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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.21 no.2 São Paulo ago. 2016

https://doi.org/http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p497-515 

DOI: http//dx.doi.org/0.11606/issn.1981-1624.v21i2p497-515

FUNDAMENTOS

 

O corpo na dor: automutilação, masoquismo e pulsão

 

The body in pain: self-harm, masochism and drive

 

El cuerpo en el dolor: automutilación, masoquismo y pulsión

 

Juliana Falcão Barbosa de AraújoI; Daniela Scheinkman ChatelardII; Isalena Santos CarvalhoIII; Terezinha de Camargo VianaIV

IPsicóloga da Secretaria de Políticas para Crianças, Adolescentes e Juventude do Distrito Federal (DF). Doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil
IIPesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil
IIIDoutora em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora do programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Luís, MA, Brasil
IVProfessora Associada do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo discutir a relação entre corpo e dor na psicanálise. Tomamos como objeto de análise a automutilação – o ato de machucar o próprio corpo deliberadamente. A automutilação é uma questão clínica frequente nos consultórios dos psicólogos e psicanalistas, especialmente em clínicas com adolescentes. É um tema abordado pela psiquiatria, pois muitas pessoas que se machucam são encaminhadas para tratamento psiquiátrico, frequentemente medicamentoso. Na psiquiatria, a automutilação é considerada tanto como um sintoma de alguns transtornos mentais quanto um transtorno em si mesmo. Neste artigo, vislumbramos apresentar uma leitura da automutilação em sua relação com os destinos da pulsão e com o conceito de masoquismo desenvolvido por Freud.

Descritores: automutilação; dor; corpo; masoquismo; pulsão.


ABSTRACT

This article aims to discuss the relation between body and pain in psychoanalysis. We take self­harm – the act of deliberately injuring one's own body – as object of analysis. Self­harm is a common clinical matter in psychologists and psychoanalysts' practice, especially in clinic with teenagers. It is a theme addressed by psychiatry, since many people who hurt themselves are sent to psychiatric treatment, often with medication. In psychiatry, self­harm is considered both as a symptom of some mental disorders and as a disorder itself. In this article, we aim to present a view of self­harm in its relation to the concept of masochism developed by Freud.

Index terms: self­harm; pain; body; masochism; drive.


RESUMEN

En este texto se pretende discutir la relación entre cuerpo y dolor en psicoanálisis. El objeto de análisis es la automutilación –el acto de causar daño al propio cuerpo deliberadamente. La automutilación es una cuestión clínica común en las clínicas de los psicólogos y psicoanalistas, especialmente en la clínica con adolescentes. Es un tema abordado por la psiquiatría, ya que muchas personas que se lastiman son enviadas a tratamiento psiquiátrico, frecuentemente con utilización de medicamentos. En psiquiatría, la automutilación es considerada tanto un síntoma de algunos trastornos mentales como una molestia. En este trabajo vamos a presentar una lectura de automutilación en su relación con la pulsión y con el concepto de masoquismo, desarrollado por Freud.

Palabras clave: automutilación; dolor; cuerpo; masoquismo; pulsión.


 

 

Considerações preliminares

Em várias culturas – primitivas, modernas e contemporâneas – o corpo é utilizado para comunicação. Além dos adornos usados no corpo com o objetivo de comunicar identidade, status, fé etc., também verificamos ao longo da história as marcas corporais derivadas de lesões autoinfligidas. Costa (2014), em seu livro Tatuagem e marcas corporais: atualizações do sagrado, questiona por que os homens começaram a tatuar-se, fazer piercing, escarificar-se ou mesmo mutilar-se. Para ela, o fato de que sociedades tribais tenham usado marcas corporais em rituais de passagem traz-nos uma questão importante. Ela afirma que o ritual coloca em causa a passagem de um estado a outro, o que diz respeito à transposição de uma perda. Há rituais em ocasião de nascimento, morte e também na passagem da infância para a adolescência.

Assim, a automutilação não é uma prática nova, já que há muito tempo se apresenta na história. Neste trabalho, no entanto, não estamos nos referindo às automutilações praticadas em grupo ou como ritos de passagem, mas àquelas que são em geral praticadas solitariamente e que podem sinalizar sofrimento psíquico.

