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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.18 no.3 São Paulo dez. 2013

 

ARTIGO

 

As oportunidades clínicas com crianças com sinais de autismo e seus pais

 

Clinical opportunities with children with signs of autism and their parents

 

Las oportunidades clínicas con niños con signos de autismo y sus padres

 

 

Gisela Untoiglich

Psicanalista. Docente do Programa de Pós-Graduação "Problemáticas Clínicas da Infância" da Universidade de Buenos Aires (UBA). Supervisora da Equipe Interdisciplinar do Centro de Desenvolvimento Infantil e de Estimulação Precoce El Nido (San Isidro), Buenos Aires, Argentina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nos últimos vinte anos houve uma explosão de diagnósticos de transtornos, de suposta origem neurobiológica, que têm invadido a infância. Na última década aumentou de modo exponencial o número de crianças diagnosticadas com Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD), e há alguns anos vem se impondo a categorização de Transtornos do Espectro Autista (TEA). Neste artigo realizarei primeiramente uma revisão histórica dos constructos TGD e TEA, em seguida apresentarei um caso clínico a partir do qual colocarei algumas reflexões acerca do trabalho clínico com crianças com sinais clínicos de autismo e seus pais, a partir de uma perspectiva psicanalítica.

Descritores: crianças; sinais de autismo; psicanálise.


ABSTRACT

During the last twenty years there has been an explosion of diagnoses of disorders, of so-called neurobiological origin, who have invaded childhood. In the last decade the number of children diagnosed as Pervasive Developmental Disorder (PDD) has increased exponentially and during the last years the categorization of Autism Spectrum Disorder (ASD) has been imposed. In this article I will make a historical review, concerning two constructs: PDD and ASD, then I will present a clinical case from which I will raise some thoughts from a psychoanalytic perspective, on clinical work with parents and children with clinical signs of autism.

Index terms: children; signs of autism; psychoanalysis.


RESUMÉN

En los últimos vinte años ha habido una explosión de diagnósticos de trastornos, de supuesto origen neurobiológico, que han invadido la infancia. En la última década han aumentado, de modo exponencial, los niños diagnosticados como Trastorno Generalizado del Desarrollo (T.G.D.) y hace algunos años se ha venido imponiendo la categorización de Trastorno del Espectro Autista (TEA). En este artículo realizaré una revisión histórica de los constructos TGD y TEA, luego presentaré un caso clínico a partir del cual plantearé algunas reflexiones acerca del trabajo clínico con niños con signos clínicos de autismo y sus padres, desde una perspectiva psicoanalítica.

Palavras clave: infancia; signos de autismo; psicoanálisis.


 

 

Introdução

Nos últimos vinte anos houve uma explosão de diagnósticos de transtornos, de suposta origem neurobiológica, que têm invadido a infância. Na última década aumentou de modo exponencial o número de crianças diagnosticadas com Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD), e há alguns anos vem se impondo a categorização de Transtornos do Espectro Autista (TEA).

Neste artigo realizarei primeiramente uma revisão histórica dos constructos TGD e TEA, em seguida apresentarei um caso clínico a partir do qual colocarei algumas reflexões acerca do trabalho clínico com crianças com sinais clínicos de autismo e seus pais.

 

História do conceito de autismo

Em 1911, Bleuler, psiquiatra suíço, introduz o termo "autismo", referindo-se a uma alteração comum à esquizofrenia, que implica o isolamento da realidade externa. Do grego, autos: si mesmo; ismo: sufixo que se refere ao modo de estar; autismo: fechado em si mesmo.

Kanner, em 1943, define o "autismo infantil precoce", diferenciando-o da esquizofrenia infantil. Sua construção se baseou na observação de onze pacientes que tinham em comum as seguintes características: incapacidade para estabelecer relações; alterações na linguagem, sobretudo como veículo de comunicação social; insistência obsessiva em manter o ambiente sem mudanças; aparecimento, em algumas ocasiões, de habilidades especiais; bom potencial cognitivo, mas limitado aos seus centros de interesses; aspecto físico normal e aparecimento dos primeiros sintomas desde o nascimento.

Quase ao mesmo tempo, Asperger (1944), na Alemanha, apresenta as histórias clínicas de quatro crianças e as categoriza como "psicopatia autista". As características que destaca são: falta de empatia; ingenuidade; pouca habilidade para fazer amigos; linguagem pedante ou repetitiva; comunicação não verbal pobre; interesse desmedido por certos temas e inabilidade motora e má coordenação.

