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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.17 no.2 São Paulo dez. 2012

 

DOSSIÊ
A CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS: DESAFIOS E RESULTADOS

 

Clínica de crianças com transtornos: quando a preocupação está para além do orgânico

 

Clinic of children with neuromotor disorders: when the concern is beyond organic

 

Clínica de niños con trastornos neuromotores: cuando la preocupación está más allá de lo orgánico

 

 

Marla Finkler NeuwaldI; Andrea Gabriela FerrariII

IFisioterapeuta. Especialista em Fisioterapia Neurofuncional, Porto Alegre, RS, Brasil. Av. Willy Eugênio Fleck, 1500/102 91150-180 - Porto Alegre - RS - Brasil. marla.neuwald@gmail.com
IIPsicóloga e psicanalista. Docente da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, RS, Brasil. Av. Unisinos, 950 93022-000 - São Leopoldo - RS - Brasil. ferrari.ag@hotmail.com

 

 


RESUMO

Apesar de a constituição do sujeito não residir somente no orgânico, não podemos desconsiderar que limitações no real do corpo podem impor obstáculos no processo de constituição subjetiva. A partir de questionamentos da minha experiência clínica como fisioterapeuta neuropediátrica e do meu percurso acadêmico no curso de especialização em atendimento clínico - ênfase psicanálise, alguns interrogantes sobre a prática clínica com crianças com transtornos neuromotores foram surgindo. Testemunhando uma carência na articulação entre esses saberes, busquei encadear conhecimentos das duas especificidades objetivando propor uma clínica que tome a criança como um sujeito em constituição e não apenas preocupada com o real orgânico da lesão.

Descritores: transtornos neuromotores; psicanálise de crianças; fisioterapia neuropediátrica.


ABSTRACT

Even though the subject's constitution doesn't reside only in the organic, we can't disrespect that limitations in the real of body can impose obstacles in the process of the constitution of the subjectivity. Based on questions of my clinic experience as a neuropediatric physiotherapist and on a specialization course in clinical service with emphasis in psychoanalysis, some questions about clinical practice with children with disabilities came up. Attesting a scarcity on the articulation between these fields of knowledge, my attempt is to articulate knowledge of both specialties in order to propose a clinic that takes the child as a subject in constitution and not only concerned with the organic real of the lesion.

Keywords: neuromotor disabilities; child psychoanalysis; neuropediatric physiotherapy.


RESUMEN

A despecho de la constitución sujetiva no residir solo en lo orgánico, no podemos desconsiderar que las limitaciones en lo real del cuerpo pueden imponer obstáculos en el proceso de constitución del sujeto. A partir de cuestionamientos de mi experiencia clínica como fisioterapeuta neuropediátrica y de mi percurso académico en el curso de especialización en atendimiento clínico - énfasis psicoanálisis, fueron surgiendo algunos interrogantes sobre la práctica clínica de niños con trastornos neuromotores. Percibiendo una carencia en la articulación entre esos saberes, busqué articular conocimientos de las dos especificidades a fin de proponer una clínica que tome al niño como un sujeto en constitución y no solamente preocupada con lo real orgánico de la lesión.

Palabras-clave: trastornos neuromotores; psicoanálisis de niños; fisioterapia neuropediátrica.


 

 

Introdução

Na clínica da Estimulação Precoce e na Fisioterapia Neuropediátrica, é comum nos depararmos com bebês ou crianças apresentando lesões motoras severas com ou sem outras deficiências associadas, representando grandes obstáculos par o seu desenvolvimento e para sua constituição psíquica. Geralmente são crianças reféns de um corpo deficiente, marcado pela presença de reflexos arcaicos e patológicos, de modo que recursos como a fala, o desenho e o brincar ficam bastante restritos.

Esses recursos são utilizados pelos Psicanalistas para identificar a estrutura pela qual a criança está se constituindo, localizar a posição que ela ocupa na trama familiar e desvendar o enigma que o sintoma por ela apresentado representa. Contudo, como intervir na falta destes recursos com crianças lesionadas graves com múltiplas deficiências? Crianças essas que dispõem, muitas vezes, de um piscar de olhos como única forma de comunicação, que não caminham e tampouco são capazes de se locomover de forma independente, que nem sustentação cefálica apresentam, encontrando-se praticamente imobilizadas ou então, manifestando movimentos desajeitados ou descoordenados em função de um tônus postural anormal?

Acredito que a Clínica Interdisciplinar em Estimulação Precoce (EP) tem a finalidade de sanar muitas dessas interrogações, já que se preocupa com a constituição subjetiva de bebês e crianças pequenas com transtornos do desenvolvimento e há anos vem desempenhando uma prevenção secundária nesse sentido. Resumidamente, esta modalidade terapêutica é uma especialidade clínica para a primeira infância1, isto é, destinada a bebês e crianças pequenas com problemas no desenvolvimento e/ou na constituição psíquica. Por se tratar da primeira infância, esta clínica intervém tanto nos aspectos estruturais como instrumentais do desenvolvimento por intermédio de um terapeuta único, especialista em EP, sustentado e apoiado por uma equipe interdisciplinar. A cena clínica transcorre na presença dos pais, da criança e do terapeuta. O clínico se coloca como único agente operador, preservando o infante dos efeitos iatrogênicos da multidisciplina, o qual efetua tanto uma escuta atenta do discurso parental como uma leitura das produções da criança. De forma bastante sucinta, a função clínica, em situações de transtornos orgânicos, consiste em evitar que a metáfora social implicada à condição orgânica, assim como os efeitos imaginários atrelados à patologia não resultem para o pequeno paciente um obstáculo ainda maior que o imposto pela patologia em si (Jerusalinsky, 2006).

