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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.23 no.3 São Paulo set./dez. 2018

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i3p638-654 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v23i3p638-654

EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL

 

Risco, detecção e prevenção: sobre a contribuição da psicanálise no trabalho institucional com crianças desnutridas

 

Risk, detection and prevention: on the contribution of psychoanalysis in institutional work with malnourished children

 

Riesgo, detección y prevención: sobre la contribución del psicoanálisis para el trabajo institucional con niños desnutridos

 

 

Beatriz Sernache de Castro NevesI; Maria Celina Peixoto LimaII; Débora Passos de OliveiraIII

IPsicóloga do Instituto da Primeira Infância, doutoranda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Ceará. Docente do curso de Psicologia da Faculdade Ari de Sá, Fortaleza, CE, Brasil
IIDocente da Universidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil
IIIDocente da Universidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho testemunha a experiência clínico-institucional no setor de intervenção psicanalítica do Instituto da Primeira Infância, situado na cidade de Fortaleza – Ceará, cujo ofício se dirige a famílias em condições de vulnerabilidade social e, em particular, a crianças que apresentam estado de desnutrição. Partindo de uma contextualização crítica das noções de vulnerabilidade e risco, o artigo tem como objetivo apresentar um dispositivo institucional voltado para a detecção e prevenção de risco psíquico, orientado pelas contribuições advindas da teoria psicanalítica sobre a constituição psíquica e, mais recentemente, da clínica com bebês. Destaca-se um caso clínico acompanhado pelo setor.

Descritores: risco psíquico; vulnerabilidade; intervenção psicanalítica precoce.


ABSTRACT

The present study testifies to the clinical-institutional experience in the psychoanalytic intervention sector of the Institute of Early Childhood, located in the city of Fortaleza – Ceará, whose office is addressed to families in conditions of social vulnerability and, in particular, malnutrition. Starting from a critical context of vulnerability and risk notions, this article aims to present an institutional device focused on the detection and prevention of psychological risk, guided by contributions from the psychoanalytic theory of the psychic constitution and, more recently, the clinic with babies. We highlight one clinical case followed by the sector.

Index terms: psychic risk; vulnerability; early psychoanalytic intervention.


RESUMEN

El presente trabajo és un testigo de la experiencia clínico-institucional en el sector de intervención psicoanalítica del Instituto de la Primera Infancia, ubicado en la ciudad de Fortaleza – Ceará, que recibe familias en condiciones de vulnerabilidad social y, en particular, niños afectados por la desnutrición. Desde una contextualización crítica de las nociones de vulnerabilidad y riesgo, el artículo tiene como objetivo presentar un dispositivo institucional orientado hacia la detección y prevención de los posibles riesgos psíquicos, aportado por las contribuciones originadas en la teoría psicoanalítica acerca de la constitución psíquica y, más recientemente, de la clínica con bebés. Presentase un caso clínico acompañado por el sector.

Palabras clave: riesgo psíquico; vulnerabilidad; intervención psicoanalítica temprana.


 

 

Introdução

Nos últimos anos, o Brasil vem sendo palco de discussões relativas à saúde da família com contribuições de programas de políticas públicas dirigidas aos cuidados da infância em situações de vulnerabilidade psicossocial. Há, assim, um crescente reconhecimento da parte dos órgãos governamentais de que os primeiros anos de vida são fundamentais para o desenvolvimento da criança.

Atento a essas questões, o Instituto da Primeira Infância (Iprede), situado na cidade de Fortaleza, vem refletindo e modificando algumas de suas práticas. O Iprede é uma organização não governamental que há trinta anos intervém na prevenção e no tratamento dos problemas de ordem nutricional de crianças e adolescentes. Com o passar do tempo, a identificação das várias causas da desnutrição acabou por ampliar as intervenções da instituição ao ponto de ela, apesar de preservar seu slogan, mudar de nome mais de uma vez. Fundado em 1986 como Instituto de Prevenção à Desnutrição e Excepcionalidade, em 2007 mudou para Instituto de Promoção do Desenvolvimento Humano, e, em 2012, passou a se chamar Instituto da Primeira Infância. Tais alterações se deram a partir do aparecimento e reconhecimento de novas demandas, as quais possibilitaram uma mudança em seu perfil, implicando novas estratégias de intervenção. No período em que foi fundado, o Ceará sofria com grande número de crianças desnutridas; a demanda que chegava à instituição era de desnutridos moderados e graves, muitos necessitando de internação, o que, na época, era disponível no Iprede. No estado, a porcentagem chegava a 30% de crianças cronicamente desnutridas, reconhecidamente pano de fundo para o alto índice de mortalidade infantil (http://www.iprede.org.br/).

