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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.19 no.2 São Paulo ago. 2014

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v19i2p357-368 

FUNDAMENTOS

 

Comunicação preliminar sobre o fenômeno da transmissão de pensamentos na psicose: o que um sr. delirante pode nos ensinar?

 

Preliminary communication about the phenomenon of thoughts transference in psychosis: what a mr. delirious can teach us?

 

Comunicación preliminar sobre el fenómeno de la transmisión de pensamientos en la psicosis: ¿qué delirante señor nos puede enseñar?

 

 

Beethoven Hortencio Rodrigues da CostaI; Diógenes Domingos FaustinoII

IDoutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), São Paulo, SP, Brasil
IIMestrando em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se do reconhecimento do fenômeno da transmissão de pensamento e seus efeitos na clínica da psicose, elevando-o a categoria de sintoma. Para tanto, utiliza-se um acontecimento no qual um psicótico evidencia tal manifestação. Conclui-se que a teoria dos discursos de Lacan possibilita uma primeira formulação teórica. De tal modo que se abre a possibilidade de tratamento para um fenômeno ainda pouco investigado no campo da psicanálise.

Descritores: psicanálise; Lacan; psicose; telepatia; transmissão de pensamentos.


ABSTRACT

This paper is about the recognition of the phenomenon of thought transference and its effects on clinical psychosis, elevating it to the category of symptoms. For this, it uses an event in which a psychotic shows such expression. We conclude that the theory of discourses of Lacan enables a preliminary theoretical formulation. So that opens up the possibility of treatment for a phenomenon still poorly investigated in the field of psychoanalysis.

Index terms: psychoanalysis; Lacan; psychosis; telepathy; thought transmission.


RESUMEN

En este trabajo se aborda el reconocimiento del fenómeno de la transmisión de pensamiento y sus efectos en la clínica de la psicosis, elevándolo a la categoría de los síntomas. Para esto, se utiliza un caso que muestra psicótico tal expresión. Llegamos a la conclusión de que la teoría de los discursos de Lacan permite una formulación teórica preliminar. Así se abre la posibilidad de tratamiento para un fenómeno aún poco investigado en el campo del psicoanálisis.

Palabras claves: psicoanálisis; Lacan; psicoses; telepatia; transmisión de pensamientos.


 

 

Não há Nome-do-Pai que seja sustentável sem o trovão, que todos
sabem que é um sinal, mesmo não sabendo sinal de quê.

(Lacan, 2009, p.15)

 

O presente artigo pretende dar tratamento a um fenômeno muito frequente na clínica das psicoses, a saber, a transmissão de pensamentos, manifestação esta já tratada por Freud, em suas teorizações, como uma telepatia. Para tanto, faremos uso de um acontecimento, algo semelhante a uma "cena clínica", em que podemos verificar tal manifestação. Na verdade, na nossa hipótese trata-se de encontrar o fundamento psicanalítico desse fenômeno que ocorre na clínica, mas que fora desta é, comumente, objeto de teorias do ocultismo ou ganha o rótulo de loucura. Com a ressalva que encontrar a estrutura subjacente a um fenômeno cotidiano é apenas um exercício teórico, já que tal cena foi extraída de um contexto público sem maiores relações com o sujeito que a produz. Portanto, conservaremos o status de hipótese para a cena aqui narrada.

Entretanto, para darmos seguimento a essa questão, é preciso, e a psicanálise lacaniana já conta com isso, entender que se têm outras formas de subjetivação além da via edipiana. Se partirmos de uma teoria centrada na normatividade da neurose, opacamos a loucura, tomando-a por uma forma deficitária devido a um Édipo que fracassou, e, assim, não conseguimos avançar no campo das psicoses. Ouve-se apenas um louco governado por dizeres sem sentido, abstratos e sem consistência.

Diferente da neurose, na psicose não se fica preso no discurso, o que, de certa forma, torna mais compreensível à surdez do neurótico ao se deparar com os delírios paranoicos que, de fato, não se valem da estrutura discursiva em sua produção.

