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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.20 no.2 São Paulo ago. 2015
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v20i2p265-278
ARTIGO
Sobre a importância da transmissão parental do desejo para a psicanálise a partir de um caso de obesidade infantil
On the importance of parental transmission of desire for psychoanalysis from a case of childhood obesity
Acerca de la importancia de la transmisión parental del deseo para el psicoanálisis a partir de un caso de obesidad infantil
Flávia Lana Garcia de OliveiraI; Vinicius Anciães DarribaII
IDoutoranda em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), membro do Instituto Sephora de Pesquisa de Orientação Lacaniana (ISEPOL), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIDocente do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO
Buscamos demonstrar a importância da transmissão parental do desejo na constituição psíquica da criança a partir de Freud e Lacan, apontando para o papel estruturante das funções materna e paterna como transmissores dos operadores simbólicos na regulação do gozo no laço social. Uma situação clínica envolvendo o fenômeno da obesidade infantil nos permite inferir os entraves experimentados por uma criança na subjetivação do seu cor po devido à precariedade simbólica dessas funções. Depreendemos, assim, como uma perturbação discursiva familiar pode repercutir para uma criança em uma significativa fragilização do processo de assunção da diferença sexual e sua inscrição na sucessão geracional.
Descritores: psicanálise; família; obesidade; corpo; transmissão parental.
ABSTRACT
We seek to demonstrate the importance of parental transmission of desire in the psychic constitution of the child from the studies of Freud and Lacan, pointing to the structuring role of maternal and paternal functions as transmitters of symbolic operators in the regulation of the jouissance in the social bond. A clinical situation involving the phenomenon of childhood obesity allows us to infer the barriers experienced by a child in the subjectivation of his body due to the precariousness of these symbolic functions. Thus we inferred how a familiar discursive disturbance can result for a child in a significant fragility of the process of assumption of sexual difference and its inscription on generational succession.
Index terms: psychoanalysis; family; obesity; body; parental transmission.
RESUMEN
En este artículo buscamos demostrar la importancia de la transmisión parental del deseo en la constitución psíquica del ni&nitlde;o basándonos en Freud y Lacan, se&nitlde;alando el papel fundamental de las funciones materna y paterna como transmisoras de los operadores simbólicos para la regulación del goce en el lazo social. A partir de una situación clínica que incluyó el fenómeno de la obesidad infantil nos permitió inferir los obstáculos experimentados por un ni&nitlde;o en la subjetivación de su cuerpo debido a la precariedad de estas funciones simbólicas. Deducimos, así, como una perturbación discursiva familiar le puede repercutir a un ni&nitlde;o en un debilitamiento significativo del proceso de asunción de la diferencia sexual y de su inscripción en la sucesión generacional.
Palabras clave: psicoanálisis; familia; obesidad; cuerpo; transmisión parental.
O lugar da criança na estrutura familiar
A psicanálise é fundada com a apresentação freudiana de uma leitura da constituição do psiquismo em sua época que dá ênfase ao valor das ficções universais na promoção da renúncia pulsional em prol das exigências da civilização no âmbito do núcleo familiar. Desse modo, na perspectiva psicanalítica, o surgimento de uma criança enquanto um sujeito em potencial precede o evento factual de seu nascimento, pois ocorre com o despertar do desejo dos pais de terem um filho. Seu enredamento como objeto da fantasia dos pais é promotor de várias expectativas e ditos que já a situam na ordem simbólica e a inserem na economia libidinal da família. É o que Freud (1914/1996a) parece indicar no texto Sobre o narcisismo: uma introdução, ao destacar que a formação de uma unidade comparável ao eu não existe desde o começo, pois exige o estabelecimento de uma "nova ação psíquica", caracterizada pelo retorno para a criança do investimento amoroso que originalmente emanou do próprio narcisismo dos pais renascido e transformado em investimento objetal. Assim, a criança se constitui a partir dessa posição de objeto que ocupa no desejo do Outro, o qual a introduz nos desfiladeiros do significante e na lógica da castração, permitindo-a que se situe em uma posição sexuada.