O número de crianças com desnutrição mais severa foi diminuindo, e consequentemente, a taxa de mortalidade infantil também, denunciando o vínculo existente entre os fenômenos de desnutrição e a mortalidade. O Iprede nasceu dessa alta demanda, e, na medida em que os índices diminuíam, outras dimensões passaram a ser avaliadas, levando a alterações estratégicas possibilitadas por ampliações nas intervenções. Ou seja, não é mais só o corpo adoecido que passa a ser objeto de intervenção, mas também as condutas familiares, que se enquadram dentro de uma compreensão de risco. A mudança de nome resulta da ampliação da proposta de atendimento institucional aos problemas do desenvolvimento e da constituição psíquica.

Em 2013, ao repensar suas práticas no sentido de contemplar o complexo processo de desenvolvimento infantil, o Iprede criou um serviço de detecção e intervenção precoce com base na teoria psicanalítica, a partir da percepção de que existia algo a mais que não conseguia ser contemplado por todos os seus serviços. O intuito era fazer com que esse processo de desenvolvimento na primeira infância pudesse ser envolvido por um olhar transdisciplinar, que produzisse novos aprendizados para a equipe. Assim, este artigo tem como objetivo contemplar as primeiras experiências de tal setor, evidenciando a importância desse trabalho para a instituição e para as famílias envolvidas.

 

Vulnerabilidade e risco

No trabalho cotidiano do Iprede, lida-se frequentemente com a chamada "vulnerabilidade social". Diante de sua presença substancial nas atividades ordinais da instituição, abre-se espaço para a reflexão a respeito da ocupação e dos usos do termo vulnerabilidade no campo da saúde, tendo em vista que tal instituição encontra seu espaço e lugar social na atenção à saúde.

Segundo Ayres, França, Calazans e Saletti (2003), o conceito de vulnerabilidade nasce dentro da área dos direitos universais do homem, designando "grupos de indivíduos fragilizados, jurídica ou politicamente, na promoção, proteção ou garantia de seus direitos de cidadania" (p. 122). O termo passou a fazer parte do vocabulário das áreas do campo da saúde em resposta à epidemia de Aids. De acordo com os autores, esse conceito, dentro das políticas de prevenção de Aids, surge como contribuição para uma renovação nas práticas de saúde, uma vez que produz conhecimentos interdisciplinares e auxilia nas práticas de intervenções dinâmicas e produtivas. O conceito de vulnerabilidade é constructo e construtor de uma percepção ampliada e reflexiva, apontando para a identificação de epidemias, assim como para os impactos na dinâmica construída por aspectos de susceptibilidade biológica, comportamentais, econômicas e políticas, contribuindo para qualquer interesse da saúde pública.

Ayres et al. (2003) afirmam que é na medida em que as perspectivas sobre os grupos de risco mostram seus limites, não controlando efetivamente as epidemias, principalmente nos setores mais pobres da população, que as estratégias focadas na prevenção em nível social e estrutural ganham espaço. E é nesse contexto que o conceito de vulnerabilidade passa a ganhar importância.

As propostas interventivas, segundo Ayres et al. (2003), devem incorporar de forma exaustiva suas mútuas interferências, resultantes de diversos fatores envolvidos, e o conceito de vulnerabilidade tem muito a contribuir nesse sentido. A vulnerabilidade busca, dessa forma, trazer à tona elementos abstratos que são associados ou podem se associar aos processos de adoecimento para produzir planos de elaboração teórica tidos como concretos e particularizados.

É na modificação de contextos intersubjetivos que uma ação é possível, visto que, nessa abordagem, o fundamental é tomar consciência de que o sujeito só se constitui em relação ao Outro dentro de um determinado contexto. Ao assumir, dessa forma, o viés intersubjetivo da construção de identidades, torna-se possível elaborar novas técnicas de estratégia e atuação (Ayres et al., 2003).

Indo na mesma direção, Bellezani, Malfitano e Valli (2005) explicam que o conceito de vulnerabilidade tem como princípio identificar a coparticipação, assim como o conjunto de fatores variados que possam estar relacionados à suscetibilidade do processo de adoecimento, podendo ser abstratos, subjetivos ou estruturais, funcionando diferentemente das estratégias que buscam isolar as variáveis dentro de uma relação causal bilateral. Essa noção enfatiza as condições estruturais que colocam as pessoas em risco, que vão além do seu comportamento individual. Fatores como classe social, etnia, gênero e nacionalidade são sistemas de classificação social que se organizam muitas vezes em um sistema de desigualdades sociais, distribuindo riscos em saúde também de forma desigual.