Fica-se aderido à questão do Outro1, preso no que é produzido nesse campo e não se percebe o quão de verdade a loucura pode conter. Apesar de Freud afirmar que a psicanálise não se prestava como método clínico para o tratamento das psicoses, a sua recomendação advém de outro lugar. Em "Conferência XXXIV - Explicações, aplicações e orientações", esclarece que a técnica psicanalítica é infrutífera nos casos de psicoses, sendo categórico, diz:

Já sabem os senhores que o campo de aplicação da terapia analítica se situa nas neuroses de transferência - fobias, histeria, neurose obsessiva - e, além disso, anormalidades de caráter que se desenvolveram em lugar dessas doenças. Tudo o que difere destas, as condições narcísicas e psicóticas, é inevitável em grau maior ou menor. Seria inteiramente legítimo acautelar-nos dos insucessos, excluindo cuidadosamente esses casos. (p. 152, 1996a)

No entanto, tais recomendações não refletem um recuo do estudo da loucura. Freud deixou uma marca indelével para a psicanálise no campo das psicoses que se constituirá. Em seu estudo do caso de Schreber2, reconhece nas descrições do delírio deste a sua teoria da libido a tal ponto que, na conclusão de seu texto, jocosamente ou não, faz notar, a título de álibi, a anterioridade de sua teoria ao contato dele com a obra de Schreber e diz: "compete ao futuro decidir se existe mais delírio em minha teoria do que eu gostaria de admitir, ou se há mais verdade no delírio de Schreber do que outras pessoas estão, por enquanto, preparadas para acreditar" (p. 85, 1996b).

Lacan (2008) avança com o estudo das psicoses ao ponto de já no seminário de 1955 a 1956, As psicoses, tomar o psicótico como a testemunha atroz da condição do ser como parlêtre3, marcado pela miragem de completude que redunda num gozo que não serve para nada, sendo, por estrutura, portador da real condição humana.

Esse lugar reservado à psicose já se esboça em Lacan (1987) em sua tese de doutorado, em 1932, "Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade", na qual tece um longo diálogo com a psiquiatria clássica da psicose, oferecendo um contraponto às teorias da época que postulavam a causalidade orgânica das psicoses, desenvolvendo uma argumentação que sustentava não só a causalidade psicogênica, mas também equiparava o conhecimento paranoico ao conhecimento normal, descartando definitivamente da psicose a qualidade de déficit na cognição.

O estar fora do discurso na psicose não implica uma estrutura deficiente em relação à neurose. Como Quinet aponta, em Psicose e laço social (2006), ser fora do discurso é ser mestre do discurso, o que não tem caráter valorativo e muito menos de ineficiência, mas tem sim a ver com outra eficiência. O psicótico consegue dizer coisas que são da ordem do impossível para os neuróticos. O Outro não tem a mesma consistência que na neurose, de tal forma que os psicóticos conseguem muito facilmente duvidar do grande Outro. Como Lacan (1992) diz, os neuróticos estão situados no nível do discurso do mestre que é o discurso do inconsciente. O discurso onde as coisas andam, onde funcionam.

 

 

É dessa maneira que o neurótico apreende um modo de gozar. O neurótico não foge desses quatro termos ($, S1, S2, a) que se permutam nos lugares nos discursos.

 

 

Na neurose, a relação com o saber e com a verdade está situada dessa forma. Uma fórmula na qual sempre se questiona as infinitas vidas possíveis, pensando que se poderia viver de outra forma, como recorda Coelho dos Santos (2008).

Voltando-se para um passado ou projetando vidas futuras, o neurótico fica inequivocamente situando outras vidas. Preso nessas tentativas de situar essas outras vidas, nos "se's", ele fica nessa roda girando e não desfruta da vida. Continua nessa repetição, porque tem um ganho que é a mais-valia. Ele realmente não vai ter acesso ao gozo, mas a sua mais-valia, que é um mais-de-gozar ao qual fica preso.

O neurótico é aquele que prefere pensar nas infinitas vidas possíveis que ficar só com uma, preferindo os dois pássaros voando, que ter um na mão, porque é disso que a sua neurose se alimenta (Coelho dos Santos, 2008). Isso ganha consistência e faz com que ele continue nessa roda.

