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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.18 no.2 São Paulo ago. 2013
ARTIGO
As problemáticas alimentares e a desnutrição na infância: contribuições psicanalíticas
Alimentary issues and the infantile malnutrition: psychoanalytical contributions
Las problemáticas alimentarias y la desnutrición en la infancia: contribuciones psicoanalíticas
Ângela Sousa de CarvalhoI; Maria Celina Peixoto LimaII; Karla Patrícia Holanda MartinsIII
IPsicóloga clínica. Mestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, CE, Brasil. Rua 13, Quadra I, Casa 7 65072-270 - São Luís - MA - Brasil. angelasc_psi@hotmail.com
IIPsicanalista. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, CE, Brasil. Avenida Washington Soares, 1321 60811-905 - Fortaleza - CE - Brasil. celina.lima@unifor.br
IIIPsicanalista. Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e professora adjunta da Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, CE, Brasil. Avenida da Universidade, Benfica 60020-181 - Fortaleza - CE - Brasil. kphm@uol.com.br
RESUMO
Este artigo consiste em uma construção a partir da escuta de mães de crianças com desnutrição e queixas alimentares, tomando a psicanálise de Freud e Lacan como referencial teórico. Guardando as devidas particularidades, as crianças pesquisadas apresentam um quadro de desnutrição relacionado à recusa em se alimentar. O sintoma, então, se configura como uma recusa a qualquer alimento que não seja o leite materno, o que aponta para uma dificuldade em renunciar ao objeto seio e operar as devidas substituições para outros objetos/alimentos. Pode-se, desse modo, apontar que o diagnóstico da desnutrição infantil deve levar em consideração os fatores psíquicos relacionados ao âmbito da relação mãe-criança.
Descritores: relação mãe-criança; psicanálise; desnutrição infantil; recusa alimentar.
ABSTRACT
This article is drawn on the hearing of mothers of children with malnutrition, who complain of alimentary issues, and is based, as a theoretical reference, on the psychoanalysis of Freud and Lacan. Besides some peculiarities, the researched children present a clinical condition of malnutrition related to refusal of being fed. The symptom, thus, occurs as a refusal to any food that is not breast milk, which points out to their difficulty to renounce to the object breast and to replace it by other objects/foods. It is possible, thus, to conclude that the diagnosis of infantile malnutrition must take into consideration psychic factors related to the context of the mother-child relation.
Index terms: mother-child relation; psychoanalysis; infantile malnutrition; alimentary issues.
RESUMEN
Este artículo consiste en la construcción de un entendimiento del problema a partir de la escucha a las madres de niños desnutridos, quejándose del problema alimentar, tomando la teoría psicoanalítica de Freud y Lacan como referencial. Guardando las debidas particularidades, los niños estudiados presentan un cuadro de desnutrición relacionado con la negativa a comer. El síntoma, entonces, se configura como un rechazo de cualquier otro alimento que no sea la leche materna, lo que apunta a la dificultad de renunciar al mismo objeto seno y operar dentro de las sustituciones correspondientes a otros objetos/alimentos. Por consiguiente, cabe marcar que el diagnóstico de la desnutrición infantil debe tener en consideración los factores psicológicos relacionados en el ámbito de la relación madre-hijo.
Palabras clave: la relación madre-hijo; psicoanálisis; desnutrición infantil; problemas de alimentación.
Introdução
A desnutrição infantil ainda é considerada na atualidade um problema de saúde pública no Brasil, sendo o seu estudo dominado pelo campo da medicina e das disciplinas sociais. Apesar de acometer, em sua maioria, crianças entre 0 e 3 anos de idade, época primordial para a constituição psíquica, os estudos voltados para os fatores subjetivos implicados na desnutrição ainda são escassos na realidade brasileira. Em relação a esses aspectos subjetivos, ressaltamos a importância de considerar que os primeiros conflitos interacionais entre mãe e criança normalmente encontram expressão na esfera da alimentação. No processo de constituição psíquica, segundo a psicanálise, a boca é a primeira zona erógena a fazer exigências libidinais, constituindo-se, assim, como a via de contato primordial entre o bebê e a mãe.