Para a mãe, a criança é esperada como o falo que ela não tem. Freud (1924/1996b) sublinha essa vicissitude como um destino da sexualidade feminina, uma vez que, frente à constatação de não possuir o pênis, a menina nutre um ressentimento pela figura materna por achar que esta a enviou ao mundo em uma condição deficitária como castrada. Tal decepção desemboca na entrada da menina no complexo de Édipo e desdobra-se no deslocamento do alvo libidinal do pênis para o bebê. A menina então abdica do desejo de um pênis e coloca em seu lugar o desejo de um filho, tomando o pai como objeto de amor e lhe reconhecendo como detentor do falo. Para Freud, essa vertente da posição feminina se encaminha precisamente através desta passagem da relação edipiana ao objeto paterno para a escolha genital definitiva, quando outro homem atualiza a potência fálica inicialmente identificada ao pai.
Nesse sentido, Freud (1909/1996c) demonstra que, para se tornar membro da comunidade humana, é preciso uma elaboração psíquica que implique a desvinculação do indivíduo do drama edipiano em proveito das escolhas amorosas reais, com a instauração de outros destinos sublimatórios para a pulsão. O recalque corresponde à barra-s gem do laço com o objeto incestuoso, instituído pela função paterna como agente da castração na fantasia, o qual assegura a regulação do funcionamento social segundo o regime da norma fálica, com a inscrição da hierarquia geracional e da dissimetria entre os sexos. Porém, Freud também destaca que desvencilhar-se de seu romance familiar é uma tarefa árdua para o neurótico, pois a satisfação própria à sexualidade infantil permanece inconsciente na condição de um resto libidinal que comparece sintomaticamente.
Em Nota sobre a criança, Lacan (1969/2003) acentua a irredutibilidade da transmissão em jogo na família conjugal. Esse papel inexorável não se restringe à esfera genitora da satisfação das necessidades biológicas. Trata-se da transmissão "de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo" (Lacan, 1969/2003, p. 369). Na redução lógica efetuada por Lacan, a estrutura familiar é constituída pelo Nome-do-Pai, pelo desejo da mãe e pelo objeto a. O amor de uma mãe pelo filho não é algo genérico, seus cuidados dispensados à criança são bastante específicos. Ele assinala que a mãe deve trazer, através de seus cuidados, "a marca de um interesse particularizado" (Lacan, 1969/2003, p. 369). Vieira (comunicado em aula, maio, 2005), em um comentário sobre esse texto, observa que essa afirmativa pode ser compreendida pelo viés da importância de que o interesse materno porte a marca de sua atenção para um traço que particularize seu filho em relação às demais crianças. A presença materna é necessária para que não se abra o vazio do abandono. No entanto, esta presença só se realiza em dialética com a ausência: ou seja, a mãe chamada pela criança é a mãe em sua condição alternante, atravessada pela falta que constitui seu desejo.
A intervenção paterna, por sua vez, define-se como "o vetor de uma encarnação da Lei no desejo" (Lacan, 1969/2003, p. 369). Como significante que metaforiza o gozo, nomeia o até então obscuro desejo da mãe, a partir da significação fálica (Lacan,1999). Assim, o desejo particularizado da mãe pela criança poderá ganhar um limite que barre sua desmesura. O sujeito emerge, então, com um sentido novo, ejetado da condição indiferenciada com o Outro materno. O pai também é aquele que dá testemunho de sua condição de ser falante, de sua posição sexuada enquanto homem, ao mostrar que o gozo pode ser acessível em fragmentos. Localiza e transmite para os filhos uma lição acerca do gozo como objeto causa do desejo ao referir seu desejo à mulher enquanto objeto a de sua fantasia (Lacan, 1960/1998). Assim, dá provas de sua relação com a castração.
