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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.24 no.2 São Paulo maio/ago. 2019
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i2p246-261
DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v24i2p246-261
DOSSIÊ
Ferenczi e a educação: desconstruindo a violência desmentida
Ferenczi y la educación: deconstruyendo la violencia desmentida
Ferenczi and education: deconstructing the denied violence
Marília Etienne ArreguyI; Fernanda Ferreira MontesII
IProfessora Associada da Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ. E-mail: mariliaetienne@id.uff.br
IIProfessora Doutora da Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ. E-mail: fernandamontes@id.uff.br
RESUMO
Experiências clínicas e postulados teóricos de Sándor Ferenczi trazem inúmeras contribuições para a Educação. Procuramos articular, neste artigo, duas formas de violência desmentida, uma coletiva e outra estranhamente familiar. Trata-se de duas dimensões fundadas num traumatismo radicalmente desestruturante, posto que resulta na clivagem do eu. Desenvolvemos a hipótese de que a desautorização do sujeito no plano societário - pela violência objetiva da exploração pelo capital - potencializa a identificação com o agressor e a reprodução de mecanismos incapacitantes na esfera educacional. O traumático da violência atuada entre os sujeitos na escola é sobreposto por uma clivagem introjetada na divisão de classes, especificamente na separação entre o ensino público e privado, bem como no racismo desmentido da sociedade brasileira. Introjeção e transferência fomentam esse processo. O embate entre os mundos adulto e infantil, com a imposição hierárquica de um saber vertical e hegemônico, costuma irromper como passagem ao ato no plano intersubjetivo. A imbricação inconsciente desses dois planos de violência clivada deve ser compreendida para que fragilidades narcísicas venham a ser integradas empaticamente no sentir com o outro. A sensibilidade para uma transferência mútua permite ao professor expor corajosamente suas fragilidades diante da hipocrisia sistêmica, promovendo reconhecimento dos sujeitos mais vulneráveis.
Palavras-chave: violência; desmentido; trauma; psicanálise; educação.
RESUMEN
La experiencia clínica y los postulados teóricos de Sándor Ferenczi traen innumerables contribuciones a la Educación. Buscamos articular, en este artículo, dos formas de violencia desmentida, una colectiva y otra, extrañamente familiar. Se trata de dos dimensiones fundadas en un traumatismo radicalmente desestructurante, puesto que resulta del clivaje del yo. Desarrollamos la hipótesis de que la desautorización del sujeto en el plano societario -por la violencia objetiva de la explotación por el capital-potencia la identificación con el agresor y la reproducción de mecanismos incapacitantes en la esfera educativa. El traumático de la violencia actuada entre los sujetos en la escuela es superpuesto por una brecha introyectada en la división de clases, específicamente en la separación entre la enseñanza pública y privada, así como en el racismo desmentido de la sociedad brasileña. La introducción y la transferencia fomentan este proceso. El embate entre los mundos adulto e infantil, con la imposición jerárquica de un saber vertical y hegemónico, suele irrumpir como paso al acto en el plano intersubjetivo. La imbricación inconsciente de estos dos planes de violencia clivada debe ser comprendida para que las fragilidades narcísicas se integren empaticamente en el sentir con el otro. La sensibilidad para una transferencia mutua permite al profesor exponer audazmente sus fragilidades ante la hipocresía sistémica, promoviendo el reconocimiento de los sujetos más vulnerables.
Palabras clave: violencia; desmentido; trauma; psicoanálisis; educación.
ABSTRACT
Clinical experiences and theoretical postulates of Sándor Ferenczi bring countless contributions to education. We try to articulate, in this article, two forms of denial of violence, one collective and the other strangely familiar. These are two dimensions based on a radically destructive traumatism, since it results in a self-cleavage. We hypothesize that the disavowal of the subject in the societal plane - through the objective violence of exploitation by capital - strengthens the identification with the aggressor and the reproduction of incapacitating mechanisms in the educational sphere. The traumatic violence perpetrated among the subjects in school is superimposed by an introjected cleavage in the division of classes, specifically in the separation between public and private education, as well as in the denial of racism of the Brazilian society. Introjection and transfer foster this process. The clash between adult and infantile worlds, with the hierarchical imposition of a vertical and hegemonic knowledge, usually erupts as a passage to the act on the intersubjective plane. The unconscious imbrication of these two planes of cleaved violence must be understood so that narcissistic fragilities come to be integrated empathically into feeling with each other. Sensitivity to a mutual transference allows the teacher to courageously expose his weaknesses in face of systemic hypocrisy, promoting recognition of the most vulnerable individuals.
Keywords: violence; denial; trauma; psychoanalysis; education.