Tanto em Freud como em Lacan, encontramos fecundas argumentações teóricas a respeito da relação existente entre a primeira fase de desenvolvimento da libido, a oral, e os processos desencadeadores do psiquismo. Em ambos, a experiência primordial de satisfação oral está no âmago da relação do sujeito com o objeto, assim como na origem dos processos de pensamento, dos mecanismos identificatórios, bem como de escolha objetal. É especialmente em Lacan e em autores contemporâneos que sustentamos nossa argumentação teórica acerca da constituição psíquica. No entanto, vale ressaltar que, apesar de não nos determos, no âmbito deste artigo, nas elaborações freudianas, suas contribuições estão presentes em muitos momentos deste trabalho.
A escuta dos casos teve como campo o Instituto de Promoção da Nutrição e do Desenvolvimento Humano (IPREDE), ONG sediada na cidade de Fortaleza, Ceará, Brasil, que desenvolve ações voltadas para crianças desnutridas e suas famílias. Grande parcela das famílias atendidas vive no limiar de sobrevivência econômica, vivenciando a experiência da fome e da exclusão social. Entretanto, destacamos a existência de uma parcela significativa de casos em que a escassez alimentar não está presente e a condição econômica das famílias é razoável. É justamente de casos em que a desnutrição infantil está relacionada a questões subjetivas e vinculares das crianças com suas mães que tratamos neste trabalho. Desse modo, elegemos, para esse propósito, trazer os recortes considerados mais centrais nos dois casos apresentados.
Lacan e a relação com o seio: da necessidade à dialética da demanda e do desejo
Lacan (1995) pensa a constituição psíquica pelo viés da relação de objeto, introduzindo, entretanto, a noção de falta no centro dessa relação, desestabilizando as posições teóricas que sustentariam o pressuposto de uma harmônica complementaridade. Diferencia, assim, três formas de falta do objeto, a partir de três operações: a privação, a frustração e a castração. Esses registros diferentes de falta se articulam na constituição do sujeito, sendo indispensáveis ao processo de ascensão ao mundo simbólico.
Ao referir-se à dialética da frustração, Lacan (1995) aponta que, essencialmente, se trata da frustração, como forma de falta de objeto, quando se fala da relação precoce mãe-bebê. Na dialética da frustração, a mãe, enquanto agente simbólico, em seus ritmos de presença e ausência, passa a frustrar a criança com a falta do seio e de sua presença. Lacan esclarece que, nesse modo de falta de objeto, o objeto em jogo é real, ou seja, o seio ou substitutos. É pela ausência e presença alternadas desse objeto que se processa a dialética da frustração, pois é somente quando o bebê é frustrado da possibilidade de saciar sua necessidade que pode ocorrer uma virada na sua relação com os objetos. A mãe, que antes tinha o estatuto simbólico para a criança, passa a ser percebida como real e detentora da capacidade e potência de satisfazer ou não o bebê. E o seio de objeto real passa ao estatuto de objeto de dom, ou seja, representante simbólico do amor da mãe. Ser alimentado, então, torna-se o equivalente simbólico de ser amado, receber o amor dessa mãe potente.
É a partir dessa inversão, quando os objetos viram signos de amor, que o seio pode ser substituído por outros objetos, desde que a relação alimentar seja sustentada na dimensão do dom. Não se trata mais tanto da satisfação da necessidade, mas da satisfação da demanda de amor, de reconhecimento. Assim sendo, a inversão do estatuto do objeto só é possível porque o simbólico já sustentava a relação do bebê com a mãe e os objetos. E, nesse momento da dialética da frustração, ter acesso a esses objetos, seio, alimento, equivale a receber esse dom da potência materna.
Lacan (1992) pontua ainda que a demanda oral não é outra coisa que a demanda de ser alimentado, e é dirigida ao Outro da relação. À demanda de ser alimentado, por sua vez, responde, no nível do Outro, a demanda de se deixar alimentar. Em razão da própria característica da estrutura significante, que dá suporte às trocas simbólicas entre o bebê e a mãe, a demanda de ser alimentado sofre uma inversão, sendo também uma demanda de se deixar alimentar. No encontro dessas duas demandas, de ser alimentado e de se deixar alimentar, abre-se o espaço para o nascimento do desejo. Assim, acompanhando Lacan (1992), podemos entender a anorexia infantil como uma consequência de um descompasso entre tais demandas, resultante de um impasse entre a mãe e a criança; não respondendo à demanda de se deixar alimentar e impedindo a satisfação da necessidade, a criança procura manter o mais-além do desejo salvaguardado. Nesse sentido, a erogeneização da zona oral ocorre como resultado dessa dialética da frustração, na medida em que a criança coloca a satisfação da necessidade como um substituto, no intuito de suplantar a decepção inerente à relação simbólica. A necessidade é satisfeita pelo alimento, e o desejo surge como esse mais-além que se produz na hiância que nasce entre necessidade e demanda. Vemos, então, que nesses desfiladeiros da demanda e do desejo são as operações materna e paterna que propiciarão a passagem da necessidade ao desejo, ou seja, o ingresso do bebê no mundo simbólico.
