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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.19 no.2 São Paulo ago. 2014

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v19i2p244-262 

DOSSIÊ

 

Um percurso pela psiquiatria infantil: dos antecedentes históricos à origem do conceito de autismo

 

A journey through child psychiatry: from historical background to the origin of the concept of autism

 

Un recorrido por la psiquiatría infantil: de los antecedentes históricos hasta el origen del concepto de autismo

 

 

Anahi Canguçu MarfinatiI; Jorge Luís Ferreira AbrãoII

IMestranda pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Assis, SP, Brasil
IIDocente do Departamento de Psicologia Clínica da Faculdade de Ciências e Letras de Assis da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Assis, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo constitui-se em um estudo conceitual que tem por objetivo traçar um percurso histórico do saber psiquiátrico sobre a criança, assinalando o modo como a conceituação de autismo infantil origina-se dentro desse panorama. Para tal, dividimos este trabalho em três momentos: o primeiro, dedicado à discussão da noção de retardamento mental, seguido pela problematização das primeiras reflexões acerca das psicoses da infância e o nascimento da clínica pedopsiquiátrica e a conceituação de autismo pela Psiquiatria. Assim, buscamos compreender o sentido e a origem das práticas atuais, analisando criticamente os manuais psiquiátricos e sua repercussão na psicopatologia infantil.

Descritores: autismo; psiquiatria infantil; história; psicopatologia infantil.


ABSTRACT

This article is a conceptual study that aims to trace a historical course of the psychiatric knowledge about children, pointing how the conceptualization of autism will lead into this prospect. For such, we divided this work into three parts: the first is dedicated to the discussion of the concept of mental retardment, followed by the questioning of the first reflections on the psychoses of childhood and the birth of the Child Psychiatrist clinic and the conceptualization of autism by Psychiatry. Therefore, we seek to understand the meaning and origin of current practices, critically analyzing the psychiatric manuals and its impact on child psychopathology.

Index terms: autism; child psychiatry; history; child psychopathology.


RESUMEN

El presente artículo es un estudio conceptual que pretende hacer un recorrido histórico de los conocimientos psiquiátricos sobre el niño, notando cómo la conceptualización del autismo surgirá dentro de este panorama. Para eso, este trabajo se divide en tres partes: la primera se discute acerca del concepto de retraso mental, seguido por el cuestionamiento de las primeras reflexiones sobre las psicosis de la infancia y el nacimiento de la Pedopsiquiatría clínica y la conceptualización del autismo por la Psiquiatría. Por lo tanto, se busca comprender el significado y el origen de las prácticas actuales, analizando críticamente los manuales psiquiátricos y su impacto en la psicopatología del niño.

Palabras clave: autismo; psiquiatría infantil; historia; psicopatología del niño.


 

 

O presente artigo constitui-se em um estudo conceitual que tem por objetivo traçar um percurso histórico do saber psiquiátrico sobre a criança, assinalando o modo como a conceituação de autismo infantil origina-se dentro desse panorama1. Para tal, teremos como referência a periodização histórica proposta por Paul Bercherie (2001) em seu artigo "A clínica psiquiátrica da criança: um estudo histórico", enfatizando aqueles acontecimentos que guardam alguma relação com o desenvolvimento do conceito de autismo tal qual estabelecido pela psiquiatria no final da década de 1940.

Tais períodos serão apresentados tendo também como base a obra de diversos autores (Alexander & Selesnick, 1968; Cirino, 2001; Kanner, 1966a, 1966b; Pessotti, 1984; Póstel & Quétel, 1987) os quais, embora não versem diretamente sobre a história do conceito de autismo, traçam uma evolução histórica das psicoses infantis nas quais é possível inseri-lo.

Para melhor exposição, dividimos este trabalho em três momentos distintos: o primeiro dedicado à discussão da noção de retardamento mental, seguido pela problematização das primeiras reflexões acerca das psicoses da infância, e, por fim, no último período, apresentamos o nascimento da clínica pedopsiquiátrica e a conceituação de autismo pela Psiquiatria. Ao final, exibimos um quadro com os principais acontecimentos históricos oriundos do conceito de autismo.

 

A idiotia como um retardamento mental (ir)reversível

Segundo Paul Bercherie (2001, p. 130, itálicos do autor), o primeiro período "cobre os três primeiros quartos do século XIX. Ele é exclusivamente consagrado à discussão da noção de retardamento mental, tal como constituída por Esquirol já antes de 1820, sob o nome de idiotia".

Nesse momento histórico, os autores não acreditavam na existência de uma "loucura na criança", a qual estava restrita, nesse momento, à idiotia. De acordo com Póstel e Qúetel (1987), a preocupação etiológica concernente à deficiência mental surgiu no século XVIII, mas todo o esforço dos autores deste século foi resumido na obra de Pinel Traité médico-philosophique sur l'alienation mentale, publicada em outubro de 1800.