Não teve transcendência até que L. Wing (1982) traduz os trabalhos para o inglês e dá a conhecer a "Síndrome de Asperger". (Artigas-Pallarès & Paula, 2012). Erikson (1950) atribui as origens do autismo à relação mãe-filho, destacando que muito precocemente alguns bebês têm enormes dificuldades em responder ao olhar, ao sorriso e ao contato físico da mãe, as quais provocam nela um distanciamento que contribui para o isolamento da criança autista.

No Manual de diagnóstico e estatística de transtornos mentais (DSM I), de 1952, ainda que o autismo já tivesse sido identificado, não foi incluído. As crianças com essas características eram diagnosticadas com "Reação Esquizofrênica de Tipo Infantil".

No DSM II, de 1980, incorpora-se o "Autismo Infantil" como uma categoria específica. No DSM III-R, de 1987, se substitui "Autismo Infantil" por "Transtorno Autista". No DSM IV, de 1994, incorpora-se o "Transtorno Global de Desenvolvimento (TGD)" e se definem cinco categorias: Transtorno Autista; Transtorno de Asperger; Transtorno de Rett; Transtorno Desintegrativo da Infância e Transtorno Global de Desenvolvimento não Especificado. É a partir dessa revisão que começam a se incrementar os diagnósticos de autismo.

O DSM 5 (APA, 2012), cujo lançamento ocorreu em maio de 2013, propõe a substituição da denominação "Transtorno Global do Desenvolvimento" por "Transtorno do Espectro Autista (TEA)". Os critérios de identificação serão mais amplos e abrangentes, e muitos temem a expansão do diagnóstico de autismo.

As causas do autismo são desconhecidas na atualidade. Para sermos mais precisos, o certo é que não se podem englobar os milhões de crianças com características autistas em uma única categoria; portanto é impossível pensar em uma única causa. Existem diferentes hipóteses e diversas linhas de investigação, a maioria dos investigadores concorda que, seguramente, trata-se da combinação de múltiplos fatores, que não necessariamente devem repetir-se de forma idêntica em todos os sujeitos.

 

Prevalência

As mudanças na forma de conceber o autismo, de categorizá-lo e, sobretudo, as ferramentas utilizadas para diagnosticá-lo ocasionaram uma mudança radical, nos últimos anos, a respeito do número de crianças que portam esse diagnóstico.

Uma revisão de Fombonne (2003) mostra que a prevalência de autismo passou de 4,4/10.000, entre 1966 e 1991, para 12,7/10.000, entre 1992 e 2001. Os últimos dados dos Estados Unidos tomando como referência o Transtorno do Espectro Autista (TEA) falam de 1/88 e especificamente 1/59 em relação aos meninos, o que coloca o autismo num patamar alarmante.

Porém, todos esses dados se encontram em discussão no interior da comunidade científica, já que nem todos concordam com os instrumentos que estão sendo utilizados para validar o diagnóstico. Em diferentes países, há uma pressão para que a aplicação de guias como o Modified Checklist for Autism in Toddlers (M-CHAT) seja obrigatória aos 18 meses de vida da criança, o que poderá gerar uma explosão brutal de casos, sem a possibilidade de que a saúde pública desses países possa responder à demanda gerada. Paralelamente, não podemos evitar como dado significativo que em torno do autismo se gera um negócio estimado em 90 bilhões de dólares (Affalo, 2012).

Assim mesmo, nos perguntamos quais seriam os efeitos na vida das crianças e de seus pais, quando tão precocemente certos sinais, que sem dúvida merecem atenção, se transformam em diagnósticos fechados, invalidantes, incapacitantes e inamovíveis? Trabalharei com essas questões em um caso clínico.