Contudo, as dúvidas e angústias giram principalmente em torno das crianças com mais idade, ou seja, àquelas que não mais dispõem de uma intervenção em EP, pois cronologicamente não são crianças pequenas e tampouco bebês, de modo que um tempo precoce já passou; já não mais contamos com a intensa permeabilidade psíquica encontrada durante a primeira infância. Geralmente são crianças com deficiências múltiplas, cuja patologia neurológica de base, ou suas sequelas, são tão extremas, que comprometem diversos órgãos e fun-ções. Muitas dessas crianças já nasceram ou adquiriram o transtorno logo após o nascimento, tratando-se, principalmente, de crianças com sequelas neuromotoras da Encefalopatia Crônica não Evolutiva da Infância, mais conhecida como Paralisia Cerebral. Crianças marcadas pelo discurso técnico-científico da multidisciplina, com uma história de inúmeros atendimentos, diversos profissionais e por uma busca incansável dos pais pela cura e/ou restituição do filho ideal que não nasceu. Crianças que, além dos sérios comprometimentos orgânicos, apresentam traços de desconexão psíquica apesar de ou como consequência dos inúmeros atendimentos. Pergunto-me, portanto: como a psicanálise se coloca diante dessa realidade? É possível intervir analiticamente com essas crianças? Qual seria a direção da cura?

Ao longo do percurso clínico e de formação como fisioterapeuta neuropediátrica, apoiada nos estudos de Levin (2008a; 2008b; 2001), fui me questionando a respeito do atendimento para crianças com lesões neurológicas graves e se a direção do tratamento visava ou não a integralidade do sujeito, articulada a uma história familiar singular, ou se se ocupava apenas de procurar consertar o órgão afetado, independentemente da criança e de sua família que ali se apresentavam.

Dessa forma, pude vislumbrar uma nova conduta terapêutica, buscando articular os aspectos do desenvolvimento ao da estruturação psíquica, a partir do qual foi possível estabelecer uma posição ética, considerando a constituição do sujeito na direção do tratamento, independentemente da lesão neurológica de base que a criança apresentasse.

 

Aspectos estruturais e instrumentais do desenvolvimento

Apesar de a estruturação psíquica do sujeito não residir no orgânico, postulado que fundamenta a necessidade de um psicanalista na clínica para crianças com problemas de desenvolvimento (Coriat, 1997), algumas lesões, síndromes ou má-formação podem levar a criança a apresentar menor permeabilidade à recepção das marcas que provém do Outro (Jerusalinsky, 2006).

Freud (1916-1917/1996) não ignorou o aspecto orgânico quando descreveu o conceito de constitucional, relacionado ao geneticamente herdado e às influências das experiências infantis. Na clínica de crianças com transtornos neuromotores, torna-se fundamental um olhar atento sobre estruturação subjetiva, a fim de pensar até que ponto a limitação que a criança apresenta comporta causas orgânicas, psicológicas, cognitivas e de subjetivação na relação com o Outro. Daí a importância de considerar os aspectos estruturais e instrumentais do desenvolvimento como sustentam Coriat e Jerusalinsky (2001). Para eles, quando se fala em desenvolvimento torna-se necessário diferenciar as articulações que constituem o sujeito (aspectos estruturais) dos instrumentos de que esse se vale para realizar seus intercâmbios com o meio (aspectos instrumentais). O desenvolvimento, portanto, é dependente tanto da estrutura orgânica, maturação do sistema biológico, como da estrutura psíquica, visto que durante a infância o sujeito está em plena constituição. Juntas essas duas estruturas formam os aspectos estruturais do desenvolvimento, representando as bases para a constituição do sujeito e para que outros instrumentos (linguagem, aprendizagem, psicomotricidade, brincar, atividades de vida diária e socialização) venham a se organizar.

As aquisições instrumentais do desenvolvimento (caminhar, falar, pular, chutar, atividades da vida diária...) não representam condição para a constituição do sujeito: uma criança com uma deficiência física, que está impedida organicamente de caminhar, não será menos sujeito que outra criança que dispõe de um aparato neuromotor íntegro. Para a criança com problemas orgânicos advir como sujeito, é preciso que se cumpram as mesmas premissas que seriam necessárias em uma criança organicamente sem lesão (Coriat, 1997). Entretanto, na clínica constatamos que independentemente do tipo de patologia que acomete a criança, as lesões no real do corpo surtem efeitos que vão além do dano orgânico que comportam. As significações que o déficit orgânico adquire ou os efeitos imaginários atrelados ao diagnóstico, deficiência ou síndrome, podem resultar em uma série de obstáculos à estruturação psíquica da criança.

 

O bebê em cena

Levin (2008b) coloca que um filho antes de nascer representa uma hipótese, um projeto e uma promessa. Uma hipótese, pois suporta um enigma do que exatamente será; um projeto, em função dos planos que os pais geram a partir do seu nascimento e uma promessa, não somente de futuro e transcendência, mas de um ideal, o qual vem ressignificar o próprio ideal dos pais e dos avós.

Quando o bebê nasce, tudo aquilo que se antecipou em espera como promessa, hipótese e projeto de ideal, passa a tomar forma no corpo desamparado e desorganizado do recém-chegado. Tantas expectativas se colocam paradoxalmente às condições reais e simbólicas do pequenino, o qual responde apenas com reflexos arcaicos e automáticos.