Quando abordamos a automutilação, estamos nos referindo a pessoas que machucam o próprio corpo de formas diversas, por meio de cortes, queimaduras, autoespancamento, entre outras. Segundo a definição dos Descritores em Ciências da Saúde (Biblioteca Virtual em Saúde, 2015), automutilação é o “ato de lesar o próprio corpo, até o ponto de cortar ou destruir permanentemente um membro ou outra parte essencial do corpo”. Também é possível encontrar uma relação com o termo “conduta auto-lesiva” (correspondente ao termo em inglês self­injurious behavior ) que, segundo o DeCS, significa “ato de se machucar ou de fazer mal a si mesmo sem que haja intenção de suicídio ou perversão sexual”.

A automutilação é uma questão clínica que tem aparecido com frequência nos consultórios dos psicólogos e psicanalistas, assim como nas escolas, especialmente entre os adolescentes. É também um tema tratado pela psiquiatria, de modo que muitas pessoas que machucam o próprio corpo são encaminhadas para tratamento psiquiátrico, frequentemente medicamentoso. Uma forma de leitura dessa questão é que a automutilação se configura como um sintoma de alguns transtornos mentais. Na leitura médica e psiquiátrica, o sintoma é algo que geralmente deve ser eliminado (ou tratado) para que o sujeito volte ao estado anterior de saúde. Outra leitura, adotada também pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), é que a automutilação, em si mesma, é um transtorno.

Neste artigo, vislumbramos apresentar uma leitura da automutilação em sua relação com a noção de masoquismo desenvolvida por Freud, assim como com um dos quatro destinos da pulsão identificados por ele – o voltar-se contra a própria pessoa – na forma de infligir dor a si próprio, lesionando o próprio corpo.

A depender da leitura que se faça, a automutilação é vista como um sintoma de alguns transtornos mentais. De acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID-10, versão 2008), “transtorno” não é um termo exato, porém é usado para indicar a existência de um conjunto de sintomas ou comportamentos clinicamente reconhecíveis associados, na maioria dos casos, a sofrimento e interferência com funções pessoais. Encontramos a automutilação citada na CID-10 em “F98.4 – Estereotipias motoras”, que aparece com a seguinte definição:

Transtorno caracterizado por movimentos intencionais, repetitivos, estereotipados, desprovidos de finalidade (e frequentemente ritmados), não ligado a um transtorno psiquiátrico ou neurológico identificado. Os comportamentos estereotipados automutiladores compreendem: bater a cabeça, esbofetear a face, colocar o dedo nos olhos, morder as mãos, os lábios ou outras partes do corpo. Os movimentos estereotipados ocorrem muito habitualmente em crianças com retardo mental (neste caso, os dois diagnósticos devem ser registrados) (Organização Mundial da Saúde, 2008).

É possível também verificar a automutilação em “X60-X84 – Lesões autoprovocadas intencionalmente”, que incluem: lesões ou envenenamento autoinfligidos intencionalmente; suicídio (tentativa); lesão autoprovocada por objeto contundente, por enforcamento, estrangulamento, entre outras.

No DSM-5, atos de automutilação aparecem, por exemplo, na forma de um transtorno específico, ou exclusivo, no Transtorno de Escoriação (Skin-Picking) – 698.4 (L98.1), que tem como critérios diagnósticos “Beliscar a pele de forma recorrente, resultando em lesões; tentativas repetidas de reduzir ou parar o comportamento de beliscar a pele; o ato de beliscar a pele causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional” (American Psychiatry Association, 2014, p. 254). Vale destacar que o “Transtorno de Escoriação” foi incluído no DSM-5. É considerado, portanto, algo recente, já que não estava especificado dessa forma na edição anterior (4ª).