Função materna e função paterna: a amamentação e o desmame
Embora a amamentação seja comumente relacionada à amamentação no seio, para a psicanálise, o fundamental diz respeito ao estatuto que o objeto, seio ou mamadeira, vai adquirir nas trocas entre a mãe e o bebê. A amamentação, assim, enquanto primeiro veículo de relação, depois do nascimento, entre a mãe e o bebê, adquire grande importância no processo de constituição do sujeito, tempo lógico que marca uma etapa em que o bebê vivencia uma indiferenciação com o Outro primordial. Segundo Jerusalinsky (1984), a amamentação permite que a separação súbita do parto caminhe para um distanciamento gradual, em que o leite e a presença constante da mãe serão substituídos por outros objetos. É um processo necessário para que exista o tempo de o bebê vivenciar a alienação ao Outro primordial, assim como para que a necessária separação se dê de forma estruturante.
Nesse processo, a forma como a mãe significa e vivencia a amamentação é determinante para o seu desenrolar na estruturação do bebê. Cullere-Crespin (2004) esclarece que é o saber inconsciente da mãe que determinará, em grande parte, a forma como ela cuida e se relaciona com o seu bebê. Nesse momento, os traços mnêmicos da maternagem recebida são reativados, facilitando ou trazendo impasses no exercício da maternidade. Os impasses no período da amamentação muitas vezes dizem respeito a conteúdos referentes à própria oralidade da mãe, tornando a amamentação difícil, o que normalmente leva a um desmame conflituoso.
Freud (1905/2006a), a esse respeito, ressalta o caráter erótico da amamentação, uma vez que, nos cuidados para com o bebê, a mãe transmite sentimentos de sua vida sexual, colocando o bebê na posição mesmo de um substituto do objeto sexual. Segundo Queiroz (2000), a amamentação é uma situação rica em sensações sexuais, tanto para a mãe quanto para a criança. Muitas vezes o aspecto erógeno dessa relação e as sensações daí advindas podem ser um fator de estranhamento e conflito para a mulher. Por outro lado, essa mesma erogeneidade pode levar a excessos, e, estaria, segundo Queiroz (2005), na origem do gozo que faz com que certas mães não consigam fazer outra coisa senão amamentar. Nesses casos, o processo do desmame torna-se ainda mais traumático, pelo fato de a criança não ter experimentado gradualmente a ausência e a falta necessárias. Esse caráter erógeno e de sedução da relação mãe-bebê é, portanto, constitutivo da sexualidade da criança; mas, para que cumpra seu papel estruturante, essa relação incestuosa deve ser proibida e submetida à castração. É a relação da mãe com sua castração e com sua falta que possibilitará, ou não, que a experiência da amamentação, com sua necessária indiferenciação mãe-bebê, seja mediatizada pela lei paterna.
Em Freud (1924/2006b), encontramos a equação pênis=criança como uma das soluções de saída no Édipo feminino. O desejo pelo falo nas meninas culmina no desejo de ter um filho do pai, como forma de suplência ao desejo de falo. Segundo Lacan (1995), a mãe é, assim, insaciável e ameaçadora em sua busca pelo falo. Nesse primeiro tempo lógico da frustração, a mãe opera como um desejo sem lei. Lacan (1998) pontua, entretanto, que a mãe precisa reservar um lugar ao Nome-do-Pai, para permitir que o corte incida nessa relação dual e alienante. Passar do tempo da amamentação para a separação vivenciada no desmame relaciona-se com a maneira como essa mulher equacionou mais ou menos bem sua falta de falo e a impossibilidade de sua completude.
Partindo dessas considerações, podemos refletir o quanto a amamentação pode levar a mãe e a criança a um engodo de difícil saída, o que é demonstrado pelos inúmeros exemplos clínicos de amamentações prolongadas, assim como de casos de impasses alimentares na época da passagem desta para outras formas de alimentação. Nessas circunstâncias, segundo Oliveira (2009), não se opera a função simbólica da amamentação, impedindo o deslocamento para novos objetos/alimentos e os devidos desdobramentos pulsionais; as trocas alimentares não se tornam veículo que conduz as palavras da mãe à criança, necessárias a sua estruturação simbólica.