Portanto, a função paterna tem a seu encargo deter um possível engolfamento materno e, concomitantemente, permite um confronto com o vazio ao apontar para a castração materna. De acordo com Flesler (2012), o pai, ao dizer para a criança que ela é seu filho, retira seu próprio desejo do anonimato, introduzindo a criança na filiação e efetivando um enlace do real que o filho apresenta a uma trama imaginário-simbólica. Graças a essa nominação, vetoriza-se a limitação do gozo em várias direções: à mãe se esta ocupar a posição de objeto a e for causa de seu desejo enquanto homem ao fazê-la não-toda mãe; ao filho, ao indicar que há uma mulher com a qual não obterá satisfação; e ao próprio pai, ao reiterar seu lugar. A ação nominante do pai implica o acesso a um novo gozo em cada tempo da estruturação da criança. Cada tempo depende de uma operação renovada de extração do gozo fora do corpo da criança, afastando-a da posição de objeto e lhe permitindo avançar nos tempos instituintes do sujeito.
Assim, em tempos de avanço do discurso da ciência e de uma ideologia que prima pela liberdade e pela igualdade de todos os indivíduos, a psicanálise reitera a função dos pais na estruturação subjetiva enquanto alicerce da tradição e da autoridade, o que não confunde com uma pura obediência e depende da singularidade de seu investimento parental, conforme indica Coelho dos Santos (2007):
A família não é um conjunto de laços ou deveres, ela é essencialmente unida por um segredo, ela é unida pelo não dito. Qual é o segredo? Qual é esse não dito? É um desejo não dito, é sempre um segredo sobre o gozo; de que gozam o pai e a mãe? (p. 9)
Para a criança, o tratamento discursivo do excesso pulsional se articula à incidência do desejo dos pais. Por sua vez, o posicionamento dos pais mediante suas funções transmissoras está vinculado às suas respostas subjetivas frente ao real do sexo. O consentimento da mãe à castração, a nomeação do pai como o homem que para ela é a exceção, enquanto aquele que porta o que ela não tem, bem como a disposição do pai enquanto homem em localizar sua mulher como objeto causa do desejo, são determinantes do modo como se instaura a posição de objeto da criança como sintoma do desejo dos pais e de seu advento enquanto sujeito.
Uma criança obesa e seus impasses geracionais: "Ah! Agora tem lei! Agora tem lei, né?!"
O que inferir a respeito das crianças que apresentam engordamento excessivo na infância devido ao comer desmedido? O fenômeno da obesidade evidencia uma modalidade de satisfação pulsional a céu aberto, que muitas vezes é refratária aos ensinamentos comunicados pedagogicamente pela abordagem médica-nutricional. A partir de um caso clínico no âmbito da psicanálise aplicada ao hospital geral, buscamos extrair alguns elementos norteadores que podem contribuir para uma apreensão psicanalítica da questão da obesidade em crianças.
O primeiro contato com Tiago, de nove anos, com sua mãe Carla, ocorreu em uma interconsulta no ambulatório de Endocrinologia Pediátrica para onde o menino havia sido encaminhado há aproximadamente dois anos devido ao sobrepeso. O ganho exponencial de gordura rapidamente o tornou um obeso grave de acordo com as medições endocrinológicas. Seu quadro comportamental foi considerado pela equipe como a principal interferência no sucesso do tratamento. Segundo relatos desta equipe, o menino apresentava compulsão alimentar e era muito rebelde. Há alguns anos, Tiago iniciara atendimento psiquiátrico e fazia uso de medicação para o controle da impulsividade. Não havia passado por acompanhamento psicoterápico.
Tanto na interconsulta, quanto nas entrevistas individuais, Carla é bastante queixosa. Conta ter notado algo de diferente na relação do filho com a comida pela primeira vez quando este tinha quatro anos de idade, ao surpreendê-lo comendo feijão gelado de uma panela que estava dentro da geladeira. A crescente ânsia por comer o fazia revirar os armários da cozinha e dos quartos. O único modo que a mãe encontrou para interditar o acesso a esses lugares foi a instalação de correntes com cadeados nos móveis de toda a casa. Ainda assim, Tiago burlava as trancas e surrupiava algum alimento pela fresta. Além disso, ele costumava obrigar o irmão a ser cúmplice dessas transgressões e, em muitos momentos, também comia a comida deste. Caso o irmão se recusasse a participar, reagia violentamente. O menino também costumava furtar dinheiro da mãe para comprar alimentos gordurosos na rua e contestar desafiadoramente ordens e decisões tomadas pelos adultos.