Tendo essas questões em vista, observamos que grande parte da população do Iprede se encontra em situação de vulnerabilidade social. Podemos notar, no dia a dia da instituição, as dificuldades socioeconômicas que essas famílias atravessam. Dessa forma – muitas vezes soterrado por problemas econômicos, sociais ou de sobrevivência – é possível enxergar o sujeito do inconsciente da psicanálise, marcado pelo desejo, constituído no laço social?

Rosa (2002) afirma que o modelo econômico neoliberal desemboca em uma desproteção e desamparo discursivo, marcados pela fragilização das estruturas discursivas que suportam o vínculo social no que diz respeito à circulação de valores, ideais e tradições de uma cultura, resguardando o sujeito do real. Tal jogo discursivo, para a autora, expõe o sujeito ao risco de um enfrentamento com o traumático, conceituado como aquilo que está fora de sentido. Ela argumenta que, nessas situações, a exposição ao traumático é dupla, uma vez que sua ocorrência é facilitada e os recursos necessários à elaboração do trauma são escassos, acabando por promover efeitos de dessubjetivação.

Gonçalves, Monteiro e Macedo (2010) atentam para o fato de que o desamparo e a vulnerabilidade psíquica fazem parte de uma condição estruturante da subjetividade, uma vez que todos experimentam essas sensações nos períodos iniciais da vida. Porém, quando tal condição ultrapassa os momentos estruturantes e a intensidade desses sentimentos permanece promovendo o impedimento de sua elaboração, os comportamentos se investem de um efeito destrutivo.

Retomando Rosa (2002), afirmamos que é possível, mesmo em situações adversas, observar o efeito organizador de uma escuta psicanalítica. Uma vez que esse sujeito alienado do discurso da exclusão social resiste, ele pode encontrar brechas nas estruturas sociais para se manifestar. A autora defende ser indispensável situar o reconhecimento da clínica em sua vertente política, reconhecendo a política em que se faz clínica (Rosa, Estevão & Braga, 2017). Rosa et al. trazem a contribuição de Koltai, quando esta evidencia que o sujeito, por definição, é marcado pela história e deve ser pensado para além da sua relação com a família nuclear. Para a autora, a psicanálise não é apenas uma terapêutica do sujeito, o qual também se relaciona com o mundo, e, como consequência disso, as transformações sociais interessam tanto à teoria psicanalítica propriamente dita quanto à sua prática.

A psicanálise, desde seus primórdios, lida com a tensão da relação entre o indivíduo e a sociedade. Dessa forma, trata-se aqui de resguardar sua radicalidade e evidenciar o caráter ético e político de sua escuta. Fala-se de clínica-política porque essa expressão aborda de maneira mais coerente duas faces possíveis: a face do sujeito no contexto sociopolítico e a do questionamento da ética de tal contexto, que gera não só sintoma, mas também a desarticulação subjetiva impeditiva da constituição do sintoma (Rosa et al., 2017).

A partir dessa constatação, podemos perceber que o psicanalista escuta o sujeito quando não o confunde com o modo – muitas vezes degradado, pejorativo e principalmente invisibilizado – como ele é ou deixa de ser apresentado no laço social. As intervenções psicanalíticas feitas nesse cenário em que se é submetido à violência de várias formas remetem ao cenário social, político e cultural, no qual os sujeitos se constituem e nas estratégias políticas de sua destituição. Os discursos que circulam em um dado tempo histórico e social indicam o modo de pertencimento possível para cada um. A contribuição de Rosa et al. (2017), nesse sentido, é de que esses discursos buscam se equiparar ao campo simbólico da cultura e da linguagem, naturalizando os lugares e as atribuições e invisibilizando os embates sociais e políticos na sua base. Tal invisibilidade desses conflitos originados no e pelo laço social recai sobre o sujeito, individualizando suas questões, seus impasses, chegando a patologizar e até mesmo criminalizar suas saídas subjetivas (Rosa et al., 2017).