A automutilação está presente também como um sintoma no Transtorno de Personalidade Borderline – 301.83 (F60.3). A automutilação faz parte do quinto critério dos que compõem os critérios diagnósticos para esse transtorno: “Recorrência de comportamento, gestos ou ameaças suicidas ou de comportamento automutilante” (American Psychiatry Association, 2014, p. 663). Na descrição das características diagnósticas para esse transtorno, encontramos que:

Aspessoas com Transtorno de Personalidade Borderline apresentam, de maneira recorrente, comportamento, gestos ou ameaças suicidas ou comportamento automutilante (Critério 5). O suicídio completado ocorre em 8 a 10% desses indivíduos, e os atos de automutilação (por ex., cortes ou queimaduras), ameaças e tentativas de suicídio são muito comuns... A automutilação pode ocorrer durante experiências dissociativas e frequentemente traz alívio pela reafirmação da capacidade de sentir ou pela expiação do sentimento de ser mau (American Psychiatry Association, 2014, p. 665).

A automutilação é citada, ainda, em Amnésia Dissociativa – 300.12 (F44.0). Nas características associadas que apoiam o diagnóstico, lê-se: “Histórias de trauma, abuso infantil e vitimização são comuns. Alguns indivíduos com amnésia dissociativa relatam flashbacks dissociativos (i.e., revivência comportamental de eventos traumáticos). Muitos têm história de automutilação, tentativas de suicídio e outros comportamentos de alto risco” (American Psychiatry Association, 2014, p. 299).

Pode-se verificar a automutilação também em Transtorno Dissociativo de Identidade – 300.14 (F44.81), novamente na lista das características associadas que apoiam o diagnóstico, juntamente com abuso de substância, depressão, ansiedade. É relatado que automutilação e comportamento suicida são frequentes. Aparecem também questões diagnósticas relativas ao gênero, afirmando que “Mulheres com o transtorno apresentam-se com mais frequência com estados dissociativos agudos (p.ex. flashbacks, amnésia, fuga, sintomas neurológicos funcionais [conversão], alucinações e automutilação)” (American Psychiatry Association, 2014, p. 295).

 

Primeiras referências na literatura acadêmica sobre a automutilação

Desde a metade do século XIX, existem nos Estados Unidos vários artigos sobre estudos de caso na literatura médica sobre as formas mais severas de automutilação. Esses eram principalmente sobre psicóticos que tinham incidentes isolados de automutilação extrema – geralmente induzidos por alucinações ou ilusões de fundo religioso –, como enucleação dos olhos ou castração.

Entre a metade e o final do século XIX, foram registrados vários relatos de casos de mulheres, então diagnosticadas como histéricas, que furavam suas peles com agulhas. “Uma 'garota agulha', como eram chamadas na época, teve 217 agulhas extraídas de seu corpo num período de 18 meses. Outras 100 agulhas foram encontradas no ombro de uma jovem holandesa” (Strong, 1998, p. 30).

Segundo Turner (2002), o primeiro artigo sobre automutilação publicado na literatura médica, em 1846, foi um relato de caso de uma viúva maníaco-depressiva de 48 anos que removeu seus pró prios olhos. Ela cometeu a enucleação porque sentia que seus olhos a estavam levando a desejar homens e, consequentemente, a pecar.

O primeiro avanço relevante no entendimento moderno da automutilação foi feito por Karl Menninger, um psicanalista e psiquiatra graduado em Harvard que cofundou a Clínica Menninger em Topeka, no Kansas (EUA), com seu pai e seu irmão. Karl Menninger foi presidente da Associação Psicanalítica Americana (American Psychoanalytic Association).

Em 1934, Menninger escreveu sobre a automutilação sob uma visão teórica psicanalítica. Ele acreditava que a automutilação continha três elementos essenciais: agressão voltada para o interior, que frequentemente é sentida em relação a um objeto exterior de amor-ódio, geralmente um dos pais; estimulação, com uma intenção sexual ou puramente física; e uma função autopunitiva que permite que a pessoa compense ou pague por um “pecado” de natureza agressiva ou sexual (Strong, 1998).

Para Menninger (1938/1966), enquanto aparentemente é uma forma de suicídio atenuada ou parcial, a automutilação é um tipo de acordo para evitar a total aniquilação da pessoa, ou seja, o suicídio. Nesse sentido, ela representa uma vitória, às vezes uma vitória pírrica, da pulsão de vida sobre a pulsão de morte. Percebemos que, da forma como Menninger pontua, as pulsões de vida e morte assumem uma relação dicotômica, o que se diferencia do modo como Freud aborda as pulsões.

