SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24 número3Quem serão os autistas de amanhã?Pontuações sobre infância, escola e biopolítica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.3 São Paulo set./dez. 2019

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i3p393-399 

10.11606/issn.1981-1624.v24i3p393-399

DOSSIÊ

 

Sobre escolas, bebês e crianças: alguns impasses do educar

 

Acerca de las escuelas, los bebés y los niños: algunos impases de educar hoy

 

About schools, babies and children: some impasses of educating today

 

 

Leda Mariza Fischer BernardinoI

IPsicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Curitiba. Pesquisadora do grupo de pesquisa "Validação de instrumentos clínicos baseados na psicanálise" da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: ledber@terra.com.br

 

 


RESUMO

A partir de algumas situações atuais, a rotina escolar e a clínica psicanalítica, o artigo discute os novos sintomas apresentados pelas crianças e suas consequências para as famílias e escolas em relação à educação e seus impasses. Retoma-se o texto freudiano sobre os impasses do processo civilizatório para apontar o que de estrutural existe nesta questão. Discute-se a atual mutação cultural e seus principais traços: a dificuldade de transmitir a falta no processo educativo, a anulação da diferença e a exacerbação do narcisismo. Conclui-se com a hipótese de uma nova organização social em implantação: o matriarcado, com o império da natureza sobre os aspectos simbólicos.

Palavras chave: mutação cultural; sintomas; educação de bebês e crianças; psicanálise.


RESUMEN

De algunas situaciones de la actualidad, la rutina escolar y la clínica psicoanalítica, el artículo discute los nuevos síntomas presentados por los niños y sus consecuencias para las familias y las escuelas en relación con la educación y sus impases. El texto freudiano se reanuda en los impases del proceso civilizante para señalar lo estructural que existe en esta cuestión. La mutación cultural actual y sus principales rasgos se discuten: la dificultad de transmitir la falta en el proceso educativo, la anulación de la diferencia y la exacerbación del narcisismo. Concluye con la hipótesis de una nueva organización social en ejecución: el matriarcado, con el imperio de la naturaleza sobre los aspectos simbólicos.

Palabras clave: mutación cultural; síntomas; educación de bebés y niños; psicoanálisis.


ABSTRACT

From some situations of the present day, the school routine and the psychoanalytic clinic, the article discusses the new symptoms presented by the children and their consequences for families and schools in terms of educating and their impasses. The Freudian text is resumed on the impasses of the civilizing process to point out what structural exists in this issue. The current cultural mutation and its main traits are discussed: the difficulty of transmitting the lack in the educational process, the annulment of the difference and the exacerbation of narcissism. It concludes with the hypothesis of a new social organization in implementation: the matriarchy, with the empire of nature on the symbolic aspects.

Keywords: cultural mutation; symptoms; education of babies and children; psychoanalysis.


 

 

É comum ouvirmos indagações sobre se a escola ainda seria um lugar de aprendizagem para as crianças, já que a velocidade das transformações tecno científicas a teria deixado obsoleta.... No entanto, no mundo ocidental, ainda não se encontrou uma outra instituição que pudesse se encarregar desta questão do aprender, mais além da família.

Ao mesmo tempo, a escola não é mais só o lugar das crianças, tornou-se também o lugar dos bebês! Encontrar a melhor escola para seu filho se tornou um imperativo para os pais atuais. É desta escolha, eles acreditam, que vai depender o futuro de seus filhos! E isso muito precocemente, já a partir da escolha do berçário onde matricular seu bebê.

Se o mundo pode ser mais virtual que real, o cognitivo pode valer mais que o afetivo, a eficiência mais que a tradição, o imediato mais que o tecido transgeracional; também os bebês e crianças seriam de outro naipe hoje? Sabemos que estamos diante de outros sintomas nas demandas que acolhemos. Sabemos também que temos que reformular nossa escuta no espaço que propomos, pois o brincar não é mais tão espontâneo nas crianças como há 30 anos, nem os significantes se apresentam do mesmo modo.

Bebês têm, muito cedo, acesso às mais diferentes telas; muitas crianças têm mais modelos identificatórios em desenhos animados e brinquedos-robôs do que nas pessoas da família (Bernardino, 2017). Dar primazia à imagem em detrimento do tecido simbólico pode modificar a organização psíquica do infans? Sim, segundo alguns autores, como Dufour (2009) e Lebrun (2004), estamos diante da produção de novas subjetividades. Para outros (Hoffmann e Safouan, 2016), as mudanças são contingentes e não estruturais.