O trauma inerente à educação e a clivagem educacional brasileira
A concepção ferencziana confere uma nova leitura do traumatismo psíquico na clínica psicanalítica, que também é bastante esclarecedora no que concerne à dificuldade de professores e psicólogos escolares em lidar com o que se convencionou chamar, de modo bastante genérico, como violência nas escolas. Essa versão antiga, porém sempre inovadora pelo seu caráter inusitado, recebeu um fôlego novo com a reedição das obras de Sándor Ferenczi em português em 2011. A leitura tardia desse grande autor, enfant terrible de la psychanalyse, já recebera a dedicação de psicanalistas que atuam na interface da pesquisa com a clínica ferencziana (Figueireido, 1999; Reis, 2004; Gondar, 2012, 2013, 2014, 2018; Kupermann, 2008; 2017; Pinheiro, 1995), potencializando estratégias de escuta do outro. Se a clínica vem a ser vista de forma dinâmica, com novas técnicas e atitudes, a educação também pode ser sempre desconstruída e reelaborada como um lugar de escuta, de revelação e de ação. O ponto de virada dessa perspectiva é que não se trata apenas de um processo de decifração, liberador dos recalques, mas de uma via de franqueza e interpenetração intersubjetiva, visando o reconhecimento e a reconfiguração de um trauma incapacitante. Na escrita e na clínica de Ferenczi, ressalta-se a presença da coragem da verdade - conforme Foucault (1982/2017) resgatou do pensamento grego inerente à ousadia de falar verdadeiramente e de correr riscos ao encarar algo que insiste em se ocultar, e, de modo ainda mais grave, clivar. A postura impressa por Ferenczi (1908/2011) na psicanálise, estando ao lado do "pai" Freud, mas também subvertendo seus postulados (Pinheiro, 2016), desde cedo valorizou mais o sentido de um "incêndio" da educação do que a preservação de uma palavra-mórbida, que diz o contrário do que se faz, do que se vê e se sente. Ferenczi (1921/2011; 1926/2011; 1928/1992; 1930/2011) avançou, portanto, ao preconizar uma postura amical, horizontal, subversiva que nada tem a ver nem com uma psicanálise ortodoxa, tampouco com uma educação tradicional disciplinar. Essa forma disciplinar tende a ser segregante e punitiva.
Uma visão tradicionalista e conteudista da educação fora também criticada por Paulo Freire (1996), ao revelar uma preocupação especial acerca do contexto econômico violento e desigual em que se constituiu o falso projeto de educação no Brasil, ao longo dos séculos XIX e XX. Pensar a violência nos meios escolares, depende de enxergar tanto a violência da educação em si mesma, quanto a violência mais ampla, desmentida, aquela de uma "sociedade partida". Vemos uma versão clivada da educação em terras tupiniquins, pois o ensino de qualidade sempre foi um privilégio desenhado para as classes mais abastadas. Quando a educação pública se estruturou no Brasil no início do século XX, ela foi destinada aos ricos. Ao longo das lutas por democracia, o ensino público passou a ser destinado aos pobres, e o ensino privado, para as classes médias e ricas. E mesmo a busca pela universalização do ensino, no início do século XXI, avançou apenas modestamente, pois a divisão de classes permanece instituída na separação entre público e privado (Souza, 2017). Além disso, falseia-se o real motivo dos estudos, dizendo que servem para se alcançar uma vida melhor para "todos", no entanto, destinando o acesso aos ensinamentos para os postos de direção e inovação aos filhos da alta burguesia, e os postos "menores", técnicos, para os filhos dos favelados. Embora tenhamos conquistado importantes patamares teóricos com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases em 1996, e também tenhamos avançado em políticas educacionais na primeira quinzena do terceiro milênio, não foi possível atacar uma série de injustiças, sobretudo essa clivagem entre público e privado na educação. Aí está o trauma coletivo constitutivo da educação brasileira.
O Brasil jamais consolidou um projeto de nação na realidade. Para além do que foi preconizado na Constituição Cidadã de 1988, vivemos esse irônico desmentido de uma "reformitis aguda" na educação, quando se propõe infinitas reformas, porém tudo permanece na mesma (Lajonquière, 2018, p.61). Nesse sentido, retorna do recalcado a ânsia punitiva contra os pobres em ascendência e amplia-se a clivagem daqueles que renegam a realidade das injustiças sociais e da necessidade revolucionária de se investir em políticas de direitos humanos para combater tais injustiças. As nações mais desenvolvidas só mudaram quando investiram num projeto de educação pública em todos os níveis, chegando praticamente a abolir o ensino privado, como é o caso dos países nórdicos e da França, por exemplo. Ao contrário da plena universalização e democratização da escola republicana e laica, vimos surgir recentemente uma ofensiva punitiva e privatista, que demanda um retorno ao ensino tradicional autoritário e à punição individual como solução para a violência estrutural e sistêmica. Esse aspecto traumático da educação, antes exclusivamente baseado na repressão social, agora traz a roupagem plumosa do engodo, da mentira, do sarcasmo e do contrassenso desmedido. Alguns exemplos: a investigação da vida privada em redes sociais, a incitação à pornografia, a proibição de se falar de gênero e política nas escolas, a armação de golpes, à manipulação das ideias que vai do consumo à macropolítica, as famigeradas fake news, enfim a desautorização generalizada que se institui na impostura da propriedade e na perversão do "rentismo". A educação, nesses moldes, visa o lucro e não a cidadania e igualdade social. Toda essa produção discursiva preconiza um desenvolvimentismo que se manifesta de maneira cruel contra a vida nua, descrita por Agamben (1995/2002) através do conceito de homo sacer. Trata-se de alijar uma categoria subjetiva específica que estaria sempre fora da norma (Foucault, 2001/2002), às margens. Num contexto de desautorização instituída, isto é, no desmentido social, a violência se dirige especificamente a essas vidas que supostamente não mereceriam ser vividas (Agamben, 1995/2002), ou seja, aquelas que são continuamente violentadas pelo aparelho ideológico de Estado (Althusser, 1971/1987). Negros, indígenas, pardos, mulheres, crianças, aqueles que são sexualmente divergentes do padrão heteronormativo, pessoas com desabilidades, em suma, todos amalgamados no processo de exclusão e estigmatização, exatamente porque são pobres. Eis a grande origem da violência na educação brasileira: no preconceito inconsciente, posto que coletivamente constituído, e que gera um despreparo subjetivo para lidar com o outro, provocando inúmeras situações disruptivas que aparecem como sintoma nas esferas subjetivas e social.