Essa vitória pírrica a que Menninger se refere, é uma expressão utilizada para expressar uma vitória obtida a alto preço, potencialmente acarretando prejuízos irreparáveis. A expressão tem origem em Pirro, general grego que, tendo vencido a Batalha de Ásculo contra os romanos com um número considerável de mortes, ao receber os parabéns pela vitória, teria dito, preocupado: “Mais uma vitória como esta, e estou perdido”.

Em 1938, Menninger escreveu o livro Man against himself (traduzido para o português como Eros e Tânatos: o homem contra si próprio, publicado no Brasil em 1970). A edição que consultamos para a escrita deste artigo é original em inglês, publicada em 1966. Nesta, ele escreveu especificamente sobre automutilação e o livro foi considerado inovador sobre o assunto na época. Ele reforçou seu argumento contra a noção popular de que tentativas de se machucar ao cortar a própria pele fossem simplesmente uma tentativa de suicídio. Menninger disse que os automutiladores estavam, na verdade, tateando, buscando um meio de se autocurar e autopreservar. A automutilação representava um sacrifício de uma parte do corpo pelo bem de todo o corpo (Menninger, 1938/1966).

Segundo Strong (1998), a pesquisa mais extensiva sobre quem são os automutiladores e quão difundida é a prática da automutilação talvez seja a conduzida por Armando Favazza, um professor de psiquiatria da universidade de Missouri, em Columbia, e cofundador da Sociedade para o Estudo de Psiquiatria e Cultura (Society for the Study of Psychiatry and Culture). Sua estimativa sugere que em torno de dois milhões de americanos se cortam ou se queimam intencionalmente a cada ano.

Em seu livro Bodies under siege (sem tradução para o português), Favazza (1987/1996) classificou a automutilação em três categorias: grave; estereotipada; e superficial/moderada. A classificação foi baseada no grau de danos no corpo e na frequência, cada uma contendo suas próprias raízes e motivações. A automutilação grave inclui atos drásticos como remoção dos olhos, castração e amputação de membros, que são associados à psicose e intoxicação. Muitos desses casos possuem significados religiosos ou sexuais e alguns sujeitos relatam que são direcionados por Deus a se mutilarem como punição por pecados sexuais. O autor verificou que esses automutiladores sentem pouca dor na hora do ato e pouco arrependimento depois. É como se seu ato de automutilar tivesse resolvido o conflito dentro deles.

Automutilação estereotipada se refere a atos como bater a cabeça repetitivamente, se morder e se arranhar. Esses comportamentos rítmicos e repetitivos são comumente associados a sujeitos autistas e com síndrome de Tourette. Automutilação superficial/moderada geralmente inclui pessoas que utilizam uma variedade de objetos cortantes ou pontiagudos para cuidadosamente fazer cortes superficiais na pele (Favazza, 1987/1996).

Em seguida, Favazza (1987/1996) classificou a automutilação superficial/moderada em três subtipos: compulsivo, episódico e repetitivo. Cortar-se, queimar-se e quebrar os próprios ossos podem ser tanto episódicos quanto repetitivos. A diferença está na frequência e na importância que esses atos assumem na vida do sujeito. Automutilação compulsiva refere-se a um comportamento que é automático, sem que a pessoa pense muito antes de agir, geralmente ocorre em resposta a uma ânsia repentina de se machucar e promove um alívio da ansiedade. O tipo mais pesquisado da automutilação compulsiva é a tricotilomania (ato repetitivo e deliberado de arrancar os próprios cabelos da cabeça, sobrancelha e genitais). Automutiladores repetitivos se machucam cronicamente e desenvolvem uma identidade fixa em torno da automutilação. Automutilação episódica ocorre periodicamente como um sintoma ou uma característica associada a alguns transtornos como stress pós-traumático, depressão, transtornos dissociativos ou transtorno de personalidade Borderline.

 

Pulsão e masoquismo

Parte da incompreensão acerca do porquê de uma pessoa se mutilar refere-se a uma pulsão primária dos seres humanos, que é a evitação da dor e a obtenção do prazer (princípio do prazer). A prática da automutilação inclui o ato de infligir dor a si próprio, o que é inconcebível para a maioria das pessoas. Vem daí também a dificuldade de discussão sobre o assunto, entre automutiladores e pessoas próximas, como familiares e amigos.