De maneira geral, nesse momento, as discussões importantes referiam-se ao grau de irreversibilidade do retardamento mental, existindo basicamente duas concepções opostas a esse respeito: a de Esquirol e a de Pinel, em que o prognóstico é irreversível; e a dos educadores de idiotas, especialmente Séguin e Delasiauve, em que o déficit é parcial e o prognóstico é positivo se forem utilizados métodos especiais – "O ponto de partida desses métodos são as tentativas de Itard com a criança, que ele chamou de Victor, e que ficou célebre como o selvagem de Aveyron" (Bercherie, 2001, p. 132).

Em 1798, dois anos antes da publicação da obra de Pinel, nas florestas do Sul da França, perto de Aveyron, um adolescente mudo e aparentemente surdo foi encontrado nu por um grupo de caçadores: "Não fazia mais do que emitir grunhidos e sons estranhos, não reagia às interpelações nem a fortes ruídos, cheirava tudo o que levava às mãos. Sua locomoção era mais próxima do galope, andando também de quatro, quando alcançava grande velocidade" (Banks-Leite & Galvão, 2000, p. 12).

Em um primeiro momento, o menino, que recebeu o nome de Victor, foi transferido para uma instituição destinada a indigentes e, posteriormente, em agosto de 1800, por ordem do ministro do interior, é levado a Paris onde é conduzido ao Instituto Nacional de Surdos-Mudos, sendo avaliado, entre outros intelectuais, por Philippe Pinel: "Embora outros membros da Comissão tenham escrito a respeito do garoto, o relatório de Pinel, lido em sessão pública da Sociedade, em novembro de 1800, foi o que teve maior repercussão" (Banks-Leite & Galvão, 2000, p. 14).

Em seu relatório, Pinel conclui que não há nenhuma esperança no âmbito da possível educabilidade do selvagem de Aveyron: "O diagnóstico de Pinel é desolador: Victor não é um indivíduo desprovido de recursos intelectuais por efeito de sua existência peculiar, mas um idiota essencial como os demais idiotas que conhece no asilo de Bicêtre" (Pessotti, 1984, p. 36).

Contudo, o menino passa a ser tratado pelo jovem médico Jean-Marc-Gaspard Itard, ex-aluno de Pinel, que defende a ideia de que o menino poderia ser educado e (re)integrado à sociedade. Em 1801, Itard narra seus esforços junto a Victor em sua genial "Mémoire sur les premiers développements de Victor de l'Aveyron": "A Mémoire lança, pois, e vigorosamente, fundamentos da teoria da avaliação e da didática atuais na área da deficiência mental" (Pessotti, 1984, p. 41).

Victor de Aveyron é mantido no Instituto de Surdos-Mudos por dez anos e, diante do estágio estacionário de seus progressos, do esmorecimento de Itard e dos inconvenientes trazidos à instituição, o menino é entregue definitivamente a Madame Guérin, governanta que auxiliou nos cuidados de Victor no Instituto (Banks-Leite & Galvão, 2000).

De acordo com Alexander e Selesnick (1968), Itard acreditava que o menino parecia deficiente por não ter sido civilizado, passando cinco anos tentando educá-lo por métodos humanos. Para Itard o caso de Victor era puramente médico, cujo tratamento pertencia ao campo da então denominada medicina moral, entendida por Isaías Pessoti (1984) como uma designação genérica para as atividades da psicologia clínica e da psiquiatria, as quais se organizariam como profissões muito mais tarde.

A história de Victor é importante, pois, com ele, o selvagem e o idiota desaparecem por detrás de sua condição humana e é exatamente sua humanidade que torna possível um tratamento moral continuado durante muito tempo. Além desse tratamento ter sido o primeiro e único publicado com tantos detalhes (até mesmo em seus fracassos), foi também por meio do caso desse menino que Itard descobriu um novo objeto para a medicina: as psicoses infantis (Póstel & Quétel, 1987).

Assim, sua obra pode ser considerada como uma das mais importantes de toda a história da psiquiatria, abrindo espaço para a psicanálise adentrar na reflexão que era então prioridade da psiquiatria:

Com a constituição do campo da psiquiatria e psicanálise infantil, Victor e seu mestre passam a ser objeto de interesse de representantes dessa área; é assim que Léo Kanner, nos Estados Unidos, descreve, em 1943, o quadro de "autismo infantil precoce", termo emprestado do suíço Bleuler, e aponta Itard como precursor desse domínio de investigação. (Kanner, 1960, citado por Banks-Leite & Galvão, 2000, pp. 18-19)

Após o deslumbramento, no decênio de 1820, pela anatomopatologia, observa-se um crescimento de tentativas de tratamento para os idiotas e imbecis – em Salpêtrière com Voisin e Falret, e em Bicêtre com Ferus –, ainda quando os meios empregados eram precários (Póstel & Quétel, 1987).