Tiago também apresentava enurese noturna e encoprese, chegando, inclusive, a evacuar pela casa. Ao mesmo tempo, era um excelente aluno, muito participativo em sala, sendo eleito monitor da turma diversas vezes. Recentemente, algumas reclamações foram feitas em razão de performances que Tiago fazia em sala de aula que aludiam coreografias e melodias conhecidas de cantoras pop como Lady Gaga, Beyoncé e Anitta, as quais iriam se repetir nos atendimentos.
A separação conjugal dos pais aconteceu quando Tiago tinha quatro meses. Inicialmente, sua mãe justifica essa decisão pela frequente ausência do companheiro, que saía para trabalhar e retornava tarde, muito nervoso e sem fornecer explicações. Mais adiante, quando retoma esta questão, atribui sua escolha à constante pressão de sua mãe que, como ela afirma, sempre deu a última palavra sobre o que ela iria fazer. O pai de Tiago se mudou para outra região do país quando o filho tinha três anos. Desde então, nunca mais se viram ou se falaram. Segundo Carla, quando ainda estava no Rio de Janeiro, ele buscava o filho mais velho para passear esporadicamente, porém se recusava a levar Tiago, alegando não possuir habilidade para trocar fraldas. Nossa hipótese é a de que a irrupção das manifestações desreguladas com o comer pode ter alguma relação com essa saída de cena do pai, primeira e fundamentalmente do campo do desejo e, num tempo posterior, com sua desaparição do plano propriamente físico.
Carla explicou brevemente aos filhos sobre as razões do desaparecimento do pai. Depois disso, pouco se falou a respeito na família. Seus poucos comentários são de natureza depreciativa. Demonstra intensa insatisfação com a não compreensão de Tiago de que o irmão mais velho "é o homem da casa", apesar da insistência por parte dela. Confiro legitimidade a esse estranhamento de Tiago, visto que o irmão não é o pai dele. Carla também relata, sob a justificativa de que o apartamento só conta com um cômodo e, devido à enurese noturna de Tiago, ela e o filho mais velho dormem na mesma cama, enquanto o mais novo dorme em um colchão ao lado. Apenas após minha reiterada intervenção para reverter essa situação, a fim de redistribuir as camas de cada um em uma lógica em consonância com a cadeia geracional, foi possível alcançar uma reconfiguração nesse cômodo.
A descoberta da gestação do primeiro filho foi descrita como uma surpresa com a qual ela acabou se acostumando ao longo dos meses. Entretanto, a notícia da gravidez de Tiago, pouquíssimo tempo depois de dar à luz o primogênito, foi difícil de suportar. Em suas palavras: "foi um susto pra mim, não acreditei". Seriam a "surpresa" e o "susto" dois nomes para o real da espera de uma criança que, por sua vez, denotam duas posições subjetivas distintas dessa mãe frente à chegada de um filho? Propomos situar a surpresa como uma resposta próxima à via do chiste, da tirada espirituosa que Freud designa como uma formação do inconsciente e que Lacan (1999) valoriza em sua vertente de invenção de um novo sentido que inclui o sujeito. A surpresa nesse encontro traumático com o real é subjetivada de modo ancorado no laço social. O susto também se relaciona à surpresa, como nos indica Freud (1920/1996d), por ser um afeto decorrente de um encontro traumático, assim como o medo e a angústia. No entanto, talvez o susto sugira um trabalho de subjetivação que ainda está por vir.
Após a separação do cônjuge, Carla volta a morar com a mãe, a qual passou a determinar ainda mais todas as suas decisões relacionadas à criação dos filhos. Ressente-se por ser muito agressiva, somente conseguindo exercer autoridade batendo neles, mas localiza esse impasse como um imperativo de mãe pelo qual não pôde ceder. Quando interpelada sobre sua implicação na escolha em conduzir as coisas dessa forma, afirma ser muito difícil se esquivar das imposições da mãe. Ao mesmo tempo, era a mãe quem trabalhava para sustentar a família. Manteve-se nessa posição objetificada a ponto de não se ocupar com a introdução dos filhos a hábitos compartilhados pela cultura, como, por exemplo, o treinamento esfincteriano e comer com talheres.
