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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.1 São Paulo enero/abr. 2019

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i1p53-61 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v24i1p53-61

DOSSIÊ

 

Face a uma cultura que não faz mais abrigo: o discurso sobre o "mal da juventude"

 

Frente a una cultura que ya no se cobija: el discurso sobre "el mal de la juventud"

 

Faced with a culture that no longer provides support: the discourse on "the evil of youth"

 

 

Ilaria PironeI

IDocente na Université Paris 8, Saint-Denis, França. E-mail: ilaria.pirone@univ.paris8.fr

 

 


RESUMO

Apoiado em encontros clínicos, experiências de formação e pesquisa em ciências da educação, este artigo relaciona alguns dos impasses dos adolescentes na escola com os novos modos de transmissão e os processos de moralização do discurso escolar. Essas remodelações, que são efeitos do discurso capitalista, parecem produzir formas de desligamento ético dos adultos, deixando os jovens diante de um Outro que não faz mais um abrigo ou uma lei. Essas observações nos obrigam a refletir sobre as apostas do discurso psicanalítico na formação universitária e a atualizar os desafios.

Palavras-chave: adolescência; discurso capitalista; transmissão; escola; discurso psicanalítico.


RESUMEN

Con base en los encuentros clínicos, en las experiencias de formación y en la investigación en ciencias de la educación, este artículo asocia algunos de los impasses de los adolescentes en la escuela con las nuevas formas de transmisión y los procesos de moralización del discurso escolar. Estos cambios, que son efectos del "discurso capitalista", parecen producir formas de desenganche ético de los adultos, dejando a los jóvenes frente a un Otro que ya no tiene un techo ni una Ley. Estas observaciones nos obligan a reflexionar sobre los retos del discurso psicoanalítico en la formación universitaria y a actualizar los desafíos.

Palabras clave: adolescencia; discurso capitalista; transmisión; escuela; discurso psicoanalítico.


ABSTRACT

Supported by clinical encounters, training and research experiences in educational sciences, this article links some of the impasses of adolescents in school with the new modes of transmission and the processes of moralization of school discourse. These changes, which are effects of the "capitalist discourse", seem to produce forms of ethical disengagement among adults, leaving young people in the face of an Other who no longer provides support or a Law. These observations force us to reflect on the stakes of psychoanalytic discourse in academic courses and to update the challenges.

Keywords: adolescence; capitalist discourse; transmission; school; psychoanalytic discourse.


 

 

Gostaria, nesta contribuição, de apontar traços particulares do discurso escolar e de novas formas de transmissão, colocando-as em perspectiva com os remanejamentos do laço social, a fim de compreender certos impasses dos adolescentes na escola1. Eu me apoiarei na conferência que Jacques Lacan proferiu na Universidade de Milão, em 12 de maio de 1972, para apresentar as bases de minha proposição. De fato, nessa intervenção que versa muito particularmente sobre o discurso psicanalítico, Lacan se refere, em vários momentos, à dita juventude, e parece endereçar-se a ela muito particularmente.

Ele introduz ao mesmo tempo a ideia de um outro discurso, o discurso do capitalista e sua crise e o põe ao lado dos quatro outros, mas sem insistir muito nele na sequência. Há alguns anos, podemos constatar no meio analítico uma referência frequente a esse discurso, associando-o aos termos da sociedade neoliberal. Essas duas expressões – discurso do capitalista e sociedade neoliberal – parecem estar em consenso para descrever nossa modernidade. Talvez seja importante sublinhar a prudência de Lacan na utilização dessa noção, que poderia tornar-se um significante um pouco escorregadio, com o risco de tornar invisível aquilo de que ele fala e de nos fazer cair em uma forma de concepção totalizante do mundo. Contudo, é interessante tentar compreender o que se joga sob o abrigo de um tal discurso. E, justamente, esse discurso capitalista faz ele abrigo? Nós podemos desdobrar essa questão com o apoio de duas passagens dessa conferência de Lacan.