No trabalho de formação de professores, seja na pedagogia, seja nas licenciaturas, vemos constantemente, há quase duas décadas, o despreparo tanto dos estudantes, futuros docentes, quanto de professores, na ativa, em lidar com certas turmas, em especial, quando nelas existem crianças ou jovens difíceis. Esses sujeitos irreverentes são vistos como quem vem a transtornar a ordem disciplinar prevista na educação tradicional. É fato que a transformação da mentalidade do mundo adulto pouco mudou, e os meios educacionais, em geral, ainda portam a sombra de um excessivo conservadorismo. Por outro lado, denega-se a função coercitiva da escola através de um fetichismo educacional em que se prega a ideia de aprender com prazer e a criatividade no uso de novos métodos didáticos, ao passo que, continuamente, tenta-se dominar crianças e jovens com a linguagem da paixão (Ferenczi, 1933/2011), naquilo que representa um traumático inerente ao ensino.
Ao longo do século XX, inúmeras ideias vieram a arejar esse contexto, como o movimento da Escola Nova e a aplicação das leituras de Piaget, Vigotsky, Freinet, Paulo Freire e tantos outros. Entretanto, a educação tradicional, disciplinar, promotora de adaptação e silenciamento, aquela que clama pelo retorno da palmatória recalcada (Arreguy, 2014), nunca foi totalmente abandonada. Professores e estudantes nunca foram tão vigiados como na sociedade de controle (Deleuze, 1990/1992), onde câmeras registram continuamente todos os atos "cometidos" em as salas de aula, num ímpeto de criminalização da docência, por um lado, e de investigação do potencial criminal de crianças e jovens, por outro. Essa investida do controle, com a vigilância constante da vida subjetiva, ocorre em esfera mundial. Isso pode ser exemplificado com a "cruzada" científica exposta no documentário L'enfance sous controle1, visando o mapeamento da agressividade e seu potencial criminal desde a infância.
Num contexto ultra-pragmático e pretensiosamente tecnológico, as crianças são sumariamente diagnosticadas, na própria discursividade dos atores escolares, como bullies, hiperativos e/ou desatentos. Os professores, por sua vez, são tratados como ideólogos de um marxismo cultural a ser extirpado, juntamente à sua posição política2. Para lidar com a tão espetacularizada "violência nas escolas", projeta-se então o "mal" nas crianças, jovens e professores isoladamente, culpando os indivíduos e denegando o contexto. Fala-se aos quatro ventos em crise da educação, culpabilizam-se as famílias ditas desestruturadas do descuido e despreparo das crianças (Patto, 1990/1996), reclama-se da ausência de autoridade dos educadores (Arreguy, sous presse), destacando da escola, em si-mesma, sua implicação no mal-estar educacional. Esse raciocínio vale para a isenção de responsabilidade com as práticas profissionais, para o descrédito com a implicação do sujeito no desejo de conhecer e de reconhecer o outro em suas limitações. Contrariar essa lógica perversa deveria vir antes mesmo de qualquer obrigatoriedade de transmitir um dado conteúdo. A qualidade afetiva, a capacidade de cuidado e acolhimento do ambiente são determinantes nos destinos da pulsão de morte da criança. Observações clínicas apontam que uma educação coercitiva pode inclusive desencadear impulsos suicidas (Ferenczi, 1929/2011). A autoridade do professor só pode ser legítima se ele é capaz de ser empático em situações de precariedade generalizada, expressas tipicamente no enviesado pedido de ajuda atuado por crianças e jovens agressivos. Professores, por sua vez, ficam na encruzilhada entre serem considerados os "salvadores da Pátria" e, simultaneamente, serem cerceados por políticas exploratórias, que os tornam completamente impotentes. Haveria situação mais paradigmática desse desmentido do que o espancamento de professores pela polícia nas suas greves e manifestações de protesto? Docentes que reclamam e se mobilizam contra a condição de exploração em que vivem, são ainda mais punidos por políticas de segurança autoritárias. O discurso sobre "a educação para todos", que nunca se efetiva de fato, ocupa o lugar de um fetiche cultural.
Na célebre asserção de Sartre: O inferno são os outros! Esse modo projetivo de lidar com a alteridade foi detectado há muito na clínica psicanalítica individual, mas é algo que também apresenta seus tentáculos psicopatologizantes no campo da saúde coletiva. Ora, é impossível desatrelar totalmente a educação da saúde mental, em discordância parcial a respeito do que afirma Costa (1984/2003). E, Ferenczi (1908/2011) denunciou de modo contundente a hipocrisia na educação tradicional e seus efeitos na saúde psíquica. Alertou para a "mentira" institucionalizada na falsa palavra dada à criança de que tudo aquilo de mais verdadeiro que ela sente, ou seja, os prazeres percebidos em seu corpo e a forma terna de sua sexualidade, representaria algo "feio", "pecaminoso" e "inaceitável". Lidamos, portanto, com dois patamares do trauma na esfera educativa: 1) no campo de uma violência objetiva (Žižek, 2008) que denega a exploração de professores e a divisão de classes no Brasil; e, 2) que recalca a realidade pulsional da criança e desautoriza as práticas de reconhecimento.