O início dos atendimentos com Tiago foi marcado por profunda agitação e grande agressividade verbal. Ordena que a analista cale a boca e sente no sofá, pois ela seria a paciente e ele o doutor. Logo em seguida, se afasta da analista e se acomoda próximo a uma mesa, começando a se entreter com alguns brinquedos. Quando é indagado sobre a brincadeira que havia proposto, diz de forma ofensiva, incluindo xingamentos para a analista ficar calada. Nada parece detê-lo, seu furor é arredio a qualquer interpretação. Depois começa a gritar agudamente. Em sessão posterior, ao repetir o mesmo ato, a analista tenta introduzir alguma noção de realidade à situação, colocando as mãos nos ouvidos e gemendo de dor pelo som alto e fino. Tiago interrompe imediatamente. No decorrer das sessões, essas irrupções, sem modulação alguma, diminuem e Tiago passa a se interessar por alguns jogos. Demonstra grande habilidade, ganhando muitas partidas, ocasiões em que exalta a si mesmo e deprecia a analista. Quando se percebe na iminência de perder uma partida, embaralha as peças. Para Tiago, o confronto com a possível perda se revela insuportável e então ele resolve mudar de atividade.
Se no começo fazia referência constante "ao aniversário da nossa filha", com a aproximação da época de seu aniversário, demonstra grande entusiasmo com a organização da festa e elege a analista como parceira nos preparativos: quer montar listas de convidados, dos pratos que serão servidos e dos ornamentos que enfeitarão o salão. No entanto, prefere não as escrever, logo mostrando grande insatisfação com a própria letra e me pedindo para redigi-las em seu lugar. Curiosamente, após o término de cada lista, se põe a riscar o que considera excessivo, monta um envelope de papel e o endereça à avó e à mãe. A analista o incentiva e o ajuda na construção desse circuito que suprime o excesso e inclui um apelo ao Outro.
Durante algumas sessões, Tiago é constantemente atraído pela janela da sala de atendimento, a qual não abre facilmente por ser pesada e por possuir uma trinca difícil de destravar. Tenta abri-la, apesar da frequente insistência da analista de que seu gesto era proibido porque estavam no décimo andar do prédio onde o atendimento se dava, o que tornaria a situação perigosa para crianças. Um dia, ele corre para dentro da sala antes da analista e aproveita o tempo em que esta fala com sua mãe, para conseguir levantar a janela. Frente à situação, lhe é dito: "Tiago, existe uma lei da universidade que não permite que crianças abram as janelas!", ao que ele retruca, com certo sarcasmo: "Ah! Agora tem lei! Agora tem lei, né?!". Embora esse não tenha sido o primeiro enfrentamento de Tiago no âmbito do que é permitido e do que é proibido, a partir desta sessão ele passa a conseguir produzir desenhos sem jogá-los fora mediante qualquer detalhe que considere defeituoso, como fazia até então.
Em uma sessão subsequente, diz que sua mãe se esqueceu de trazer o relatório da escola e comenta: "garota burra ela". Neste mesmo dia, foi preciso ir à secretaria buscar papel. Tiago é informado de que ali só podiam entrar adultos, ao que ele replica: "mas eu sou adulto". Pontua-se que a diferença geracional encontra-se invertida para ele, pois disse que a mãe é uma garota e ele é um adulto. Esta é uma questão que paulatinamente começa a despertar seu interesse. Em uma conversa com Carla na presença de Tiago, a analista estranha a alusão feita por ela a um primo que é nomeado com o mesmo grau de parentesco indiscriminadamente em relação a Tiago. A ele é perguntado: "Como ele pode ser seu primo e do Tiago? É impossível, já que vocês são mãe e filho!". Tiago toma a palavra para dizer que é possível sim. A mãe o corrige e retifica que se trata de um primo de primeiro grau dela e que, portanto, vem a ser primo de segundo grau dele. Tiago se surpreende com esta informação, o que aguça sua curiosidade de indagar sobre outros laços de parentesco: "O seu tio de primeiro grau é meu tio de primeiro grau?"; "Então a minha avó não é minha mãe também?"; "Mas mãe, você me disse que o meu avô é meu segundo pai, como ele pode ser meu pai e seu pai ao mesmo tempo?". Os esclarecimentos da mãe renovam seu desejo de saber sobre a árvore genealógica da família. Durante o período do tratamento, seu peso, que até então crescia ininterruptamente, se estabiliza.