A primeira passagem corresponde à proposição de Lacan que afirma que, da crise do discurso capitalista, surgirá talvez um dia um discurso chamado o mal da juventude (Lacan, 1978)2. Lacan precisa que "há qualquer parte, do lado do que se chama, tão gentilmente, tão carinhosamente, a juventude . . . como se fosse uma característica . . . no nível da juventude, há alguma coisa que não funciona mais do lado de um certo discurso" (Lacan, 1978). Esta ideia permite introduzir outro ponto: o que não funciona mais do lado de um "certo discurso" (Lacan, 1978), do discurso do mestre? É que o discurso do mestre não é mais referência, orientação. Lacan afirma: "O que seria necessário é conseguir que o discurso do mestre seja um pouco menos primário, e para dizer tudo, um pouco menos idiota" (Lacan, 1978). Essa segunda passagem permite, de uma parte, sanar uma dificuldade desse discurso que perde sua função de referência, mas de outra parte pode ser entendido como uma abertura a outra coisa. Trata-se de um ponto programático, que é importante sublinhar, posto que nós não podemos falar no interior de um discurso analítico sem tomar uma forma de abertura, sem um ponto além, ponto de orientação, e ponto em direção ao qual o sujeito deverá tender. Wo Es war, soll Ich werden, em referência à célebre fórmula de Freud (1932/1984).

A partir dessas ideias tiradas da conferência de Lacan, proponho religar duas bordas dessa contribuição, juventude e escola, conforme a seguinte proposição: o que se lê em nosso mal-estar da civilização é o que em Lacan podemos chamar "o mal da juventude", isto é, a cultura não vem mais dar abrigo ao Real. Os ditos jovens não encontram mais na linguagem, na cultura – cultura que passa também pela transmissão de saberes na escola – um abrigo para as questões às quais o Real nos confronta.

A fim de desdobrar essa hipótese, citarei algumas vinhetas tiradas de tratamentos com adolescentes e me apoiarei em minhas experiências de ensino nas ciências da educação, assim como em minhas duas diferentes pesquisas: a primeira tem relação com a narrativa dos adolescentes ditos em dificuldade escolar (Pirone, 2011); e a segunda na questão do dito fracasso escolar3.

 

De um saber sem buraco

Há certas mudanças no discurso sobre a escola e no modo de fazer escola que são significativas do impasse no qual os sujeitos se encontram tomados e que arriscam duplicar uma forma de exclusão dos alunos. Listarei duas em particular.

A primeira não é verdadeiramente uma mudança, mas uma coisa que já existia, sobre a qual o discurso atual insiste fortemente, acentuando o processo de moralização do discurso educativo. Nós podemos ilustrar a partir de um termo amplamente difundido no campo escolar: a benevolência. Até há alguns anos essa declinação moral da ação não estava explicitamente presente nesse campo, podíamos lê-la nas entrelinhas dos textos oficiais nos quais se encontrava explicitamente presente o termo bem-estar da criança. Em 2014 o termo "benevolência" entrou oficialmente nos textos de enquadramento escolar4, e desde então passamos de uma escola que deve dar prova de benevolência a uma fórmula abreviada à "escola da benevolência".

Essa nova expressão induz a ideia de que, por consequência, todo mundo é benevolente, tornando-se uma espécie de característica implícita do ser professor. Não é mais utilizada em uma forma teleológica, visada, de inclinação moral da ação, mas estatutária, que dá uma engraçada equivalência: ser professor seria ser benevolente. Torna-se uma espécie de injunção ao bem. Lacan, depois de Freud, nos lembra as armadilhas de uma ética do bem, "pois", nos disse Lacan em 6 de julho de 1960, "se devemos fazer as coisas pelo bem, na prática devemos sempre nos perguntar pelo bem de quem? A partir daí as coisas não caminham sozinhas" (Lacan, 1960, p. 368). Face a essa nova normalidade de ser professor, o ser benevolente, qual lugar restaria para elaborar e acolher a ambivalência constitutiva de toda relação humana? Qual lugar restaria para o ódio, a agressividade, a dimensão trágica própria à vida que a tradição helenista soube tão bem representar? E, mais simplesmente, qual lugar restaria para o mal-estar da cultura (Freud, 1930/2010)? É a partir dessas questões que eu entendo a resistência de estudantes e de professores em formação, quando abordo em aula essas dimensões constitutivas do sujeito e da cultura. Como em uma das aulas de meu seminário sobre ética nas ciências da educação, na qual eu trato da questão da agressividade e enuncio o que para nós é uma simples lembrança, o fato de que a agressividade é constitutiva do sujeito. "Vidi ego et expertus sum zelantem parvulum: nondum loquebatur et intuebatur pallidus amaro aspectu conlactaneum suum", trata-se da famosa passagem na qual Lacan cita Santo Agostinho que "já ele contemplava, todo pálido e com um olhar envenenado, seu irmão de leite" para mostrar "as coordenadas psíquicas e somáticas da agressividade original" (Lacan, 1948/1999, p. 114). Para os estudantes isso parece ser demais. Eles se insurgem e me dizem de modo animado que eu exagero. O ódio está sempre no outro... e para a criança, sobretudo, não se coloca a questão. Passado um primeiro momento de irritação entendo o que é para eles um impossível efeito desse novo discurso educativo e escolar. Segundo Serge Lesourd (2006), a "aparente estrutura discursiva" do discurso capitalista permite evitar a falha da comunicação e "tem tudo para seduzir" (p. 133). Como esses futuros professores educadores, que possuem os ouvidos cheios dessa moral da benevolência, podem suportar que a universidade lhes diga que o ódio é constitutivo do homem?