Podemos encontrar em Freud algumas formulações teóricas que auxiliam na leitura da dinâmica pulsional. Particularmente em seu texto “O problema econômico do masoquismo”, de 1924, Freud aborda a questão da mescla de pulsões e admite a existência de um lado masoquista da pulsão, cuja satisfação está associada à dor e ao desprazer. Para ele, “toda dor contém em si a possibilidade de uma sensação prazerosa” (Freud, 1924/1996, p. 151). Nesse mesmo texto, ele assevera que não se pode duvidar que há tensões prazerosas e relaxamentos desprazerosos de tensão.

Podemos encontrar na literatura sobre automutilação depoimentos que falam sobre esse acúmulo de tensão seguida do relaxamento após a descarga. Muitos automutiladores inclusive comparam o prazer dessa descarga com o orgasmo obtido por meio da masturbação ou do ato sexual. Strong (1998) relata em seu livro que uma semana antes de entrevistar um homem de 43 anos chamado Lukas, este havia cortado seu braço com uma lâmina e perfurado uma artéria, o que o fez precisar de uma transfusão de um litro de sangue. “Lukas disse: '... a sensação que eu tenho quanto atinjo uma veia e o sangue sai é melhor que qualquer coisa. É melhor que beber, melhor que qualquer droga que eu já usei, melhor que sexo” (Strong, 1998, p. 10).

As formulações de Freud acerca do masoquismo em “O problema econômico do masoquismo” diferem consideravelmente da maneira pela qual ele entendia as pulsões até então. No “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” ele aborda a questão do masoquismo ao falar das perversões. No primeiro ensaio, Freud fala sobre o sadismo e o masoquismo apontando que estas são as mais frequentes e significativas de todas as perversões. Dando crédito a outro autor pela nomenclatura, ele aponta que “A inclinação a infligir dor ao objeto sexual, bem como sua contrapartida... foram denominadas por Krafft-Ebing, em formas ativa e passiva, de 'sadismo' e 'masoquismo' (passivo)” (Freud, 1905/1996, p. 149).

No tocante ao sadismo, Freud afirma que suas raízes são fáceis de identificar nas pessoas normais, pois a sexualidade da maioria dos homens exibe uma mescla de agressão, de inclinação a subjugar. Sobre o conceito de sadismo na linguagem corriqueira, o autor aponta que este “oscila desde uma atitude meramente ativa ou mesmo violenta para com o objeto sexual até uma satisfação exclusivamente condicionada pela sujeição e maus-tratos a ele infligidos. Num sentido estrito, somente este último caso extremo merece o nome de perversão” (Freud, 1905/1996, p. 150, grifos nossos). De maneira similar, explica que a designação de masoquismo abrange todas as atitudes passivas perante a vida sexual e o objeto sexual, a mais extrema das quais parece ser o condicionamento da satisfação ao padecimento de dor física ou anímica advinda do objeto sexual.

Para Freud (1905/1996, p. 150), “O sadismo e o masoquismo ocupam entre as perversões um lugar especial, já que o contraste entre atividade e passividade que jaz em sua base pertence às características universais da vida sexual”. Continuando a descrição do sadismo, ele afirma que a crueldade e a pulsão sexual estão intimamente correlacionadas, completando que isso nos é ensinado, acima de qualquer dúvida, pela história da civilização humana.

Fica claro nesse texto que, para Freud, a libido é a força dominante. Outras forças que serviriam para impedir o ato sexual (asco, vergonha e dor) são superadas pela libido. Freud se refere ao “asco” quando fala da tomada de outras partes do corpo (como lábios, boca e ânus) em lugar do alvo sexual; refere-se à vergonha quando fala sobre o prazer de ver e ser visto (voyeurismo e exibicionismo); e refere-se à dor quando fala sobre o sadismo e o masoquismo. No entanto, para ele, tanto a vergonha quanto o asco e a dor podem ser superados quando a libido está em ação, conforme afirma na seção sobre sadismo e masoquismo, na citação seguinte: “A dor, que com isso é superada, alinha-se com o asco e a vergonha que se opunham à libido como resistência” (Freud, 1905/1996, p. 150).