Este mundo virtual é assexuado. Sem o vivo do corpo, como lidar com o real corporal? Assistimos às dificuldades de muitos bebês e de crianças para dar um destino aos seus impulsos, para conectar o que acontece com seu corpo com o campo das significações, para entrar em experiências prazerosas com o outro, para conviver com os pares em uma interação criativa. O aumento da incidência do autismo na população aí está para nos demonstrar isto (Bernardino, 2016).

A clínica psicanalítica nos interroga e desafia, bem como nossa parceria com escolas. Somos destinatários, da parte de pais, professores, dos impasses do educar hoje. Afinal, é deste educar que depende o que as crianças levarão para o futuro!

Ou o futuro será programado a partir de informações anônimas e desarticuladas, transmitidas por uma mídia generalizada que penetra nos lares e nas escolas para gerar consumidores acéfalos dos produtos recém lançados no mercado? A ficção científica virará realidade?

Que futuro seria este, dos consumidores consumidos?

 

Algumas situações da atualidade

Um pai se interroga com muita ansiedade: estaria acertada a escola que ele e a esposa escolheram para os filhos? É uma questão que ocupa várias de suas sessões de análise. Sua esposa quer uma escola dita "alternativa", laica, um espaço para a criatividade e para a inovação. Ele, por sua vez, gostaria de uma escola tradicional, de acordo com a cultura religiosa de sua família, onde os filhos receberiam um ensino robusto para enfrentar a competição acirrada que ele próprio vive nos meios em que circula.

Estes pais discutem, a partir de suas disparidades históricas, qual seria a melhor escola para seus filhos, tendo como horizonte o futuro que os espera. Sobre este futuro, não há garantias. Se gerações atrás se podia, aproximadamente, imaginar o que esperar, hoje estamos praticamente no escuro quanto ao que as crianças encontrarão na idade adulta.

Por outro lado, nossa parceria com muitos agentes engajados no campo escolar nos mostra que também da parte das escolas são muitas as questões que hoje se apresentam: como manejar os impasses cotidianos trazidos por crianças, professores e pais, em um contexto de juridicialização, patologização, medicalização e psicologização da educação? O que uma escola deveria oferecer, para promover realmente experiências válidas de aprendizagem? Experiências que teriam incidência em um futuro que – tendo em vista as vertiginosas mudanças trazidas pelo "progresso" galopante – torna-se cada vez mais enigmático...

No campo da clínica, questões educativas graves nos chegam, principalmente as trazidas por mães desnorteadas quanto ao comportamento dos filhos: estes são extremamente agressivos, agridem familiares, as agridem. Os pais, geralmente já não convivem com a mãe dos filhos, e à distância assistem a este drama sem muito interferir; ou ficam surpresos com a descrição deste filho, que não lembra aquele com quem convivem. São roteiros comuns que se passam no cenário mais banal da infância contemporânea: crianças "sem domicílio fixo", em uma errância no que se refere ao seu lugar e ao regramento de seu gozo. Qual seria, hoje, o lugar capaz de servir como sede da subjetividade da criança?

A este cenário da agressividade, somam-se os sintomas depressivos na infância, que falam de uma criança apática, sem desejo de viver, que chega mesmo a fazer tentativas de suicídio, algo impensável, por exemplo, na época freudiana!

 

A atualidade de Freud

Embora não pudesse prever o que seria a infância do século XXI, foi justamente Freud, em sua meticulosa aproximação do que nomeou de "processo civilizatório", o autor da seguinte frase: "... a questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que medida, a sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelas pulsões humanas de agressão e autodestruição". (Freud, 1930/ 2010, p. 121-122).

Do ponto de vista da estrutura do processo civilizatório descrito por Freud, estas questões que aparecem na clínica ou nas escolas, são novas versões da velha e conhecida pulsão de morte, esta tendência à destrutividade e ao inanimado que atravessam a luta humana pela vida. É o real que assola, lembrando o impossível de simbolizar. É o consumo que leva à consumação...

Como responderíamos à questão dita decisiva para os homens, postulada por Freud, quando vivemos um momento em que a evolução parece levar ao pior, para retomar a perspectiva lacaniana sobre o capitalismo?

O que é necessário ao processo civilizatório para fazer resistência à pulsão de morte; para, apesar de ser necessário destruir, poder manter o básico, uma argamassa para a construção do novo? Como os pais e as escolas poderiam transmitir esta experiência de equilíbrio de forças do dualismo pulsional?

Educar é transmitir a falta, o limite, é barrar o transbordamento pulsional, é conduzir, nos melhores casos, para a sublimação.