Porém, será sobre os reflexos arcaicos do bebê que a "Loucura necessária das mães", descrita por Winnicott (1956) citada por Laznik (1997) provocará os pontos de encontro entre o que é da ordem do desenvolvimento (estrutura orgânica) e do campo da linguagem (estrutura psíquica), propiciando, dessa forma, que advenha um sujeito. O bebê, ao ser tomado numa posição antecipada, não fica reduzido a sua real fragilidade e dependência corporal. A ilusão antecipadora (Laznik, 1997) geralmente sustentada pelos pais, é fundamental para a constituição subjetiva do mesmo. Atraído pelo desejo, o Outro antecipa no seu bebê uma existência subjetiva que ainda não está constituída, mas que virá instalar-se justamente porque foi suposta. É um processo que se dá por meio da metáfora do espelho, de modo que o bebê percebe, no espelhamento psíquico que sua mãe lhe propõe, uma unicidade corporal que é, a princípio, apenas imaginária. Esse momento constitutivo, que Lacan (1998a) descreve como Estádio do Espelho, antecipa, por intermédio do olhar e da palavra do Outro, ao bebê uma imagem unificada de seu corpo, a fim de organizar e sustentar sua imaturidade corporal.

Além disso, as aquisições instrumentais (hábitos de vida diária, comunicação, aprendizagem e psicomotricidade) também são dependentes dessa ilusão antecipadora que é endereçada ao bebê. Através dela, por exemplo, os pais introduzem ofertas e demandas, enlaçadas em um circuito de desejo não anônimo, propiciadoras de tais realizações.

Toda essa "loucura necessária das mães" é fundamental a fim de transformar essa libra de carne, como bem define Coriat (1997) o organismo de um bebê, ao estatuto de sujeito desejante. Porém, o que acontece quando o nascimento de um filho questiona o ideal antecipado por seus pais?

 

Quando o nascimento de um filho questiona o ideal

Na clínica dos transtornos neuromotores, constatamos que a ilusão antecipadora, fundamental para emergência do sujeito, muitas vezes, está ausente ou vacilante em pais de crianças com alguma deficiência. Percebe-se como esses pais têm dificuldade em supor um saber e apostar nas aquisições instrumentais de seus filhos. A "loucura necessária das mães", em que a mãe ao interpretar um gesto, um balbucio, um choro, um sorriso, um olhar como mensagens significantes endereçadas a ela, traduz realizações instrumen-tais que ainda não estão aí, para que um dia possam advir, pode apresentar-se fragilizada.

Ressignificar o ideal parental que se encontra questionado com o nascimento de um filho com lesão orgânica será o grande desafio que os pais e a criança terão que realizar. Inevitavelmente, essa criança e seus pais se confrontarão, ao longo do desenvolvimento e inserção social, com o filho ideal e esperado, tornando o trabalho de elaboração de luto imprescindível.

Para Levin (2001), o trabalho de elaboração do luto é fundamental na clínica dos transtornos neuromotores, visto que o terapeuta, a criança e a família se encontram muitas vezes diante de um real imposto pela patologia em questão de difícil modificação. Nesses casos, estamos diante de um limite intransponível, pois jamais poderemos curar a paralisia cerebral, a síndrome genética, a malformação congênita entre tantas outras patologias permanentes, contudo, isso não impede que concentremos nossos esforços a fim de resgatar o sujeito que sempre surge para além da sua lesão.

O trabalho de luto nos pais é necessário, pois em algum momento, eles se confrontarão com a criança ideal que não veio e nem chegará. Se o trabalho de pesar não acontecer, há o risco de transformar o tempo da infância numa fase sem limite, tornando a criança num eterno bebê. Na clínica testemunhamos crianças mais velhas carregadas no colo dos pais em lugar de serem transportadas num carrinho adaptado, pois esse meio de transporte denuncia a deficiência do filho. Além disso, se o trabalho de luto não acontecer, a criança, além de suportar o peso da sua organicidade, estará sempre confrontada com a criança "normal" e idealizada que não nasceu. É essencial que os pais possam elaborar essa morte fantasmática, a fim de transformar a criança que nasceu com transtornos neuromotores em representante do amor parental em lugar de um ser patológico, cujo nome é substituído pelo nome da síndrome, do diagnóstico ou da deficiência.

Por outro lado, o trabalho de luto na criança só é possível se os pais suportam e elaboram a dor que a patologia no filho lhes causa. O trabalho de pesar na criança é uma construção de saberes, ela perguntará sobre a causa e o motivo de seu padecimento. Inevitavelmente, em algum momento, sua problemática será contextualizada no brincar. Na brincadeira, a criança poderá colocar a patologia em outro personagem, representando que ela não é a lesão em si, mas sua portadora.

Já, o trabalho de luto no terapeuta é essencial, uma vez que esta clínica nos impõe a impossibilidade de cura quanto à patologia que a criança porta. Não se trata de ignorar a patologia ou a deficiência, mas de uma posição clínica que toma cada criança e sua lesão como singulares e inseridas num contexto e numa história própria em lugar de determinar ou prejulgar as possibilidades da criança tanto em relação ao desenvolvimento como em relação à estruturação subjetiva.

Para isso, é necessário que o terapeuta "suspenda" seu saber a fim de que o laço transferencial com a criança não fique condicionado ao que é da ordem da patologia, da sintomatologia ou do diagnóstico. Difícil tarefa de "suspender" o saber justamente quando nossa formação nos ensinou a curar e a consertar, e talvez um dos grandes desafios que este trabalho clínico nos impõe.