Assim, para que a amamentação seja estruturante, é necessário que as funções psíquicas operadas pelo agente materno se deem de tal forma que possibilitem um espaço de interdição, diferenciando o psiquismo materno e o do bebê. Pois o desmame marca um corte na relação dual do corpo a corpo da mãe com a criança, e pressupõe que outro corte simbólico tenha se efetuado nessa relação para que se desenrole. Lacan (1984/2008) eleva o desmame à categoria de um complexo, complexo que recobre psiquicamente a história das trocas alimentares, sendo representado pela forma da imago materna. Trata-se do complexo mais primitivo da constituição psíquica, mas que só tem esse estatuto porque recobre outro desmame mais profundo, a separação do bebê e da mãe no nascimento. O autor esclarece ainda que o complexo do desmame não se confunde com a ablactação propriamente dita, mas refere-se à deficiência orgânica dos primeiros meses de vida.
É a relação orgânica que explica a fixação do complexo no psiquismo, bem como a sua consequente dificuldade de sublimação, o que Lacan exemplifica pela ligação excessiva e prolongada da criança à mãe. Segundo Queiroz (2005), as amamentações prolongadas são apenas mais um exemplo dessa difícil sublimação do complexo do desmame. Essa imago, apesar de ser positiva e necessária ao desenvolvimento, pode tornar-se fator de morte quando não sublimada. É importante situar que o desmame é um processo gradativo de separação psíquica, pontuado efetivamente pelo fim da amamentação propriamente dita, mas que implica uma necessária saída da criança do lugar de falo da mãe.
Retomando Lacan (1995), é a entrada em cena da metáfora paterna, enquanto significante do Nome-do-Pai, que possibilita a dialetização do desejo da mãe pelo filho, libertando-o do engodo de ser objeto da mãe. É a relação da mulher com o falo e com a falta que irá determinar os desfiladeiros do desmame e das demais separações e perdas necessárias à constituição psíquica da criança. Esse tempo lógico do desmame é um momento que Lacan (1995) localiza como concomitante ao Estádio do Espelho, em que a criança é tomada de júbilo ao reconhecer seu corpo próprio, mas ao mesmo tempo experimenta decepção ao, consequentemente, reconhecer que a mãe é um ser separado, que pode responder, ou não, aos seus apelos. Lacan pontua que é precisamente nesse momento de inversão da relação da mãe com a criança, em que esta se dá conta da onipotência materna, que podemos localizar o sintoma da recusa alimentar na anorexia mental. Essa recusa seria uma tentativa da criança de inverter essa relação de dependência, fazendo com que, assim, a mãe é quem passe a depender dela, em suas tentativas de alimentá-la.
Desse modo, é a partir dessas conjecturas teóricas que nos propomos a pensar o que observamos nos casos pesquisados neste estudo, os quais, guardando as devidas particularidades, apresentaram relatos de impasses alimentares, quer seja na versão de uma amamentação excessiva, ou em desmames precoces.
Os impasses alimentares na infância
A relevância do estudo de questões referentes às problemáticas alimentares na primeira infância é, como vimos, fato explicitado por importantes construtos teóricos da psicanálise; sua aparição se faz frequente tanto no consultório do pediatra e no do psiquiatra, quanto no do psicanalista. No campo dos saberes biomédicos, os fenômenos alimentares tendem a ser compreendidos como transtornos, e a retomada do peso ideal é o objetivo de tratamento, excluindo as questões subjetivas aí implicadas. No entanto, na psicanálise, desde Freud, o movimento foi em sentido contrário, pois o interesse se concentrou em analisar os fatores subjetivos vinculados à recusa alimentar.
Assim, encontramos em Freud (1933/2006c) importantes contribuições para o estudo da anorexia, com base em suas reflexões sobre o papel do sintoma alimentar em algumas de suas pacientes. Podemos afirmar que, nesse contexto, a anorexia foi compreendida a partir de dois modelos distintos, o da histeria e o da melancolia, relacionando também esse quadro com questões da oralidade e sua erotização. Mas foi a partir das contribuições de Lacan que os sintomas anoréxicos, especialmente na infância, tiveram um fecundo embasamento teórico-clínico. Lacan, assim como Freud, não se concentrou na questão da anorexia, mas apontou importantes caminhos em momentos diferentes de sua obra. Desse modo, Bidaud (1998) ressalta que, dentre as contribuições de Lacan para o pensamento a respeito da anorexia, se destaca a distinção conceitual da necessidade, da demanda e do desejo.
