asserção sem intervalo, uma certeza, uma convicção. Essa que assim ocupa todo lugar do Outro é totalmente excluída como mãe transitiva.

O olhar dirigido e a demanda aparecem na criança apenas se o outro é lugar de endereçamento, apenas se num tempo primordial a mãe tiver suposto uma demanda na criança, se tiver sido possível colocar em andamento as primeiras representações antecipadoras de uma demanda na criança. No autista, chama a atenção a ausência do olhar dirigido e falta de sinais de apelo. Em alguns casos, são crianças perseguidas pelos signos da presença do outro, muito particularmente por dois objetos: o olhar e a voz. É como se fossem surdas. Elas afastam tudo que é voz ou têm distúrbios da visão, como o estrabismo – não olham. Evitação, recusa, anulação da presença do outro, pois o olhar e a voz carregam os signos da exclusão que a criança foi objeto um dia. A perseguição de que essas crianças parecem ser objeto é correlata com sua propensão ao ritual. É preciso que nada se mexa, elas precisam evitar o imprevisível, pois ele é como um indicador de presença.

Em alguns casos de autismo as zonas erógenas não constituem bordas. São bocas que vazam, esfíncteres que não se fecham e motricidade que não se organiza. Em outros, as bordas corporais e seu funcionamento estão constituídas, entretanto, destacadas do enodamento simbólico-imaginário. É um puro imaginário, sem articulação simbólica que se manifesta sob a forma de uma mimese das cenas habituais, aparecendo como uma ecomímia de um gesto repetido sem significado singular.

No autismo, os significantes foram deteriorados, explodidos, degradados em seu funcionamento. O cálculo de datas no calendário, uma contagem matemática desenfreada ou a repetição de um slogan estão completamente impossibilitados de funcionar enodando simbólico e imaginário. Para um matemático esse real dos números produz demonstrações, logo sentido- torna-se significante e a partir desse momento é transmissível. No autista, isso nunca faz sentido, são registros que o autista faz do real, mas que não configuram elementos que possam ser considerados traços de uma série significante. De modo que não quer dizer nada para o outro.

Uma criança autista em tratamento por 10 anos, que a princípio não encontrava nenhuma referência simbólica (fosse de fala, fosse de escrita) descobriu aos poucos o funcionamento da escrita de palavras, bem como podia escrever números perfeitamente, fossem eles ditados por alguém, como por exemplo, 5764, ou ainda escritos por ele no computador em progressão aritmética. Entretanto, foi muito tempo depois que ele pode usar números para contar objetos, para referir datas e mesmo usar palavras escritas no computador como mensagens dirigidas ao outro.

A incidência do Nome-do-pai na mãe implica sua castração e isso consequentemente daria à criança um lugar de sujeito e a existência de um grande Outro para ela, de uma alteridade que afetaria ao mesmo tempo a criança e a mãe. Sem essa função a ausência do transitivismo do lado da mãe impede que a criança venha apropriar-se e experimentar esse afeto que a mãe lhe emprestaria como se fosse dela. Não se opera, então, uma inscrição na passagem do padecido no corpo a uma representação. O transitivismo da mãe opera o enlaçamento do afeto no corpo e é nessa medida que podemos dizer que a língua nos causa, ela funda o sujeito e a experiência do corpo, constituindo assim o enodamento simbólico – imaginário – real do corpo.

 

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Recebido em maio/2011.
Aceito em junho/2011.

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