Por fim, o trabalho de elaboração de luto na instituição também é importante para que não se torne para criança um lugar definitivo, mas de trânsito, pois somente com o término de um ciclo é possível ressignificar outro.

 

A clínica de crianças com transtornos neumotores

Ao longo da minha experiência clínica como fisioterapeuta neuropediátrica, assim como durante o curso de especialização em atendimento clínico - ênfase psicanálise, encontrei, em ambas disciplinas, inúmeros percalços teóricos e práticos referentes à clínica de crianças com transtornos neuromotores. No referencial teórico da fisioterapia, testemunhava uma falta de preocupação absoluta com a estruturação psíquica, delegando tais questões, quando se tornavam presentes, exclusivamente à psicologia. Já na Psicanálise, percebia uma carência de teorias relativas aos aspectos instrumentais do desenvolvimento, assim como da maturação do sistema biológico, obstaculizando o acesso terapêutico a muitas dessas crianças. A partir de tais observações, busquei fazer uma ponte entre os propósitos da fisioterapia neuropediátrica e alguns conceitos psicanalíticos na tentativa de articular terapeuticamente tanto aspectos da estruturação psíquica como aspectos neuropsicomotores necessários na intervenção de crianças com transtornos neuromotores.

Não se trata de propor uma especialidade clínica universal, que dê conta de todos os aspectos estruturais e instrumentais que compõem o desenvolvimento. Nada mais distante de nossa proposta, visto que na clínica de crianças com transtornos neuromotores a interlocução com as diferentes disciplinas torna-se imprescindível. Tampouco se trata de uma intervenção por intermédio de um terapeuta único, como sustentado na Clínica em EP, que recebe uma habilitação para isso por meio de uma formação específica e conta com a indiferenciação dos aspectos instrumentais nos três primeiros anos de vida.

Na verdade, trata-se de promover uma aproximação entre disciplinas aparentemente tão distantes, mas igualmente necessárias quando nos ocupamos de crianças com transtornos neuromotores, como a paralisia cerebral. Por mais que o interesse da Psicanálise esteja voltado para a estruturação psíquica da criança, quando nos colocamos diante de um pequeno paciente com sequelas graves de Paralisia Cerebral, torna-se indispensável recorrer a manuseios e posicionamentos que possam oferecer maior estabilidade e controle sobre os movimentos àquela criança. Da mesma forma, na fisioterapia é essencial que o clínico, paralelamente a suas intervenções, proponha e sustente condições para a constituição de um sujeito desejante e esteja atento ao sofrimento não apenas físico, mas psíquico da criança e de sua família.

A proposta desta clínica diz respeito, portanto, ao tratamento e intervenção de crianças com patologias neurológicas, as quais cronologicamente não contam com uma Clínica em EP, apresentando atrasos no desenvolvimento neuropsicomotor com ou sem outras deficiências associadas. Esta proposta clínica é atravessada pelo corte epistemológico operado pela Psicanálise desde o qual constatamos que até mesmo as reações aparentemente motoras não são independentes da constituição subjetiva. Procura-se, portanto, articular num mesmo espaço clínico conhecimentos oriundos da teoria psicanalítica, referentes à constituição do sujeito psíquico, com conhecimentos provenientes da fisioterapia neuropediátrica.

A partir desta articulação, o movimento produzido pela criança não é mais tomado como um simples ato motor resultante de um reflexo ou desprovido de intencionalidade, mas passa a ser lido e visto como um gesto revestido de significantes e, portanto, produtor de subjetividade.

Lacan (1979), em O seminário, livro 1, assinala que o gesto humano está do lado da linguagem e não à manifestação motora. Entretanto, para isso, é condição que alguém se coloque na função de reconhecer tal gesto como gesto, como ocorre nos movimentos do recém-nascido, em que a mãe, ou quem estiver nesse funcionamento, interpreta os movimentos do filho como dor, fome, sono, atribuindo ao seu bebê "saberes" que ela não partilha, interpretando-o como um gesto portador de um dizer. É exatamente essa leitura particular que diferencia o reflexo de um gesto. Portanto, o gesto pode ser definido como um movimento dado a ver a um outro (Levin, 2008a).

O Outro toma o reflexo de preensão manual, por exemplo, realizado pelo bebê como um gesto significante, e não como uma resposta motora a um determinado estímulo. Ele fala, brinca, sorri e monta um contexto dentro de uma cena, supondo uma produção subjetiva do próprio bebê. É o Outro, por meio da leitura e montagem de cena e de contexto, quem dá o estatuto de gesto e de produção subjetiva aos movimentos do bebê.

Para a discussão das ideias acima descritas, proponho tomarmos como ilustração dois recortes clínicos, cujas crianças foram aqui nomeadas de Ana Cristina e Guilherme. O primeiro recorte clínico se refere ao "acordar" de uma clínica e o modo como essa menina Ana Cristina me tomou de angústia, motivando-me a buscar outros saberes, os quais me inspiraram na criação desta proposta terapêutica. Já o segundo recorte clínico é um testemunho de como esta clínica de crianças com transtornos neuromotores vem se sustentando e dos desafios constantes que esta proposta terapêutica nos impõe.

 

Ana Cristina e o despertar de uma clínica - recorte clínico I

Ana Cristina ingressou à fisioterapia neuropediátrica com 5 anos, diagnóstico de paralisia cerebral e com outros comprometimentos associados: quadro de disfagia2, problemas na comunicação verbal, assim como em função da presença de um tônus postural anormal, era incapaz de se manter sentada independentemente e tampouco de ficar em ortostase ou deambular sem ajuda.