No segundo ensaio Freud retoma a pulsão de causar dor (sadismo) ao falar sobre a manifestação desse comportamento na infância. Ele diz que já nas crianças é possível perceber componentes de crueldade da pulsão sexual. Para ele, a crueldade é perfeitamente natural no caráter infantil, já que a trava que faz a pulsão de dominação deter-se ante a dor do outro – a capacidade de compadecer-se – tem um desenvolvimento relativamente tardio.

Mais adiante, em 1915, Freud publicou o texto sobre os destinos da pulsão. Destacamos que para a escrita deste artigo foi consultada a edição da Companhia das Letras, “Os instintos e seus destinos”, na qual o termo “instinto” é utilizado no lugar de pulsão, e repressão, no lugar de recalque. Freud reconheceu quatro destinos possíveis para a pulsão: a reversão no contrário, o voltar-se contra a própria pessoa, a repressão e a sublimação. A reversão no contrário se divide em dois processos distintos, a conversão da atividade em passividade e a inversão de conteúdo. Exemplos do primeiro processo se acham nos pares de opostos, sadismo-masoquismo e voyeurismo-exibicionismo. A volta contra a própria pessoa seria sugerida pela consideração de que o masoquismo é, na verdade, um sadismo voltado contra o próprio Eu, e o exibicionismo inclui a contemplação do próprio corpo. Especialmente o “voltar-se contra a própria pessoa” é um destino da pulsão facilmente verificável no contexto que estamos abordando, o da automutilação.

É possível perceber que até este ponto – e mesmo até “Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais.” (1919/1996) – Freud não reconhecia a existência de uma pulsão masoquista primária. Para ele, o masoquismo seria sempre derivado de um sadismo, que se voltaria contra o próprio Eu. Assim, a primeira teoria das pulsões de Freud parecia não dar conta do problema econômico que o masoquismo impunha. Até 1920, ou até “Além do princípio do prazer” (Freud, 1920/1996), o desprazer coincidia, para Freud, com uma elevação da tensão psíquica e o prazer com o rebaixamento dessa tensão. Contudo, posteriormente ele identifica que existem tensões prazerosas e relaxamentos desprazerosos de tensão, o que indica que o prazer e o desprazer não podem ser descritos a partir de um fator quantitativo, mas apenas qualitativo.

Posteriormente, ele reformulou e relacionou o princípio do prazer tanto às pulsões de vida (libidinais) quanto às pulsões de morte (destrutivas). Ao introduzir sua segunda tópica, em 1920, Freud corrige o que vinha estabelecendo até então em termos do masoquismo e das pulsões. Ele então confirma a possibilidade de haver um masoquismo primário.

É apenas em “O problema econômico do masoquismo” (1924/1996) que Freud desenvolve minuciosamente sua teoria acerca do problema econômico que o masoquismo impõe para a vida psíquica. Ele inicia o texto afirmando que a existência de uma tendência masoquista na vida pulsional dos seres humanos pode ser descrita como misteriosa desde o ponto de vista econômico. Se os processos mentais são governados pelo princípio do prazer de modo tal que seu primeiro objetivo é a evitação do desprazer e a obtenção do prazer, o masoquismo seria incompreensível.

Nesse texto, Freud admite a existência de um masoquismo primário, ou erógeno, que não dependeria do sadismo. Segundo ele, nos organismos multicelulares, a libido enfrenta a pulsão de morte ou destruição neles dominante e procura conduzir cada organismo unicelular que o compõe para um estado de estabilidade inorgânica. Assim, a libido tem a missão de tornar inócua a pulsão destruidora e a realiza desviando-a para fora, no sentido de objetos do mundo externo. A pulsão é então chamada de destrutiva, de domínio ou de vontade de poder. Uma parte dela é colocada a serviço da função sexual, porém outra porção não compartilha dessa transposição para fora; permanece dentro do organismo e lá fica libidinalmente presa. É nessa porção que se identifica o masoquismo original, erógeno (Freud, 1924/1996).