A psicanálise foi convocada pelo Iprede na expectativa de que existiria algo além das intervenções propostas pela instituição que poderiam vir a contribuir para a emancipação das famílias em situação de vulnerabilidade. Para além, portanto, do espaço de orientação a essas mães sobre o que deveriam fazer para cuidar melhor de seus filhos. Assim, a psicanálise no Iprede faz um convite à escuta das famílias, não apenas das mães, mas também dos bebês, sujeitos em constituição. E é privilegiando esse lugar de escuta clínica que ela pode dar voz a essas famílias, muitas vezes emudecidas frente ao sofrimento pelo qual passam, tantas vezes desacostumadas a falar, a ter alguém que considere seu saber enquanto agentes sociais e a ter um espaço no qual possam elaborar suas questões.

 

Detecção, intervenção e prevenção no laço mãe-bebê

O setor de detecção e intervenção psicanalítica precoce do Iprede aplica o instrumento de triagem do desenvolvimento conhecido como Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI) em crianças de 0 a 18 meses. Esse protocolo foi validado pela pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil, realizada no período de 2000-2008 pelo Grupo Nacional de Pesquisa (GNP), sob a chancela do Ministério da Saúde e da Fapesp. Com base nos pressupostos teóricos da psicanálise e do conhecimento acumulado a partir da clínica, 31 indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil foram construídos e aplicados em 726 crianças de 0 a 18 meses de vida, selecionadas randomicamente dentre aquelas que procuraram consultas pediátricas de rotina em 11 serviços de saúde de nove cidades brasileiras (Kupfer et al., 2009).

Muitas investigações com o instrumento IRDI foram feitas desde então. Os pesquisadores ampliaram seu uso para além do objetivo inicial de utilizá-lo nas consultas de puericultura. Em se tratando de promoção de saúde mental, as creches passaram a ser um lugar importante para a utilização desse instrumento, uma vez que as crianças chegam cada vez mais cedo ali (Kupfer, Bernardino & Mariotto, 2014). Outras pesquisas no campo da saúde também foram realizadas no sentido de formar diferentes profissionais, tais como agentes comunitários de saúde e enfermeiros para aplicação do IRDI, tendo como ganho uma ampliação do olhar e uma atenção especial ao processo de constituição psíquica (Mariotto, 2016).

No Iprede, o instrumento começou a ser aplicado em 2013, após um ano de treinamento específico e discussões clínicas. Alguns estudos e pesquisas anteriores (Carvalho, 2011) pontuaram questões psíquicas no processo de desnutrição de muitas crianças que estão inseridas na instituição. Se já se havia descoberto que, em muitos casos, a desnutrição não era por falta de alimento ou de informações nutricionais necessárias, então, esse quadro seria causado pelo quê? Tal questionamento passou a fazer parte do quotidiano da instituição.

Em um primeiro momento, o Iprede implementou um setor voltado para a promoção do vínculo mãe-criança, uma vez que em muitos casos era perceptível como esse fator influenciava as condutas e dificultava o alcance das intervenções da instituição. A partir daí, tornou-se interessante a entrada da psicanálise através de um olhar singularizado sobre cada caso, no intuito de ver aspectos da constituição psíquica através do laço com o Outro. Foi assim que o IRDI entrou no Iprede. Para além do uso de um instrumento de avaliação do desenvolvimento infantil, está em questão um processo que só se pode dar na presença da mãe com a criança, nas trocas e laços entre os dois, de onde a constituição psíquica pode advir.

Criou-se, assim, o setor de detecção e intervenção precoce no Iprede, onde são realizadas consultas de acompanhamento e triagem de mães/bebês com idade igual ou inferior a 18 meses por profissionais de psicologia. Até então, mais de 300 crianças passaram por diversas etapas da detecção. Dessas, uma média de 30% foram classificadas como casos de risco psíquico, ou seja, crianças que apresentam, pelo menos, duas ausências em duas faixas de idade no IRDI. Essas crianças e mães são encaminhadas em seguida para o serviço de intervenção precoce propriamente dita. É perceptível que, em alguns casos, a própria aplicação do IRDI já produz efeitos de uma intervenção; em outros, atendimentos mais sistematizados são necessários, como veremos a seguir.

 

Um lugar para "destapar" a boca e os ouvidos

Vanessa chegou ao Iprede aos oito meses de vida com diagnóstico de desnutrição. Nessa época, só mamava. Jéssica, mãe de Vanessa, tinha sido usuária de várias drogas ilícitas dos 14 aos 26 anos de idade. Nesse período, teve quatro filhas. Uma ficou aos cuidados da avó paterna e as outras três são criadas por ela. Jéssica afirma não saber quem é o pai de Vanessa. Na época em que engravidou, prostituía-se com o objetivo de conseguir dinheiro para comprar drogas.