Ana Cristina, em razão da encefalopatia, era dominada por reflexos tônicos desencadeados eminentemente por movimentos cervicais que a imobilizavam momentaneamente em padrões anormais de extensão ou flexão total. Qualquer tentativa sua de brincar, a qual exigia um olhar para cima ou para baixo, era interrompida por tais respostas reflexas. Além disso, brincadeiras que exigissem apreensão bimanual, como segurar uma bola, também se tornavam praticamente impossíveis em razão da permanência do reflexo primitivo RTCA (Reflexo Tônico Cervical Assimétrico)3.

Contudo, Ana Cristina não se mantinha indiferente aos atendimentos, que no início eram marcados pelo choro excessivo como forma de recusa aos procedimentos convencionais que visavam unicamente à restauração ou à manutenção do esquema corporal enfermo. O choro e a recusa dessa menina foram decisivos à mudança na direção do tratamento e da minha prática clínica como fisioterapeuta. Tomada de angústias, incertezas e sentindo o referencial fisioterapêutico esvaziado em pleno ato clínico, recorri a outros saberes, assim como me deixei ensinar por essa menina.

Apesar das limitações orgânicas e da impossibilidade de se expressar verbalmente, Ana Cristina se comunicava eminentemente pelo olhar. Através dele, estabelecemos um meio de comunicação entre nós, que mais tarde recebeu a contribuição do sorriso. Com o olhar da menina e a leitura materna, pude ir reconhecendo atividades e brincadeiras que a interessavam.

Assim, ao longo dos atendimentos, as atividades terapêuticas que nada implicavam o desejo e a posição subjetiva da criança, mas o conserto ou a recuperação de um corpo deficiente, foram substituídas por brincadeiras conduzidas pela própria criança, sem esquecer a especificidade da intervenção instrumental em questão. Era possível obter uma mesma resposta motora com brincadeiras sugeridas pela própria menina, sem a necessidade de exercícios repetitivos pré-programados ou de brincadeiras impostas pela terapeuta. Quando era preciso uma intervenção mais específica como alongamentos musculares ou mobilizações articulares, percebia que, ao falar com a menina e ao lhe explicar a necessidade de tal intervenção, ela aceitava e tolerava com tranquilidade tais manipulações, sem desrespeitar sua opinião quando contrária a tal procedimento.

Contudo, o mais impressionante desta clínica foi testemunhar como Ana Cristina foi apropriando-se e (in)corporando alguns de seus reflexos tônicos. Os reflexos patológicos que antes interrompiam o seu brincar ganharam o estatuto de gestos, tornando-se funcionais. Por intermédio de uma resposta reflexa ao movimento de cabeça que a colocava em extensão corporal total, ela respondia afirmativamente a uma pergunta. Entretanto, isso foi possível graças a um Outro que se colocou na posição de interrogar a produção de tal movimento, não tomando-o como uma resposta anônima de um reflexo desencadeado, mas interpretando e reconhecendo-o como um gesto.

A "ilusão antecipadora" sustentada pelo Outro foi essencial na transformação dos movimentos reflexos da menina em gestos e na estruturação da imagem corporal. Entretanto, para isso foi preciso haver na antecipação simbólica um caráter hipotético e não assertivo ou imperativo dos movimentos dados a ver pela criança. É preciso que a palavra lançada do lugar do Outro seja hipotética, isto é, credite à criança um saber. Quando uma mãe interroga seu bebê, ela supõe que ele seja capaz de compreender, assim como de responder, outorgando-lhe um saber que é diferente do seu (Bergès, 2008).

Mesmo dispondo de um equipamento deficiente, com extensas limitações orgânicas, Ana Cristina, por intermédio da presença do Outro, outorgou funcionamento ao seu aparato neuromotor, inscrevendo-se como sujeito desejante. Este caso clínico ilustra que a limitação física pode impor obstáculos para a estruturação e o desenvolvimento da criança, mas não desvia da característica de sujeito do desejo.

A proposta deste novo trabalho clínico não consiste em excluir o método terapêutico do tratamento, mas colocá-lo a serviço da situação psíquica que se encontra a criança. É uma nova posição frente à clínica que nos obriga a reformular nossa técnica e nossa teoria a partir do que a criança produz e enuncia. Adaptações às técnicas convencionais, que não seguem um protocolo e tampouco são pré-programadas, de tal modo que é um estilo singular criado e descoberto no próprio ato clínico juntamente com a criança. Tal postura ética é possível, pois não ficamos, exclusivamente, aderidos à teoria que sustenta o trabalho, assim como, a modalidade terapêutica não é previamente estabelecida em função do diagnóstico, patologia, sintomatologia descritos no laudo médico. Ao assumirmos essa postura, suspendemos o nosso saber tanto sobre a criança como sobre a patologia orgânica que apresenta, possibilitando um trabalho de elaboração de pesar diante do incurável e irreparável imposto pela organicidade.

Não se trata, portanto, de ignorar o trabalho instrumental, da importância de uma prática específica, mas de extrapolar e "brincar" com a técnica ensinada, tornando-a flexível suficiente a fim de que possam surgir e circular interrogantes a partir do corpo e do dizer da criança. Se o clínico, como assinala Yañez (1990), sente-se completo no seu saber técnico, exprime um poder que submete e aliena, na criança e seus pais, a possibilidade de vir a construir seu próprio saber, anulando o principal objetivo, o surgimento do sujeito e seus desejos.