Evidente que não se pode desvincular a violência da linguagem - essa violência primária (Aulagnier, 1975), subsumida no significante, de uma palavra que fecha sentido do plano inerente à renúncia pulsional. Essa função do recalque subjaz, na análise precisa de Gondar (2018), ao trauma específico no plano societário, referindo-se a um racismo desmentido. A transformação educacional brasileira é impedida por uma violência, e, em específico, um racismo desmentido nas escolas, como puderam atestar respectivamente as pesquisadoras Gomes (2017) e Lazzarine (2018), em suas pesquisas de mestrado. Ambas pesquisadoras do Grupo Alteridade Psicanálise e Educação da Universidade Federal Fluminense, apresentam em seus trabalhos essa diferença no que se refere à leitura do trauma freudiano, caracterizado pela lógica do a posteriori. A violência desmentida nas escolas apresenta assim uma dimensão ternária, expressa nas práticas de desqualificação e denegação do sofrimento psíquico, seja de crianças, jovens ou professores.
É importante abordar a função do desmentido, no sentido da desautorização daquilo que é claramente percebido na realidade, porém escamoteado. Em termos clássicos (Ferenczi, 1933/2011), a criança que sofreu um abuso sexual (ou uma violência qualquer) conta o ocorrido para um adulto de sua confiança e esse adulto desconsidera a veracidade do relato infantil. Poder-se-ia colocar essa asserção, do ponto de vista estrutural, da seguinte maneira: um terceiro sujeito sustenta a mentira de um segundo, desautorizando o primeiro e provocando-lhe uma comoção traumática (Ferenczi, 1933/2011) muito mais incapacitante do que a própria violência sofrida.
Nessa forma do trauma, a existência do sujeito é colocada em xeque, pois ele não pode confiar na sua própria percepção da realidade, já que não há nenhuma forma de reconhecimento do outro em relação ao sofrimento que lhe foi imputado. Diríamos que sua percepção da realidade é falseada mesmo sem refutação. Considerada a esfera educacional, Lazzarine (2018) relata com precisão esse processo de não enxergar a si mesmo no espelho em relação ao racismo desmentido. O sujeito passa a se ver como um erro, um desacerto da natureza, como se o que visse não pudesse ter lugar no real; percepção esta que não só corrobora a tese magistral de Neusa de Souza Santos sobre o ideal de ego do negro ser branco, mas que vai além. No trabalho de Jô Gondar (2018), o racismo à moda brasileira é compreendido para além do trauma pela via do recalque, mas como algo que gera uma fragmentação psíquica (Gondar, 2014), logo, um trauma incapacitante, na medida em que o traumático não possui representação, apenas "aparece", é figurado compulsivamente como num pesadelo (Arreguy, Freitag & Lobo, 2014). Afinal, onde não há reconhecimento, o sujeito não pode vir se representar. No reinado da pulsão de morte, a única saída seria se fragmentar ao ponto de ampliar a superfície de contato com o real, criando micro-realidades distintas, que desconhecem-se entre si, de modo a minimizar o sofrimento psíquico. Uma vez que a ferida narcísica (Freud, 1914/1996) é insuportável, a angústia transborda todos os limites, impossibilitando a integração do ego. Assim, o sujeito é ferido de morte. Do ponto de vista político, diríamos que passa a se comportar de modo alienado, como um zumbi, um morto-vivo (Arreguy, 2017). Essa realidade social traumática é ainda mais nítida quando os preconceitos de raça, cor, gênero e diversidade sexual são conjugados.
Agressividade, passagem ao ato e clivagem traumática
A violência está sempre ligada a um contexto de subjugação e uso de poder de um sujeito sobre o outro. Nesse sentido, é preciso diferenciar a violência interposta na relação de dominação, subjugação e maus-tratos frequentes, de uma agressividade contingente e inerente ao plano vital (Winnicott, 1950/2000), necessária para a sobrevivência e para a vida ativa. A violência que leva à agressão deliberada, à destrutividade (e autodestrutividade), bem como à eliminação do outro, representa um sintoma atrelado a formas prévias de depr ivação material, mas, principalmente, de ordem afetiva (Winnicott, 1956/1984). Na tradição psicanalítica, corrobora-se então a hipótese de que os conflitos e impasses violentos estejam mais estreitamente relacionados ao ambiente, à criação e à educação - supostamente faltante (indiferente ou ausente) ou excessiva (intrusiva ou ultra-idealizada) - do que exclusivamente a alguma essência psicopatológica do sujeito.