Jéssica relata que resolveu largar as drogas depois que Vanessa nasceu. Ela teve complicações no parto e quase morreu. Apesar do uso de drogas durante a gravidez, Vanessa nasceu bem. Depois de interromper a drogadição, Jéssica relata que pensou em matar a si e às filhas colocando fogo na casa, aí recebeu um convite para ir a uma igreja evangélica, onde se converteu, passando a frequentá-la com as filhas. Essa cena retorna futuramente, quando Jéssica passa a apresentar muitos medos, sendo um deles bastante recorrente: o de que sua casa pegue fogo.

Jéssica tem grande dificuldade de criar as três filhas que ficaram com ela. A escassez de recursos e de referências parentais contribui para isso. Jéssica acha desafiador colocar limites às filhas, chegando a ser extremamente permissiva em alguns momentos e bastante agressiva em outros. Vanessa busca a mama da mãe de forma insistente. Todos os atendimentos acabam com Vanessa no peito da mãe, mamando e dormindo.

Jéssica fala de modo catártico em todos os atendimentos. Fala muito da vida difícil que teve. Por vezes, Vanessa parece dormir porque não quer escutar aquilo que a mãe fala, chegando uma vez a tapar os ouvidos enquanto mamava. Encaminhamos Jéssica para o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD), por achar ser mais apropriado ao caso e para que pudéssemos nos ocupar mais de Vanessa durante os atendimentos. Dessa forma, percebemos que, ao tapar os ouvidos, Jéssica não deixa possibilidades para a voz entrar. E por que ela precisa obturar a entrada do Outro? Lacan (1967/2003) afirma que quando uma criança tapa os ouvidos para alguma coisa que está sendo falada é porque já está no momento pós-verbal, uma vez que se protege do verbo. Estará, então, Vanessa inserida na linguagem?

É válido ressaltar que o destinatário da voz de Jéssica não é Vanessa. Percebemos que a mãe não está disponível para Vanessa, uma vez que muito fala sobre ela mesma. É comum esquecer a presença da filha durante as sessões, uma vez que ela apresenta outras demandas. Capturar a mãe é algo complicado, uma vez que ela, quando se volta para Vanessa, é para oferecer o peito. Vanessa, por sua vez, parece recusar outras interferências durante esse momento, então, tapa os ouvidos. Tapar os ouvidos pode ser um modo de tapar as bocas das quais saem essas vozes que vetorizam a dimensão da mãe para outro lado, que não ela. Isso pode se apresentar enquanto sintoma, e não automatismo.

Jerusalinsky (2012) considera que nas crianças pequenas os automatismos são derivações de uma debilidade da atividade cortical, ligada ao sistema parassimpático. Nessa etapa da vida de Vanessa, esses automatismos são uma formação primária, o que é diferente de um sintoma do ponto de vista psíquico. Para a psicanálise, o sintoma é o modo pelo qual o sujeito se opõe ou tenta resolver o problema que o fantasma parental lhe colocou, ou também o modo como contesta um obstáculo orgânico. No caso de Vanessa, trata-se do modo que ela inventou de contestar ou de se opor à ausência materna. Pode ser um modo de construir um autismo secundário. Vanessa está precisamente na idade em que o processo maturativo do sistema nervoso central exige um ordenamento que somente uma matriz simbólica pode oferecer. Se a mãe dispõe de uma matriz simbólica, mesmo que substitutiva, fica mais fácil entender a filha (Jerusalinsky, 2012).

A noção de maternidade para Jéssica é confusa; ela diz não ter referências. Foi abandonada junto aos irmãos quando bebê, pela mãe, que foi para o sudeste se prostituir. Nesse período, ficou aos cuidados da avó, que era bastante dedicada e religiosa. Na adolescência de Jéssica, a mãe voltou com muitos bens comprados com o dinheiro que ganhou se prostituindo, mas sofrendo efeitos da idade, o que fez com que diminuíssem seus clientes. Nessa época, ela pegou os filhos de volta. A relação com os filhos foi bastante conflituosa, marcada por inúmeras agressões da mãe, tanto verbais quanto físicas. Quem ofereceu droga para a Jéssica pela primeira vez foi seu pai, que era um traficante conhecido na localidade em que moravam. Jéssica apanhou muito da mãe por estar usando drogas pesadas enquanto estava grávida. Depois de um tempo, a mãe desapareceu e até hoje não tem mais notícias dela. Sua avó faleceu quando ainda era adolescente.