Uma de nossas estratégias terapêuticas consiste em procurar, por intermédio do espelho que unifica e diferencia4, ajudar essas crianças a construírem uma imagem de unidade corporal e não de fragmentos defeituosos de modo que um dos objetivos clínicos iniciais será verificar se a criança que está diante de nós estruturou ou não sua imagem corporal5 (Levin, 2001), pois para Dolto (2007) é possível coabitar num mesmo sujeito esquema corporal6 enfermo e imagem corporal íntegra.

Dessa forma, tal proposta clínica diferencia-se da Fisioterapia Neuropediátrica convencional, pois seu interesse não está dirigido apenas ao reparo ou manutenção de um esquema corporal, ocupando-se, também, com a estruturação de imagem corporal da criança. Tampouco se trata de uma clínica psicanalítica, visto que intervém nos aspectos instrumentais do desenvolvimento, tão necessários na clínica de crianças maiores com transtornos neuromotores.

 

Guilherme e a clínica de crianças com transtornos neuromotores - recorte clínico II

Guilherme chegou à fisioterapia neuropediátrica com 5 anos após concluir tratamento em EP. Com um quadro clínico de Paralisia Cerebral, o menino ainda apresentava uma deficiência visual, com dificuldade em fixar o olhar, além de crises convulsivas. Apresentando um atraso generalizado no desenvolvimento neuropsicomotor, o garoto não sustentava a cabeça, explorava e manipulava os objetos oralmente e aparentava preferência por brinquedos sonoros. Quanto ao seu olhar, este não buscava o Outro, o que gerava dúvidas sobre até que ponto era consequência da deficiência visual ou um testemunho de como Guilherme vinha se constituindo psiquicamente.

Diante de tantas dificuldades orgânicas que deixavam o corpo do menino completamente indefeso, tornou-se imprescindível a presença dos pais na cena terapêutica. Como sustenta Levin (2001) essa especificidade clínica muitas vezes nos coloca diante desta necessidade e deste desafio. Afinal, não é a idade cronológi-ca da criança que vai indicar a participação ou não dos pais no espaço clínico. Quando se aponta a necessidade da presença dos pais junto ao filho na cena terapêutica, não se trata de propor um tratamento em EP ou para a primeira infância. Por mais que muitas dessas crianças não andem, tenham dificuldades de se movimentar, de realizar atividades funcionais, precisando quase que de maneira constante da presença do outro, elas não são mais bebês ou crianças pequenas. Porém, são crianças que ainda necessitam da presença do funcionamento parental, pois sua patologia orgânica de base deixa o corpo num estado de fragilidade e desorganização semelhante ao corpo de um recém-nascido (Levin, 2001).

A presença do casal parental, ou de quem exerça essas funções, é fundamental para leitura dos movimentos nos dados a ver pela criança. Muitas vezes, os pais estão tão envolvidos com a fragilidade orgânica do filho, de modo a atender suas necessidades e lhe propor condições de subsistência, que não reconhecem as demandas subjetivas que a criança exprime nas suas funções. Uma das finalidades desta clínica será deslocar o véu da patologia que nubla o olhar dos pais, a fim de que possam acolher esse filho para além das necessidades e atenções biológicas. Um olhar que apenas dá a sustentação orgânica vital à criança não é suficiente para tornar um movimento reflexo ou um espasmo em gesto. A inclusão dos pais na cena clínica possibilita que eles percebam o filho como um sujeito desejante apesar da condição orgânica que apresenta. Eles passam, espontaneamente, a reconhecer, por exemplo, um sorriso, um olhar ou uma reação tônica da criança como mensagens significantes endereçados a eles, assim como passam a responder por tais demandas.

Nesse contexto, por meio de uma escuta atenta do discurso parental e da leitura das produções corporais do menino, fui percebendo o interesse dele pela voz humana e por cantigas infantis, os quais, mais tarde, tornaram-se objetos de trânsitos que possibilitaram e intermediaram a saída e o retorno ao corpo materno. A forma como Guilherme era carregado pela mãe, dava a sensação de que o corpo da mãe e do filho eram indiferenciados, assim como pouco favorecia a sustentação do olhar e o controle cervical.

Pontuar a mudança de tratamento, ratificando que não se tratava mais de uma clínica de bebês por mais que contasse com a presença dos pais no espaço terapêutico, assim como situar, cronologicamente, a posição que o menino ocupava na infância, foi decisivo para elaboração do trabalho de luto nesses pais e para o tratamento do garoto. A partir daí, o menino deixou de dormir na mesma cama do casal e passou a ocupar uma cama própria. Além disso, deixou de ganhar chocalhos e mordedores, brinquedos para bebês, para ganhar super-heróis de borracha, pois ainda mantinha uma exploração oral dos objetos.

Mesmo recorrendo a algumas operações constituintes utilizadas na Clínica de Bebês e de Crianças Pequenas, esta modalidade terapêutica não corresponde a uma Clínica em EP ou da Primeira Infância. Nomear tal clínica desta maneira, apenas reforçaria a dificuldade dos pais em elaborarem o trabalho de luto e pesar pela criança "normal" que não nasceu, colaborando com a possibilidade de que vire um eterno bebê a criança que nasceu com transtornos neuromotores. Por mais que os tempos constituintes do sujeito respondam a um registro temporal lógico, não há como desconsiderar o tempo cronológico, o qual vai operando sucessivas transformações tanto na estrutura psíquica como orgânica da criança. A temporalidade, no seu registro real, produz efeitos sobre o corpo do sujeito, assim como a neuroplasticidade e a permeabilidade às inscrições significantes não são as mesmas ao longo do tempo por mais que sempre representem uma aposta. Dessa forma, o tempo conta para efeitos de intervenção terapêutica e precisa ser considerado, pois há implicações clínicas e éticas ao se negar a passagem do tempo.