Os pais de hoje não sabem em que se apoiar para esta transmissão. Acham, inclusive, que devem fazer exatamente o contrário: dar, dar em excesso, amar mais que tudo. E novamente estamos aí diante do pior: um narcisismo elevado à enésima potência, em que pais e filhos se infantilizam em uma relação horizontal de dons, que só pode desembocar... na agressividade própria de qualquer relação dual, imaginária, que põe em risco a subjetividade.

Os professores, por sua vez, muito desautorizados – seja pela ideologia dos novos métodos pedagógicos; seja pelos especialistas que invadem o espaço escolar; seja pelo campo jurídico que ameaça processá-los; entre outros impasses escolares – lutam para sustentar seu lugar na sala de aula. Geralmente pela via de buscar agradar, muito mais do que pela transmissão de seu desejo de saber que conduziria à área de conhecimento que escolheram, importante via identificatória e de transferência para os alunos.

 

A transmissão da falta

Os psicanalistas sabem que a resposta para a transmissão da falta inerente ao processo civilizatório é o encontro com um agente da função paterna suficientemente desimaginarizado que possa apontar a castração como necessária, estrutural e protetiva, abrindo caminho para as identificações.

A grande questão é saber como, a partir de que posição enunciativa, aquele que representa a lei pode se apresentar para a criança não como punitivo, terrível e frustrador, mas como aquele que indica a lei da falta, o limite, como o que barra o gozo, ao mesmo tempo em que abre a possibilidade da palavra, do desejo, da subjetividade, em uma sociedade que nega a alteridade e não tem bases de sustentação simbólica para o exercício desta autoridade organizadora.

Saber educar tropeça com a dificuldade, contemporânea, de operação desta função da diferença e da falta - função lógica para Lacan. O discurso capitalista que domina o funcionamento socioeconômico e seu imperativo de gozo dos objetos; com a hipernarcisação presente nas relações cotidianas são obstáculos ao encontro com esta função.

Neste caldeirão cultural temos o acesso cada vez mais precoce às mais diferentes telas, imagens e personagens que ensombrecem ou até mesmo substituem as figuras de autoridade familiares, supostamente os modelos identificatórios primordiais. Neste sentido, temos opiniões divergentes dos psicanalistas. Há os que, como Tisseron (2008), contraindicam o acesso às telas na primeira infância e preconizam um controle cuidadoso dos pais para a aproximação com os objetos virtuais. Outros, como Michel Stora, psicanalista e cofundador do Observatório dos Mundos Digitais em Ciências Humanas (OMNSH), ao ser entrevistado por Bergès-Bounes (2017, p. 84) observa o poder auto curativo de certos jogos de videogame para as crianças:

Nesta sociedade onde a imagem é onipresente, onde existe um superinvestimento da imagem social, pode-se dizer que em certos momentos o videogame tem uma verdadeira vocação, quase auto terapêutica, de tratar algo de um self que não estaria à altura de certos ideais (STORA, 2017, p. 84).

Este mesmo autor questiona se o problema são realmente as telas, para as crianças, ou a falta de autoridade dos pais, enfatizando a dificuldade de muitos pais contemporâneos, descritos como frágeis e narcísicos, de lidar com o ódio do filho provocado por frustrações: "quando a criança é frustrada, olha para seu pai (ou mãe) com um ódio fenomenal, e se o pai (ou mãe) é frágil, não o suporta. (Stora, 2017, p. 85).

O ponto comum de todas estas questões parece ser a falência da sustentação da alteridade, em termos lacanianos, a dificuldade de encarnar o lugar de Outro, no que se refere à transmissão do processo civilizatório, uma vez que esta transmissão se faz pela via da falta do objeto, essencial para a instauração do campo Simbólico.

O que estas crianças que agridem o outro fazem, podemos lançar como hipótese, é apontar este sintoma contemporâneo e fazer um apelo a esta função de alteridade. Se esta função falha, encontra-se comprometido não somente o narcisismo fundamental – para o qual a agressão é descrita desde as primeiras pesquisas psicanalíticas (Winnicott, 1950/1978) como a defesa primordial, uma vez que a criança corre o risco de desaparecer sob o lugar de objeto para o outro. A tendência antissocial, por exemplo, é brilhantemente proposta por Winnicott (1956/1978) como um modo de a criança desarrumar o ambiente para se fazer ouvir, se fazer ver, buscando no ataque ao meio uma consistência egoica, um reconhecimento, ao mesmo tempo em que seu ato serve de evidência de uma existência que corre o risco de ser aniquilada.