Difícil é ir contracorrente e o louco consegue porque não está preso nisso. Chega um momento em que o louco diz "não é isso", "não é assim". O louco fica com um passarinho só, no delírio dele, mas fica. Obviamente, não se trata de negar a existência de sofrimento na psicose em decorrência disso, mas de certa forma o psicótico é mais livre. Lacan, em Formulações sobre a causalidade psíquica, nos diz sobre isso,

Longe de ser para a liberdade "um insulto", ela (a loucura) é sua mais fiel companheira, e acompanha seu movimento como uma sombra.... E o ser do homem não apenas não pode ser compreendido sem a loucura, como não seria o ser do homem se não trouxesse em si a loucura como limite de sua liberdade. (p.177, 1998)

O neurótico é totalmente determinado pelo discurso. Ele é o agente do discurso, mas no sentido do agente secreto: sempre tem 'alguém' que o manda bancar a missão. Sempre tem um agente no discurso. Ele é atuado (être jouée). O próprio Freud (1996c), em seus estudos, já apontava isso: o homem não é o senhor da sua própria casa. Em outras palavras, o senhor não é o eu é Outro.

Para o psicótico, em sua loucura, ele é o senhor de si. Segundo Lacan, a liberdade que concerne ao psicótico refere-se ao que cerne como essencial o campo da loucura, a saber, o desconhecimento da dialética do ser. Desconhecimento este que se manifesta na psicose na medida em que se imputa ao mundo aquilo que concerne ao seu ser, do psicótico, ao passo que se desconhece também que aquilo com que se conta para dizer sobre seu próprio ser trata-se não mais que uma imagem invertida e virtual desse mesmo ser. Esse duplo desconhecimento implica numa identificação sem mediação que garante a liberdade na psicose (Lacan, 1998).

As dificuldades se multiplicam e se tornam insolúveis por se colocar todo o delírio do psicótico na chave de leitura da neurose que é o discurso, tomado como norma. O psicótico está fora do discurso, mas não está fora da linguagem, uma vez que é parlêtre. Apesar dele se inserir através de uma forma de enodamento muito particular e diferente da forma sintomática na neurose, ele é um ser falante que tem que dar conta de um corpo.

Não se encontra dificuldade em formalizar a posição em que um neurótico fala. Por isso mesmo que Lacan (1992) diz que o discurso é manifesto, um enunciado. Então, o neurótico é determinado por esse enunciado e segue exatamente a sua estruturação. Rapidamente se encaixa um neurótico no discurso, diferente de um psicótico que não se consegue encaixar, apesar de podermos fazer uso desse recurso nesses casos. A dificuldade reside na inexistência de uma norma para essa fórmula, pois cada psicótico cria uma própria, diferente do neurótico que é criado por ela.

Esse estar fora do discurso possibilita uma liberdade impossível à neurose por estar presa a essa fórmula. De fora do discurso, ele consegue "perceber" a sua estruturação e também aquilo que só se escuta ao associar livremente em análise. Ficar louco, fazer com que o Outro não seja tão consistente é o que a experiência analítica propõe e a sua regra fundamental congrega. Com a análise, podemos dizer, fica-se um pouco louco mesmo, só assim, percebe-se essa estruturação e quão se é determinado por ela.

Lacan (2009), ao formular a sua teoria dos discursos, expõe que estes matematizam o seu próprio insucesso; o discurso condiciona toda palavra que ali possa se produzir; e, o mais importante, cada discurso mostra como o objeto a pode ser atuado, ou seja, o seu funcionamento no aparelho de linguagem. Assim, para fazer semblante, para que se faça o laço social é necessário que algo falhe. Quando estamos em um laço social acreditamos que ocorre uma relação, uma intersubjetividade, uma comunicação, mas o que ocorre é uma intersignificação, um logro do significante. Acreditamos que isso comunica, mas na verdade estamos em um diálogo de surdos. O discurso é semblante, um faz de conta. Quando algo irrompe, como nos delírios paranoicos, trata-se de um discurso que não fosse semblante, trata-se do real (Lacan, 2009).

O neurótico não consegue pensar na impossibilidade por causa da impotência. Esta turva a impossibilidade fazendo com que se veja como impotência, aquilo que está na ordem do impossível. O modo como o neurótico se estruturou foi esse, não tem como viver outra vida. É dessa forma que se pode gozar: ou se situa em relação a isso e vê que não tem porque sofrer por isso; ou continua sofrendo e gozando dessa forma; ou cai alguma coisa daí ou não. Já na psicose, não se pode dizer que teria apenas uma fórmula, podem ser várias.