Nas décadas de 1840 a 1880, Édouard Séguin, representando a médico-pedagogia, tem lugar de destaque na psiquiatria infantil pelo tratamento dado aos idiotas por meio de seu método educativo. Em 1842, Séguin sistematizou o ensino de deficientes mentais na Bicêtre e, em 1843, deixa a direção da escola de Bicêtre e refugia-se nos Estados Unidos.

No ano de 1846, Édouard Séguin publica seu tratado intitulado Idiocy and its treatment. Sua obra possui 729 páginas, das quais cerca de 200 versam sobre a idiotia e distúrbios correspondentes. Além disso, conforme aponta Pessotti (1984, p. 116), "a importância da confiabilidade do diagnóstico diferencial para a higiene e o tratamento moral é o tema básico de quase um terço do extenso tratado de Séguin".

Em 1848, quando trouxe suas ideias para a América, o movimento para educar subnormais estava bem adiantado. Sob sua influência, milhares de escolas especiais foram criadas com base no modelo médico-pedagógico. E, apesar de não ter tido um justo reconhecimento na França, não há dúvidas quanto à originalidade de sua obra:

Apesar do rigor dos seus princípios e da sua aplicação, esta educação liga o intelectual ao afectivo e faz apelo à autonomia, à iniciativa, ao imaginário, à arte. Se, contrariamente aos Estados Unidos, onde a sua acção goza de um justo reconhecimento, a sua voz não foi ouvida em França. Édouard Séguin continua, sem contestação, o conceptor de um método original, o precursor da neuro-psicologia e da reeducação psicomotora. Por seu lado, este homem do terreno esforçou-se por demonstrar, junto dos mais excluídos entre os excluídos, que é o imperialismo da norma pretensamente científica que fecha o horizonte da educabilidade. Lembra que o singular constitui, em matéria educativa, a categoria decisiva. (Gardou & Develay, 2005, p. 37)

Assiste-se, assim, na segunda metade do século XIX, a um aumento na criação de centros para crianças idiotas apoiados no tratamento médico-pedagógico. A obra do psicólogo e fisiologista Alfred Binet e do médico Théodore Simon representa o apogeu desse movimento, uma vez que os autores se preocuparam em desenvolver uma escala métrica de inteligência, classificando quantitativamente aptidões intelectuais e sociais:

Eles examinaram milhares de crianças de diferentes idades, aplicando baterias de tarefas de complexidade diversa, estabelecendo, em 1905, a primeira escala de desenvolvimento da inteligência, que passou a servir como critério de admissão e triagem para as classes especiais. (Cirino, 2001, p. 85)

Assim, após a publicação dessa obra, passa a existir um grande interesse em diferenciar os extremos dessa escala, distanciando ainda mais os inteligentes dos "imbecis" e "idiotas", os quais, segundo Binet, não poderiam tirar nenhum proveito do tratamento médico-pedagógico.

Dessa forma, ao analisarmos os 75 anos iniciais do século XIX, pudemos verificar a importância que o papel da educação – especialmente a educabilidade de crianças mentalmente retardadas – e os movimentos de higiene mental e orientação infantil conferiram à psiquiatria infantil.

 

As psicoses da infância: as demências infantis

O segundo momento histórico, inicia-se na segunda metade do século XIX, mas só se manifesta no fim da década de 1880, com a publicação da primeira geração dos tratados de psiquiatria infantil nas línguas francesa, alemã e inglesa. Para Bercherie (2001), esse período

caracteriza-se pela constituição de uma clínica psiquiátrica da criança que é, essencialmente, o decalque da clínica e da nosologia elaboradas no adulto durante o período correspondente. É a época em que, de fato, se constitui a clínica clássica em psiquiatria do adulto, na direção de uma mutação impressa à abordagem clínica por Falret e seu aluno Morel. (p. 133)

Kanner (1966a), em seu manual sobre a psiquiatria infantil, afirma que, de fato, a maioria dos psiquiatras sabia muito pouco sobre os estados psicóticos em crianças, por experiência direta, estando relacionado aos quadros de deficiência mental: "Nem a obra monumental de Kraepelin, nem o clássico livro de Bleuler tinham algo a dizer sobre a psicopatologia da infância" (p.41, tradução nossa).