A passagem ao ato típica das situações de violência intersubjetiva foi definida como um curto-circuito pulsional (Lacan, 1950). Isso se daria na transposição da agressividade típica do acting-out (um "ato" endereçado de modo transferencial) para um ato violento que visa uma ruptura completa com o Outro. As situações de violência revelam uma saída brusca da cena traumática na tentativa de eliminar toda alteridade e de escapar do regime discursivo. Esse desinvestimento do endereçamento a um outro significativo ocasiona o descarrilhamento das amarras subjetivas, expresso na passagem ao ato violenta. Trata-se de uma dimensão irrepresentável manifesta como função da pulsão de morte (Freud, 1920/2006). Assim, a prevenção da violência entre os atores presentes nas escolas só pode ser elaborada, se suas condições inconscientes forem desconstruídas.
As situações-limite (Chagnon, 2009) que geram violência em contextos educativos podem ser compreendidas através da percepção da clivagem em experiências clínicas. Em Ferenczi (1931/1992) temos que a autoclivagem narcísica seria resultante da violência do abandono presente no desmentido: "Tem-se nitidamente a impressão de que o abandono acarreta uma clivagem da personalidade. Uma parte da sua própria pessoa começa a desempenhar o papel da mãe ou do pai com a outra parte (...)" (Ferenczi, 1931/1992, p. 76). O choque traumático faz com que uma parte da pessoa amadureça de repente. Isso se dá a partir de um tipo de clivagem que é da ordem da fragmentação (Ferenczi, 1931/1992). Em texto escrito em 1932, mas publicado postumamente como Diário Clínico (Ferenczi, 1932/1990), o autor ressalta que haveria uma ruptura entre a parte destruída e a parte que vê a destruição: uma parte "nada sabe" e guarda uma lembrança sensível do trauma e a outra parte "sabe tudo" e "nada sente". Nesses termos, citamos:
Tudo se passa verdadeiramente como se, sob a pressão de um perigo iminente, um fragmento de nós mesmos se cindisse sob a forma de instância autoperceptiva que quer acudir em ajuda, e isso, talvez, desde os primeiros anos da infância. (...) as crianças que muito sofreram, moral e fisicamente, adquirem os traços fisionômicos da idade e da sabedoria. Também tendem a cercar maternalmente os outros (Ferenczi, 1931/1992. , p. 78).
É nesse contexto de violência psíquica e autoclivagem que Ferenczi utiliza a noção de autotomia (Ferenczi, 1928/1992). Originalmente, a autotomia corresponde ao movimento de alguns animais que destacam do corpo uma parte deste que provoca dor ou excitação demasiadamente forte. O autor se apropria desse conceito, trazendo-o para o campo psicanalítico, de modo que a autotomia passa a constituir uma defesa ainda mais radical, definindo-se como uma fuga psíquica diante do que provoca dor. À guisa de diferenciação, Reis (2004) afirma que o recalcamento seria um mecanismo de outra ordem: "menos primitivo" do que a autoclivagem.
Enquanto no recalcamento perde-se a memória de um primeiro tempo, que será significado como sintoma a posteriori, em um segundo tempo sobrecarregado de sentido, na clivagem traumática esses dois momentos não apresentam solução de continuidade. Eles são o mesmo, isto é, um não dá sentido ao outro porque ambos escapam à possibilidade de sentido (Reis, 2004, p. 70).
Portanto, a autoclivagem narcísica ferencziana é o mecanismo que nos auxilia na compreensão dos casos de violência psíquica tão presentes nas patologias narcísicas e nas situações de vulnerabilidade social, quando o trauma é vivido no cotidiano (Gondar, 2014). Essa realidade se expressa no narcisismo das pequenas diferenças (Freud, 1929/1996), em situações de confronto, discussões, brigas e agressões manifestas entre as pessoas nas escolas, que são difundidas de modo espetacularizado pela mídia, e acabam sendo criminalizadas pela própria sociedade.
A agressividade excessiva é elemento central presente no entendimento das patologias narcísicas, situando o não reconhecimento do sofrimento infantil por parte do adulto nas origens da clivagem do ego infantil (Freud, 1938/2007; Ferenczi, (1933/2011; 1934/2011), o que culmina com a eclosão de casos difíceis e de situações de passagem ao ato. Levando em conta essa linhagem do pensamento psicanalítico, pode-se avançar na análise de que a agressividade atuada pela criança e, mais ainda, tornada violenta em jovens, esteja estreitamente relacionada com a cultura, manifesta na atitude dos adultos - pais, educadores e psicólogos - diante do infantil (Ferenczi, 1929/2011).
 A violência atuada com fundamento nessa clivagem psíquica (Freud, 1927/2007, 1938/2007) assinala uma severa divisão no próprio eu do sujeito. A clivagem é, assim, seguindo a leitura ferencziana, o efeito do trauma causado pela hipocrisia nas relações alteritárias, no momento em que há a desqualificação global dos afetos das crianças pelos adultos, sobretudo por aqueles que possuem um papel fundamental para a criança (Ferenczi, 1908/2011; 1933/2011; 1934/2011). Assim, o não reconhecimento do sofrimento infantil produz essa violência desmentida. O que a criança sente e percebe é desvalorizado e negado pelo adulto (Ferenczi, 1933/2011). Cria-se então uma incongruência entre o sentir e o pensar, fruto de uma impossibilidade do adulto de dar sentido às vivências infantis. A arbitrariedade dos adultos em não acolher, em serem indiferentes, ou mesmo, violentos na interpretação das situações de desamparo vividas pelas crianças, geraria, portanto, um traumatismo impossível de ser integrado. Uma parte do eu da criança passa a se identificar inconscientemente com o comportamento do agressor (Ferenczi, 1933/2011), a outra fica como que anestesiada, sem afetos, como "morta"...