Por exemplo, a psiquiatria fala do "folie à deux": uma pessoa enlouquece e o outro segue na loucura. O caso das irmãs Papin, que Lacan (1987) já traz em sua tese de 1932, elucida isso muito bem. Christine e Léa Papin comentem duplo assassinato. A Sra. Lancelin e sua filha são mortas e têm seus corpos mutilados e os olhos arrancados das orbitas pelas irmãs que assumem a autoria do crime. A irmã mais nova, Léa, era completamente governada por sua irmã mais velha. Sabe-se que foi Christine quem fez a maior parte do trabalho, a outra apenas a imitava (Násio, 2001). Era Léa que estava devastada por não ter encontrado na vida um modo de gozar tão gozoso quanto a psicótica que comandou a carnificina. Ao sair da prisão, após sua sentença ter sido reduzida a oito anos por ter bom comportamento, Léa segue para morar com a mãe (Clémence) e passa a trabalhar nas funções de doméstica em um hotel.

O neurótico é tão determinado pelo discurso que só precisa de outro mestre para seguir outra coisa. Pode ser perigoso quando um psicótico se junta com um neurótico nesse "folie à deux", mas não é ameaçador para o psicótico. O neurótico é tão facilmente manipulável que cai na loucura do outro. Têm pessoas que são muito sugestionáveis e estão apenas à espera de um mestre. É o caso da histérica que quer um mestre para governar, sendo-lhe subserviente. Só que se ela entra nesse jogo com um psicótico ou um perverso, ela pode enlouquecer junto com o psicótico ou fazer o que o perverso manda, ficando totalmente serva porque ele é o mestre. O perverso sempre encarna muito bem esse lugar, o gozo do Outro. Enquanto que o psicótico, apesar de também ser mestre, é um que enlouquece. De certa forma, a histérica consegue compartilhar dessa liberdade do psicótico quando se junta nessa loucura, se identificando com essa liberdade que é o que mais quer. Ela quer ser ao mesmo tempo serva, mas uma serva muito valiosa, muito preciosa para o Outro, ao passo que tem uma importância para um psicótico que outra pessoa delire com ele, assim, a histérica é colocada muito bem nesse lugar, nesse lugar de a (Lacan, 2003).

 

 

A verdade para histérica é que ela é esse objeto precioso para quem manda, o mestre, mas é aí nessa relação, ao se fazer de serva que controla o Outro. Nesse jogo com o Outro, ela quer ser sua serva rainha, e com os neuróticos, consegue bem (Lacan, 1992).

O trabalho com o psicótico é, de fato, muito difícil porque se pode ser capturado, tal qual a histérica. Dirigindo-nos mais diretamente a questão do nosso artigo, quando um analista se depara na sua clínica com o fenômeno da transmissão de pensamentos, ele pode crer que se trata da telepatia (do ocultismo) ou, mesmo não sendo tão ingênuo, ser capturado nessa relação, pois ele permanece envolvido em seus próprios pensamentos, que são declarados pelo psicótico, como se este tivesse livre acesso, ao invés de dar prosseguimento ao tratamento.

A análise de pacientes psicóticos apresenta outras dificuldades. A fantasia que para o neurótico está no campo da impotência ($◊a), como algo obturado, ele sabe. Isso também tem consequências para a clínica. É preciso, como analista, se situar muito bem. Alguns falam como secretário do psicótico para exatamente, por se tratar de uma psicose, não se ouvir tudo o que ele tem a lhe dizer, como se fosse o oráculo de Delfus, ou pior, a esfinge. Ele pode ser sim e se coloca muito bem nesse lugar de esfinge. É isso que o Lacan (1967) dizia ao falar que ele carrega o objeto a no bolso, em Petit discours aux psychiatres. O objeto a não está fora, ele é o objeto a. Nesse sentido, não dá para ouvir tudo que o psicótico pode lhe dizer. Não dá para ficar muito preso porque se pode enlouquecer junto com ele. Ser secretário é muito mais estar ali e sacar algo que possa fazer com que, de certa forma, o psicótico faça uma amarração. Não intuindo fazê-lo neurótico, algo impossível, e sim fazer com que se enlace com o Outro, com que tenha um enlaçamento com o social e possa andar por aí sem fazer muito estardalhaço para aqueles que não podem ouvir o que ele tem a dizer.

A fim de darmos seguimento aos intentos desse artigo, traremos ao seu corpo uma cena, na qual vislumbraremos o acontecimento da transmissão de pensamentos, o qual os analistas precisam estar advertidos.

 

"Cena clínica": o que um Sr. Delirante pode nos ensinar?