Isso porque, nessa época, os transtornos da conduta infantil só interessavam aos psiquiatras quando pareciam conter um diagnóstico criado para os adultos: "Os psiquiatras procuravam encontrar, na criança, as síndromes mentais descritas nos adultos, o que impediu a clínica com crianças a se constituir como campo autônomo de prática e de investigação" (Januário & Tafuri, 2009, p. 60). Em suma, as enfermidades psíquicas da infância não interessavam aos psiquiatras.

Até o meio do século XIX, de modo geral, o interesse dos psiquiatras se restringia em classificar as psicoses da infância:

Esquirol diferenciou a criança mentalmente defeituosa da criança psicótica em seu livro Maladies Mentales (1838)... Wilhelm Griesinger dedicou parte de seu influente livro Pathologie und Therapie der Psychischen Krankheiten (1845) aos problemas psiquiátricos de crianças.... Henry Maudsley, contemporâneo de Griesinger, dedicou trinta páginas do seu livro Physiology and Pathology of the Mind (cerca de 1967) à 'Insanidade no começo da Vida'. (Alexander & Selesnick, 1968, p. 479, grifos dos autores)

Desse modo, as doenças mentais infantis eram classificadas segundo os moldes da nosografia psiquiátrica do adulto (como as de Griesinger e Maudsley) e tinham como proposta de tratamento o emprego de métodos educacionais (no caso de Griesinger), ou não eram passíveis de tratamento (como relatado na obra de Maudsley). Assim, de acordo com Alexander e Selesnick (1968), nas duas últimas décadas do século XIX, as principais discussões referentes às doenças psiquiátricas na infância eram limitadas à irreversibilidade da hereditariedade, à degeneração, à masturbação excessiva, etc.

Em oposição a essa tendência, os autores citam a obra do psiquiatra alemão Hermann Emminghaus (1887, citado por Alexander & Selesnick, 1968), Disturbances of childhood, considerada uma das mais esclarecedoras apresentações de psiquiatria infantil em fins do século XIX. Embora sua influência tenha sido bastante limitada, Emminghaus inovou ao tratar a psiquiatria infantil como separada da psiquiatria de adulto e contemplou como resultante da psicose infantil os fatores orgânicos e psicológicos:

Infelizmente as idéias de Emminghaus foram ignoradas; e posteriormente influentes manuais de psiquiatria de Kraepelin e Bleuler omitem toda referência a perturbações mentais infantis em si próprias. A tendência da literatura psiquiátrica estava firmada: as crianças deviam ser consideradas como adultos em miniatura e portanto não tinham direito a um método distintivo. (Alexander & Selesnick, 1968, pp. 479-480)

No final do século XIX, Emil Kraepelin, psiquiatra alemão, publica a obra Tratado da psiquiatria, de 1890 a 1907. Neste tratado, Kraepelin agrupou uma classe de pacientes afetados prematuramente e que apresentavam características como a ambivalência, a extravagância, a impenetrabilidade e o autismo. Tendo em vista que os sinais de demência apareciam muito cedo, ele as denominou de Dementia praecox:

No vasto campo da idiotia – que, até quase final o final do século XIX, era considerado o único problema mental infantil – a distinção entre as formas congênitas e as formas adquiridas nos primeiros anos de vida conduziu à nomeação das demências infantis. (Cirino, 2001, p. 81)

Nas edições seguintes de seu tratado, Kraepelin levará em conta as "objeções provindas da escola francesa, separando a paranoia e a parafrenia da forma paranoide da demência precoce, o que estabeleceria as grandes linhas do recorte contemporâneo do campo das esquizofrenias e das psicoses delirantes crônicas" (Pereira, 2001, p. 128).

Valendo-se dessa obra, outros autores desenvolveram ideias semelhantes, e o primeiro a comprovar a existência de formas infantis da demência precoce foi o suíço Bartschinger (1901, citado por Póstel & Quétel, 1987).

Segundo Bercherie (2001, p. 135), entre essas novas "rubricas etiológicas do retardamento, progressivamente vai destacar-se uma entidade particular, que coloca um importante problema conceitual: o que Sancte de Sanctis denomina, desde 1906, como 'demência precocíssima', da qual Heller, no mesmo ano, faz uma descrição autônoma".

Entre 1906 e 1909, Sancte de Sanctis publicou uma série de artigos dedicados a formas prematuras de demência precoce, nomeando-as de demências precocíssimas. Para ele, essas crianças escapavam ao diagnóstico de idiotia, mas, por outro lado, situavam-se dentro do conceito de demência precoce.

É válido colocar que, apesar de Sancte de Sanctis ter criado uma entidade mórbida autônoma, as características da chamada demência precocíssima são muito próximas da demência precoce de adultos, tal como pensada por Kraepelin em seu Tratado.