Na atualidade, autores como Bidaud, Jeammet e Brusset dedicam-se ao estudo do tema, tendo em comum, segundo Cobelo, Gonzaga e Weinberg (2010), a atenção dada aos laços mais arcaicos estabelecidos entre mãe e filha, trazendo reflexões relacionadas às questões narcísicas. Salvo as distinções teóricas e clínicas existentes no entendimento da anorexia, de uma forma geral, na psicanálise, fala-se de anorexia quando se trata da recusa alimentar em adolescentes, envolvendo toda a problemática da imagem distorcida do corpo e demais sintomáticas. Entretanto, Lacan (1995), tratando da recusa alimentar em crianças, nomeou "anorexia mental" essa apresentação sintomática infantil.
Escrevendo sobre a criança, Lacan (1969/2003) aborda o sintoma infantil como uma resposta ao que existe de sintomático na estrutura familiar, enquanto um representante da verdade do casal ou somente da mãe. Assim, quando o sintoma da criança é uma resposta dada à sintomática do casal parental, significa que a metáfora paterna operou, sendo esse o campo das neuroses. Já nos casos em que a criança fica no lugar de um correlato do fantasma materno, não existe uma dialetização do desejo da mãe pela criança, que seria operada pelo Nome-do-Pai, ficando a criança em um difícil engodo para a sua constituição. A criança, nesses casos, é o sintoma da mãe.
Mannoni (1980) sempre apontou para esse caráter de representante da verdade familiar da sintomática infantil. A autora esclarece como, muitas vezes, a criança pode estar no lugar de realização dos sonhos dos pais, de tamponamento de suas dificuldades e conflitos e de supressão das angústias maternas. Levy (2008), a esse respeito, desenvolve proposições sobre o lugar da criança para os pais a partir da distinção conceitual lacaniana entre Sinthome e Symptôme. Jerusalinsky (2008) esclarece que o sinthome diz respeito às respostas dadas pelo sujeito, ao longo de sua constituição, no intuito de uma elaboração de seu fantasma fundamental. Seriam, assim, manifestações sintomáticas necessárias e estruturantes para o sujeito. Já o symptôme expressaria os problemas e impossibilidades que o sujeito apresenta para elaborar seu fantasma fundamental.
Assim, Levy (2008) assinala o fato de a criança funcionar como um sinthome dos pais, sendo necessário, por isso mesmo, a escuta destes para a compreensão do symptôme da criança. Ressalta, ainda, a necessidade mais radical da escuta da mãe, pois a criança é em princípio o sintoma da castração da mãe, funcionando, por isso mesmo, como um sinthome para esta, ou seja, como uma forma de a mulher lidar com a sua falta constitutiva. Devemos, também, levar em consideração que, quanto menor a criança, mais radicalmente colada ao desejo materno ela deve estar, pelo próprio processo de constituição psíquica. Considerando, portanto, que as crianças aqui pesquisadas têm entre 2 e 3 anos e 6 meses de idade, entendemos que os seus sintomas ainda estão necessariamente atrelados às questões maternas.
É a partir da escuta das mães que tentaremos elaborar algumas compreensões sobre os impasses alimentares que se deram nos casos aqui pesquisados. Ou seja, a recusa alimentar da criança será compreendida a partir da escuta do que esse discurso materno nos diz, naquilo que se refere ao desejo e aos fragmentos atribuíveis à fantasmática materna. Optamos, para esse propósito, por apresentar dois casos de nossa pesquisa, considerando as limitações do presente trabalho. Esclarecemos que os nomes aqui utilizados são fictícios.
A "fraqueza" que nenhum alimento pode suplantar
Ruth é uma garota de 2 anos e 3 meses que chegou à instituição com diagnóstico de desnutrição leve, teve uma amamentação marcada pelo silêncio e angústia maternas, com um desmame abrupto, pois sua mãe ficou doente e a desmamou da noite para o dia. Ruth era "fortinha" até os 6 meses, depois que foi desmamada passou a perder peso. Ruth perdeu a mama rapidamente, mas permaneceu na chupeta e na mamadeira. Usava chupeta 24 horas por dia, e só queria ser alimentada na mamadeira. Nunca aceitou comidas sólidas completamente. Tem preferência por mingaus e comidas molhadas. A mãe não relata prazer em seus cuidados com a criança, mas demonstra uma grande atenção ao campo das necessidades reais: "eu dava peito quando via que ela tava com fome. Eu não conversava com ela, me sentia um pouco triste. Só minha outra filha conversava com ela e fazia festa".