A precariedade simbólica da transmissão parental e seus efeitos
Para a psicanálise, a concepção de saúde se enlaça ao movimento desejante e, portanto, não se desvencilha do pathos sexual. Nossa hipótese é a de que, nesta situação clínica que acaba de ser relatada, a obesidade infantil comparece como fenômeno indicativo dos impasses na subjetivação desse pathos sexual, isto é, da subjetivação pela criança de seu corpo como sexuado devido ao desarranjo discursivo, o que fragiliza seus processos de assunção da diferença sexual e de sua inscrição na sucessão geracional. A precariedade simbólica das funções parentais gera entraves que perturbam a constituição de Tiago enquanto sujeito em vias de advir. Vimos que tal processo depende da operatividade dos complexos de Édipo e de castração como os eixos simbólicos para o bordeamento do g ozo pela mediação da metáfora paterna. A notória confusão dos lugares familiares para este menino e sua mãe se configura como indicadora de impasses específicos desse percurso.
Como vimos, a transmissão parental de um desejo que não seja anônimo se arrima na forma particular como cada pai e cada mãe se situou fantasmaticamente frente ao real sexual. Os ditos de Carla anunciam sua posição maciçamente objetificada em relação à erotomania materna como um fator interditor que não a autoriza a assumir a função da maternidade de Tiago de modo mais desejante. Essa fixação fantasmática como objeto do gozo do Outro resvala na precariedade de sua consistência simbólica enquanto transmissora da mediação paterna. O pathos sexual é subsumido por sua relação com o amor materno. Lembremos que, para Lacan (1999), a metáfora paterna intervém primariamente através do discurso da mãe. A nomeação do que falta à mãe depende do consentimento da figura materna à palavra do pai: a mãe precisa condescender à castração e localizar o pai como exceção, como portador do falo cobiçado. O pai de Tiago é desfalicizado no discurso materno; pouco se fala dele, as poucas alusões são marcadas pelo tom depreciativo, pelo desencantamento. Por outro lado, a retirada de cena do pai do menino do campo do desejo e dos cuidados desertifica ainda mais essa intervenção separadora.
A obesidade de Tiago responde a esse funcionamento do casal parental, no qual o pai se encontra desmoralizado enquanto portador do falo e reina o universo da devoração materna, do corpo alienado ao Outro, não extraído do campo familiar. Como fruto dessa desregulação, o investimento fálico não dialetizado de Carla sobre o primogênito, em detrimento a Tiago, ecoa para este em suas performances e em seus traços femininos, como a voz, o que no tratamento também se atualizou através do brincar na identificação com a "filha que faz aniversário".
Os múltiplos atos sem modulação de Tiago, tais como os gritos, os rastejamentos, as dificuldades no sistema excretor e o comer desmedido são indicativos dessa posição indiferenciada do campo do Outro, em uma significativa vacilação da incidência do Nome-do-Pai como agente regulador dos gozos e da inserção na civilização. Sua devoração alimentar seria uma expressão de seu parasitismo face à voracidade do desejo materno sem mediação simbólica. Talvez esse caso nos ensine que o ato de devorar o objeto comida seja um desdobramento, na dimensão da gramática pulsional, de sua posição de objeto devorado. Esta inferência clínica nos remete à ponderação realizada por Lacan (1969/2003), em Nota sobre a criança, de que o sintoma infantil pode responder a duas circunstâncias da economia psíquica familiar: primeiramente, enquanto representante da verdade do casal parental; ou, ainda, pode comparecer como expressão de sua fixação na posição de objeto a da fantasia da mãe. Lacan localiza neste último caso o espectro dos sintomas somáticos e sustenta que essas situações são menos acessíveis à intervenção analítica, dado que a captura da criança como objeto materno é maior devido à escassez da mediação simbólica. A criança se encontra à mercê dessa dinâmica de modo maciço, enquanto puro corpo, diferentemente de sintomatologias mais afinadas ao plano dos deslizamentos na rede das representações. Ao mesmo tempo, o sintoma corporal se configura, segundo Lacan, como um "recurso inesgotável" na relação mãe-criança, a nosso entender, no campo do gozo, o que entrava qualquer espaço para a interrogação materna sobre o desejo.