Por sua vez, Heller (1908, citado por Bercherie, 2001) observou casos de demências infantis. Essas crianças apresentavam a demência com maneirismos das atividades e nos gestos, apresentando uma linguagem estereotipada:

Tratava-se do aparecimento, a partir dos 3-4 anos, em crianças que, até então, haviam tido um desenvolvimento normal, de um estado de morosidade e indiferença, com negativismo, oposição, transtornos afetivos (cólera, ansiedade), seguidos de uma desagregação da linguagem e de diversos transtornos motores bastante característicos: agitação, estereotipias, maneirismos, catatonia, impulsões. (Bercherie, 2001, p. 135)

Em seguida, a criança decai, rapidamente, a uma completa "idiotia", caracterizada por uma perda de autonomia para atividades essenciais e por uma incapacidade de usar adequadamente a linguagem. Kraepelin (1913, citado por Póstel & Quétel, 1987) e Voigt (1919, citado por Alexander & Selesnick, 1968) acreditavam que essas crianças observadas por Heller deveriam ser classificadas como dementes precoces.

Atualmente, a descrição proposta por Heller corresponde aos chamados Transtornos Desintegrativos da Infância: "No DSM-III, a síndrome de Heller foi, pela primeira vez, introduzida em um sistema de classificação psiquiátrica. Foi incluída sob a categoria abrangente de TID, pois a perda das habilidades sociais e comunicativas era muito proeminente" (Mercadante, Gaag & Schwartzman, 2006, p. 14).

Em 1921, Zappert (citado por Alexander & Selesnick, 1968) publicou observações semelhantes a essas. As crianças que contavam com a idade de três/quatro anos não possuíam antecedentes patológicos e evoluíram rapidamente até um abatimento demencial.

Ainda nessa época, o quadro de demência precoce de Kraepelin foi revisado por Chaslin e Stransky e, posteriormente, em 1911, por Bleuler, cujo trabalho assinalou que não se tratava tanto de um "colapso insano global e irreversível, mas de uma desintegração da personalidade, cunhando o termo esquizofrenia e indicando a aparência, pelo menos contingente, de sintomas de demência" (Póstel & Quétel, 1987, p. 521, tradução nossa). Assim, E. Bleuler por não concordar com a evolução inexorável para a demência, renomeia o quadro indicado por Kraepelin, propondo um novo conceito: a esquizofrenia, originado do entrecruzamento da psiquiatria com a psicanálise (Cirino, 2001). Dessa maneira, de acordo com esse modelo, a demência precoce e a demência precocíssima foram renomeadas de esquizofrenia infantil.

De acordo com Póstel e Quétel (1987), apesar de todos estes trabalhos, há de se reconhecer que foi com J. L. Despert que se deu a primeira grande descrição de esquizofrenia infantil. Despert apoiou-se em uma observação de 29 casos no Instituto Psiquiátrico de Nova York (1930-1937), nos quais as características das crianças aí observadas são as mesmas que, futuramente, o psiquiatra Kanner irá conceituar como autismo infantil precoce. Dessa forma, Despert se preocupou em traçar um quadro com diferentes variedades sintomáticas, as quais incidem muito precocemente na vida da criança.

Assim, podemos dizer que o termo autismo foi usado, inicialmente, em 1911, pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler, para delinear mais um dos sintomas da esquizofrenia. Contudo, foi só a partir do fim da Segunda Guerra Mundial que o autismo começou a ser tratado como uma patologia diferenciada.

 

A clínica pedopsiquiátrica e a conceituação de autismo pela psiquiatria

O terceiro período começa na década de 1930, e se desenvolve até os dias atuais. Uma das características desse período é a influência que as ideias psicanalíticas exercem na clínica infantil e o desenvolvimento do modelo psicossomático na psiquiatria infantil, contando com a colaboração de pediatras, sendo, por isso, denominada pelo termo pedopsiquiatria.

Segundo Kanner (1966a), o desenvolvimento dos princípios genéticos e dinâmicos levou a psiquiatria infantil a se desvencilhar de sua condição de réplica em miniatura da nosografia psiquiátrica dos adultos. Contudo, pouco depois da criação da psiquiatria infantil, esta se transformou em uma especialidade dentro de uma especialidade.

De acordo com o autor, por volta de 1890, a falta de interesse a respeito das patologias da infância se estendia aos profissionais da pediatria, uma vez que havia pouca cooperação dos profissionais da psiquiatria, os quais não estavam ainda muito familiarizados com a questão. Os escritos que existiam na pediatria, por volta de 1928, se restringiam a comentar causas orgânicas, havendo pouca menção a fatores psicológicos, ambientais e intelectuais. "Em 1928 na edição de um dos textos de pediatria mais lidos na época, parece não existirem problemas pessoais nas crianças, pois os fatores emocionais, intelectuais e ambientais são ignorados" (Kanner, 1966b, p. 46, tradução nossa).