Ao se referir ao marido, Aurora relata que seu casamento foi difícil desde o começo, pois a mãe dela não aprovava o futuro genro. A mãe de Aurora não só não aprovou, como não compareceu ao casamento da filha: "minha mãe não foi ao meu casamento, foi horrível. Parecia um funeral". Aurora fala que não sabe como foi que se casou, tudo aconteceu muito rápido, e de repente ela estava casada mesmo sem a aprovação de sua mãe. A gravidez de Ruth foi marcada pela ambivalência e rejeição maternas: "na verdade, não quis nenhuma das minhas gravidezes, tinha medo, não queria". Quando estava grávida de Ruth, voltou a sentir muitas dificuldades: "A Ruth nasceu de camisinha... era camisinha que a gente usava". Ela afirma nunca ter desejado suas gravidezes e que tentou evitar todas, mas "mesmo com camisinha, Ruth nasceu". Aurora amamentou a menina por seis meses ininterruptos, ela não trabalhava e passava o dia em casa com a criança. Teve, então, uma forte virose que a impossibilitou de cuidar da criança por um mês, interrompendo a amamentação abruptamente. Vimos, anteriormente, que o processo do desmame propriamente dito precisa ser paulatino. Trata-se de um processo, justamente porque, sendo sustentado por operações simbólicas de separação, permite que a criança e a mãe signifiquem esse corte, possibilitando sua elaboração.
Aurora não somente não fala do marido, como, quando fala, é desqualificando-o, seja como homem, seja como pai: "eu não sinto vontade, assim... vontade de tá com ele faz tempo". Parece que Aurora fragiliza ao máximo a interseção do marido entre ela e Ruth, sendo o seu discurso o único que pode operar para a criança. Ora, é justamente a dialetização do desejo da mãe pelo filho que torna possível as separações, como o desmame, e essa dialetização, por sua vez, só ocorre se a lei do pai atuar. Se a relação na amamentação já se passou sem um investimento libidinizador e ainda se rompeu de forma repentina, como Ruth poderia se desligar desse objeto primordial e deslocar para outros objetos que representassem essa presença materna?
Referindo-se à causa da desnutrição da filha, Aurora nos fala: "eu acho que é dela mesmo, foi quando perdeu a mama. Desnutriu porque perdeu a mama... e foi ficando fraquinha assim". Assim, diante do que escutamos de Aurora, retomamos Bernardino (2005) em sua colocação de que, se o desmame se produz, mas a marca dessa experiência não pode ser simbolizada, permitindo uma substituição do objeto, a criança ficará presa ao real da experiência de uma perda impossível, já que real. É justamente, segundo a autora, nesses casos em que ocorre uma não libidinização do objeto oral que a metaforização da perda do objeto fica impedida. Como deslocar, assim, para outros objetos/alimentos? Podemos entender a recusa de Ruth, então, como relacionada a essa dificuldade em fazer as necessárias substituições do objeto primordial para outros objetos/alimentos, por conta da não simbolização da perda?
Era uma vez a "orgia" da mamada
Natália é uma menina de 2 anos e 11 meses, chegou à instituição com apenas 1 ano, com desnutrição moderada. Sua mãe, Maria, só tinha ela de filha e não vivia com o pai da garota. Maria relata que só se deu conta de que tinha alguma coisa errada com o crescimento da filha, por causa da insistência materna: "minha mãe brigava todo dia comigo pra eu ir ao médico, dizia que a menina tava ficando doente o tempo todo, emagrecendo, que ela não podia ficar só mamando o tempo todo". A criança já tinha mais de 1 ano e só mamava, a mãe desabafa: "eu não tinha interesse algum em preparar outros alimentos pra ela, por mim ela só mamava mesmo, era o que ela precisava". Para Maria, sua filha não precisava de nada além dela, bastava seu leite. Mesmo diante dos comentários de terceiros, como médicos ou sua mãe, ela não se convencia de que sua filha pudesse precisar de outros tipos de alimento para se desenvolver: "eu achei que meu leite fosse o bastante... ela gostava tanto, sempre queria". Não existia possibilidade de outro saber sobre a criança que não o dela. Observemos que Maria há muito já havia excluído o pai de Natália da relação, não permitindo que a fusão simbiótica entre as duas fosse desfeita.