Neste artigo, nosso interesse recai sobre o entendimento de uma cena pública ocorrida em um simpósio. Mais uma vez cabe à ressalva que não se trata de um tratamento sob transferência, mas um exercício teórico a partir de um exemplo tratado como hipótese de psicose. Nada garante que o Sr. Delirante é um psicótico, como já adiantamos, para o senso comum, poderia, por exemplo, ser um telepata.

Tratava-se de uma mesa redonda, na qual, ao final das exposições dos palestrantes, os quais versavam sobre temáticas significativamente distintas entre si, um senhor na plateia formula uma questão às autoras, cuja apresentação este pôde presenciar, mas que surpreendentemente dirigia-se ao trabalho exposto no momento em que esse mesmo senhor não se encontrava ali. Prontamente, com o assentimento das outras autoras, o primeiro orador tomou a palavra e respondeu àquele que inqueria sobre sua exposição. Cena inesperada que surpreendeu a maioria dos presentes e que supostamente põe importantes questões sobre a loucura para a psicanálise.

Continuemos a divagar sobre o que teria ocorrido nesta cena: como esse senhor conseguiu saber sobre o que tratava o primeiro trabalho, no qual estava ausente? Podemos levantar três hipóteses. A primeira seria que ele já conhecia o trabalho do primeiro autor e atrapalhou-se ao perguntar para as outras duas autoras. A segunda leva em consideração o misticismo, tratar-se-ia de um vidente, adivinho, médium, etc. A última hipótese, que talvez seja a menos óbvia, é considerá-lo um psicótico4, um louco que sob o efeito do discurso do primeiro autor consegue ser capturado sem se deixar enlaçar pelo consenso, pelo bom senso, pelo laço social, por um semblante. É essa terceira hipótese que iremos desenvolver neste trabalho como um exercício teórico, uma primeira aproximação dos autores a questão da loucura.

Lacan, ao formular os quatro discursos, trata de pontos que servirão de base para desenvolvermos o nosso discernimento sobre o ocorrido, a saber: os discursos matematizam o seu próprio insucesso; o discurso condiciona toda palavra que ali possa se produzir; e, o mais importante, cada discurso mostra como o objeto a pode ser atuado, o seu funcionamento no aparelho de linguagem.

Assim, para fazer semblante, para que se faça o laço social é necessário que algo falhe. Quando estamos em um laço social acreditamos que ocorre uma relação, uma intersubjetividade, uma comunicação, mas o que ocorre é uma intersignificação, um logro do significante. Acreditamos que isso comunica, mas na verdade estamos em um diálogo de surdos. O discurso é semblante, um faz de conta. Quando algo irrompe, como na cena descrita acima, trata-se de um discurso que não fosse semblante, trata-se do real.

De acordo com Clara Cruglak (2001), em seu livro sobre a identificação, o real se manifesta de duas maneiras: o real impossível e o real contingente. Ela retoma a ideia lacaniana do real como o possível à espera de que se escreva. Quando ele irrompe, segundo ela, não é necessariamente com violência, mas como o "fator traumático" freudiano. Ao desenvolver essa ideia, ela chega a uma herança arcaica, "um saber original que o adulto esqueceu" (Cruglak, p. 13), algo que está na raiz do saber inconsciente, algo que se transmite, mas que é impossível de apreender. Talvez este saber não falhe na psicose. O louco não reconhece o insucesso dos discursos, por isso se torna mestre dele, suas palavras não reconhecem a impotência dos discursos.

Supomos que o Sr. Delirante está alheio a essa falha do discurso, e por esse motivo, consegue se livrar de sua determinação e não se deixa enlaçar nessa trama. Por isso, pode associar livremente, em sua fuga de ideias, como anuncia o pensamento médico. Enquanto que o neurótico faz de conta da associação livre, em sua análise. Ele consegue ouvir naquilo que é prisão ao neurótico - sua determinação ao saber inconsciente - os seus efeitos. O Sr. Delirante conseguiu pronunciar o efeito do discurso do primeiro autor nas palavras daquelas que o anunciaram depois. Já que o discurso aprisiona toda palavra que ali venha se alojar.

Nesta parte da argumentação, trazemos a contribuição de Laznik-Penot (1989), em seu texto sobre a criança psicótica como "carta roubada". Ela parte das ideias lacanianas sobre o conto de Edgar Alan Poe, "A carta roubada", para explicar a repetição de qual ela foi efeito. Naquela época, o seminário de Lacan (1992) que versa sobre os quatro discursos não tinha sido publicado, o que faz Laznik-Penot (1989) ir com recursos escassos à análise dos acontecimentos. O que não retira em nada sua contribuição, diga-se de passagem.