As "conversinhas" que estabelecia com Guilherme, assim como as cantigas infantis foram essenciais para o estabelecimento do laço terapêutico. Por meio delas, fui adquirindo a confiança do garoto, que gradativamente permitia que eu tocasse em seu corpo e realizasse as intervenções fisioterapêuticas necessárias. Através das "conversinhas", percebia que o garoto dirigia o olhar e a face na direção da minha voz, favorecendo também a sustentação ativa da cabeça.

Observa-se, portanto, como a voz do Outro, revestida de musicalidade e picos prosódicos, lembrando também o manhês7, tem incidência direta no corpo da criança. A pulsão invocante foi essencial para a sustentação do olhar, do corpo e até mesmo do tratamento fisioterápico do menino. Laznik (2000) descreve uma interessante relação entre pulsão invocante e estabelecimento do circuito pulsional escópico e do estádio do espelho. Segundo a autora, a resposta do bebê à prosódia materna tem relação direta com o estabelecimento do circuito pulsional escópico, pois o bebê procura ativamente o rosto correspondente a esta voz particular. A mesma autora ainda sustenta a hipótese de é que a experiência de uma prosódia na voz de sua mãe, ou de outro alguém importante do entorno, permitindo ao lactente identificar-se como sendo objeto causa de um gozo deste Outro barrado o que precede e torna possível a constituição do estádio do espelho. A música consiste também em outra forma de sustentar tanto a pulsão invocante como escópica, pois o olhar é convidado e convocado pelos gestos que acompanham a cantiga, assim como pelos diferentes sons evocados. Além disso, os elementos da fala manhês são muito próximos dos elementos musicais (Ferreira, 2001) o que justificaria o interesse aguçado do menino pelas cantigas infantis.

Contudo, essas "conversinhas" eram articuladas numa alternância, sustentando um intervalo, à medida que se supunha que o garoto, como sujeito, tinha algo a contar ou a responder. Em algumas situações, o próprio menino produzia vocalizações e balbucios, enquanto em outras, contava com a intermediação dos pais, que se colocavam a falar pelo filho.

Aqui mais uma vez utilizou-se do conceito de ilusão antecipadora ao atribuir às vocalizações do garoto uma significação, de modo a converter em mensagem aquilo que poderia não ser mais que uma simples reação orgânica. Esse trabalho interpretativo, de "tradução", na qual a terapeuta emprestou seus significantes a fim de sustentar o "diálogo" estabelecido entre eles, pode ser qualificado como uma unidade dialógica, visto que é constituído pelo par pergunta-resposta implicadas numa polaridade eu - tu como descritos em Aresi e Flores (2008). Além disso, criava-se uma alternância entre os falantes, existindo uma interdependência entre os turnos, de modo que a realização do turno seguinte dependia da interpretação do turno anterior.

A posição, outras vezes, ocupada pelos pais ao se colocarem a falar pelo filho nos remete a operação transitivista descrita por Bergès e Balbo (2002), na qual a criança e a mãe se (con)fundem, na medida que ela se coloca também na posição de filho, dividindo-se em dois: ela mesma e ele, fundando a função transitivista.

Aos poucos, percebia-se um movimento por parte dos pais que passaram a se interrogar e a reconhecer as produções do filho, voltandose para onde aparecia um sujeito desejante, mesmo que algumas vezes não passeasse de uma ilusão.

Com isso, num determinado dia, a mãe de Guilherme chega com o menino para atendimento e muito contente relata uma interessante situação: conta que na noite anterior o garoto estava na cama dele choramingando e demandando colo para dormir, como fazia todas as noites. Acontece que naquela noite, a mãe do menino estava com outros interesses e ocupações, não podendo atender ao pedido do garoto. Por intermédio da palavra, ela conseguiu inscrever um corte e marcar para o filho que ele já não era mais bebê, tendo condições suficientes para dormir sem o auxílio do corpo dela, assim como que sua atenção e desejo também se dirigiam para além dele. Relatando tal episódio, ela começa a se dar conta da compreensão do filho, assim como passa a se questionar sobre sua própria vida, provavelmente esquecida num segundo plano desde o nascimento do menino.

A pulsão invocante pareceu ocupar função decisiva para a relação transferencial e subjetivação do garoto, visto que apontou para os dois registros que são causação do sujeito: alienação e separação (Lacan, 1998b) e foi testemunho de como a voz faz corpo e sujeito. Uma criança com transtornos neuromotores além de ser tomada como objeto de desejo, não deve ser excluída da lei simbólica que dá lugar a sua própria constituição como sujeito desejante.

Este recorte clínico ilustra como foi preciso, durante as intervenções fisioterapêuticas e por intermédio da relação transferencial, que se fizesse um trabalho de sustentação subjetiva para essa criança até que os pais apresentassem condições simbólicas para isso. A função clínica, neste caso, foi mais que favorecer um tônus postural funcional e evitar encurtamentos e deformidades articulares no menino, entre tantos outros objetivos fisioterapêuticos. O espaço clínico, portanto, também representou sustentação simbólica a esses pais a fim de que pudessem operar o reconhecimento das diferentes produções do filho, atribuindo-lhe uma autoria em lugar de vacilar tal reconhecimento pela presença da patologia, sem excluí-lo da lei simbólica operada pela função paterna.