 

Tobias, uma oportunidade para o encontro

Os pais de Tobias me consultam quando ele tem 3 anos de idade, encaminhado pelo pediatra. Havia seis meses que tinham realizado a primeira consulta com uma neurolinguista porque ele não falava. A neurolinguista o diagnostica com Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD) e os encaminha a uma interconsulta com um neurologista. Este o avalia e diz aos pais que na realidade é um caso de Transtorno do Espectro Autista (TEA), completa as planilhas para que solicitem o "certificado de incapacidade" e organiza um plano de trabalho de oito horas diárias em casa, com uma equipe de vários terapeutas: psicopedagogas, professores especiais, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogas etc. Propõe medicá-lo com Risperidona1 para que responda melhor ao tratamento e abaixe seu nível de birras. Após alguns meses os pais observam que seu filho está cada vez pior, mais rígido, menos tolerante, sentem-se invadidos por todos os terapeutas em sua casa, não estão tranquilos com a medicação que estão dando à criança e decidem falar com o pediatra, que não concorda com o enfoque que está sendo dado ao tratamento de Tobias e me encaminha a criança.

Os pais de Tobias chegam cansados à entrevista, estão esgotados, voltam a contar os fatos e a descrever a criança como se estivessem funcionando no piloto automático. Segundo a mãe "até 1 ano parecia uma criança normal", em seguida deixou de responder ao seu nome. Isola-se, os utiliza como instrumento para conseguir objetos, não interage com outras crianças, nem sequer com sua irmã dois anos mais velha. Não olha nos olhos. Dizem que é muito estruturado, que está fixado a alguns objetos e rotinas e tem obsessão pela televisão. Quando não está em terapia, passa muitas horas vendo os mesmos filmes.

Solicito que me contem a história de Tobias. Relatam que Tobias nasceu e no segundo dia começaram os problemas, deixou de comer, a glicose abaixou e o diagnosticaram com a Doença de Hirschsprung2. Aos quinze dias de vida tiveram que intervir cirurgicamente, em decorrência de uma infecção, e ele esteve um mês internado em estado muito grave. Aos 3 meses teve que realizar uma segunda operação, que também teve complicações. Custou-lhes muito para conseguir a estabilidade física da criança.

A mãe disse: "Segue estando muito apegado comigo, talvez o tenha isolado demais. Não aceita o não, mas o entende. Quero crer que entende". Emite sons, mas não fala. A mãe formula seu temor de não estar no caminho correto e estar perdendo um tempo valioso.

O pai expressa: "Talvez não saibamos como ajudá-lo. Sempre estivemos muito preocupados com sua saúde física. Agora somos os pais de um autista".

A mãe conta que devido à doença congênita da criança, ela teve seis meses de licença no trabalho e que isso gerou um vínculo muito forte entre ela e o filho, no qual ninguém de fora tinha muito espaço. O pai disse que não encontrava um modo de relacionar-se com a criança e que, além disso, estava preocupado com os cuidados com a filha maior.

Atualmente, a criança passa a maior parte do tempo sob os cuidados dos avôs maternos, com um desfile interminável de terapeutas, que deixam um sem-número de indicações que ninguém consegue seguir, e que geram na mãe muita culpa e ambivalência.

Quando os questiono sobre o que supõem que ocorre com seu filho, me recitam as características de manual estabelecidas pelo DSM IV (1994) para o diagnóstico de TGD. Parecem resignados, anestesiados. Não obstante, enquanto a mãe vai relatando a história, ela começa a angustiar-se. Seu marido se surpreende já que nunca a viu angustiada. A mãe diz que agora que está contando tudo o que viveu, percebeu o peso que sentia e o quanto estava sozinha em seu sofrimento, já que até aquele momento só pôde se ocupar da sobrevivência de Tobias, de que não lhe aconteceria nada. Sua preocupação e tensão eram constantes e reprovava o fato de seu marido poder seguir adiante e ser feliz apesar de tudo o que acontecia a sua volta. Ele supunha que seu dever era garantir o bem-estar econômico da família e ocupar-se da filha mais velha, mas nunca havia dimensionado a angústia de sua mulher.

 

Tobias: entrevistas vinculares

Tobias vai à primeira entrevista com seus pais. A princípio observa os objetos do consultório e não busca conectar-se comigo, se distrai e dá alguns pulinhos ao ver os brinquedos. Dirige-se aos objetos e volta aos pais. Parece esperar uma orientação. Pega os cestos cheios de brinquedos e os joga para cima. Tem um objeto duro na mão que não solta por um bom tempo. Está o tempo todo com a chupeta na boca e a faz girar como um cata-vento. Procura os animais e começa a alinhá-los, toma o tigre e logo o deixa. A mãe diz, sem que nenhum gesto de Tobias indique: Está procurando o tigre? E imediatamente o dá. Tobias não a olha e ela fala: "parece que me acelero o tempo todo".

Dirige-se ao pai e deixa a chupeta, emite um som pela primeira vez. Jogo uma bola e ele se distrai. Ele tira a mãe da cadeira, senta-se à escrivaninha e começa a rabiscar uma folha. A mãe esclarece que a psicopedagoga desenha figuras geométricas para que ele as diferencie. Pego uma caneta e começo a desenhar na folha, toco minha caneta na dele, e ele me observa pela primeira vez.

Procura os tijolos, os tira e, quando digo que está na hora de ir, pega dois deles, me olha e eu lhe proponho que os leve, mas que os traga no próximo encontro.

 

Entrevista com Tobias e seu pai

Tobias entra e me olha, tem os dois tijolos na mão, interage comigo e com os brinquedos. Começo a fazer bolhas e ele as pega. O pai exclama: "é a primeira vez que o vejo [brincar]!" Pede coisas através de gestos.

 

Tobias e sua mãe

Na terceira entrevista, Tobias chega e se deixa abraçar, sorri ao me ver, senta em sua cadeira e começa a fazer traços num papel por um longo tempo. Desenho o contorno de sua mão na folha e desenho acima o contorno da minha, ele ri e pinta sua mão, desenho uma carinha em meu polegar e falo de modo engraçado. Ele estende seu dedo e eu desenho uma carinha e invento uma brincadeira. Ele não busca espontaneamente a interação, mas a aceita e parece desfrutá-la.

Ofereço os animais, monto uma cena, lhes dou de comer, imito ruídos de animais e Tobias aos poucos começa a emitir novos sons. Ofereço alguns animais à mãe e criamos uma cena lúdica interagindo os três. A mãe se surpreende e exclama: "não sabia que podia fazer todas essas coisas, não sabia que podíamos brincar juntos!".

Após uma entrevista com os pais, na qual colocam que não sabem como abordar as dificuldades de Tobias com sua irmã e sua insistência em saber quando seu irmão poderá falar e ir à escola com ela, decido chamar os quatro juntos. Tobias chega muito contente, e Joana, de cinco anos, se apresenta muito tímida. Tobias, apesar de não falar, se comunica através de gestos, gritos e grunhidos, assumindo uma atitude muito despótica e dirigindo as ações de todos.

Proponho que façam um desenho. Tobias pega todas as canetas e sua irmã não o enfrenta. Tobias faz pontos, sua mãe o imita, ele se enoja. Joana desenha uma casa e o pai completa seu desenho. Tobias começa a vocalizar mais, imitar gestos e emitir sons como se fosse uma canção. Joana explica que é uma propaganda da televisão que seu irmão gosta. Tobias procura um tubo de plástico e passa por ele, convido toda a família para passar pelo tubo e começa um esboço de brincadeira de pega-pega que todos desfrutam.

Observa-se um enorme esforço de Joana para vincular-se a seu irmão e tratar de entendê-lo. Pergunto a Joana o que a preocupa em relação a seu irmão e ela expressa: "quero brincar com ele, quero que fale comigo, eu faço tudo, mas ele não liga". Trabalhamos em relação às dificuldades de Tobias e trato de desresponsabilizá-la e desadultizá-la em relação a sua crença de que é responsável por fazer seu irmão falar ou por fazer com que os outros o entendam. Difícil tarefa ser irmã mais velha de um pequeno com dificuldades tão importantes.

 

Estratégias terapêuticas

Após o processo psicodiagnóstico e instalado certo vínculo transferencial, me reúno com os pais e coloco minhas hipóteses clínicas e minha proposta de trabalho. A princípio concordo que há sinais clínicos preocupantes em Tobias, de fato ele cumpria os quatorzes itens para o diagnóstico do Transtorno Autista do DSM IV; no entanto havia as respostas que Tobias começava a produzir a partir de minhas intervenções, havia também as mudanças em seu posicionamento, em seu olhar, no modo de vincular-se aos pais, em particular, e à família, em geral, a partir de um trabalho transferencial que se construía entre todos. Iniciamos a revisão das estratégias clínicas.

Revisamos juntamente com o pediatra, que além do mais tinha especialidade em neurologia, se havia a necessidade de consumo de um psicofármaco. Concordamos em retirá-lo lentamente, para não provocar desequilíbrios químicos na criança. Portanto era indispensável repensar as propostas terapêuticas. Embora concorde que essas crianças necessitem de um trabalho muito intenso, considero que transformar a vida de uma criança num continuum terapêutico e colocar os pais como coterapeutas não só não os ajuda, como também os torna mais rígidos, os sobrecarrega de responsabilidade e os faz perder a possibilidade de vincular-se de forma prazerosa com o filho.

No caso de patologias tão graves, sempre é necessário o trabalho "entre-disciplinar" (Untoiglich, Wettengel & Szyber, 2009). Não há um profissional mais importante que outro, mas toda equipe precisa ter um profissional que a coordene. Considero que não é responsabilidade dos pais coordenarem equipes terapêuticas, porque isso os exige muito numa função que os excede e não os permite ocuparem-se com outras formas de contato com seu filho. Propus que a criança começasse a ir por duas horas a um jardim de infância, que o pudesse acolher, conter e possibilitar o encontro com outras crianças. Considerei fundamental que Tobias começasse a relacionar-se com pares, além de sua irmã, o que iria também retirar um pouco a responsabilidade dos avós e de sua irmã, assim como iria promover outras possíveis identificações e espelhos nos quais se projetar. Foi solicitado seu ingresso na classe de dois anos, devido ao seu nível de linguagem e tipo de brincadeiras, seguramente se encontraria mais acomodado com as crianças menores. A escola aceitou e procurou uma professora integradora que pudesse acompanhar e ajudar em sua inclusão no grupo3. Em casa propus que deveria haver apenas uma acompanhante, sempre a mesma, duas horas por dia, três vezes por semana, que brincasse com a criança, levando fundamentalmente em conta a iniciativa do pequeno. Em seguida se deixariam reservados os espaços terapêuticos para fonoaudiologia e psicologia.

O tratamento psicológico proposto no início era de duas sessões semanais; numa Tobias iria com o pai e na outra com a mãe, às vezes se incluía a avó. Assim mesmo, mantínhamos entrevistas periódicas com os pais e reuniões com toda a equipe terapêutica.

 

Tobias, uma criança que aparece

Passados três meses de tratamento, saem de férias. Tobias regressa muito contente a seu espaço terapêutico e se põe a brincar com umas bolinhas e passá-las por uma torre; pela primeira vez emite uma palavra no consultório, diz: "Genial!" quando consegue resolver o brinquedo das bolinhas. O tom que utiliza é estranho, como se fosse de um desenho animado.

Os pais contam que ele repete sons, copia expressões dos desenhos animados, indica o que quer, está mais sociável.

Outro dia, Tobias chega à sessão e, quando abro a porta, está, casualmente, parado atrás de sua avó; faço que não o vejo e digo: "que pena que o Tobias não veio, estava com vontade de brincar com ele!". Brinco de procurá-lo e não encontrá-lo. A princípio me olha desconcertado como quem expressa: por que não me vê se estou aqui? A avó entra na brincadeira e diz que Tobias não veio, enquanto o esconde com sua blusa; eu o encontro e o abraço, e ele sorri feliz. A partir desse momento começam a se tornar possíveis outras brincadeiras.

 

Entrecruzamentos teórico-clínicos

Gostaria de deixar claro que o percurso que realizarei aqui não é para pensar o autismo, já que não creio que exista "o autismo" como uma unidade fechada e predeterminada, senão que existem diversas crianças com "sinais clínicos de autismo" (Kaufmann, 2010 que transcorrem de diferentes maneiras a partir de múltiplos fatores, entre eles o modo de abordagem terapêutica que seja realizado.

Sujeito psíquico e redes neuronais

Quando uma criança chega à vida, costuma ser esperada amorosamente por seus pais, nela se projetam anseios, desejos, fantasmas, medos, histórias ancestrais que se tramam de modos imprevisíveis. Quando o filho nasce com uma doença, com um risco de vida importante, todos se comovem, se produz um caos, a vida fica em suspenso, com frequência a da mãe, que costuma ser quem assume um compromisso visceral com o pequeno ser, seu pequeno ser, que luta para viver. Pode ocorrer que nessa luta pela sobrevivência física, que sem dúvida é primordial, deixem de lado outras prioridades.

O sujeito psíquico se constitui num devir de encontros e desencontros com os outros significativos. O inconsciente não existe desde as origens, é um produto da cultura fundado numa relação sexualizante com o semelhante e, fundamentalmente, é produto da repressão originária que provém do outro (Bleichmar, 1993). O aparelho psíquico se constitui a partir das inscrições procedentes do exterior e está permanentemente submetido a seus embates, aberto ao real (Bleichmar, 2004). O pequeno (ser) não é passivo, realizará sua apropriação ativa de tais elementos.

A autora se refere aos "sinais de percepção" freudianos, para dar conta de um modo de inscrição que não se pode transcrever, estes podem permanecer no aparelho psíquico ao longo da vida, a partir de experiências traumáticas não metabolizadas. Esses sinais são elementos psíquicos que não se ordenam sob a legalidade do inconsciente, nem do pré-consciente, que podem se manifestar sem ser conscientes, que são dados a ver em certas modalidades compulsivas da vida psíquica, nas referências traumáticas não sepultáveis pela memória e o esquecimento, desligados da vivência mesma, não articuláveis. Aqui a repressão não pode sepultar no inconsciente os restos do traumático, que continuam investidos e operando, e que levam Freud a reconceitualizá-los em 1920 sob uma das formas de conceber o funcionamento da pulsão de morte como desligamento. (Bleichmar, 2004).

Possivelmente quando Tobias nasceu o mundo se desmoronou no interior materno, mas não havia nenhuma possibilidade de ocupar-se disso. Era imperioso distanciar-se da angústia e sustentar um filho cuja vida escorria pelas mãos. Às vezes certas desconexões são necessárias para a sobrevivência, para poder seguir operando. Certamente não se trata de culpabilizar os pais, nem de buscar causalidades únicas e lineares, senão de entender onde esse tecido em conjunto que é a subjetividade de uma criança em constituição perdeu sua trama, se desamarrou, ou nunca se amarrou.

Quando a realidade exterior e a informação interior de um pequeno sujeito que está no começo da vida é tão arrasadora, e o adulto que deveria sustentá-lo psiquicamente, funcionando como escudo protetor dos estímulos externos, bem como provendo elementos para o processamento interno, não está em condições de fazê-lo porque ele mesmo se encontra devastado, pode ser que essa subjetividade se constitua de um modo muito fragilizado. Portanto, a criança buscará uma trincheira nos poucos refúgios que consiga armar, por exemplo, suas rotinas, em certos movimentos repetitivos que ofereçam segurança, na intenção desesperada em ordenar o caos vivenciado.

Para algumas crianças, a televisão, os filmes repetidos uma e outra vez, parecem ser um parapeito no qual amparar-se e muitos deles, quando começam a falar, como Tobias, o fazem com uma prosódia estranha, um falar neutro, mais próximo do de personagens dos desenhos animados do que do de seus pais. Poderíamos pensar como "as crianças neutras". O outro não parece funcionar como ordenador da experiência, o banho de linguagem parece não provir daí e a criança trata de se armar com os elementos que tem à mão.

Se nos interrogamos acerca da constituição psíquica, será necessário refletir sobre o narcisismo, que é condição para a fundação do Eu. Freud (1914/1979) estabelece que o narcisismo infantil é herdeiro do narcisismo parental. Dá conta do movimento pulsional e identificatório.

Hornstein (2001) coloca que o narcisismo em seu aspecto trófico mantém a coesão organizacional. Não obstante, também existe um narcisismo patológico que pode fechar o sistema psíquico a certos ruídos (traumas) que geram efeito desorganizador. Quando isso ocorre muito precocemente, como no caso de Tobias, dificulta a organização inicial.

A. Green (1999) propõe pensar um narcisismo de vida e um narcisismo de morte, o primeiro está em referência à unificação, às pulsões de vida, o segundo, às pulsões de morte, ao nada. O narcisismo negativo se dirige à inexistência, à anestesia, ao vazio, ao branco, ao neutro, à indiferença afetiva.

Nas "patologias do ser", o que está em jogo é da ordem do primário, são as questões narcísicas, as carências estão ligadas ao "caroço" da subjetividade (Untoiglich, 2009).

O Outro, quando está em condições, provê por um lado os elementos à subsistência e por outro inscreve os recursos com sua "potencialidade simbolizante", pulsão de vida. Mas quando o Eu não pode exercer sua capacidade de ligação, ativa-se a pulsão de morte, o predomínio do desligado. Retiram-se as catexias do objeto para evitar a dor. Por outro lado, quando a morte espreita no real, como nos inícios de Tobias, tudo se torna ainda mais complexo.

Nesses casos a intervenção do analista aponta para a produção de elementos novos de recomposição e articulação que constroem um elemento diferente do preexistente, promovendo novas simbolizações. A esse trabalho S. Bleichmar (2000) denomina "neogênese".

Além disso, hoje sabemos que psiquismo e cérebro se encontram vinculados, que a constituição do psiquismo e a estrutura das redes neuronais estão relacionadas, que não podemos pensar numa corporeidade sem subjetividade ou em uma subjetividade sem corporeidade. Desse modo, reconhecemos que as experiências deixam (suas marcas) na construção desse psiquismo e no cérebro, tanto nos próprios neurônios quanto na possibilidade de realizar sinapses. Atualmente se conhece que os neurônios se transformam pela ação do ambiente. Os genes se ativarão ou não de acordo com a experiência, a isso Kandel refere-se com o conceito de "vulnerabilidade genética" (Kandel, 1998).

Ansermet e Magistretti (2006) destacam a originalidade de cada cérebro e as modificações que são produzidas no mesmo através das interações. Portanto, cada qual traz sua bagagem genética + suas condições biológicas + suas circunstâncias sócio-históricas e se encontram com o desejo do outro - que também é outro datado e situado em seu tempo histórico - com quem as experiências podem transformar-se em experiências subjetivantes ou desubjetivantes.

 

O trabalho com as oportunidades clínicas

Gostaria de começar esta última parte propondo pensar junto com o leitor os seguintes interrogantes: quais são as consequências de um diagnóstico precoce que enuncie que seu filho é autista na vida das crianças e seus pais? Como pensar a infância e suas oscilações, seu movimento, seu gesto espontâneo quando se a aprisiona num diagnóstico? Quanto da rigidez das crianças com sinais clínicos de autismo se aprofunda com certas formas de abordagem? Será que a criança não tem outra possibilidade senão a de ser autista? Será que os pais não têm outra possibilidade senão a de serem os pais do autista?

Nunca saberíamos o que teria acontecido subjetivamente com Tobias se não tivesse nascido com a doença que nasceu. Nunca saberemos se a desconexão de Tobias teve uma relação com a dita doença, se sua vulnerabilidade genética contribuiu para isso, tampouco o que teria acontecido com os pais se essas circunstâncias não tivessem se apresentado. O inegável é que certos acontecimentos na vida dos sujeitos mudam o curso de sua existência para sempre. No caso do nascimento de um filho com problemas graves, modifica-se a vida desses pais de maneira inevitável. Quando a isso se acrescenta um diagnóstico de autismo aos dois anos, o futuro fica fortemente selado.

Tobias conseguiu sobreviver fisicamente, mas psiquicamente ele e seus pais estavam devastados. A partir do diagnóstico de TEA, os pais de Tobias já não eram os pais de uma criança, eram os pais "do autista". Relacionavam-se com ele a partir das características determinadas pelo manual, já que ninguém esperava que Tobias fosse outra coisa além de "um TEA", e o desfile de terapeutas que povoavam a casa transformavam todo o espaço e todo o vínculo em terapêutico. Os pais dessas crianças deixam de fazer coisas que seu próprio senso comum os possibilitaria fazer com qualquer outro filho, e toda ação se transforma em colaboradora ou obstacularizadora da terapia. Tudo isso, com frequência, dificulta as ações e reforça os sintomas patognomônicos.

Nos encontros com Tobias e seus pais outras coisas puderam começar a ocorrer.

A clínica atual nos interpela e promove debates que são inescapáveis. Qual é o lugar de um psicanalista no tratamento de crianças (com doenças) graves? Como se inclui os pais nesse trabalho? Pode a Psicanálise contribuir no trabalho com essas crianças?

A princípio, para mim, Tobias era uma criança com quem eu queria vincular-me. Portanto, era evidente que era eu quem deveria fazer o esforço para construir as pontes por onde se poderia transitar. Nunca se pode preestabelecer como nem com quais elementos conseguiremos; só contamos com nossa aposta de que algo de outra ordem possa se produzir.

Tobias pegou as canetas e fez traços mecanicamente, a psicopedagoga os transformava em figuras geométricas que a Tobias pouco importava. Bati minha caneta com a dele, olhou-me.

Brinquei fazendo bolhas, Tobias sorriu, o pai se surpreendeu.

Criei uma brincadeira com os dedos, Tobias se tornou acessível. Montei uma cena lúdica com a mãe, Tobias desfrutou desse encontro possível.

Inventei uma brincadeira de esconde-esconde com o pequeno, simplesmente parado atrás de sua avó. Inventei um vínculo. Ali uma criança diferente apareceu, uma criança que não existia antes dessas intervenções, que se produz a partir do momento em que é olhada de outra maneira, esperada de outra maneira, num outro lugar.

Movimentos constituintes/momentos inaugurais. Criar uma demanda numa criança que parece não demandar, abrir as portas para que um desejo vital comece a circular na criança, em seus pais, em seus avós. Construir as vias dos vínculos subjetivantes entre o filho e seus pais. Desconstruir os tetos que com frequência se impõem a essas crianças e seus pais, com limites que estão mais ligados às resistências e preconceitos dos profissionais do que às impossibilidades do pequeno.

Se algo nos ensina a clínica com essas crianças é que, dependendo do tipo de intervenções que se produzam, podem-se construir diversas modalidades de organização subjetiva que previamente não eram possíveis, assim como pode-se obstaculizar seu surgimento.

Na atualidade existem fortes debates acerca de quais são os modos de abordagens com essas crianças. Uma intenção supostamente científica, mas atravessada por múltiplos interesses políticos, biopolíticos e fundamentalmente econômicos, e um ataque feroz em direção à Psicanálise. Por outro lado a Psicanálise mais tradicional parece adormecida, ou se refugia em suas próprias trincheiras e parece não poder dar resposta aos mal-estares da época. Não obstante, se nos estabelecermos o desafio de apontar na direção de uma Psicanálise questionadora, que possa construir nas bordas, que caminha nas fronteiras, que não esteja tão preocupada em seguir "o método" que a ortodoxia impõe (que ortodoxia? sem dúvida não a de Freud que era um inventor), que possa sair de seu próprio isolamento e enriquecer-se de outras contribuições e outras disciplinas da ciência atual, que não entenda a abstinência do psicanalista como falta de compromisso, que seja capaz de lidar com a imprevisibilidade e suportar a incerteza, que deixe de lado sua soberba, que confronte e discuta ideias e não narcisismos, que inclua em suas estratégias o trabalho com profissionais de outras disciplinas na condição de pares, que não utilize alguns conceitos teóricos como parapeitos contrafóbicos, que se implique na cura de seus pacientes, mantendo uma assimetria, mas estabelecendo um compromisso mútuo, que escute a singularidade levando em conta o contexto sócio-histórico, que parta do existente e construa aquilo que nunca existiu, essa forma de abordagem a partir da Psicanálise seguramente terá muito a contribuir no trabalho com essas crianças e suas famílias.

O acaso pode transformar-se em oportunidade de intervenção subjetivante quando o psicanalista, atento a esses pequenos gestos, os toma, os recria e os transforma. Quando se dispõe a lançar-se nessa entrega, que possibilita transformar a criança, seus pais, mas também a ser transformado ele mesmo nesse encontro.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Moldes, 2760
CP 1428 - Buenos Aires - AR
giselauntoiglich@gmail.com

Recebido em maio/2013.
Aceito em setembro/2013.

 

 

NOTAS

1. Risperidona é um antipsicótico atípico que está sendo cada vez mais utilizado com crianças pequenas, (embora) na bula se diga especificamente que "se carece de experiências em crianças menores de 15 anos". Geralmente os médicos que indicam este psicofármaco não costumam explicar aos pais os riscos que estão correndo ao administrá-lo, e outros profissionais tampouco parecem estar a par de tais perigos quando o recomendam ou aceitam que seus pacientes sejam medicados com este psicofármaco, sem qualquer questionamento.

2. É um transtorno congênito, que consiste na obstrução do intestino grosso devido a um movimento muscular impróprio do intestino. Os nervos estão ausentes numa parte do intestino. As áreas carentes destes nervos não podem empurrar o material, causando um bloqueio.

3. Por uma questão de extensão do texto não será abordada aqui a discussão acerca das escolas inclusivas e os processos de integração.

tradução: Tácito Carderelli da Silveira