O caso principal é de uma menina chamada Anne, cujo efeito na equipe era a repetição de uma cena entre a mãe e sua tia. A tia acusava a mãe de ser incapaz de cuidar de uma criança. Cada um que cuidava dela era acusado por outro de ser incapaz. Uma das acusadas diz: "era como se, no serviço, ela não pudesse ser ela mesma, mas outra". A ressurgência de posições imaginárias induzidas mostra o efeito que essa criança consegue nestes personagens. Laznik-Penot (1989) consegue aportar que o deslocamento significante determina os agentes, que "o adulto em questão põe-se a agir de modo contrário à sua inclinação natural" (p. 56), que nesse caso, "é a carta, e o ser da criança, que possui cada um dos protagonistas a guisa de papel" (p. 56). Cada um corre risco de ser ator desta cena a despeito de sua vontade, como Laznik-Penot retoma de Lacan, todo mundo pode ser manipulado (être jouée, ser atuado, ser representado).

No caso do Sr. Delirante, ele não é mais criança, mas o que faz em seu não mutismo não é comunicar. Ele é estranho ao discurso, mas o que ele diz denuncia um saber. Quer trate de idiotia, misticismo ou saber do real. Saber original cuja aprendizagem é impossível. Ele evoca a estrutura da qual somos escravos. Ele é como o real que irrompe, que "põe em urgência o Eu. O Eu se vê exigido, compelido à ação para restabelecer sua unidade, ou em torpor inibitório jaz como objeto" (Cruglak, 2001, p. 14).

Quando o semblante falha o real aparece, não precisa ser de forma violenta, mas como fator traumático sem dúvida. Os discursos são formas de tratar o real de maneira falha, é isso que Lacan (2009) denuncia quando faz funcionar o a, aquilo do real que comparece em sua estrutura discursiva. Em cada um dos discursos o a denuncia uma incompletude.

O que o Sr. Delirante nos ensina? Que há uma escravidão ao significante, que a linguagem nos parasita, mas isso não é tudo. Há outro saber que não é significante, um saber originário do saber inconsciente, um saber no real. Talvez o inconsciente real que vários lacanianos de hoje não cansam de alardear sem explicar. Um saber escrito, transmitido, mas que não pode ser apreendido. Como sublinha Miller (2006), espaço de um lapso que não produz sentido ou interpretação.

 

Considerações finais

Ao objetivar um fundamento psicanalítico para o fenômeno da transmissão de pensamentos, encontramos na teoria dos discursos lacanianos uma primeira formulação para pesquisas teóricas futuras. Consideramos como hipótese que o Sr. Delirante é um psicótico, e por esse motivo, por estar fora dos discursos ele consegue captar a estrutura destes, mesmo sem se dar conta, tornando-se mestre dos discursos.

Cabe ressaltar que a psicanálise freudiana teve em seu início o fenômeno histérico, que também era relegado, antes de Freud, a total descrédito investigativo. Assim, essa nossa hipótese teórica é uma primeira aproximação de um fenômeno corrente na clinica das psicoses, que nos auxilia a dar um tratamento inicial, tirando do ocultismo a telepatia, e possibilitando sua inserção no rol de sintomas da psicose. Em resposta, abrem-se novos elementos para dizer sobre a direção do tratamento na clínica da psicose, o que possibilitará novos estudos partindo dessa perspectiva.

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1. O grande Outro é um construto lacaniano para abordar a alteridade constitutiva do sujeito.

2. Freud também ousa entender o que está subjacente a escrita de Schreber apenas com a leitura do texto deste, ponto que reafirmamos ao analisar o acontecimento Sr. Delirante.

3. Conceito lacaniano formulado para dar conta do ser da fala que não é sem o corpo em oposição ao sujeito do inconsciente que é produzido no encadeamento significante (Lacan, 1974-75).

4. Considerá-lo louco seria ir a favor da maré do mundo, mas a segunda parte da hipótese é que consideramos ser contra-intuitiva. Referendar um saber ao louco que não é permitido aos simples mortais que rechaçam esse saber para se manter no laço social.

 

 

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Recebido em março/2013.
Aceito em outubro/2013.