Entretanto, ao longo dos atendimentos, foi preciso encaminhar o casal parental a um acompanhamento psicológico específico, pois eram visíveis que as questões iam além das intervenções clínicas propostas. É preciso que o clínico não se coloque como terapeuta universal, sabendo reconhecer seus limites clínicos e transferenciais, o que torna essencial o trabalho interdisciplinar, assim como, encaminhamentos necessários para outras especialidades.

 

Considerações finais

A clínica de crianças muito nos ensina a recorrer a outros campos e a saberes diferentes dos nossos, tornando fundamental o enfoque interdisciplinar. Dessa forma, temos a chance de acessar e de nos apropriar de novos elementos teóricos e clínicos, aprimorando nossa escuta e intervenção terapêuticas, mas, sobretudo, preservamos a criança dos efeitos iatrogênicos da multidisciplina.

A clínica de crianças com transtornos neuromotores é uma proposta terapêutica que visa aproximar e articular os saberes oriundos da fisioterapia neuropediátrica à clínica psicanalítica de crianças, buscando preservar e sustentar a singularidade de cada criança, independentemente da sua lesão.

Não se trata de uma clínica universal, que dê conta de todos os aspectos estruturais e instrumentais do desenvolvimento, nem de uma clínica em EP ou da Primeira Infância. Consiste de uma clínica de transtornos neuromotores que intervém com crianças maiores, ou seja, com aquelas que cronologicamente não são mais bebês ou crianças pequenas, mas que nem por isso, devem ser excluídas de uma intervenção terapêutica atenta e preocupada com a sua estruturação psíquica, independentemente da abordagem instrumental.

Uma clínica de crianças com transtornos neuromotores, como aqui foi proposta, que se ocupe da estruturação subjetiva paralelamente a suas intervenções instrumentais nem sempre é bem aceita ou compreendida, seja na própria instituição, seja pelos pais da criança, ainda muito aderidos a um modelo de clínica mecanicista, ou pelos próprios profissionais que não se arriscam a percorrer, ou até mesmo conhecer outros e novos caminhos.

Por fim, nesta clínica, supomos a existência de um sujeito desejante independentemente da sua produção sensória-motora. Interpretamos como gestos, significamos e incluímos dentro de uma cena e de um contexto os movimentos realizados pela criança, sejam eles espasmos, reflexos, involuntários e estereotipados. Construímos, portanto, na cena terapêutica um espaço de ilusão, sustentado na antecipação simbólica, a fim de reconhecer e autenticar o movimento como gesto e o som como palavra.

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Consideramos primeira infância os três primeiros anos de vida de uma criança. Uma modalidade clínica terapêutica exclusiva para esse período da infância visa marcar a importância desse período tanto para o desenvolvimento como para a constituição subjetiva da criança. Por mais que o tempo de ser infante faça parte da infância como um todo, não há momento algum do desenvolvimento e da constituição do sujeito que passe por modificações tão radicais como nos três primeiros anos de vida. A neurologia classifica esse momento do desenvolvimento como período crítico em razão de a plasticidade neuronal ser mais intensa nessa idade. Já a clínica em Estimulação Precoce toma esse conceito de neuroplasticidade para fundamentar a importância desse momento tanto para a constituição subjetiva como para a intervenção clínica.

2 Disfagia é uma dificuldade nos movimentos de deglutição de tal modo que pode levar a aspirações silenciosas e, consequentemente, pode haver penetração de saliva e de comida nas vias aéreas inferiores, ocasionando crescimento de germes patológicos que causam pneumonia, podendo até mesmo levar a morte da criança (Finnie, 2000).

3 O Reflexo Tônico Cervical Assimétrico (RTCA) na criança com paralisia cerebral pode afetar todo corpo e ser o responsável pela produção de considerável assimetria. A permanência e a não modificação do RTCA interfere no desenvolvimento da criança, pois atrasa atividades como levar a mão e objetos até a boca e à linha média, manusear objetos com as duas mãos e, até mesmo, pode impedir o rolar com dissociação de cinturas (Lorenzini, 2002).

4 Diante do olhar da mãe, ou de quem assume essa função, a criança não só se reflete como unidade (traço unário), assim como se refrata, conferindo-lhe a posição simbólica denominada traço uniano. A diferença entre o unário e o uniano remete a dupla face do um: um da unidade e um da diferença, ser um para o outro, mas diferente do outro (Levin, 2001).

5 Imagem corporal é singular de cada sujeito e relacionada a sua história, podendo ser considerada a encarnação simbólica inconsciente do sujeito desejante (Dolto, 2007). A imagem corporal é definida como a imagem do corpo de um sujeito, acompanhada de sua própria história, sendo singular e constitutiva do sujeito e inconsciente. Na ausência de imagem do corpo, não há esquema, que é préconsciente. Para reconhecer as partes do corpo como partes de um todo, é condição a imagem do corpo unificada (Yañez, 2001).

6 Esquema corporal é inconsciente, préconsciente e consciente (Dolto, 2007). É o conhecimento do nosso próprio corpo, proveniente de informações proprioceptivas, interoceptivas e exteroceptivas. O esquema corporal é mensurável, comparável e de ordem evolutiva (Yañez, 2001).

7 Manhês caracteriza-se pelo modo peculiar como as mães costumam falar com seus bebês, constituindo-se de traços prosódicos, estrutura sintática simplificada, presença de diminutivos e evitação de encontros consonantais (Ferreira, 2001).

 

 

Recebido em maio/2010.
Aceito em outubro/2011.