Jéssica cuida sozinha das três filhas. Trabalha ocasionalmente como catadora de lixo em um galpão. Com frequência, usa coisas achadas no lixão, como roupas para ela e para as filhas, brinquedos, chegando a confessar que às vezes come restos de comida que encontra por lá. Apresenta bastante dificuldade para se organizar em sua rotina com as filhas: chega sempre atrasada à instituição, não consegue providenciar suas documentações para conseguir o benefício do Bolsa Família, não consegue se fixar muito tempo em uma atividade ou emprego, nem adere ao tratamento no CAPS AD. Tem dificuldades de saber como agir com as filhas, às vezes deixando-as sozinhas em casa durante a noite para trabalhar, outras vezes deixando-as com vizinhos ou amigos, mas muito dificilmente com a mesma pessoa. Percebemos que, em alguns momentos, ela se identifica com a avó, muito religiosa e solidária; em outros se vê mais como a mãe.

Percebe-se que, muitas vezes, as famílias buscam no Iprede ajuda para a criação de seus filhos, como se os profissionais soubessem mais sobre isso do que elas próprias. Algumas mães se sentem vigiadas por eles, e, muitas vezes, adotam uma posição de passividade. Jéssica oscila entre uma posição passiva e uma agressividade frente a alguns deles. Possivelmente pela ausência de referências parentais, questiona muito sobre o que deveria fazer em determinadas situações. Por não aderir aos tratamentos sugeridos na instituição, Jéssica gera desconfiança em alguns profissionais, que cogitam a volta às drogas e têm dificuldade de lidar com a situação.

Em um dia de atendimento, Jéssica chega extremamente chateada. Na igreja que frequenta existe um casal de pastores que é tomado por ela como referência. O casal se separou e isso lhe deixou bastante desorganizada. Podemos supor que Jéssica criou um artifício de filiação através do qual atribuiu um valor simbólico a esse casal. Tomar o casal como modelo mostra uma significação simbólica, visto que os pais biológicos de Jéssica não cumpriram essa função.

Vanessa fica à mercê da instabilidade da mãe. Percebemos nela efeitos disso – separar-se da mãe, mesmo que por curto período, parece insuportável; ela chora muito, sem parar, até a mãe retornar. E, quando retorna, dirige-se logo para o seu seio. Percebemos também na criança certa hipotonia e um olhar que atravessa aquilo para o qual se direciona, meio perdido durante algum tempo. Não se interessa muito por brinquedos e sempre retorna à mãe. Jéssica fala muito, mas pouco se dirige ou se refere à filha, parecendo não supor sujeito nela. Vanessa, por sua vez, não fala e emite poucos sons. É fato que Jéssica carrega consigo uma dimensão traumática de sua história, principalmente ligada à mãe, e sabemos, através da psicanálise, que muito da relação mãe e filha é reeditada quando a filha vira mãe. O traumático é conceituado como uma desorganização subjetiva que decorre da emergência do que está fora do sentido e da significação (Rosa, 2002).

A escuta clínica, como vimos anteriormente (Rosa, 2002), facilita o andamento da articulação significante. Nesse sentido, a importância da intervenção a tempo em Vanessa atua no sentido de se fazer um caminho possível para a prevenção, como nos situa Cullere-Crespin (2004), fazendo com que Vanessa e Jéssica encontrem uma forma de dizer de outro modo o que têm a dizer. O espaço de escuta entra aqui como acolhedor do dizer das duas, possibilitando-lhes capturar aquilo dentro do qual ambas são tomadas. Vanessa, dessa forma, pode se liberar do lugar de ser o suporte do dizer da mãe. Jéssica, por sua vez, pode trabalhar suas questões em outro espaço, elaborando o traumático pelo qual está marcada.

O desmame é um processo que se dá aos poucos, na medida em que o bebê substitui o seio e o corpo a corpo com a mãe pela voz e pelo olhar, o que, no caso de Vanessa, não acontece. As alternâncias entre presença e ausência da mãe são confusas; ela sai enquanto a filha dorme, às vezes por muito tempo, em outras, não. Nem a voz nem o olhar acompanham a filha, sendo o seio o principal elo entre as duas. O seio serve também para consolar qualquer choro que Vanessa apresente. Frente a isso, a criança busca angustiada pelo corpo materno. Como o seio sempre "tapa a boca" de Vanessa, falta espaço para a fala.