O pior é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado e repreendido quando se manifesta a paralisia traumática do pensamento ou dos movimentos; é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico (Ferenczi, 1931/1992, p. 79).
O fato de a criança ser violada ou agredida pode ser recalcado e, posteriormente, elaborado. Mas quando o adulto não confere valor ao pedido de ajuda da criança, ela perde a capacidade de dar sentido para suas ações, e pode atuar caoticamente. Por outro lado, quando se criam chances de se estabelecer uma troca intersubjetiva legítima - permeada pela atenção, pelo cuidado e pela troca dialógica - a distorção da agressividade em violência é evitada. O reconhecimento do sofrimento alheio é condição sine qua non para que seja garantida a integração psíquica e a criação de saídas socialmente aceitas para as demandas pulsionais. A agressividade como motilidade (Winnicott, 1950/2000) não pode ser extirpada do universo infantil, assim como a violência do mundo adulto não pode ser denegada ou tratada como se não existisse, pois isso sim seria muito mais traumático.
Retomando a dimensão coletiva da violência no meio escolar, vemos que a própria precariedade social é desmentida, como se as pessoas dependessem exclusivamente do mérito pessoal para progredir intelectual e financeiramente. O discurso derrisório da democracia racial, suficientemente criticado, por exemplo, por Souza (2017), denega a exploração de classes. O desmentido mais evidente é o dos antigos escravos tornados "criados", empregados explorados pelas elites, mas que são tratados como se fossem da família do explorador. Isso traz consequências traumáticas em toda esfera educacional, clivada entre os filhos dos ricos e os filhos dos pobres. Nessa mesma ordem da desqualificação de classes, os professores e estudantes são culpabilizados pela produção do fracasso escolar (Patto, 1990/1996). As condições macropolíticas nefastas, por sua vez, são minimizadas nos discursos midiático e educacional hegemônicos. No contexto de recrudescimento da violência objetiva (Žižek, 2008), macroeconômica, prolifera-se a produção social de educadores adoecidos. E, uma vez violentados pelo próprio sistema, passam inconscientemente a alimentar esse traumatismo incapacitante nas próprias relações educativas.
Sendo assim, nesse ponto temos a necessidade de recorrer ao conceito de introjeção ferencziano, como um fator fundamental para o estabelecimento do próprio psiquismo, do sentido e das relações intersubjetivas. Buscaremos compreender a introjeção como um movimento de inclusão do mundo no eu, que permite ao sujeito uma aproximação com o mais diferente em busca de semelhanças humanas básicas. Para a construção dessa função egóica fundamental, Ferenczi (1909/1992; 1912/1992; 1929/2011) sublinha o papel essencial do outro como fiador da introjeção. Aqui sugerimos compreender que o outro social, representado pela cultura, teria também esse lugar de fiador da introjeção na esfera coletiva. E diante da denegação no âmbito social, temos a violência traumática instaurada nas relações, negando a alteridade.
Introjeção e transferência mútua: inspirações para a sensibilidade na docência
A introjeção ferencziana é o mecanismo que funda o aparelho psíquico e constitui o esboço da formação do eu. A introjeção é a forma de funcionamento do aparelho psíquico que compreende a introdução, primeiramente, dos afetos (tonalidades diferenciais do prazer e desprazer), e, subsequentemente, dos objetos externos à esfera do eu, como se fosse uma espécie de "alargamento do eu". Ferenczi afirma textualmente que "o neurótico procura incluir em sua esfera de interesses uma parte tão grande quanto possível do mundo externo, para fazê-lo objeto de fantasias conscientes ou inconscientes" (Ferenczi, 1909/1992, p. 84, grifos do autor). Assim, é através da introjeção que o sujeito pode atribuir sentido ao mundo e a si mesmo. É a partir da introjeção que o sujeito pode fantasiar, associar e produzir imaginariamente (Pinheiro, 1995). O conceito de introjeção é bastante abrangente, de modo que, para Ferenczi, tudo começa no corpo. Todas as experimentações do sujeito se iniciam no próprio corpo. Esse corpo se deixa afetar pelo mundo ao mesmo tempo em que compreende o mundo através de si mesmo. Assim, o eu descobre o mundo em comparação ao que lhe é conhecido: o corpo e suas intensidades. Nesta perspectiva:
As percepções e a organização das percepções que se dão nesse plano de semiotização por intermédio do processo de introjeção constituem 'a nova ação psíquica' [mencionada por Freud em 1914] (...) O eu não é tematizado aqui como uma instância psíquica constituída, e sim como a capacidade característica do ser humano de se singularizar como membro de um coletivo, no que atua como elemento que afeta e é afetado. Essa mútua capacidade de afetação compõe a matéria introjetada que constitui o 'mundo próprio' do eu (Reis, 2004, p. 112)
Ferenczi (1913/1988) afirma, no texto O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estádios, que o sujeito, em certo momento, é obrigado a distinguir as coisas que resistem à sua vontade - e, por isso, são sentidas como malignas - do seu próprio eu. Isso corresponderia à distinção entre os conteúdos psíquicos subjetivos (sentimentos) e os conteúdos objetivados (as impressões sensíveis). A introjeção seria o primeiro estádio, imaginário, em que todas as experiências permanecem incluídas no eu; um estádio de onipotência. O estádio de realidade, por sua vez, corresponderia à fase de projeção do desenvolvimento do eu, quando a criança investe no mundo externo com qualidades que descobriu em si mesma. Ou seja, ela se relaciona com o mundo tentando encontrar nele qualquer semelhança com seu corpo, seus órgãos e o funcionamento destes. A criança atravessaria, com isso, um período animista em sua apreensão da realidade.