A partir de 1930, o interesse esporádico dos pediatras foi substituído por um desejo de incluir, na prática, o ensino da psiquiatria aos problemas cotidianos da criança: "Pode-se facilmente citar muitos exemplos da vontade dos pediatras em adotar conceitos e métodos psiquiátricos. Em 1930 já havia uma enorme quantidade de material informativo" (Kanner, 1966b, p. 47, tradução nossa).

Segundo o autor, foi por volta de 1930 que as condições para o envolvimento dos profissionais de pediatria com as patologias da infância ficaram maduras. Em 1935, a Divisão de Educação Psiquiátrica do Comitê Nacional de Higiene Mental promoveu, na cidade de Washington, uma conferência reunindo pediatras e psiquiatras com o intuito de organizar e discutir programas de trabalho efetivos. A Academia Norte-americana de Pediatria passou a se interessar pelo desenvolvimento da psiquiatria infantil, incorporando, em 1936, conferências sobre os temas (Kanner, 1966b).

Por outro lado, de acordo com Cirino (2001), uma das características desse novo período é a influência que as ideias psicanalíticas exercem sobre a clínica psicopatológica infantil, passando a ampliá-la e estruturá-la:

É dessa apropriação da psicanálise pela psiquiatria funcionalista americana, incentivada sobretudo por Adolf Meyer (1950-1866), de onde provêm os conceitos que estruturam o imenso campo recentemente conquistado pela clínica pedo-psiquiátrica: a noção da patologia das grandes funções, com sua expressão nos transtornos de conduta. (p. 89, grifos do autor)

Ainda segundo o autor, o pano de fundo sobre o qual se apresenta essa psicopatologia da criança consiste nos trabalhos de influência funcionalista e behaviorista de A. Gesell (1880-1961) sobre o desenvolvimento psicológico da criança: "Seus dados minuciosos e escalas comparativas é que permitiram, por exemplo, que Kanner pudesse sublinhar a notável precocidade de recusa relacional nos casos de autismo" (Cirino, 2001, p. 89).

Além disso, embora a conceituação do autismo como entidade nosológica diferenciada dos quadros das demências infantis tenha ocorrido a partir da década de 1940, com o psiquiatra Leo Kanner, como veremos em seguida, ainda nos primeiros anos que marcam o surgimento da psicanálise de crianças na década de 1920, Melanie Klein abordou um caso de uma criança, na ocasião diagnosticada com esquizofrenia infantil, que, segundo os critérios diagnósticos empregados na atualidade, pode ser definida como autista. Este caso apresentado em 1930, no artigo "A importância da formação de símbolos para o desenvolvimento do ego" (Klein, 1930/1996), relata o caso de uma criança de quatro anos de idade com o pseudônimo de Dick, cujas características eram similares àquelas apresentadas por Leo Kanner.

Em 1943, Leo Kanner, um psiquiatra austríaco naturalizado americano, publica suas primeiras descobertas acerca do autismo. Em um trabalho realizado na década de 1940, intitulado "Autistic Disturbances of Affective Contact", Kanner descreve um estudo feito com onze crianças (oito meninos e três meninas), as quais se diferenciavam por possuírem algumas características atípicas em relação à maioria das crianças.

Foi constatado que esses pacientes se isolam precocemente, havendo perturbações nas suas relações afetivas:

O transtorno "patognomônico" fundamental é a incapacidade da criança de relacionar-se de modo usual com pessoas e situações desde o início da vida.... Existe desde o início, uma extrema solidão autista que, sempre que possível, desconsidera, ignora, exclui tudo o que vem de fora. (Kanner, 1943, p. 242, traducão nossa)

De acordo com Batista e Bosa (2002), Kanner defende a ideia de uma incapacidade inata dessas crianças no estabelecimento de relações afetivas de qualquer espécie e ressalta a dificuldade encontrada por elas em responder a determinados estímulos.

Outra característica encontrada foi a incapacidade na utilização da linguagem de maneira significativa. Kanner constatou desordens graves no desenvolvimento da linguagem, pois muitas crianças não falavam e as que falavam não conseguiam fazer da fala um instrumento comunicativo. Distúrbios léxicos e sintáticos eram habitualmente notados, como, por exemplo, a inversão de pronomes (referiam-se a si mesmas na terceira pessoa), a ecolalia (repetição mecânica de palavras ou frases que ouvem), além de não conseguirem dar um sentido amplo às palavras, só as entendendo em seu sentido literal. Por outro lado, não foram observadas certas dificuldades no emprego do plural e da memória.

A última característica básica observada por Kanner foi a extrema insistência na preservação da mesmice. Essas crianças sentem certo regozijo na preservação da rotina e um terrível sofrimento ao serem incomodadas: "Há uma necessidade imperiosa de não ser perturbado. Tudo o que vem de fora, tudo o que muda no ambiente externo ou mesmo interno representa uma intrusão temida" (Kanner, 1943, p. 244, tradução nossa). Se algo é modificado, mesmo que seja em um só detalhe, a situação já não é a mesma, não havendo aceitação. Tudo o que atrapalha seu isolamento e sua estabilidade acarreta um sentimento de angústia torturante (Batista & Bosa, 2002).

Nesse mesmo estudo, Kanner (1943) comenta que a combinação de diversas sintomatologias, tais como o extremo autismo, a estereotipia e a ecolalia remetem ao quadro de esquizofrenia, contudo, assinala que no caso das crianças autistas estudadas há uma extrema solidão desde uma tenra idade, não sendo precedida de mudanças no comportamento.

É válido pontuar que, apesar de Leo Kanner ter sido o pioneiro na publicação do termo autismo como uma patologia, outro psiquiatra, agora de Viena, chamado Hans Asperger (1944), expôs quadros clínicos semelhantes ao autismo, como por exemplo, no que se refere à perturbação existente no contato afetivo. Sua obra, porém, não teve muita repercussão na época, visto que sua publicação ocorreu em língua alemã e ao término da Segunda Guerra Mundial.

Em suma, a Síndrome de Asperger ou Psicopatia Autística se manifesta por volta dos quatro/cinco anos de idade, contrariando os aproximados 36 meses da síndrome definida por Kanner. Ademais, conforme apontam Ana Carina Tamanaha, Jacy Perissinoto e Brasília Maria Chiari, do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), a diferenciação entre os dois quadros centralizou-se na área da comunicação, cujo prejuízo é notável no autismo:

Na síndrome de Asperger, verificou-se que o DSM IV considerou não haver um prejuízo significativo nas áreas da linguagem e cognição. No entanto, há menção de que algumas dificuldades na comunicação social são verificadas, tais como: a incapacidade de reconhecer as regras convencionais da conversação que regem as interações sociais e o uso restrito de múltiplos sinais não verbais, como contato visual, expressões facial e corporal. (2008, p. 298)

Como vimos, a problemática do conceito de autismo em relação a sua distinção com a psicose e a esquizofrenia infantil é bastante controversa ao longo de sua história, e também está presente nos manuais psiquiátricos:

As primeiras edições da CID não fazem qualquer menção ao autismo. A oitava edição o traz como uma forma de esquizofrenia, e a nona agrupa-o como psicose infantil. A partir da década de 80, assiste-se a uma verdadeira revolução paradigmática no conceito, sendo o autismo retirado da categoria de psicose no DSM-III e no DSM-III-R, bem como na CID-10, passando a fazer parte dos transtornos globais do desenvolvimento. (Bosa, 2002, p. 28)

Hoje em dia, portanto, de acordo com os manuais psiquiátricos DSM-IV (American Psychiatric Association, 2002) e CID-10 (Classificação estatística internacional de doenças, 2004) o autismo é considerado, respectivamente, como Transtorno Invasivo do Desenvolvimento e como Transtorno Global do Desenvolvimento.

Em linhas gerais, pode-se dizer que muitas das características diagnosticadas por Kanner ainda constam nesses Manuais, quais sejam: estereotipias, prejuízo na interação social e na linguagem, interesse restrito ao ambiente que os cercam, regozijo na manutenção da rotina, etc.

De acordo com os critérios diagnósticos utilizados no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentaisDSM IV (2002), a perturbação deve ser manifestada antes dos três anos de idade, havendo um prejuízo severo em pelo menos um dos diferentes campos do desenvolvimento: interação social, linguagem usada para comunicação social, ou jogos simbólicos ou imaginativos. No Transtorno Autista, podem ocorrer anormalidades no desenvolvimento das habilidades cognitivas. Na maioria dos casos o diagnóstico está associado ao retardo mental geralmente na faixa moderada (Klin, 2006).

No DSM-IV (2002) estão inclusos como Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, além do Transtorno Autista, o Transtorno de Rett, o Transtorno Desintegrativo da Infância e o Transtorno de Asperger.