Ainda nesse texto, Freud (1924/1996) descreve que do masoquismo erógeno se derivariam outros dois tipos: um masoquismo feminino e um masoquismo moral. Na observação do masoquismo feminino nos homens, Freud percebeu que as fantasias masoquistas foram ricamente elaboradas, e descobriu que elas colocavam o indivíduo numa situação caracteristicamente feminina; elas significavam, assim, ser castrado, ser copulado, ou dar à luz um bebê. Por essa razão, chamou essa forma de masoquismo de forma feminina, embora tantas de suas características apontassem para a vida infantil.

Para Freud (1924/1996), ser castrado – ou ser cegado, que o representa – com frequência deixa um traço negativo de si próprio nas fantasias, na condição de que nenhum dano deveria ocorrer precisamente aos órgãos genitais ou aos olhos. Ele afirma que também um sentimento de culpa encontra expressão no conteúdo manifesto das fantasias masoquistas, de modo que o indivíduo presume que cometeu algum crime (cuja natureza é deixada indefinida), a ser expiado por todos aqueles procedimentos penosos e atormentadores.

Seguindo as formulações de Freud (1924/1996) sobre o masoquismo, o fator da culpa no masoquismo feminino fornece uma transição para a terceira forma de masoquismo, a moral. Esse masoquismo descrito também se baseia inteiramente no masoquismo primário, erógeno, no prazer no sofrimento. Como é possível verificar em fantasias masoquistas ligadas ao ato sexual, muitos praticantes sadomasoquistas encenam situações nas quais uma das pessoas comete uma transgressão e, assim, é punida pela outra. Freud discorreu sobre o assunto, inicialmente adotando o termo “sentimento inconsciente de culpa” para explicar esse mecanismo de transgressão-punição, abandonando-o mais tarde para adotar o termo “necessidade de punição”.

Na experiência clínica, com certa frequência escutamos falas de automutiladores que relatam a realização de atos considerados errados por eles próprios, seguidos de automutilações, como uma forma de expiar a culpa. É uma culpa que é relatada pelos pacientes em situações de sua história e de seu cotidiano atual como justificativas para a automutilação. Contudo, suas falas indicam que, para eles, há uma dialética na relação prazer-desprazer que aponta para uma questão que não lhes é possível elaborar por meio da palavra. Eles precisam mostrar através do próprio corpo.

Para Freud (1924/1996), o sadismo que retorna ao eu pode ser explicado pela “supressão cultural dos instintos”. Ele acreditava que a supressão de um instinto ou o conter-se em relação a uma agressão contra os outros poderia resultar num sentimento inconsciente de culpa ou numa consciência mais severa.

 

Considerações finais

Ao depararmos com uma questão clínica como a automutilação, percebemos que muitas são as leituras possíveis a serem realizadas. Quando chegam aos consultórios dos psicólogos, psiquiatras e psicanalistas, os sujeitos que se mutilam, em geral, causam um espanto ou um estranhamento. Esse estranhamento pode ser explicado a partir de uma formulação simples, desenvolvida por Freud, de que o impulso dos seres humanos é, a princípio, o de evitar a dor e buscar o prazer. Percebe-se, a partir da experiência clínica, que o estranhamento e a preocupação com as pessoas que se mutilam partem frequentemente de familiares, amigos, educadores e cuidadores. Muitos adolescentes que chegam aos consultórios e serviços de saúde são trazidos por seus pais.

Existem formas diferentes de realizar leituras sobre a automutilação, por exemplo, como um sintoma de um transtorno mental ou como um transtorno mental em si mesmo. Foi possível perceber que a psiquiatria aborda a automutilação como um sintoma de alguns transtornos mentais, no entanto, na última edição do DSM, esse ato foi incluído como uma categoria nosográfica própria, enquanto um transtorno específico (Escoriação ou Skin Picking) guarda algumas diferenças em relação a outras práticas de automutilação. Para os que desejam um tratamento, este em geral é realizado por meio de psicoterapia e medicamentos.

Uma dificuldade encontrada, no âmbito clínico, é acerca do diagnóstico e do próprio termo. Ainda não existe, no Brasil, uma padronização terminológica para se referir às pessoas que se machucam de maneiras diversas. É possível encontrar os termos automutilação, autolesão, autoflagelação, escarificação, escoriação, marcas corporais, entre outros.