Dessa constatação surge uma primeira hipótese de leitura das condições atuais da educação5: o novo discurso sobre a benevolência expulsa do imaginário a possibilidade do homem ser o lobo para o homem. Por onde retornará isso que se encontra concluído?

A segunda mudança diz respeito às formas de transmissão na escola, na qual os conhecimentos se desligam do saber e, por consequência, de seu tecido simbólico.

Penso, por exemplo, em uma adolescente que em sessão conta que o professor de História mostrou aos alunos um documentário sobre Simone de Beauvoir. Nos primeiros instantes da narrativa dessa jovem, me ponho a pensar na originalidade e coragem intelectual desse professor, mas meu devaneio é tão logo detido pela cor particular da narrativa dessa jovem paciente que só guarda dessa sequência o que eu definiria como o rasgo do véu. O professor, ao que parece, falou longamente na classe da vida sexual dessa grande intelectual: "ele disse", cito a jovem, "que ela se deitava com os homens e com as mulheres". Alguma coisa do Real. Espécie de desvelamento transparecia de seus enunciados e a questão da sexualidade toma a vez sobre a figura mesma de Simone de Beauvoir, intelectual, escritora e filósofa. Não é mais do que um exemplo, mas a transmissão do saber é remanejada por um discurso que eu definiria sem constrangimentos, em referência ao que Lacan diz do discurso capitalista, que "anda sobre rodinhas, não pode andar melhor, mas justamente anda tão rápido que se consuma." (Lacan, 1978). Ele produz formas de transmissão que arriscam impedir o trabalho de revelação necessária do "Real da puberdade" (Lacadée, 2007, p. 53). Para além desse exemplo, que podemos reler como uma forma de passagem ao ato do professor, reencontramos rasgos do véu nas modalidades de transmissão muito técnicas, como podem ser às vezes certas aulas sobre a dita "educação para a sexualidade" no programa de Ciências da vida e da Terra, na classe de quatrième6 no colégio. E num sentido mais geral, reencontramos formas de transmissão que tocam um ponto do Real, cada vez que o conhecimento de desliga do saber e de seu tecido simbólico.

Um outro aspecto das modalidades atuais da transmissão que contribui para essa separação entre o conhecimento e o saber7 é dado pela fragmentação da cultura imposta pelos programas. A história das matemáticas, a história da língua, a espessura simbólica da cultura, tudo que permite fazer laço, é excluído pelos programas que ameaçam privar o saber de seu sentido. A questão recorrente dos alunos "mas isso serve para quê?" torna-se agora legítima. É um traço que se encontra sobretudo nos professores iniciantes, que não utilizam os programas como guias, como linhas de referência, mas como prescrições a seguir ao pé da letra. Eles se sentem cada vez menos legítimos na transmissão de seu saber, num estilo que lhes seja próprio: às vezes, eles chegam a esse ofício tendo já diplomas de letras ou de filosofia, ou ainda percursos de vida muito ricos, mas essa riqueza parece dever ficar para fora da sala de aula: "Dizem-nos" cito os estudantes "que é necessário respeitar o programa".

Desses exemplos tirados de minhas experiências de formação, surge uma segunda hipótese: o "mal da juventude" é alimentado também por essas novas formas de transmissão dos saberes. Esses exemplos ilustram o fato de que os ditos jovens não encontram apoio cultural e, portanto, simbólico que lhes permita velar o Real ao qual somos todos expostos. Eles são confrontados com formas de saber não furadas, de todo saber no qual o conhecimento toma o passo da cultura, deixando separados saber e sexualidade.

 

Um imaginário cru

Apoiar-me-ei em duas experiências de pesquisa, citadas na introdução, para mostrar como essas novas modalidades de transmissão só podem reduplicar os impasses que encontram certos adolescentes na escola.

Na primeira pesquisa com relação à narrativa dos adolescentes ditos em dificuldade escolar, eu tinha identificado como traço massivo uma dificuldade de narrar, tanto do ponto de vista linguístico como no narrativo (Pirone, 2017a): uma confusão na utilização dos tempos verbais e na utilização de pronomes, uma rara utilização de pontuação, uma utilização de maiúsculas e uma presença rara das operações de ligação entre um enunciado e outro, sem mencionar os numerosos erros de ortografia, um aspecto que já foi bastante destacado nas pesquisas sobre a relação com a escrita. Identificamos essas dificuldades na análise narratológica, na qual encontra-se essa mesma desestruturação da construção de intrigas de suas narrativas: as histórias sem histórias, nas quais é muito difícil seguir o fio narrativo, já que o próprio agenciamento dos eventos é incoerente. Mas um outro traço bastante surpreendente, ligado à proposição dessa contribuição, é uma forma de carência de criatividade. No quadro dessa pesquisa eu tinha colocado um atelier cinematográfico, durante o qual nós tínhamos proposto aos alunos inventar uma história a fim de criar um curta-metragem. E antes de compreender que minha demanda de fazer narrativa tocava propriamente a sua impossibilidade, eu tinha sido surpreendida pelo fato que mesmo essa perspectiva cinematográfica não tinha sido suficiente para alimentar a capacidade de sonhar desses jovens e dessas jovens.

Um outro aspecto bem marcante em certos textos que eu pude recolher no quadro dessa pesquisa é sua crueza. Essas narrativas adolescentes antecipam uma forma de fragilização da função narrativa, de um imaginário que, para retomar a expressão de Jean Bergès, parece ser ultrapassado pelo Real (Bergès, 2001), pela irrupção do real sexual, mas – e é o passo a mais que eu farei com relação ao que já pude escrever sobre esse assunto (Pirone, 2015) – é a fragilização da função narrativa desses adolescentes que parece falar uma língua que não encontra abrigo na linguagem. É sobre esse ponto que essa releitura de minha primeira pesquisa sobre as narrativas adolescentes faz junção com a última pesquisa que nossa equipe conduziu sobre o dito fracasso escolar8.

O resultado principal dessa pesquisa sobre o fracasso escolar é de uma banalidade remarcável: para esses adolescentes a função da escola não está absolutamente destituída. Ela continua sendo uma passarela necessária para aceder ao mundo. E tudo o que eles nos dizem sobre suas vidas na escola nos conduz a inverter a leitura dessa questão do fracasso escolar: é que a resposta da escola para suas questões os faz fracassarem. O que os alunos nos disseram massivamente na pesquisa é que fracassam ou fracassaram da forma escolar, mas procuram desesperadamente alguma coisa ou, ainda mais, alguém: eles procuram um lugar de apoio no saber do outro.

É essa mesma mensagem que podemos ler nas entrelinhas da proposição de um jovem adolescente que recebi em consulta. Ele desenhou a sequência da Odisseia em que Ulisses furou o olho do ciclope Polifemo. Este pede ajuda, mas diz a seus companheiros vindo lhe prestar socorro que é ninguém que o mata, devido à resposta astuciosa que Ulisses havia dado quando se apresentou como tal. Ulisses pode assim escapar da gruta, agarrado ao ventre de um dos carneiros. Eu pergunto ao jovem por que ele gosta desses mitos. A resposta é um voo de cultura: "os mitos servem para pensar o impensável. . . . Ulisses quer voltar pra casa para reencontrar seu filho e sua família. Ele atravessou tudo . . . . Ulisses é muito esperto. Ele faz muitas escolhas. Mas sem a ajuda dos deuses ele não teria podido se safar. Ele precisa sempre da ajuda dos deuses para se safar". Esse jovem adolescente nos relembra um ponto simples: que é necessário, para toda criança e adolescente, encontrar um ponto de engate no saber do Outro.

E lá não se trata de sequências de matemática, de ciências da vida, de francês, mas do saber da divisão. A novas formas de transmissão dos ditos saberes não fazem sentido pois estão atravessadas pela máquina dos pedagogismos e didatismos técnicos; elas se apresentam frequentemente sob formas de conhecimento desligados de todo tecido simbólico que o jovem justamente recusa engolir. É importante retomar esse resultado de nosso estudo, aparentemente banal, porque a resposta institucional vai a contrassenso desse resultado. Por exemplo, no lugar de fazê-los banhar-se na cultura – eles que têm realmente essa demanda – nós lhes propomos atividades de remediação e se possível atividades lúdicas para aprender, que vão no sentido de nossa cultura do fun, da diversão. Melhor ainda, propostas que retiram os alunos da escola, ou em todo o caso, da classe, criando dispositivos adaptados ao exterior. A razão dessas respostas institucionais é que se pensa que esses jovens não querem a escola. Suas respostas institucionais ao fracasso escolar, que são um exemplo entre outros, são sintomáticas da imbecilidade de nosso discurso, em referência ao ensaio do filósofo italiano Maurizio Ferraris, L'imbécillité est une chose sérieuse (2017). Em sua obra Conditions de l'éducation (2008), Gauchet, Blais e Ottavi lembram, enquanto filósofos, que o apetite de conhecimento ganha seu sentido de uma certa configuração cultural e de um funcionamento social. Esses autores acrescentam que o gosto pela aprendizagem é ligado à concepção de ser humano e de sociedade que a escola veicula. Essa ideia vai ao encontro da proposição de Hannah Arendt que, já em 1958, nos lembrava nosso dever de amar o mundo para poder transmitir às gerações futuras (Arendt, 1958/1972). Ora, parece que nossa relação com o mundo nos conduz hoje em dia em direção a um resultado paradoxal: para esses três filósofos, o risco consiste em que a sociedade do conhecimento possa tornar-se uma sociedade na qual o desejo de saber desapareça.

É o risco que reencontramos quando colocamos em perspectiva a demanda dos adolescentes que encontramos durante esse estudo sobre o fracasso escolar e a resposta institucional. O discurso educativo e escolar contemporâneo está muito centrado na procura de um truque performativo, uma resposta técnica a uma temporalidade acelerada, mesmo até imediata, que deve ser aplicada para redirecionar o desvio da normalidade. Giorgio Agamben, em sua análise do dispositivo, torna explícitos os processos de desubjetivação próprios aos dispositivos produzidos pela fase atual do capitalismo (Agamben, 2007). Essa maquinaria educativa é um novo "sedativo"9 contra a angústia que o encontro com esses alunos-outros pode gerar. Nenhum lugar para a angústia em uma sociedade da positividade, sociedade da performance, tal como descrita pelo filósofo Byung-Chul Han, em seu livro La société de la fatigue, que nos lembra que vivemos em uma sociedade da performance, que tenta permanentemente se liberar da negatividade do interdito e da regra (Han, 2014). É uma sociedade da positividade, do possível e do bem, traços que reencontramos na nova língua institucional da escola, na qual aparecem, entre outros, termos como aquele anteriormente mencionado de benevolência. Nessa sociedade da positividade, não se deve enfatizar a dificuldade, o ponto de mal-estar, mas, antes, o possível e, podemos mesmo afirmar, sobre o tudo possível.

A questão que se coloca, do ponto de vista da psicanálise, é que nessa forma de discurso, presa entre um tudo possível e intenções benevolentes, plenas de bons sentimentos, o que é impedido é a revelação do Real, que faz, então, retorno, por exemplo, na crueza das narrativas dos alunos citados.

 

Para concluir: novas formas de fracasso ético do Outro

A partir desses exemplos tirados do campo e de diferentes hipóteses apresentadas ao longo do texto proponho compreender o discurso referido como o mal da juventude (Lacan, 1978), no qual o fracasso escolar pode ser analisado como um de seus efeitos, como uma das respostas possíveis ao fracasso ético do Outro, este Outro que não faz mais abrigo, nem lei. Essa proposição pode parecer contradizer a constatação que podemos fazer facilmente que a questão da ética nunca esteve tão ao centro do debate público, dos textos oficiais e do enquadramento das diferentes profissões. Mas nesta forma de laço líquido, tomando como referência a proposição do sociólogo Zygmunt Bauman (2006), nós assistimos a uma espécie de enlouquecimento ético, que se traduz em uma enxurrada heterogênea de pequenas éticas moralizantes, que poderíamos qualificar como normas de vocação universal.

Nessas formas de resposta, se as podemos considerar como tal, alguma parte do sujeito se deixa cair. Este ato de se deixar cair relembra uma espécie de posição melancólica.

O discurso capitalista, além das formas de perversão que produz, empurra o sujeito em direção a uma posição melancólica. Freud, em seu célebre texto de 1917 Luto e melancolia, descrevendo a melancolia, colocava em primeiro lugar a posição objetal do sujeito, posição que podemos ler também como uma expressão do desespero tal como descreve Kierkegaard em seu Traité du désespoir (1848/1990) para quem o desespero é uma doença do eu. Dois traços da melancolia me conduziram a uma reaproximação entre melancolia e posição de uma parte dos sujeitos nos remanejamentos do laço social: o que Freud descreve como o aumento do interesse pelo mundo exterior (Freud, 1917/2016, p. 25), e um outro traço da melancolia que Jean-Jacques Tyszler, na introdução que escreveu a uma nova tradução do texto de Freud, retoma dos alienistas franceses, como Cotard e Séglas, que tinham da mesma forma dado valor à perda da visão mental (Tyszler, 2016, p. 17). E esse aspecto, nós o reencontramos na fabricação de categorias no campo escolar, como o exemplo citado sobre a categoria do dito fracasso escolar: a criação de um termo serve num primeiro tempo para tornar visível uma situação, uma dificuldade, até mesmo um problema, mas os dispositivos que são em seguida fabricados ad hoc para o conjunto dos indivíduos que a compõem funcionam seguindo os protocolos que correm o risco, mais frequentemente, de tornar invisível os sujeitos. Nós os perdemos de vista, eles são cuidados pelo dispositivo e quando não estão mais sob nosso olhar se tornam invisíveis.

Nós encontramos aí a mesma forma de contradição anunciada acima: criam-se soluções em nome de um dito bem e, finalmente, a mais frequente tecnicidade desencarnada dessas soluções excluem os sujeitos aos quais ela se endereça.

Mas, uma vez que a psicanálise não nos permite inebriarmo-nos no desespero, é necessário repensar as apostas do discurso psicanalítico. De minha posição de professora de ciências da educação, me parece que a aposta (desconfortável) desse discurso na universidade deveria ser continuar a trabalhar na borda dos buracos do saber, para que os futuros profissionais da educação aceitem recriar uma cultura que faça abrigo, uma forma de cultura na qual o adolescente poderá encontrar um Real a compartilhar.

 

Referências

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Recebido novembro/2018 – Aceito em fevereiro/2019.

 

 

1 Este artigo foi traduzido do francês por Rinaldo Voltolini, a quem gostaria de agradecer. Todas as citações em francês foram traduzidas livremente pelo tradutor.
2 Trata-se da palestra proferida por Lacan em 1972 em Milão, "Du discours psychanalytique", que foi publicada em G. B. Contri (dir.), Lacan in Italia, Lacan en Italie, 1953-1978, que pode ser encontrada no site:  https://bit.ly/2WV79In. As citações desta conferência foram traduzidas livremente do francês para o português.
3 Trata-se da pesquisa "Preparar-se para quê? Laços, palavras, relação com o saber de adolescentes evasores" (2013-2016), conduzida pela equipe Clinique de l'éducation et de la formation, da Universidade Paris 8 (CLEF-CIRCEFT), sob a responsabilidade científica de Laurence Gavarini, e financiada pela Fondation de France e pela Région Île-de-France (PICRI).
4 Cf. https://bit.ly/1gSafSU
5 Em referência ao ensaio de M.-C. Blais, M. Gauchet et D. Ottavi, Conditions de l'éducation (2008).
6 Nota do tradutor : Mesmo considerando complexo buscar uma equivalência entre os sistemas de seriação e curricular francês e brasileiro, a classe de "quatrième" francesa corresponderia aproximadamente ao oitavo ano – ensino fundamental 2 – no sistema brasileiro.
7 Podemos fazer referência ao ensaio de M.-C. Blais, M. Gauchet e D. Ottavi, Transmettre, apprendre (2014).
8 Apresentei de modo bastante aprofundado essa pesquisa em um artigo publicado no Brasil "Impasses atuais da relação educativa : o fracasso escolar, uma janela aberta sobre nossa contemporaneidade" (Pirone, 2017b).
9 Para retomar o termo utilizado por Freud em Malaise dans la culture (1930).

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