Neste sentido, Ferenczi inclui o narcisismo como um estádio de onipotência do erotismo que protegeria o sujeito diante da catástrofe representada pelo desenvolvimento do eu. Para o autor, o desenvolvimento do sentido de realidade é alcançado através de "arrancadas sucessivas de recalcamento, a que o ser humano é constrangido pela necessidade, pela frustração exigindo adaptação" (Ferenczi, 1913/1988, p. 86). Temos em Ferenczi uma ideia de constituição subjetiva traumática, que se dá através de sucessivas catástrofes. São rupturas nas formas de organização do eu e do mundo. Por isso a denominação de estádios do sentido de realidade. Não são estádios os quais o sujeito precisa superar para se desenvolver. São formas de organização psíquica que não são superadas e podem ser reativadas a qualquer momento. Afinal, o inconsciente é atemporal, ou melhor, tudo permanece no presente, e assim, todos esses tempos dos estádios do sentido de realidade são conservados (Montes, 2008).
Portanto, o encontro do sujeito com o mundo é traumático por excelência. A própria introjeção é, a princípio, da ordem do excesso pulsional.
É a introjeção desse "outro" possuidor de um código e de uma linguagem que ultrapassam as capacidades do bebê que, ao forçar barreiras e criar novas capacidades, constitui o paradoxo presente no caráter traumático dos processos de estruturação psíquica (Reis, 2004, p. 62).
Cabe a um outro significar o que deve ser introjetado, propiciando a ligação entre o afeto e a representação; a integração entre o sentido e a intensidade. Podemos afirmar que o trauma não é, em si, nem constitutivo, nem desestruturante ou patológico. O que define o trauma de uma forma ou de outra é justamente seu destino. Se esse excesso receber um contorno, ele será estruturante, ou seja, constitutivo do sujeito barrado, no linguajar lacaniano. Mas, se o traumatismo não entrar no campo da possibilidade narrativa, a ponto de colocar em xeque a montagem narcísica do sujeito, ele será desestruturante. É importante ficarmos atentos, desse modo, ao papel do outro na constituição subjetiva a fim de compreender que o trauma e a violência só se configuram a partir da relação com o outro, conforme instituída no laço social.
Tomamos o texto Elasticidade da técnica psicanalítica (Ferenczi, 1928/1992) para apontar o quanto Ferenczi considerava a radicalidade da relação com o outro para a experiência subjetiva, chegando a compreender o tratamento analítico de maneira intersubjetiva, como um espaço entre dois sujeitos. Ele afirma, então, que ser analista é estar numa posição desconfortável e, principalmente, não hipócrita. É ser absolutamente sincero e conseguir esperar o momento do paciente entrar em atividade; é suportar a transferência negativa que, para ele, é fundamental para o tratamento no que diz respeito à superação da identificação com o agressor.
Claro que, ao colocar nestes termos, Ferenczi está de acordo com Freud, que considera que o analista deve, ele próprio, passar pela experiência de análise. Afinal, "a modéstia do analista não é, portanto, aprendida, mas a expressão da aceitação dos limites do nosso saber" (Ferenczi, 1928/1992, p. 31). O analista precisa, para exercer sua função, saber abrir mão do próprio narcisismo. Essa ideia está presente na noção ferencziana de tato apresentada no texto de 1928 (Ferenczi, 1928/1992). É o tato que permite ao analista saber o momento de interpretar, de aguardar e calar. Através do tato, o analista pode se pôr atento às forças da resistência. Ter tato é poder sentir com o outro. É se colocar no lugar do outro a partir da lógica de funcionamento desse outro, e não a partir de sua própria subjetividade. Parece algo muito óbvio, mas é uma tarefa árdua porque não requer nenhum tipo de racionalização (Montes, 2008). O sentir com (Ferenczi, 1928/1992) é estar em sintonia afetiva e nos remete a um campo de afetação (Maia, 2004), apontando para a existência de "um atravessamento entre domínios psíquicos" (Maia, 2004, p. 235) . Trabalhar a partir da noção de sentir com é admitir que as impressões sensíveis são imprescindíveis no circuito da transferência.
A partir dessas colocações e alargando, como Freud (1912/1996), a relação transferencial para toda relação intersubjetiva, podemos utilizar a noção de tato para nos referir à relação professor-aluno. A fim de construir teoricamente a possibilidade de uma transferência mútua nessa relação, recorremos a Ferenczi em seu desejo pela não hipocrisia nas relações. A hipocrisia, juntamente ao escárnio, à derrisão e ao descrédito da realidade traumática apresentada por uma criança ou jovem, são capazes de produzir traumas que colocam dúvidas sobre a própria certeza de si na parte mais fraca da relação. Quem sofre as consequências desestruturadoras de uma violência desmentida é sempre a parte mais vulnerável, que toma a palavra do outro como verdade, em detrimento de qualquer suporte nos fatos percebidos como realidade pelo próprio sujeito.