No caso de Tiago, por mais que a mãe seja diretiva em relação às ordens e às proibições, sua palavra é claramente destituída de autoridade simbólica, esvaziada de valor efetivo de contenção do gozo para a criança. Proliferam os esforços contratuais na tentativa de negociar com a criança: foram todos em vão. Essa transmissão não é recoberta por uma ficção, isto é, por uma montagem simbólico-imaginária subjetivável. As ordens são experimentadas por ele como uma injunção superegoica devastadora, em que o supereu não provém da internalização da regulação paterna das pulsões pela via do ideal, mas como puro imperativo de gozo, como capricho materno. Supomos que os comportamentos desafiadores de Tiago são tentativas de enfrentamento desse mortífero imperativo e, quiçá, um apelo ao Outro simbólico.
Nesse sentido, a intervenção em que a analista inclui a dimensão institucional e remete a proibição de abrir a janela à lei que rege a universidade operou uma função decisiva sobre o trabalho de elaboração de Tiago. Embora a abertura da janela tenha sido impactante pelo fato de nos encontrarmos no décimo andar do prédio, a insistência pela estrutura da linguagem, ao invés de uma passagem ao ato interditor sem valência simbólica tal como as correntes nos móveis de sua casa viabilizou alguma inscrição psíquica. Ao evocar a instituição, pôde-se dar notícias a Tiago de algo acerca da submissão da analista à castração e da função do Outro na regulação de seu desejo, de acordo com o que é permitido e proibido no pacto social. Essa inflexão retira a lei do regime do capricho arbitrário materno, instaurando o nível da transmissão da castração simbólica. A produção decorrente de seu desenho testemunha seu consentimento com a dimensão da perda naquele momento, permitindo-lhe jogar o jogo onde "quem perde ganha", como nos diz Lacan (1995): assim, Tiago pôde ceder da disruptiva tendência à destruição para ganhar algo no campo do sentido, um desenho.
A marca do excesso corporal e a entrega à pulsão de morte insurgem a partir de uma claudicação no percurso de metaforização. O real do sexo não é situado pelo significante fálico, pela "dietética fálica". No entanto, o fato de Tiago ser um aluno engajado e suas significativas respostas às intervenções clínicas podem indicar uma incipiente abertura desse menino à retificação discursiva, a partir de possíveis encarnações desse Outro simbólico no âmbito da escola e da transferência analítica.
Estamos aqui diante de um caso que traz uma marca contemporânea por ilustrar uma das faces do que atualmente se localiza como um declínio das funções simbólicas dos pais na atualidade (Cottet, 2007). A erosão dos papéis parentais na conatemporaneidade, com a supressão dos tabus e a difusão do ideal permissivo, culmina, segundo Cottet, no recalque da questão do sexo, da transmissão e do mistério que é para a criança a união e a desunião de seus pais. Para Cottet, a versão moderna da "sua majestade, o bebê" freudiana é a abolição da diferença geracional: a criança é posta em igualdade com os adultos, detendo seus próprios direitos, o que pode resultar no apagamento de seu estatuto de criança. Os efeitos dessas transformações também são localizáveis na posição subjetiva assumida pelas figuras parentais, para quem as restrições no campo do gozo também não parecem suficientes para conduzir a uma responsabilização efetiva por suas funções.