Neste ponto, lembramos Lacan (1995) referindo-se à necessidade insaciável da mãe pelo falo. Se a mãe restringe sua satisfação de falo na criança, esta fica presa no engodo de ser aquilo que preenche a falta materna. É a mãe todo-poderosa, que tudo sabe sobre seu bebê, que não precisa recorrer ao outro para lidar com essa criança. Bem sabemos dos destinos desastrosos de um desejo assim tão voraz, que não permite intermediação, para a constituição da criança. Mas parece que a desnutrição de Natália possibilitou que sua mãe se questionasse acerca de seu saber sobre a filha: "Ela estava muito magrinha e só ficando doente, gripada, aí minha mãe disse que já tava na hora de eu levar ela no médico. Aí ela ficou em tratamento, né? Tava desnutrida".
Mesmo em tratamento, Natália passava o dia todo mamando, e não aceitava de forma alguma outro tipo de alimento. A mãe relata: "quando eu pegava ela na creche, ela já ia tirando minha roupa no meio da rua... mamava era a noite inteira, sem parar um minuto... dormíamos juntas na rede". Sabemos como uma amamentação excessiva pode indicar um transbordamento da função materna. Tratando do caráter erógeno da relação mãe-bebê, Freud (1905/2006a) alerta para o fato de o bebê estar para a mãe como um substituto do objeto sexual. As relações da mãe com o bebê devem mesmo ser marcadas por certa erogeneidade, para serem estruturantes da sexualidade da criança. A amamentação é o tempo permitido para que essa relação incestuosa se dê, sem, no entanto, ultrapassar alguns limites. Freud esclarece ainda que o excesso de ternura pela criança pode acelerar seu desenvolvimento sexual e causar uma predisposição às neuroses. A demanda insaciável da criança seria, justamente, um dos sinais desses excessos. Excesso que denunciaria uma falha na função paterna? Como aceitar outros alimentos, então, se o desejo dessa mãe era tão voraz no sentido de ser a única provedora da alimentação da criança?
Considerações finais
Esses dois casos, extremamente fecundos no sentido de demonstrar os impasses alimentares que se deram entre essas crianças e seus pares, nos mostram dois extremos da relação alimentar. As duas crianças desenvolveram o mesmo sintoma, recusa alimentar, de forma tão persistente, que as levou ao quadro de desnutrição. Aurora, mãe de Ruth, não viveu a erogeneidade constitutiva em seus cuidados com a filha, e fez o desmame sem que um processo paulatino pudesse dar conta dessa separação. Maria, por sua vez, não conseguia abrir mão do prazer que sentia nos cuidados com a filha, o que a impedia de pôr um fim, necessário, à amamentação da menina. O que se configurou nos dois casos foi uma dificuldade dessas crianças em renunciar ao objeto/seio, ficando comprometido o processo de deslocamento para outros objetos/alimentos.
Mas, apesar das diferenças, os dois casos nos mostram toda a questão da metáfora de amor que a troca alimentar comporta. Como a necessidade alimentar se torna caminho para a forma primeira de troca e comunicação entre a mãe e o bebê, o alimento passa a ser signo de prazer ou de sua falta na relação. Sendo assim, alimentar e ser alimentado torna-se uma experiência matriz de subjetivação, deixando profundas marcas no processo de constituição da criança.
Muitos são os estudos psicanalíticos sobre as questões alimentares, referindo-se tanto à primeira infância quando à adolescência e vida adulta. Entretanto, essa relação entre desnutrição infantil e os impasses alimentares guarda certa particularidade, vez que a desnutrição infantil é automaticamente relacionada a fatores orgânicos e sociais, sendo comumente remetida à privação alimentar. No entanto, o que nos propusemos a evidenciar com este trabalho diz respeito à relação, em certos casos de desnutrição, entre impasses alimentares e conflitos subjetivos na relação mãe-bebê. Atestamos, desse modo, a necessidade de uma ampliação dos critérios diagnósticos da desnutrição infantil, a partir de uma maior consideração dos fatores subjetivos ligados às relações precoces da criança com seus pares.
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Recebido em março de 2012.
Aceito em maio de 2013.