Concebemos, dessa feita, a existência de atravessamentos entre os domínios psíquicos de professor e aluno. Constatamos igualmente que o modo como escola funciona ainda hoje, ou seja, a partir de uma relação altamente hierárquica, favorece à imposição de uma visão única, verticalizada e imperativa, dos fatos. Entretanto, o professor pode optar pelo lugar do tato ou do desmentido. Se o professor é capaz de sentir com o outro (e de se colocar de forma dinâmica na relação, transitando para uma posição horizontal e amical (Arreguy & Bafica, 2017), poderá ter a chance de introjetar novos sentidos e atuar nesse campo de afetação de maneira a alargar a experiência egóica, propiciando a abertura necessária ao desejo. No entanto, quando o professor se coloca numa posição hipócrita de negar a realidade e/ou a existência subjetiva do aluno, desqualificando em vez de valorizar o erro, ele facilita o caminho de um trauma violento, que tem o poder de causar a desestruturação subjetiva e afastar o aluno da escola. A posição do/da professor/a na transferência com os estudantes é capaz de gerar desde a inibição intelectual, provocando a aversão transferencial aos estudos, até a tentativa de destruição do outro, como tem sido corriqueiro nos massacres feitos por estudantes a colegas e professores (Arreguy & Gontran, 2012). Reproduzindo uma situação de violência social, o professor abandona seu posto de fiador de uma cultura pulsante para abrir caminhos tortuosos, abrindo brechas para mecanismos de defesa arcaicos, tais como a identificação com o agressor. Nesse ponto, a reprodução do desmentido surge no sadismo linguageiro do professor; algo corriqueiro em salas de aula (Arreguy, 2014). Trata-se de um ciclo vicioso: a cultura desautoriza o professor, que desqualifica os estudantes. Estes se rebelam contra a educação e introjetam o lugar de dejeto, de quem não tem valor, já que o único valor realmente reconhecido socialmente é atribuído aos mais abastados, inteligentes, bonitos, descolados que podem consumir e ostentar o que quiserem. Princípios discursivos como a solidariedade, igualdade, fraternidade acabam não tendo sustentação, pois a impostura de uma violência objetiva é atuada como violência subjetiva e direta contra o outro.
Considerações Finais
Se, do ponto de vista do sintoma coletivo, ainda não fomos efetivamente capazes de insurgir contra a violência desmentida no âmbito social, do ponto de vista subjetivo, temos um pouco mais de margem de manobra. Kaës (2007/2011), por exemplo, é um autor que trata das alianças necessárias aos laços de grupo e às instituições, reconhecendo aspectos psíquicos nos grupos sociais e aproximando o funcionamento coletivo ao subjetivo. Podemos, dessa maneira, tratar da intersubjetividade e do campo de afetação a partir de um posicionamento ético. Ao reconhecer a fragilidade do outro a partir do contato com o aspecto traumático da própria fragilidade narcísica, o/a professor/a tem condições de operar um recuo diante da agressividade de crianças e jovens e se colocar numa posição de mutualidade e reconhecimento. Ao também perceber-se como objeto tanto de uma violência objetiva, econômica, quanto de uma violência estrutural, do mal-estar inerente à educação, rompendo com um ciclo narcísico de identificação com o agressor, é possível escapar de uma violência sorrateira, sádica e mórbida: aquela que denega a falta de oportunidades e o sofrimento psíquico dos sujeitos mais vulneráveis. Isso não significa se posicionar apenas como vítima, mas como alguém que busca uma trajetória ética e fraterna, jamais indiferente. Apenas livrando-se dos estereótipos de uma pedagogia da excelência (Miqueias & Arreguy, 2017), típica da meritocracia, o professor pode olhar nos olhos de seus estudantes mais desfavorecidos, seja no nível material, seja no nível dos afetos. Nesse sentido, Arreguy e Coutinho (2015) ressaltam uma situação relatada por um professor, em que ele interrompe o ataque de chutes que seu aluno, uma criança, desferia contra ele. Ao se abaixar, pegar firme nos braços do menino, olha em seus olhos, e diz: "Ë Eu já bati em você? Eu já gritei com você? Então, por que está me tratando assim?" (Arreguy & Coutinho, 2015, p. 286). Evidentemente, ele mostrou o seu desamparo, ou seja, seu despreparo total para lidar com a situação. Diante da franqueza e da preocupação ativa do professor, o menino começou a chorar, entregou-se nos braços do professor e arrefeceu seu "surto agressivo"... Só assim, despojando-se de preconceitos de classe e de idealizações narcísicas, assumindo uma postura sem a contaminação da hipocrisia, seria possível produzir identificações sãs, legitimadoras do que existe de mais íntimo na subjetividade. Nesse sentido, cabe driblar os efeitos deletérios de um trauma incapacitante, por ventura, introjetado a partir de um agressor íntimo em um mundo peculiarmente violento.
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Recebido em maio/2019 Aceito em agosto/2019.
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2 Vide Projeto Escola sem Partido, que tramitou no congresso nacional na última década, gerando grande apelo ao público-alvo de uma sociedade tradicionalista, identificada desde longa data com o slogan "Tradição, família e propriedade", fomentador da Ditadura Civil-Militar no Brasil de 1964 a 1985.