Também se acha comprometido o Ideal do eu, esta instância identificatória narcísica, que para se inscrever precisa passar pela castração, e que permite encontrar um lugar próprio para si no mundo. A falha nesta instância pode dar lugar, por exemplo à depressão.

Além disso, a falta de limites aos impulsos corporais, por um trabalho mal elaborado de organização das pulsões, por dificuldades também do outro de se posicionar em um lugar referido ao Outro, ou mesmo pela substituição do outro humano por imagens e personagens virtuais, produz sintomas dos mais diversos, desde a hiperatividade até as compulsões que se impõem a crianças aparentemente sem outras questões psíquicas graves.

Do lado das famílias, as exigências atuais de igualdade de divisão de tarefas e a horizontalidade das relações situa os parceiros como semelhantes e não como outro para o outro, ficando difícil definir quem ou o que faria o papel de terceiro encarnado: muitas vezes é a própria criança que acaba ocupando este lugar.

 

Do patriarcado ao matriarcado

Muito se tem falado sobre a queda do patriarcado e o polêmico declínio da função paterna a partir da modernidade. Neste momento de transformação cultural, enquanto é o patriarcado que vige ainda em muitas famílias, em outras não é desta ordem que se trata. Qual seria então, a ordem que está se estabelecendo e da qual nos dão notícias as diferentes situações clínicas que citamos? Alguns pontos marcam estas situações: a dominância da mãe na educação do filho, o enfraquecimento das instâncias simbólicas (que precisam ser buscadas, por exemplo, nas leis do Direito), a predominância dos "caprichos" das crianças e, em muitos casos, dos sintomas no corpo e no comportamento.

Encontramos uma hipótese em Charles Melman (2008, 2003), que vai nos servir de guia nesta discussão, quando afirma: "não se deve acreditar que no declínio do patriarcado instale-se a desordem. De forma nenhuma. O que se instala é uma outra ordem, que é a ordem materna" (Melman, 2008, p. 86). A esta "promoção da mãe" (idem, p. 80) que assistimos, inclusive nas estatísticas – o último censo mostrou um percentual bastante alto de famílias monoparentais chefiadas por mulheres (32,2 %, segundo reportagem de T. Menezes, 2012) -, Melman nomeia de um determinado tipo de matriarcado, não o que vigorou antes da instauração do patriarcado, este último relativamente recente na história da humanidade.

Com o tipo de patriarcado que se instaurou, decorrente principalmente das religiões monoteístas, passou-se para um distanciamento das evidências e da natureza, o pai retirando sua autoridade de "uma instância que escapa a todo controle, visual ou outro" (Melman, 2003, p. 84), o que instaurou ao mesmo tempo a categoria do real, da falta inerente à estrutura simbólica de fazer coincidir exatamente a coisa e sua nomeação.

O patriarcado, na definição de Melman, "é o tipo de organização que ao instaurar uma rachadura e uma desarmonia entre a mãe e o filho, introduz este na vida sexual" (Melman, 2003, p. 121). Com isso, a criança encontra um lugar para si e pode ter acesso à genitalidade.

Já com o matriarcado, "isso caminha junto com a recusa da dimensão do impossível que a função paterna havia introduzido" (Melman, 2003, p. 84)

Para este autor, "O matriarcado é a possibilidade que uma mãe tem de transmitir o falo a um de seus filhos de uma outra maneira que não seja pela castração, mas por um processo de doação" (idem, p. 81), que resultaria em uma "virilidade concluída, perfeita e por vezes, a exigência de que essa virilidade seja sem limite" (idem).

Haveria, portanto, nesta ordem materna, uma maneira de transmitir uma referência que não se daria pela castração e que deixaria o sexual de fora. A relação com o falo se daria muito mais pela via do traumático.

Observe-se que não se trata de a mãe tomar o filho como objeto, o que o encaminharia para a psicose. A mãe situa o filho como falo, embora o processo se dê fora do campo da sexualidade e não implique a confrontação com a castração que a função paterna enquanto representação da autoridade e alteridade poderia impor. Trata-se, para a criança, de receber o falo deste Outro todo poderoso, diretamente, e sem passar pelo risco nem pela dívida simbólica. Ou seja, o falo lhe é devido, naturalmente. Entende-se bem que, neste contexto, qualquer limite vai aparecer seja como privação real ou como frustração imaginária, pois não há acesso à castração enquanto simbólica. Situação muito mais propícia à perversão, mais tarde, se não houver no percurso desta criança nenhuma interferência terceira.