Segundo Cleonice Bosa (2002), existem outras classificações, como a classificação francesa a qual, de maneira geral, define o autismo como psicose, e o Grupo para o Avanço da Psiquiatria (GAP), o qual enquadra o autismo dentro dos transtornos psicóticos, sendo designado de "autismo infantil precoce":

Com isso, queremos demonstrar que a concepção de autismo como psicose ou como transtorno de desenvolvimento depende do sistema de classificação empregado, o qual, por sua vez, traz implícitas concepções teóricas diferentes sobre o desenvolvimento infantil. Ainda que a preocupação em estabelecer critérios rigorosos e padronizados na CID e do DSM, a fim de possibilitar uma "linguagem comum" entre a comunidade científica, seja em princípio "ateórica", há posicionamentos contrários a essa situação. (p. 29)

A respeito da incidência do autismo na população, é importante colocar que há variações nas taxas de prevalência. Assim, a ocorrência aumenta quando se incluem aquelas crianças que mostram características autistas no que diz respeito à "tríade de comprometimentos" (social, comunicação e atividades restritas/repetitivas) e diminui quando se considera apenas a forma típica da síndrome:

No Reino Unido, a prevalência de crianças com autismo típico, por exemplo é de 4 a 5 em cada 10 mil crianças (Wing e Gould, 1979), mas aumenta para 15 a 20 em cada 10 mil se forem incluídas aquelas crianças que mostram características autistas no que se refere à "tríade" de comprometimentos. (Bosa, 2002, p. 31)

De acordo com Cirino (2001, p. 92), com os diagnósticos descritivos, considerados como totalmente verificáveis, tal como o DSM-IV e CID-10, almeja-se "preencher a ausência de signos patognomônicos e a carência de exames de laboratório em psiquiatria". E continua, afirmando que o caminho é o da "medicalização da psiquiatria, a fim de afastá-la de vez das influências filosóficas (Jaspers, fenomenologia, existencialismo, marxismo) e psicanalíticas (em especial, Lacan)".

Finalmente, para o autor, de acordo com essa lógica, os psiquiatras infantis voltam a se aproximar da maioria dos psiquiatras da segunda metade do século XIX, em que o único agente de transformação era o recurso aos psicofármacos integrados ao condicionamento do comportamento e do pensamento, posição essa que exclui a responsabilidade do sujeito pelos seus sintomas.

Para finalizar, apresentamos um quadro demonstrativo com a cronologia dos principais acontecimentos históricos que marcam a evolução da psiquiatria infantil desde o século XVIII até o aparecimento do conceito de autismo.

 

A inserção do conceito de autismo na história da psiquiatria

 

 

Considerações finais

Este artigo buscou apontar, por meio de um viés histórico, o surgimento do conceito de autismo infantil precoce enquanto um quadro diferenciado das deficiências mentais, o qual é recente na história da psiquiatria. Pudemos observar por meio deste estudo de revisão conceitual o modo como o saber psiquiátrico sobre a criança foi constituindo-se, possibilitando compreender o sentido e a origem das práticas atuais.

Ademais, buscamos apontar criticamente o surgimento dos diagnósticos psiquiátricos a respeito do autismo, cujas descrições embora objetivem favorecer a troca entre os profissionais da área, não fornecem uma real compreensão desses quadros, motivo pelo qual notamos, na atualidade, uma pluralidade de entendimentos e concepções acerca do autismo em diversos campos do saber.

Finalmente, ao refletirmos acerca do percurso histórico da psiquiatria da infância com ênfase na descrição do conceito de autismo, pode-se inferir que há duas tendências que coexistem, ainda que apresentem posicionamentos antagônicos, com relação às concepções de infância e de psicopatologia. Por um lado, prevalece uma tendência hegemônica que aborda essa disciplina a partir de uma perspectiva puramente orgânica, excluindo posições filosóficas e psicanalistas e destacando como forma de tratamento os recursos psicofármacos, firmando, desde muito cedo, um destino psiquiátrico à criança. Em outra direção, autores influenciados pelo pensamento psicanalítico têm agregado contribuições que possibilitam pensar a psicopatologia infantil e o conceito de autismo de forma menos determinista e organicista, levando em consideração fatores ambientais no desenvolvimento dos sintomas e possibilitando o surgimento de outras formas de tratamento além dos psicofármacos. Entende-se que a coexistência desses modelos, por vezes divergentes, garante maior amplitude no atendimento de pacientes autistas, rompendo com tendências hegemônicas e reducionistas presentes em alguns segmentos da psiquiatria na atualidade.

 

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NOTAS

1. Este artigo apresenta um esboço histórico que discute o surgimento do conceito de autismo, abordando a tendência hegemônica presente na psiquiatria infantil durante o século XX, sem, contudo, desconsiderar outras abordagens e influências que tiveram repercussão no âmbito da psiquiatria, contribuindo para o desenvolvimento do conceito de autismo.

 

 

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Recebido em outubro/2012.
Aceito em maio/2013.