A amamentação prolongada é uma característica da demanda da instituição. Em muitos casos, a criança desnutre devido ao fato de estar em amamentação exclusiva em idades mais avançadas e a mãe vai ao Iprede buscando ajuda para enfrentar este problema. Não raro, aparece com outras queixas, como: "meu filho não come direito", "ele é ruim para comer", "ele não aceita comer de jeito nenhum". Sabemos que o processo de alimentação envolve outras questões além da sobrevivência em si.

Ao dissertar sobre a sexualidade infantil, Freud (1905/1996) toma como modelo dessas manifestações o chuchar, ou "sugar com deleite". Ele nos alerta que na atividade do chuchar a pulsão não está dirigida para outra pessoa, mas sim para a satisfação no próprio corpo, caracterizando-a como autoerótica. Além disso, afirma que a ação da criança de chuchar é influenciada pela busca de um prazer que já foi vivenciado por ela e agora é relembrado. A satisfação pode ser obtida através da sucção rítmica de alguma parte do corpo. O mamar no seio materno, tido pelo autor como a primeira e mais vital das atividades da criança, é quando ela constitui as primeiras experiências desse prazer e agora busca a sua renovação.

O psicanalista considera que os lábios do bebê funcionam como uma zona erógena, e da estimulação pelo fluxo do leite surge essa sensação de prazer. No início, essa satisfação foi associada à necessidade mesma do alimento: "a atividade sexual apoia-se primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só depois torna-se independente dela" (Freud, 1905/1996, p. 168). Portanto, a necessidade de retomar a satisfação sexual se separa da necessidade própria da alimentação. Nesse momento, a criança não se liga a objetos externos a ela, para sugar, elegendo a própria pele com esse fim, visto que é mais cômodo, tornando-a independente do mundo externo, uma vez que ainda não consegue dominá-lo.

Bergés e Balbo (1997) explicitam de maneira mais clara que não só a boca é alimentada durante o processo da amamentação, mas também os olhos, os ouvidos, a pele. O bebê, dessa forma, incorpora, junto com o leite, o olhar e a voz da mãe. No processo de desmame, a criança vai substituindo o seio e o contato corpo a corpo com a mãe pela voz e pelo olhar.

Para a psicanálise, portanto, a amamentação diz mais do que sobre a necessidade orgânica do bebê, diz também das primeiras trocas primordiais entre o sujeito e a mãe. Assim, as questões da oralidade se deslocam de uma necessidade de nutrição para uma exigência ligada à satisfação sexual, passando a ser toda a atividade psíquica nesse tempo primordial voltada à satisfação dessa zona. Sendo assim, é a partir das exigências e modulações da pulsão oral que ocorrem as relações de objeto, e marca-se um tempo no qual o enlace com o outro passa pelo prazer ou sua falta no processo de alimentação (Carvalho, 2011).

O ato de amamentar, ou "dar o peito", é uma resposta que algumas mães do Iprede veem para qualquer choro do filho; é um movimento para fazer com que eles se calem. Dessa maneira, observamos crianças com o acesso livre ao corpo da mãe quando vão ficando mais velhas: quando se angustiam por alguma coisa, logo procuram o peito da mãe. Todo esse movimento é feito sem intermediações de palavras, nem da mãe nem da criança, como é percebido no caso de Vanessa.

Se o momento da alimentação é um momento da constituição psíquica, o estado de desnutrição dessa criança mostra que algo, além do biológico, não vai bem. Quando a relação das trocas alimentares não é de prazer, torna-se necessário intervir nessa díade em busca de algo que mude a situação.

Dauer e Martins (2015) consideram que nos processos de alimentação pode-se estabelecer um cenário no qual os conflitos e impasses da subjetividade e da relação mãe-bebê podem se revelar. As autoras, ao fazerem essa consideração, também observam que isso está relacionado ao campo da linguagem e ao processo de simbolização e pensamento. Assim, um possível quadro depressivo da mãe, no qual aparece a fragilidade do laço entre os dois, pode estar intimamente relacionado a recusas alimentares pelo sujeito em constituição. Em consequência da impossibilidade de identificar-se com o filho, a mãe acaba por se deparar com dificuldades para criar condições propícias ao surgimento da demanda, e não colocar prazer na dimensão da fala.

Percebemos que o chuchar descrito por Freud (1905/1996) faz parte da constituição psíquica. O problema que vemos em Vanessa é o fato de Jéssica só responder à demanda da filha oferecendo o seio. Com o passar do tempo, o excesso da amamentação começa a incomodar Jéssica, uma vez que ela demonstra muito interesse em trabalhar: "Isso é que vai me tratar". No seu relato, chega a afirmar o seguinte: "Essa menina só me suga o tempo todo" e "Ela rouba a minha paciência". É como se Vanessa representasse para Jéssica sempre alguém que quer tirar algo dela.