A partir da leitura psicanalítica, é possível pensar algumas questões concernentes a esse tema em relação às pulsões e ao masoquismo. Embora Freud não tenha utilizado esse termo (automutilação) e nem mesmo tenha se referido especificamente a esse ato, a partir da leitura do funcionamento das pulsões podemos fazer uma análise aproximada sobre essa questão. Partindo da leitura de Freud, fica claro que agressões contra si mesmo fazem parte dos destinos possíveis da pulsão. A depender do grau em que ocorre, pode-se pensar numa manifestação a nível patológico – e realmente perigosa para a integridade física do sujeito – ou não.

Na obra de Freud, especialmente nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, é possível perceber que palavras como “extremo”, “exclusivo”, “único, “fixado” e “condicionado” aparecem com frequência no texto. Essas condições seriam então determinantes para a diferenciação do que seria uma variação da pulsão num nível normal, ou num nível patológico. Podemos seguir essa linha de pensamento ao abordar os atos de automutilação no sentido de avaliar como se apresentam e a que podem estar se referindo para aquele que os pratica.

É válido levar em consideração as formulações freudianas acerca dos destinos pulsionais e do masoquismo no sentido de, na clínica psicanalítica, nos afastarmos da ideia de que as pessoas que se machucam deliberadamente precisam necessariamente de uma “cura” ou tratamento. É preciso um trabalho de escuta, cujo tempo será de acordo com o desejo de cada sujeito e a avaliação de cada caso, para se identificar o sentido da automutilação e o que ela representa pulsionalmente.

Ao pensarmos no masoquismo, inclusive a partir de uma questão econômica, como postulou Freud, é possível aceitar que algumas pessoas busquem descargas de tensão a partir da dor. Se fizermos uma leitura a partir da fisiologia, podemos mencionar o que Strong (1998) cita em alguns trechos de seu livro. Ela afirma que os cortes no corpo liberam endorfina, uma substância reconhecida por causar sensação de bem-estar, anestesia e alívio.

Ao pensarmos na existência de um masoquismo primário (erógeno), como teorizou Freud a partir de 1924, é preciso questionar o espanto causado pela automutilação, visto que esta não está distante ou fora da normalidade, já que “toda dor contém em si a possibilidade de uma sensação prazerosa” (Freud, 1905/1996, p. 151). A automutilação poderia ser considerada mais uma tendência comum aos seres humanos do que um desvio do que seria o padrão, ou o normal. Nesse sentido, parece-nos mais lógico que não tomemos a automutilação como um transtorno, mas como uma prática – ou uma descarga da pulsão – que, em maior ou menor grau, pode se manifestar na vida psíquica e pulsional dos sujeitos.

Ao abordar as práticas de automutilação, encontramos esta classificada como um sintoma dentro do campo médico, ou seja, algo que deve ser eliminado para que o sujeito possa retornar a seu estado “normal” e saudável. Ao tratarmos a automutilação como um sintoma no âmbito médico ou psiquiátrico, corremos o risco de silenciar o que essas práticas autoagressivas podem estar tentando comunicar. Segundo Favazza (1987/1996), a automutilação é uma reentrada em um estado de normalidade, um ato mórbido de regeneração. Assim, o automutilador utiliza-se desse sintoma como um ingresso para o estado normal, e não elimina-o para chegar a esse estado.

Ao realizarmos outra leitura dessa questão, podemos pensar a palavra “sintoma” com uma conotação diferente da do campo médico. Na leitura psicanalítica, o sintoma é um fenômeno subjetivo que não constitui necessariamente sinal de uma doença, mas a expressão de um conflito inconsciente ou uma forma de lidar com ele.

Nos livros consultados, verificamos alternativas de tratamento da automutilação que incluem o uso de medicamentos. Entretanto, acreditamos que com ou sem medicação, o que pode realmente ajudar um automutilador é autorizá-lo a falar, expressar-se. A “cura pela fala” de Freud nos aponta para a via que parece mais apropriada para tratamento de automutilação, quando este é necessário ou desejado pelo sujeito.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em dezembro/2015.
Aceito em junho/2016.

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