A presença da obesidade infantil no caso que acompanhamos nos conduz à interrogação sobre a especificidade dessa clínica. As coordenadas que extraímos da escuta dessa situação nos permitem conjecturar a presença do fenômeno da obesidade como um sintoma infantil contemporâneo que localiza no excesso alimentar e na deformação corporal o desarranjo em jogo nos semblantes parentais. Essa é uma questão que mereceria especial atenção, na medida em que dados epidemiológicos atestam um aumento epidêmico de casos de obesidade infantil em escala mundial nas últimas décadas (Machado, 2009).
A saúde pública vem se ocupando desse fenômeno, tomando-o como objeto de estudo e intervenção. Sua periculosidade é considerada acentuada principalmente por contribuir para a manifestação de doenças graves na infância (Organização Mundial de Saúde, 2009). Frente à divulgação de dados que apontam o aumento exponencial da prevalência da obesidade no Brasil e indicam que o excesso alimentar está se tornando um problema mais proeminente que o déficit, confere-se ao SUS um papel central na atenção a esse tipo de caso (Dobrow, Kamenetz, & Delvin, 2002).
A casuística da obesidade não é consensual, nem unilateral, o que convida diversas áreas a se posicionarem; todas essas convergem para uma leitura etiológica multifatorial do fenômeno. A obesidade infantil, inserida no escopo mais amplo das obesidades, tornou-se, assim, um sintoma a ser erradicado e, portanto, alvo de estudos epidemiológicos e bioquímicos que culminaram na criação de projetos de prevenção médica-nutricional na interface, com medidas educativas e lúdicas. Essa leitura se encontra afinada com uma apreensão mais comportamentalista do fenômeno, de acordo com a qual a obesidade consiste em um transtorno do comportamento resultante do consumo exacerbado de comida quando comparado ao dispêndio de energia. Evidencia-se a importância de atentar para aspectos ditos comportamentais e sociais relativos à alimentação inadequada, ao sedentarismo e às mudanças socioeconômicas e culturais geradoras de um maior consumo de alimentos industrializados (Dobrow et al., 2002; Machado, 2009; Organização Mundial de Saúde [OMS], 2009).
Ainda no que se refere aos textos encontrados sobre essa temática, é curiosa a escassez de observações mais precisas a respeito do funcionamento psíquico da criança, de sua relação com os pais e familiares, da dinâmica familiar, ou ainda de sua participação no progresso ou no fracasso do acompanhamento. A predominância do paradigma genético-biológico é notória. Acredita-se que a obesidade possa ser produto, em última instância, de uma vulnerabilidade genética mediada por um ambiente promotor da doença. Os chamados "genes da obesidade" exerceriam efeito ao interferir nos componentes do dispêndio de energia que são passíveis de controle consciente ou influenciando sistemas, como, por exemplo, a regulação do apetite, que impulsionam o comportamento consciente (Azeredo & Martins, 2012; Dobrow et al., 2002; Machado, 2009).
Não é finalidade da psicanálise enquadrar a obesidade infantil em uma fenomenologia psiquiátrica de ordem classificatória que eliminaria de cena a criança enquanto sujeito em vias de advir. As situações marcadas pela presença da obesidade infantil nos convocam a problematizar qual o modo de gozo em questão e como se dá a presentificação do excesso pulsional em jogo no ato de comer. Assim, nos indagamos sobre qual a dinâmica subjetiva familiar da qual emerge esse quadro e se podemos inferir sua função no plano psíquico. Questionamos, assim, se impasses no campo dessa dietética do gozo, em função da fragilidade do processo de metaforização como destino para a pulsão, não teriam relação com a manifestação da obesidade infantil. A marca da compulsão à repetição e do excesso pulsional desmesurado pela via da oralidade seriam índices da precariedade simbólica no enfretamento do excesso pulsional.
Diante do dilaceramento desse aparato discursivo que, ao tornar a criança sintoma do desejo de seus pais, permitia o enlaçamento de suas pulsões às exigências da civilização, a direção clínica do caso de Tiago foi orientada pela aposta nos possíveis efeitos terapêuticos de intervenções que possam fazer suplência aos lugares discursivos das funções paterna e materna, a partir da inscrição da diferença geracional e da dissimetria entre os sexos.
REFERÊNCIAS
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Recebido em outubro de 2014.
Aceito em junho de 2015.