Boukobza (2000) afirma que a castração oral da mãe atua no sentido de que a mãe deixa seu filho entrar na troca fonemática com outras pessoas além dela mesma. No processo do desmame, dá-se o início de uma fase na qual qualquer pessoa pode alimentar a criança. Todavia uma mãe "psiquicamente sozinha", como é o caso de Jéssica, junto a uma criança que não fala, pode contentar-se com uma comunicação silenciosa, na qual só a mãe a entende. A partir dessa situação, a relação com outras pessoas é impedida, mantendo-se apenas a relação a dois, que pode ser psicotizante.

Diante dessas questões, é possível pensar em um trabalho preventivo em relação a Jéssica e Vanessa. Preventivo porque podemos ver nessas manifestações marcas de sofrimento psíquico que podem colocar em risco a constituição subjetiva de Vanessa. É possível, então, pensar em um atendimento precoce no qual essas e outras questões possam aparecer ao longo do acompanhamento. No caso de Vanessa, precisamos que Jéssica, além de contar sua história traumática, atribua um valor simbólico para a sua vida. A filha também reclama isso. Para tanto, é necessária uma matriz simbólica. Na transferência, nós devemos dar valor de significação à cada ato e cada palavra; emprestamos a matriz simbólica da qual essa paciente carece para que, com isso, a mãe possa escutar a filha e o que ela demanda.

A suposição de um sujeito em Vanessa para Jéssica também é um fator que parece falhar, uma vez que Jéssica só vê em Vanessa suas necessidades de sobrevivência. Não percebemos prazer na mãe em cuidar da filha e nem alegria diante de suas conquistas. Nossa atuação aqui pretende ser também no sentido de evidenciar as produções de Vanessa para Jéssica, mostrar para a mãe que a filha demanda mais coisas além do peito e também que existem outras maneiras de se demonstrar cuidado e afeto pela filha, a exemplo da linguagem, de brincadeiras e de trocas prazerosas.

Teperman (2002) considera que é a partir do olhar que antecipa o sujeito que podemos investigar os recursos de cada bebê e construir algo específico dessa clínica. A autora ainda acrescenta que tal olhar tem efeitos tanto para a criança quanto para a mãe, que pode virar uma "aliada nessa causa pelo sujeito" (p. 147). Ela também afirma que, para que a criança possa se reconhecer como um sujeito no que enuncia, é necessário um Outro para quem possa endereçar, que a tome como interlocutora, que possa antecipá-la, fazendo-se como destinatário das produções da criança em questão. Teperman (2002) conclui que a intervenção precoce atua preventivamente quando o clínico antecipa o sujeito na criança em ocasiões em que os pais não puderam fazê-lo. É nesse sentido que o atendimento de Vanessa é possível.

 

Considerações finais

A recente instalação de um setor de detecção e intervenção precoce no Iprede inaugurou grandes desafios. Um deles é manter o diálogo com os profissionais de outras áreas, refletindo sobre a importância da detecção precoce; outro é fazer isso em situações de vulnerabilidade social, nas quais estão inseridas a maior parte dos usuários da instituição. Vimos aqui que a vulnerabilidade por si só não determina o aparecimento de determinados tipos de acometimentos, mas faz emergir a possibilidade de desenvolvimentos precários, como um horizonte de possibilidades mais concreto e próximo. A relação mãe-bebê em uma situação de desamparo pode ser influenciada por esse contexto.

O trabalho da psicanálise no cenário clínico-institucional com populações em situação de pobreza se realiza no sentido de dar testemunho à dimensão sociopolítica do sofrimento. Por um lado, ela abre espaço para a escuta de sujeitos nessas condições e, por outro, tem recursos para dar visibilidade ao sofrimento para além das carências materiais.

Ao oferecer espaço de fala para essas famílias, a escuta psicanalítica oportuniza outra posição, visto que age na implicação do ato de fala. Se antes havia um tolhimento desse espaço, construído a partir das interações que lhe foram possíveis no mundo cotidiano e que a inscreveram em uma determinada posição no laço social, a possibilidade da passagem do silêncio para a escuta pode operar um deslocamento da posição anteriormente ocupada.

 

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Recebido em novembro/2017.
Aceito em outubro/2018.

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