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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.24 no.1 São Paulo enero/abr. 2019
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i1p147-156
DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v24i1p147-156
EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL
Relato de uma experiência em Bonneuil: o olhar que dá lugar
Relato de una experiencia en Bonneuil: la mirada que da luga
Story of an experience in Bonneuil the look that gives place
Carla Cervera SeiI; Edson Luiz André de SousaII
IPsicanalista. Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: vivacarlasei@gmail.com
IIProfessor titular do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: edsonlasousa@uol.com.br
RESUMO
Este artigo é sobre uma experiência de estágio realizada na Escola Experimental de Bonneuil-sur-Marne, fundada pela psicanalista Maud Mannoni e que acolhe crianças psicóticas, autistas ou com neuroses graves. Trata-se do relato de uma viajante sobre o seu encontro com o estrangeiro, com o estranho familiar, com a loucura e de suas tentativas de fazer laço com o outro. Foi no encontro com algumas crianças que as pontes e os pontos de contato foram criados pelo território dos orifícios pulsionais, sendo o olhar o enlaçamento primordial.
Palavras-chave: Bonneuil; experiência; olhar; pulsão.
RESUMEN
Este artículo versa sobre una experiencia de prácticas realizada en la Escuela Experimental de Bonneuil-sur-Marne, fundada por la psicoanalista Maud Mannoni y que acoge a niños psicóticos, a autistas o con neurosis graves. Se trata del relato de una viajera sobre su encuentro con el extranjero, con el extraño familiar, con la locura y sus intentos de hacer el lazo con el otro. En el encuentro con algunos niños, los puentes y los puntos de contacto fueron creados por el territorio de los orificios pulsionales, siendo la mirada el enlazado primordial.
Palabras clave: Bonneuil, experiencia, mirar, pulsión.
ABSTRACT
This article is about an internship experience held at the Bonneuil-sur-Marne Experimental School, founded by the psychoanalyst Maud Mannoni and which welcomes psychotic, autistic or severely neurotic children. It is about a traveler's story and her encounter with the foreign, with the familiar stranger, with the madness and her attempts to tie in with the other. It was in the meeting with some children that the bridges and the points of contact were created by the territory of the driving holes, being the look the primordial entanglement.
Keywords: Bonneuil; experience; look; drive.
Precisava de espaço. Andava lentamente.
Andava quase como se não fosse andar . . .
(Rainer Maria Rilke, 2011)
As difíceis histórias de vida de algumas crianças que pude acompanhar em atendimento psicanalítico, suas histórias de abandono, exclusão social, desamparo, negligência dos pais e do Estado e os efeitos, as marcas deixadas em suas vidas quase sem saída, faziam-me pensar em um lugar que as acolhesse e onde elas pudessem existir. Essas crianças e suas histórias de vida me fizeram sonhar em conhecer Bonneuil, a escola experimental criada pela psicanalista Maud Mannoni. O que eu poderia aprender em Bonneuil sobre acolher crianças em dificuldades psíquicas? Em que medida e de que formas Bonneuil seria um lugar para existir, um lugar de vida, como dizia Mannoni?
Parti rumo a Bonneuil em fevereiro de 2015, para um estágio.
A Escola Experimental de Bonneuil-sur-Marne foi criada em setembro de 1969 pelos psicanalistas Maud Mannoni e Robert Lefort. Desde seu surgimento, a proposta era fazer de Bonneuil um lugar de vida, um lugar para viver, para crianças e adolescentes considerados "problemáticos", fossem eles autistas, psicóticos ou com algum transtorno mais grave, excluídos pelos sistemas médico, pedagógico ou familiar. Para as crianças e adolescentes que a frequentam, Bonneuil pretende ser um lugar onde eles possam viver sua loucura à sua maneira, sem que os diagnósticos sejam determinantes ou impossibilitadores da diversidade no trajeto da vida (Neto, 2012).
Francis Alÿs (2008) é um artista belga radicado no México. Sua produção artística é variada e explora o espaço urbano, tensionando a política e a poética. Em agosto de 2008, com o projeto Gibraltar1, ele propõe uma fila de crianças, cada uma carregando um barquinho feito de chinelo, deixando a Europa em direção ao Marrocos, enquanto uma segunda fila sairia do Marrocos em direção à Espanha. As duas filas se encontrariam no meio do oceano. Construindo uma ponte de crianças entre a África e a Europa, o artista nos convida a pensar sobre o que faz contato entre mundos tão heterogêneos. Quais as condições de encontro e de contato entre esses mundos?
Tanto mar! Atravessei um oceano para chegar a Bonneuil. Para o encontro com o estranhamente familiar, com o horror provocado pelo infantil que é, ao mesmo tempo, testemunha desse inumano em nós, das crianças estranhas e de nossa própria estranheza, mas também de nossa alienação fundante no Outro e de seus efeitos, paradoxalmente, constitutivos e engolidores.
Orientada pela questão de como fazer laço com o outro, como criar pontes entre mundos heterogêneos, começo a tecer os contornos de uma geografia do contato.
No meu primeiro dia de estágio fui caminhando pelas ruas de Bonneuil até encontrar o número 63 da Rue Pasteur.
As ruas de Bonneuil-sur-Marne me pareciam encantadoras. Um bairro tranquilo e residencial em que as casas tinham lindas portas e janelas, com delicadas cortinas rendadas. E mesmo naquele rigoroso inverno, os jardins eram bonitos e pequenos raios de sol, apesar de não conseguirem aquecer, faziam um jogo de luz e sombras muito especial. Eu andava pelas ruas e imaginava que naquelas casas se faziam doces, pães e manteiga caseiros; que naquelas manhãs tão geladas acordava-se cedo e saboreava-se um café quentinho, lendo um jornal e observando a natureza e o pouco movimento, através das grandes janelas.
E assim, parecia-me tão acolhedor adentrar o espaço daquela casa que abrigava a Escola Experimental de Bonneuil. Pensava se ela funcionaria, para as crianças que a frequentavam, como um abrigo que protege, que permite sonhar, fazer planos, e se inscreveria nas crianças, como diz Bachelard (1957/1974, p. 365), um "grupo de hábitos orgânicos", uma hierarquia das diversas funções de habitar. E se, criando condições para habitá-la, estaria também criando condições para habitarem o mundo, habitarem-se.
Em frente ao portão da singela casa que abriga a escola, naquela gélida manhã, alguns adultos conversavam enquanto esperavam o início dos trabalhos. Crianças e jovens do lado de dentro do portão andavam para lá e para cá, observando o movimento e cumprimentando os colegas que chegavam.
Atravessei a soleira, coloquei os pés na Escola Experimental de Bonneuil.
A sensação de chegar em Bonneuil é surpreendente. Era como estar diante de um lugar que sobreviveu no tempo, um lugar atemporal, deslocado da nossa época, mas ainda assim vivo, pulsante, cheio de sentidos. Pensei em como o desejo é atemporal. Assistindo a duas antigas fitas2 de um filme3 sobre Bonneuil, parecia que nada tinha mudado. A frente da casa era a mesma, as formas do fazer, o movimento das crianças e dos adultos pela casa, a hora da refeição, tudo igual. Até as crianças, parecia que podíamos identificar as de hoje nas de ontem. Um mesmo que não chegava a ser repetição. Um mesmo que se sustentava num espaço de criação, de desejo.
Fui recebida na porta pelas crianças e jovens que logo vieram se apresentar, perguntar meu nome, meu lugar de origem, e quanto tempo ficaria com eles. Depois das apresentações feitas no portão e do entusiasmo com a nova estagiária que vinha do Brasil, sentei com alguns educadores à mesa próxima à cozinha. Tomávamos um café que nos aquecia o corpo e iniciávamos uma conversa, quando algo inusitado aconteceu. Valente, o menino de olhos azuis cor-de-céu-ensolarado, aproximou-se e atirou em nós uma xícara de café. Bolsas, casacos, cabelos lavados de café. Lembrei-me de Evgen Bavcar contando em Memória do Brasil suas delicadas lembranças de infância. Dizia ele:
Lembro de ter ouvido pela primeira vez este nome mágico, Brasil, associado ao café que minha mãe esmagava num moedor ainda manual. Havia pouco café naquela época e seu cheiro pertencia às coisas de minha infância relacionadas a experiências únicas, cheias de riqueza e de atenção. Para nós, o café era quase uma espécie de néctar dos pobres, uma ambrosia destinada aos que de vez em quando queriam transformar o cotidiano num dia de festa, pondo à mesa uma mercadoria tão rara em minhas lembranças eslovenas. (Bavcar, 2003, p. 77)
Recém-chegada e contente por realizar meu sonho de conhecer Bonneuil, deparei-me com essa recepção não muito hospitaleira, talvez até mesmo hostil, daquele adolescente francês.
Aceitei o banho de café como um "boas-vindas, sei de onde você vem". Aceitei o banho de café como aceitamos a bebida que o anfitrião nos oferece quando chegamos em sua casa. Aceitei o banho de café como um convite a conhecer essa outra casa, cuja porta era um buraco através do qual muitas coisas seguiriam caindo: minhas certezas, meus saberes sobre psicose, meus sonhos de Bonneuil, mas também onde outras geografias, outras formas de contato iriam se delinear se eu aceitasse entrar.
Valente4 me convidava a abandonar minhas certezas, meu corpo acadêmico e intelectualizado; convidava a submergir e conhecer um mundo onde as palavras têm pouca eficácia; a navegar para uma terra onde residem forças primárias tão esquecidas e soterradas em nós; a ser capaz de recepcionar uma outra sensibilidade; a construir uma nova geografia do contato
Foi assim, encharcada de café, em susto/suspensão do meu corpo de saberes, que aceitei o convite do menino para mergulhar nessa casa, nessa estranha e inquietante casa-escola que, aos poucos, ia se revelando para mim.
E então, tratava-se agora de iniciar o dia, perfumada de café, engajando-me nas atividades. Sem conhecer ninguém, sem saber do funcionamento diário da escola, sem entender muito bem as línguas por ali faladas, via-me perdida naquele espaço tão estrangeiro. Apesar de ir aos poucos participando das atividades cotidianas, o sentimento de estar perdida e sem lugar durou alguns dias e quase me fez desistir. Essa sensação é compartilhada por muitos dos que chegam em Bonneuil. Kupfer (1998), ao contar sobre sua experiência de estágio, no artigo intitulado "Desventuras de uma estagiária em Bonneuil", também fala desse primeiro impacto: "A impressão era de um abandono, já que cabia ao estagiário grande parte da iniciativa no engajamento das atividades" (p. 109).
Cecília Aiello (1998) relata sua experiência de sentir-se perdida nesse início: "Foram dias de inquietude, de insegurança, que me provocavam às vezes uma certa angústia. Foi, como já é previsto por eles, uma verdadeira semana de prova" (p. 60).
O estagiário em Bonneuil é convidado a se integrar às oficinas, às atividades escolares, ao acompanhamento das crianças e dos adolescentes em algumas tarefas, e assim por diante. Mas nada disso é prefixado, ninguém diz quando ou como, "para isso é preciso relacionar-se com os outros, perguntando, olhando, criando laços. Cada um dos novos que vão chegando e se incorporando todas as semanas precisa tomar suas próprias decisões" (Aiello, 1998, p. 60).
Em Bonneuil, convivemos todos os dias com as crianças e suas loucuras. Com elas fazemos as atividades do dia, almoçamos, escrevemos, contamos histórias, brincamos. E a loucura de cada um está presente e é vivenciada à sua maneira. Causa horror, intriga e fascina. Olhava para as crianças, seus trejeitos, suas repetições, seus gestos descontrolados e me perguntava: como isso é possível? O que fazer? Por onde começar? Como me aproximar? Com o que estava me deparando nesses primeiros encontros desencontrados? Sentia medo, não sabia ao certo como agir, como me aproximar, não sabia se seriam agressivos eu também os via com medo em algumas situações, quando alguma criança se desorganizava ou quando se assustava com algum barulho. E foi o momento de perceber o tamanho de suas fragilidades como pássaros assustados e acuados, agarravam-se às janelas, nos cantos da sala, tentando escalar as paredes, voar. Mas eu também via minha fragilidade quando me sentia ameaçada pela loucura de cada um. Que mal-estar seria esse? Que encontro ali se produzia que causava medo, espanto, horror?
Penso no Unheimilch de Freud, quando ele fala sobre o efeito estranho que nos causa a epilepsia e a loucura. "O leigo vê nelas a ação de forças previamente insuspeitadas em seus semelhantes, mas ao mesmo tempo está vagamente consciente dessas forças em remotas regiões de seu próprio ser" (Freud, 1919/1996, p. 260).
O artigo "Das Unheimlich", traduzido para o português como "O estranho", foi publicado em 1919 e é um trabalho que dialoga com a questão da estética. Porém, a estética tomada aqui não apenas como a teoria do belo, mas também das qualidades do sentir. Freud acrescenta, ainda, que se trata de um interesse por um "ramo particular, bastante remoto e negligenciado na literatura especializada neste campo" (p. 237). Trata-se do tema do estranho, ou seja, do que é assustador, do que provoca medo, horror. Nesse escrito, ele vai trazendo diversos sentidos do termo heimlich, como íntimo, agradavelmente confortável, familiar, pertencente à casa, amistoso, domesticidade, agradável para o repouso, escondido, oculto a vista, sonegado aos outros, partes pudendas, secreto; e do seu oposto, unheimlich, como misterioso, sobrenatural, que desperta horrível temor, inquietante, lúgubre, demoníaco, o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz. De todos esses significados possíveis, Freud dirá que a palavra heimlich exibe um significado que é idêntico ao seu oposto, unheimlich: "por um lado significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista" (p. 243). Unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz.
O que estaria oculto e vem à luz quando nos encontramos com crianças em estruturação psíquica tão grave, crianças que habitam o campo do real, de uma precária humanização, como aquelas com as quais me deparei ao chegar em Bonneuil?
O encontro com esse excesso de real que essas crianças encarnam revela a condição de desamparo primário, de exclusão, de desenlace, de puro corpo à qual um dia já estivemos submetidos e que ainda nos habita. Condição que permanece oculta, mas pode ser evocada diante desse encontro, provocando o estranho-familiar. "Esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente" (Freud, 1919/1996, p. 258).
Segundo Bernardino (2004), no texto "O desejo do psicanalista e a criança", para além da prática clínica, o encontro com as crianças é também um encontro com "A Criança, presença que remete à origem, para sempre perdida, irresgatável, de todo sujeito" (p. 60). É porque o encontro com esse recalcado está sempre à espreita que a autora nos alerta para um ponto que parece crucial no trabalho com crianças autistas e psicóticas, crianças que ainda ocupam o lugar de objeto para o Outro, ponto este que diz respeito à ética da psicanálise e ao lugar que ocupa quem pretende trabalhar com esta clínica. Trata-se de se questionar sobre o próprio desejo para preservá-lo do que poderia ser uma busca sintomática por um encontro bem-sucedido com essas crianças, pois se corre o risco de mantê-las ainda no lugar de objeto. Ocupar, por exemplo, o lugar de realização da fantasia de mãe-toda, ou de idealização educativa, ou de reparação da infância perdida, tentando preservar a criança da falta do Outro, ou propor-lhe um Outro sem faltas, reparador e onipotente, seria como uma reencarnação da Coisa, ou seja, a salvação do desamparo originário (Bernardino, 2004).
Um encontro desencontrado com as crianças de Bonneuil, esse não saber fazer, não saber como se aproximar, de certa forma nos preserva do risco de querer salvar as crianças de sua condição e nos convoca a uma escuta daquele outro que ali se apresenta. Era preciso encontrar uma forma de aproximação, um laço, um contato. Mas o que faz contato? O que faz laço?
A angustiante primeira semana como estagiária em Bonneuil me fazia pensar de que forma poderia criar laço, acolher aquelas crianças, suas loucuras e bizarrices, e ser por elas acolhida. Como suportar tamanha alteridade sem buscar reduzi-la a um outro abordável e compreensível dentro do meu sistema de significações ou de categorias diagnósticas? Como aconteceria, caso eu não desistisse, o longo trabalho de tornar familiar (heimlich) aquela estranha (unheimlich) casa?
Perguntava-me se valeria tamanho esforço. Atravessar uma fronteira para me encontrar com o caótico, com o excesso de real, com uma precária humanização, com a exclusão. Atravessar a fronteira da loucura para o encontro com o outro. Atravessar o inverno, para o calor de um contato. Desacomodar, sair de si em busca da ilha desconhecida!
Justamente nesse quase momento de desistir, a menina me lança um olhar, um sorriso e me enlaça, trazendo-me de volta, como aquele carretel do netinho de Freud. E então, ensaia para mim a dança do ventre, cobrindo parte do rosto com as mãos, deixando à mostra apenas os olhos que expressavam a alegria do seu corpo no domínio daqueles movimentos ondulantes. Seus olhos me lançavam esse olhar-anzol e era como se me dissessem: "Olha como sei dançar, olha que alegria é dançar. Venha dançar comigo, venha se divertir também". Olhar sedutor que me agarrou, olhar doce de menina a me convidar para ficar mais e, quem sabe, transformar o susto em poesia, em alegria de viver.
Sabíamos, como Bavcar, "que as andorinhas logo voam se não há um olhar para retê-las"5.
Mas o que é o olhar? O que é ver? O que me olha naquilo que vejo? A menina me interrogava sobre os sentidos do olhar, questão cara à psicanálise, já que trata do laço primordial com o Outro e da constituição do eu.
Para a psicanálise, a subjetividade não é dada no instante do nascimento. O bebê humano, dada sua prematuridade, situa-se numa radical condição de desamparo e não está preparado para lidar sozinho com o desconforto das necessidades que o organismo lhe impõe, como a fome, a dor, o frio. A situação de desconforto só se modifica com a intervenção de alguém que venha em seu socorro. É do encontro entre esse pequeno pedaço de carne desamparado e um Outro primordial que o bebê terá suas primeiras experiências de satisfação que darão início às primeiras inscrições psíquicas, bem como à constituição do aparelho psíquico. Essas inscrições que fundam o psiquismo do bebê e dão origem ao sujeito produzem-se, então, a partir desse encontro, desse laço entre o bebê e o agente que exerce a função materna (Outro primordial).
O Outro primordial ocupa-se de realizar as ações específicas que dão satisfação ao bebê, introduzindo para ele a dimensão do erotismo e transformando o organismo em um corpo pulsional. Como diz Jerusalinsky (2011, p. 81):
O que é próprio no exercício da função materna é o trabalho permanente de recobrir o real do organismo do bebê sua psicomotricidade desorganizada, seu olhar estrábico, suas fezes, suas regurgitações, seus gritos com um simbólico que erogeniza este corpo e que permite constituir uma imagem ideal à qual o bebê possa identificar-se.
Esse é o fino e delicado trabalho que uma mãe exerce ao bordar o corpo do seu bebê com a linguagem, instalando uma economia de gozo e desnaturalizando o organismo ao instaurar uma ordem simbólica. Nossa existência é marcada por essa absoluta necessidade de ajuda de um semelhante nos primórdios da vida.
Um dos primeiros sinais que demonstra o estabelecimento do laço entre mãe-bebê na aposta dessa constituição psíquica se dá através do olhar.
A clínica de bebês em risco de autismo nos ensina sobre alguns sinais que apontam para falhas na instauração do aparelho psíquico. Um deles é o "não-olhar entre o bebê e sua mãe, sobretudo se esta mãe não parece se dar conta disto" (Laznik, 2004, p. 24). É importante salientar que no encontro da dupla mãe-bebê as competências de ambos estão em jogo, sendo próprios da dupla os encontros ou desencontros afetivos. Portanto, se há falhas na constituição subjetiva, elas podem decorrer tanto da ausência de condições da mãe para o seu exercício, quanto do bebê, impedido de absorver os investimentos dirigidos a ele (Vieira, 2010).
É nesse jogo de olhares tão primordial que se funda a possibilidade da constituição da imagem do corpo e da relação com o semelhante. Segundo Laznik (2004), o não olhar entra a criança e sua mãe assinala o perigo de problemas precoces na relação com o Outro e põe em risco a constituição do estádio do espelho.
O olhar entre o bebê e sua mãe é como um ato de reconhecimento recíproco que precisa se realimentar constantemente. Através do olhar, a mãe reconhece o bebê e este lhe envia a imagem de mãe que ela espera.
Enquanto ver é função do olho, olhar é objeto da pulsão escópica. Nesse sentido, o olhar destaca-se como objeto de desejo do bebê na relação com sua mãe. O bebê, num primeiro tempo, olha o olhar da mãe para ele e, num segundo tempo, olha o olhar da mãe para o mundo. Este primeiro tempo da constituição estaria ligado ao narcisismo primário, naquilo que Freud (1914/1996) coloca em destaque em relação à posição dos pais. Os pais atribuem aos filhos todas as perfeições e todos os sonhos que não realizaram. "Sua Majestade o bebê" irá realizar todos os seus sonhos e garantir a imortalidade de seu eu. O segundo tempo vem desalojar o bebê de sua onipotência, pois, ao olhar a mãe olhando para o mundo, o bebê percebe que ele não a completa, que ele não é tudo para ela, e a partir daí fará o que for possível para agradá-la e reconquistar seu amor. Há aí o reconhecimento de uma incompletude e o desejo de recuperar a perfeição narcísica (Nasio, 1997, p. 48).
Já em Lacan, esse jogo de olhares vai compor uma função antecipatória capaz de engendrar a primeira organização do eu o eu especular. Para Lacan, a constituição do eu se dá através da construção de uma imagem unificada do corpo, tema que ele desenvolve a partir da dialética do estádio do espelho em seu texto "O estádio do espelho como formador da função do eu, tal qual revelada na experiência psicanalítica", escrito em 1949 para o XVI Congresso da Associação Internacional de Psicanálise.
O estádio do espelho organiza-se num jogo de ver e ser visto. Trata-se do momento em que a criança, ao ver sua imagem no espelho, vira-se para a mãe/Outro primordial que a acompanha, pedindo-lhe que confirme, através do olhar, o que ela percebe no espelho.
A mãe adquire, nesse momento, a função de antecipar um sujeito. Dizemos antecipar, porque há ainda uma discrepância entre a imagem vista e o estado de impotência motora em que o bebê se encontra. Trata-se, portanto, da condição antecipatória fundamental que se precipita da insuficiência, por anteceder a própria maturação fisiológica e motora, permitindo ao bebê ascender à sua imagem especular (Lacan, 1949/1998).
Se antes a criança vivenciava um corpo despedaçado, agora, através do olhar confirmatório da mãe, ela se acha cativada, fascinada por essa imagem no espelho que antecipa o domínio de seu corpo. É, portanto, o olhar de reconhecimento da mãe diante da imagem da criança que dará a esta o sentimento de unidade corporal.
O estádio do espelho vem indicar que a vivência do corpo no ser humano acontece pela articulação entre o corpo orgânico e o olhar do Outro. Segundo Laznik (2004, p. 25), o olhar é "sobretudo uma forma particular de investimento libidinal, que permite aos pais uma ilusão antecipadora na qual eles percebem o real orgânico do bebê, aureolado pelo que aí se representa, e aí ele pode advir."
Se o olhar carrega essa condição de reconhecimento da imagem corporal, de condição antecipatória fundamental para o sujeito advir, de presença do Outro, de investimento libidinal, do que estaria carregado meu olhar e o da menina nesse encontro? O que esse ponto de contato antecipava? O que ela teria capturado no meu olhar e por que eu me sentia fisgada pelo dela?
Reconhecimento, presença, afeição seguiram se construindo entre nós a partir desse primeiro contato. Um olhar que dava lugar!
Na vivência especular, o bebê convoca a mãe em sua dimensão simbólica, ou seja, aquela que nomeia, esperando dela um assentimento à imagem unificada de si mesmo, que vê refletida no espelho. Podemos dizer que o estádio do espelho oferece para o bebê uma experiência jubilatória, ao passar a ilusão de um domínio corporal, de uma unidade do corpo reunida pela imagem e, ao mesmo tempo, uma experiência dolorosa, ao mostrar que essa imagem não corresponde ainda à verdade do bebê, que segue na dependência do outro.
Ao buscar, no estádio do espelho, essa confirmação no olhar materno, a criança vê que a mãe a olha e percebe, nesse olhar, o seu desejo. A criança confronta-se aqui com uma mãe pulsional e, portanto, faltosa. Algo falta na mãe e também a mãe impõe uma falta ao bebê quando, por exemplo, ausenta-se, sai de cena, anunciando à criança um perigo e uma angústia relativos à perda. É o momento em que perder de vista equivale simplesmente a perder e no qual ainda não se aprendeu que um certo desaparecimento da mãe pode vir seguido de um reaparecimento.
O que pode fazer a pequena criança quando sua mãe parte a circular pelo mundo e a deixa diante de alguns poucos objetos povoando sua solidão?
Didi-Huberman (1998) descreve a cena dessa criança que pode ter ao seu redor uma boneca, um carretel, um cubo ou, simplesmente, o lençol da cama. Diz o autor:
Imagino-a primeiramente balançando-se ou batendo sua cabeça contra a parede. Imagino-a ouvindo seu próprio coração batendo contra as têmporas, entre seu olho e sua orelha. Imagino-a na expectativa: ela vê no estupor da espera, sobre o fundo da ausência materna. (p. 79)
Sobre esse fundo de ausência materna a criança vê um carretel, toma-o em suas mãos e, quando não quer mais vê-lo, atira-o longe, para trás da cortina. Mas, se quer vê-lo novamente, puxa o fio que liga o carretel a si. Inaugura assim um jogo de ausência/presença com esse objeto eficaz, cujo fio permite que ele não parta definitivamente. "O carretel joga porque pode se desenrolar, desaparecer, passar debaixo de um móvel, porque seu fio pode se romper ou resistir . . . ele que vai e vem como bate um coração ou como reflui a onda" (Didi-Huberman, 1998, p. 81).
Essa cena da criança brincando com o carretel é a que Freud descreve no texto "Além do princípio do prazer" (1920). A criança da cena é Ernest, seu netinho de 18 meses, que brincava com o carretel quando a mãe se ausentava. Freud interpreta essa brincadeira como uma grande aquisição cultural da criança, já que ela passa a representar, no plano simbólico, a perda ou ausência da mãe.
Segundo Rodulfo (1990, p. 128), ao jogar o carretel, a criança cria um espaço que antes não existia. Ou seja, a criança não joga o objeto para fora, senão que, ao lançar o objeto, produz um fora. Esse ato inaugural da fabricação de um fora é localizado teoricamente nesse jogo do carretel, nomeado como jogo do fort -da.
Depois a criança seguirá atirando coisas para esse fora, objetos, miudezas, e seguirá em seus jogos de esconde-esconde, experimentando a ausência/presença, o desaparecer/reaparecer. Mas é esse jogo inaugural, recortado pelo olhar de Freud quando observava o pequeno Ernest brincar com o carretel, que permite a criança simbolizar o que antes era impensável: a saída da mãe. Se antes da produção desse espaço do fora a separação/saída da mãe era como um desaparecimento perigoso, angustiante e insuportável, o jogo do fort -da inaugura uma maneira de pensar e representar essa ausência. Essa dialética do desaparecer/reaparecer reordena a temporalidade para o bebê e origina uma nova regulação da angústia.
Ao articular uma série de presenças e ausências, a criança começa a poder se sustentar brevemente na ausência do olhar do Outro primordial, sem cair junto com tal ausência. Ou seja, o olhar primordial lhe conferiu um lugar no qual a criança começa a construir suas bordas para não deixar de existir quando esse olhar se ausentar.
Naquela primeira semana em que eu iniciava o estágio, ainda não tinha me dado conta do funcionamento da instituição em relação à sua abertura para o fora, para o ir e vir das crianças em seus tantos ensaios de separação na construção da dialética da presença/ausência. Lugares de oscilação entre um aqui e ali, entre fort e da, oferecidos por Bonneuil, com a função de operar tais separações na aposta de um devir sujeito.
Eu e a menina passamos essa primeira semana em alegres encontros, trocando olhares festivos, sorrisos e conversas. Mas, quando retorno à escola, na segunda semana de estágio, a querida jovenzinha não estava mais lá. Havia partido para o interior da França. Não pude vê-la novamente. Não pude me despedir.
A jovem que me ajudou a ficar foi embora para sua estada fora. O fio do carretel que a ligava à instituição se manteria, e, em breve, ela estaria de volta em seu necessário movimento de ir e vir ensaiando as possibilidades de separação e sustentação do seu desejo.
Guardei comigo o olhar da menina que me olhou, olhar hospitaleiro que me convidou a ficar, lanterna que iluminou pontos de ancoragem e contato nos novos encontros que aconteceram.
Assim como algumas crianças brasileiras me fizeram sonhar em conhecer Bonneuil, a menina francesa me ajudou a ficar naquela casa, conferindo-me um lugar através de seu olhar, fazendo com que aquele estranho ambiente (unheimlich) começasse a se tornar familiar (heimlich) para a estagiária/estrangeira.
Quando uma presença se torna ausência, descobrimos que não reencontraremos mais o objeto originalmente perdido. Mas algo dele segue em nós e assim seguimos adiante.
Referências
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Recebido em junho/2018 Aceito em outubro/2018.
1 Recuperado de https://bit.ly/2JMhRcq.
2 As fitas têm quase quatro horas de filmagens, nas quais há uma linda cena da visita de Lacan à escola.
3 O filme Vivre à Bonneuil foi realizado por Guy Seligmann e só é possível assisti-lo na escola. Algumas passagens do filme encontram-se no livro Um lugar para viver, de Maud Mannoni.
4 Nome fictício.
5 Bavcar (citado por Belloc, 2005, p. 76).