Há uma grande diferença entre a autoridade paterna e a autoridade materna, pois, "a autoridade materna não se discute" (Melman, 2008, p. 115), é um poder absoluto, deve-se ao próprio lugar da mãe como geradora do filho. A falta aparece apenas quando da incapacidade da criança de satisfazer perfeitamente a sua expectativa... são as crianças que vêm ao tratamento para serem "consertadas"!

Do lado paterno, o pai é apenas o representante da autoridade, tem o Nome-do-Pai, é o representante de uma sexualidade Já o poder da mãe "não deixa nenhum lugar ao real", "é um poder fora do sexo" (idem, p. 116).

A mãe como referência é ela mesma a própria instância, com a promessa de foraclusão do sexo, promete a conjunção possível, a eliminação do impossível, regime no qual "o traumático substitui o simbólico. A falta geradora do desejo que o Simbólico introduz é substituída agora pelo dano causado pelo trauma" (Melman, 2003, p. 87).

Enquanto a lógica do patriarcado é a da metáfora, com o campo da causa ligado ao que não se inscreve, pela exigência de uma perda do objeto que poderia ser dito natural; no matriarcado estamos na lógica da metonímia: a mãe é a causa do filho, há o antes que causa o depois, em uma contiguidade que se inscreve, não há nenhum mistério.

Podemos pensar que no mundo atual, regido pela lógica capitalista de mercado (do gozo possível dos objetos), e pela verdade da ciência (que anula o impossível), ambas referências que não consideram a castração, que até mesmo a anulam – o processo civilizatório encontra sérios obstáculos. Neste contexto é a pulsão de morte, a consumação, que encontra terreno fértil.

 

Considerações finais

Quer se torne ou não o matriarcado a ordem futura das próximas gerações, é inegável que os sintomas atuais das crianças e de seus pais, que se manifestam tanto na família quanto nas escolas, vêm desafiar o psicanalista. A principal questão sendo, nestes tempos de foraclusão da alteridade, como não misturar autoridade e poder. Para isso, todo aquele que está em posição de autoridade teria de referir-se a uma instância que representa, e não se deixar tomar pela mesma.

Nada mais chocante do que uma criança que, em público, agride sua mãe. Ou então uma mãe que, no particular, agride seu filho. A ausência de terceiro aí é fonte de sofrimento para os dois, mesmo nas situações em que o pai está presente, mas é um espectador passivo.

O que a clínica nos mostra, com estas crianças que são tão agitadas, tão violentas, ou tão desorganizadas, é que o encontro com o psicanalista traz efeitos às vezes espetaculares. Por quê? Justamente porque se encontrou alguém que encarnou, para a díade, a função de terceiro. Porque finalmente a criança encontrou um lugar para si: foi escutada e falaram com ela particularmente.

 

Referências

Bernardino, L. M. F. (2017). Da babá 'catódica' aos duplos virtuais: os novos 'outros' da infância contemporânea. In A. Baptista, A. & J. Jerusalinsky (Orgs.), Intoxicações eletrônicas: o sujeito na era das relações digitais (pp. 146-165). Salvador, BA: Ágalma.         [ Links ]

Bernardino, L. M. F. (2016). Os 'tempos de autismo' e a clínica psicanalítica. Estilos da Clínica, 21(2), 412-427. Doi : https//dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v21i2p412-427.         [ Links ]

Bergès- Bounes, M. (2017). Entretien avec Michel Stora. In M. Bergès-Bounes & J. M. Forget (Org.), Les écrans de nos enfants : le meilleur ou le ? (pp. 83-94). Toulouse, France: Erès.         [ Links ]

Freud, S. (2010). O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias e outros textos (1930-1936) (P. C. de Souza, trad.). São Paulo, SP : Cia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930).         [ Links ]

Melman, C. (2003). O homem sem gravidade (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ : Cia de Freud.         [ Links ]

Melman, C. (2008). Como alguém se torna paranoico? (T. Queiroz, trad.). Porto Alegre, RS: CMC editora.         [ Links ]

Menezes, T. (2012, 19/10). O retrato da nova família. Revista Isto É, ed. nº 250117.11,2.In: https://istoe.com.br/247220_O+RETRATO+DA+NOVA+FAMILIA/ acessado em 15/11/2017.         [ Links ]

Tisseron, S. (2008). Le danger de la télé pour les enfants. Toulouse, France: Erès.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1978). Agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional. In D. W. Winnicott, Textos selecionados: da pediatria à psicanálise (pp. 355-374). Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1950).         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1978). A tendência antissocial. In D.W. Winnicott, Textos selecionados: da pediatria à psicanálise (pp.499-511). Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1956).         [ Links ]

 

 

Recebido em agosto/2019 – Aceito em novembro/2019.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons