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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.25 no.1 São Paulo jan./abr. 2020

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i1p151-164 

10.11606/issn.1981-1624.v25i1p151-164

ARTIGO

 

Didática Magna e Walden II: Comênio, Skinner e o impossível na educação e na política

 

Didáctica Magna y Walden II: Comenio, Skinner y lo imposible en la educación y la política

 

The Great Didactic and Walden II: Comenius, Skinner and the impossible in education and politcs

 

 

Douglas Emiliano BatistaI

IProfessor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP). Coordenador e docente do Mestrado em Educação da Universidade Ibirapuera (Unib), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: demilian@uol.com.br

 

 


RESUMO

Neste artigo cotejamos concepções político-educacionais de Comênio e Skinner presentes, respectivamente, na Didática Magna e em Walden II. Problematizamos se o fato dos autores superestimarem o método de ensino - como se este fosse uma infalível garantia de êxito educacional - seria suficiente para irmaná- los. Seguindo a ideia de que é estruturalmente impossível controlar os efeitos da educação, constatamos que em Comênio, mas não em Skinner, ocorre um significativo arrefecimento de tal pretensa infalibilidade metodológica. Essa divergência entre os autores deriva do modo distinto com que cada um concebe a política e lida com as finalidades e impossibilidades da política e da educação.

Palavras chave: Comênio, J.A.; Skinner, F.B.; Psicanálise e Educação; Política e Educação.


RESUMEN

En este artículo cotejamos concepciones político-educativas de Comenio y Skinner presentes en Didáctica Magna y Walden II. Problematizamos si el hecho de que los autores exageran en la valorización del método - como si fuera una infalible garantía de éxito en la educación - sería suficiente para hermanarlos. Siguiendo la idea de que es estructuralmente imposible controlar los efectos de la educación, constatamos que en Comenio, pero no en Skinner, ocurre un enfriamiento de tal pretendida infalibilidad metodologica. Esta divergencia deriva del modo distinto como cada autor concibe la política y se ocupa de las finalidades e imposibilidades de la política y de la educación.

Palabras clave: Comenio, J.A.; Skinner, F.B.; Psicoanálisis y Educación; Política y Educación.


ABSTRACT

In this paper, we compare the educational-political conceptions of Comenius and Skinner, presents in The Great Didactic and Walden II. We problematize if their overestimation of the teaching method - as if it were an infallible assurance of education success – is a sufficient criteria to take their theory as siblings. Following the idea that it is structurally impossible to control the effects of education, we verify that in Comenius, different from Skinner, occurs an expressive decline of such methodological infallibility. This difference derives from their radically distinct way to conceive politic and to deal with the aims and impossibilities of politics and education.

Keywords: Comenius, J.A.; Skinner, F.B.; Psychoanalysis and Education; Politics and Education


 

 

Trezentos anos separam a Didática Magna de Walden II - aquela, obra do protestante Comênio; esta, do psicólogo comportamental Skinner. A despeito dos três séculos e da diferença de gênero literário (a primeira é um tratado didático do século XVII; a segunda, uma pretensa utopia do século XX), há uma enfática convicção educacional encampada igualmente por ambas: trata-se da crença de que a estrita observância de regras metodológicas asseguraria a colheita dos resultados educacionais almejados pelo educador.

Ora, tal semelhança não é irrelevante. E em vista dela se admite de saída uma forte afinidade pedagógica entre os dois autores. Entretanto, talvez tal afinidade acabe por eclipsar distinções cruciais quanto ao lugar ocupado pelo tecnicismo em cada uma das teorias. É que se estas comungam a referida aposta metodológica exacerbada, nem por isso elas comungam uma concepção de política. Ou seja: enquanto o tecnicismo metodológico de Comênio é contrabalançado pelo ardoroso espírito público que caracterizou a Reforma Protestante, o tecnicismo metodológico de Skinner é o portador de uma função antipolítica. E em vista dessas diferentes compreensões de práxis política, a educação sonhada pelos autores não poderia, então, ser mais distinta.

Ora, é acerca dessa diferenciação política bem como de suas consequências educacionais que trata este artigo1. Esperamos dar a ver que em Comênio, mas não em Skinner, a práxis política oferece um lugar para a incontrolável emergência do sujeito do inconsciente na medida mesmo em que arrefece o ímpeto metodológico de tudo controlar. Decerto, tal arrefecimento ocorre na teoria comeniana em virtude do reconhecimento do impossível e da inelutável inscrição deste último na educação e na política.

É oportuno enfatizar aqui que é, sobretudo, tal reflexão sobre o impossível controle na educação e na política que filia este artigo ao campo de pesquisas da Psicanálise e Educação. Freud (1925/2011, 1937/2018) asseverou que a política, a educação e a psicanálise constituem ofícios impossíveis. E essa impossibilidade, por sua vez, resulta da "matéria prima" em comum a tais ofícios, a saber, a palavra com a infinita polissemia simbólica que ela engendra. Nesse sentido, é na medida que o sujeito do inconsciente é efeito da equivocidade estrutural da linguagem – equivocidade a qual é relançada uma e outra vez pela fala – que então as expectativas de controle estabelecidas de partida revelam ser impossíveis na educação, na política e na psicanálise. Isso, decerto, não implica que esses ofícios sejam impraticáveis. Eles são de fato incontroláveis em seus efeitos subjetivantes.

Eis que é, portanto, com base na impossibilidade estrutural de controlar os "ofícios de palavra" que se pretende dar a ver aqui que enquanto na construção discursiva da Didática Magna de Comênio a referida impossibilidade acaba encontrando lugar tanto no âmbito da educação quanto no da política, em Walden II de Skinner a pretensão discursiva é exatamente a de tentar a todo custo varrer o impossível estrutural quer seja da política quer seja da educação, fato esse que acaba então por distinguir tais autores de modo decisivo.

De mais a mais, resta ainda asseverar que tal cotejamento de duas obras tão afastadas no tempo se presta a tornar manifesto que enquanto a Didática Magna é contemporânea do reaparecimento da política na modernidade, Walden II o é da degradação da política na modernidade tardia. Nesse sentido, a escolha de tais obras se deu aqui em função da relevância das mesmas nos respectivos contextos históricos. E além disso, o fato é que suas concepções teóricas ainda influenciam vivamente o debate contemporâneo acerca da educação.

Começaremos por uma reflexão sobre educação e política na Didática Magna para depois pensar tal relação em Walden II. Ao longo do texto cotejaremos o que foi obtido em um e em outro caso. Com isso, esperamos dar a ver as distinções cruciais acima referidas entre as duas obras.

 

Comênio: educação e metodologia de ensino na Didática Magna

Tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Esse é o subtítulo da Didática Magna, obra publicada na metade do século XVII. Tal subtítulo pontua a envergadura da pretensão de Comênio quanto à universalidade do método. Por sinal, segundo Cauly (1999), ninguém se apropriou melhor da ideia de método em pedagogia do que Comênio. Nesses termos, a pretensão do último é nada menos do que estabelecer o método capaz de ensinar tudo a todos totalmente, isto é, de ensinar com certeza, rapidez e solidez totais.

Tal método total não poderia ser engendrado a partir de observações a posteriori. É que um método totalmente certo deve se mostrar aplicável a qualquer disciplina em qualquer contexto. Ou seja, uma didática universal não pode se limitar ao ensino de uma ou de outra arte. Ao contrário, ela deve abranger todas as artes (mecânicas ou intelectuais), as ciências e ainda algumas línguas.

Em face de tal pretensão, resta admitir que uma didática magna deve ser estabelecida a priori. Ou seja, ela somente poderá ser deduzida a partir da perene harmonia das leis universais da natureza. Tal harmonia, por sua vez, não é outra senão aquela engendrada por Deus, dado que Deus é o pai da mãe natureza2.

Dessa forma, é em função da imitação da ordem natural pelo método que se pode assegurar que os alunos serão conduzidos a qualquer patamar do saber3. Eis que se um aluno não obtém êxito, isso não se deve, portanto, a uma inteligência limitada, mas decorre de que "os degraus não estão bem dispostos e que são curtos, gastos e arruinados, ou seja, [de] que o método é confuso" (1657/1966, p. 170).

Em outros termos, se um aluno não aprende, são as escolas as responsáveis. E isso se deve tanto por elas lançarem mão de métodos a posteriori (incapazes de ensinar tudo), quanto por não estarem abertas à multidão de alunos (tornando-se incapazes de ensinar a todos). Como se nota, o "fracasso escolar" é devido, por um lado, à metodologia, o que significa que Comênio se encontrava tomado pela ilusão tecnicista de que o êxito educacional depende do método. Mas por outro lado, o "fracasso escolar" é devido às restrições ao acesso universal à escola. Eis aí, por sinal, um bom exemplo de que a supervalorização da técnica (metodologia) não implica um rechaço dos problemas políticos (o acesso à escola). Voltaremos a isso.

Bem, é indispensável apresentar uma síntese do que Comênio denomina como ordem natural uma vez que o método é deduzido de tal ordem4.

Deus, através da natureza, infundiu em cada criatura uma finalidade. E dado que implicaria imperfeição para as criaturas encontrarem-se privadas do meio que lhes permite alcançar tal finalidade, a natureza prescreveu então o meio para cada uma atingir seu fim. Mais ainda, a providência infundiu o instinto para cada criatura buscar esse fim. Assim sendo, a harmonia natural de cada coisa consiste em dispor de um fim, de um meio e de uma inclinação inatos. E é graças a isso que cada criatura conserva sua alma, isto é, sua ordem natural.

Todavia, a conservação da alma ou ordem de cada coisa concorre para a conservação da plenitude do universo, dado que o que assegura que o mundo continue sendo o mundo é o fato de que "cada criatura, segundo a prescrição da natureza, permanece escrupulosamente dentro dos seus próprios limites; esta manutenção da ordem particular conserva a ordem do universo" (1657/1966, p. 181). Em vista disso, Comênio define a ordem também de modo correlacional:

[A ordem é] a disposição das coisas anteriores e posteriores, maiores e menores, semelhantes e dissemelhantes, consoante o lugar, o tempo, o número, as dimensões e o peso devido e conveniente a cada uma delas. [...] Com efeito, tudo aquilo que é ordenado, durante todo o tempo em que conserva a ordem, conserva o seu estado e a sua integridade; se se afasta da ordem, debilita-se, vacila, cambaleia e cai (1657/1966, p 181).

É em harmonia com todas as demais coisas que cada criatura se conserva, mas isso ao passo em que é preservada também sua ordem individual, concerto esse que concorre para a preservação da ordem geral. Pode-se afirmar, assim, que a ordem é a alma de cada uma das coisas, mas na medida em que cada coisa se encontra em harmonia com a disposição de todas as coisas entre si. Por exemplo: o que faz com que o corpo humano, dispondo apenas de meios finitos, seja capaz de um número de movimentos quase infinito é a "sábia proporção de todos os membros, tanto em si mesmo, como na relação de uns para com os outros" (1657/1966, p. 181).

Posto isso, é preciso esclarecer como a ordem das leis universais da natureza se aplica à educação.

Para Comênio, conquanto as escolas passassem a buscar a ordem em tudo, elas ensinariam tudo a todos. Eis que a certeza na obtenção de tais resultados dependeria de que cada etapa da formação fosse realizada em seu momento preciso graças ao método natural5. É que a natureza, afinal, se abstém de toda precipitação. E por conta disso, as flores e as aves, por exemplo, nascem na primavera, sendo que a natureza não se precipita em fazê-las nascer em outra estação.

Transpondo tal ordenação natural para o plano epistemológico, a aquisição do conhecimento começa então pelos cinco sentidos (o que não significa que Comênio tenha sido um empirista, uma vez que conhecer exige que as sementes do conhecimento tenham sido plantadas em nós por Deus). Depois, e se consumada no tempo favorável, tal aquisição migra para a memória graças às imagens das coisas sensíveis, isto é, graças à imaginação. E então, no caso de não haver precipitações, o conhecimento, em vista da indução realizada a partir das coisas particulares, chega ao conceito universal. Por seu turno, o conceito é consumado na emissão do juízo sobre os objetos. E finalmente, é pelo juízo que se chega na Ciência.

Com base nessa gradação epistemológica, Comênio concebe então o plano orgânico dos estudos, dividindo-o em quatro níveis. É por meio deles que se pretende que a sistematização de todo o saber (isto é, a pansofia) seja ajustada ao dito desenvolvimento gradual das crianças (cf. Manacorda, 1989/1995, p. 221). Os quatro níveis são: escola materna (para crianças de 0 a 6 anos); escola de língua nacional (6 a 12 anos); escola latina (12 aos 18 anos) e Academia (18 a 24 anos).

É imprescindível, para Comênio, que sejam estabelecidos tais níveis escolares, bem como que, ano após ano, o programa das classes que compõem cada nível seja escrupulosamente desenvolvido, e isso de modo que todos os estudantes sejam ordenadamente promovidos para uma classe superior.

Gostaríamos de destacar aqui um aspecto relevante quanto a tais classes:

Segundo Comênio, a formação dos alunos deve ocorrer coletivamente. Já para Skinner, como se verá, a educação deve ser individualizada. De acordo com o primeiro, pode-se depreender da observação da natureza a vantagem de educar a juventude conjuntamente. É que a natureza engendra em um mesmo lugar as coisas que devem crescer com abundância. Tal é o caso dos metais na terra, das árvores na floresta ou dos peixes na água.

O mesmo princípio opera nas artes manuais, uma vez que são abundantes as plantas numa plantação ou os peixes num viveiro. Ainda quanto a isso, a arte da guerra é também ilustrativa. Afinal, quando se prepara recrutas para a batalha, todos são instruídos por um mesmo oficial. E, no mais, misturam-se novatos e veteranos, débeis e robustos etc. Desse modo, todos combatem sob a mesma bandeira.

No tocante à arte da educação, quando os alunos aprendem em conjunto ocorrem situações de ajuda mútua e de emulação. Isto é, um aluno corrige o outro bem como um aguça o engenho do outro. E mais: do ponto de vista da docência o professor universal se endereça, é claro, à coletividade de alunos e não a um de cada vez. Eis que o professor ensina, assim, a todos por igual. E isso é o que confere à educação um sentido público.

Vela acrescentar que, tendo nosso autor se inspirado na invenção da imprensa e, logo, na produção simultânea de livros, ele se tornou um precursor da instrução simultânea. Já o ensino individual era comparado por ele ao copismo de livros um a um por monges medievais. De mais a mais, segundo a Psicanálise e Educação, quando o professor se endereça aos alunos de sua sala de aula, tal endereçamento produz ao mesmo tempo efeitos coletivos e também singulares. Ou seja, o endereçamento de um professor a todos os alunos - mas não ao todo da classe - suscita em princípio a singularização dos alunos e não a sua homogeneização como se costuma pensar. Em suma, a educação tece, assim, o laço social6.

Retomando a concepção de ordem natural, para Comênio é preciso distribuir o tempo meticulosamente em cada sala dos quatro níveis escolares. Dessa forma, a cada ano, mês, dia e hora corresponderá uma tarefa específica. E se de degrau em degrau o aluno "aprender um só teorema de qualquer ciência, ou uma regra de uma arte prática, ou uma história interessante [...], que tesoiro de instrução se conseguirá adquirir?!" (1657/1966, p. 202). E a condição para tanto é a preservação de uma mesma metodologia universal, ano após ano, e em vista da qual restaria ao professor a missão de realizar, como um astro, o mesmíssimo curso em torno dos alunos. Isto é, para Comênio seria o caso de se implantar nas escolas o mais estrito manejo metodológico sobre o currículo, a aula, o aluno, a progressão etc.

Entretanto, a despeito de tão exacerbada crença metodológica, Comênio deu testemunho também de que seu método não seria tão magnificente: "efetivamente, não afirmamos que a nossa [metodologia] já seja assim [universal]: apenas louvamos o método universal [...]" (1657/1966, p. 47).

O autor relativizou, portanto, a infalibilidade do método, o que o levou a asseverar, de modo mais modesto, que "se todas as regras forem observadas escrupulosamente, será quase impossível que as escolas falhem na sua missão" (1657/1966, p. 226).

E até o aprendizado de tudo sofreu um arrefecimento narcísico: "Não exigimos a todos [os alunos] o conhecimento de todas as ciências e de todas as artes [...]. Com efeito, isso, nem, de sua natureza, é útil, nem, pela brevidade da nossa vida, é possível" (1657/1966, p. 145). Nesse sentido, o que o ensino de tudo proporciona ao aluno é, antes, "conhecer os fundamentos, as razões e os objetivos de todas as coisas principais" (id., ib.). A expectativa, portanto, é a de que os jovens se tornem possuidores de "cultura mais universal" (1657/1966, p. 470).

Ora, se no âmbito técnico do ensinar tudo se constata esse relativo – mas não inócuo - arrefecimento, será, entretanto, no âmbito político do ensinar a todos que o tecnicismo dará lugar ao reconhecimento do que é impossível de ser garantido de antemão. Vejamos como isso se dá.

 

Comênio e a dimensão política da Didática Magna

Quando Gomes se refere a Comênio como o "mais ardente apóstolo da universalização do ensino" (1966, p. 35), ele não exagera. É que, para Comênio, era imprescindível que passassem a frequentar as escolas públicas "não apenas os filhos dos ricos ou dos cidadãos principais, mas todos por igual, nobres e plebeus, ricos e pobres, rapazes e raparigas, em todas as cidades, aldeias e casais [fazendas] isolados" (1657/1966, p. 139).

E para que todos pudessem ser admitidos na escola, Comênio - assim como fizera Lutero cem anos antes - exortou aos mandatários dos Estados que as escolas reformadas fossem abertas aos jovens de ambos os sexos, uma vez que também as mulheres foram infundidas por Deus com as sementes do conhecimento.

E essas escolas deveriam ser franqueadas, ademais, aos operários, aos agricultores, aos garotos de frete etc., e isso para que os mais pobres tivessem a oportunidade de aprender acerca dos fins últimos da existência humana e, assim, pautassem sua vida nos negócios públicos e privados.

As escolas reformadas deveriam receber até os "imbecis e os estúpidos" (1657/1966, p. 214), haja vista que é impossível encontrar "um espírito tão infeliz" (1657/1966, p. 141) a quem a cultura não incite alguma melhora.

Enfim, ninguém poderia ser excluído dos estudos, exceção feita àqueles "a quem Deus negou a sensibilidade e a inteligência" (1657/1966, p. 141). Eis que há, afinal, alguma exceção na educação de todos segundo Comênio (sobretudo se o impedimento para tanto se encontra no embotamento dos sentidos ou das inatas sementes do conhecimento).

Todavia, nem por isso a pretensão comeniana de estender o acesso à educação perdeu vigor. A questão é que até o ideal de escolarização mais democratizante se depara com o impossível da educação. Ademais, o reconhecimento dessa impossibilidade é decisivo para que a universalização escolar não se torne totalitária.

Mas o argumento crucial de Comênio para que todos frequentassem as escolas baseava-se em não ser possível conhecer de antemão o desígnio da providência divina quanto ao destino de cada ser humano. O argumento, portanto, se pautava na impossibilidade de conhecer de saída para qual finalidade Deus inclinou cada recém-chegado ao mundo. Em virtude de sermos estruturalmente ignorantes quanto a isso – ou seja, devido ao fato de sermos ministros da natureza e não seus senhores – é que todos os alunos deveriam ser enviados às mesmíssimas escolas.

Decerto, Comênio nunca pôs em dúvida que é a ordem natural que destina a flor dos homens para a Academia. É ela também que destina não poucos para as artes manuais. Mas não obstante tamanho determinismo, não há para o autor qualquer metodologia que permita desvendar a vida futura de cada ser humano. E na medida em que ninguém sabe previamente quem nasceu para o quê, resta proporcionar a mesma educação para todos!

Para Comênio, quando a educação pública é levada a cabo dessa forma, "o espírito sopra onde quer" (1657/1966, p. 473), isto é, o controle sobre o destino dos alunos acaba por escapar ao professor, ao método, à escola etc. Ora, eis que a pretensão de controlar os efeitos da educação é aí dissipada. E, dessa forma, podemos então afirmar que em Comênio a poiesis técnico-instrumental (ensinar tudo) é arrefecida em face da praxis política (ensinar a todos).

É com razão, diante disso, que Manacorda (1989/1995) afirma que a escola da Reforma Protestante não se limitou a aprimorar a capacidade produtiva das massas. Ela propiciou, ademais, a participação popular na vida política. Ainda segundo o autor, Lutero asseverou que toda cidade deveria contar com cidadãos instruídos, e que mesmo que não houvesse céu nem inferno, seria preciso instituir escolas para as coisas deste mundo. Por fim, o Imperador do Sacro Império à época, Carlos V, reconheceu que as escolas são viveiros não só de ministros da Igreja mas de quantos governem com seus conselhos as cidades. Eis que em tal contexto a educação escolar começou a despontar, portanto, como um fundamento do Estado e da participação dos cidadãos nos negócios públicos. Ora, cabe indagar então se também os ideais educacionais veiculados em Walden II serviriam de fundamento para o exercício da vida pública no século XX.

 

Skinner: política e educação em Walden II

O livro Walden II se autodefine como uma ficção científica e uma utopia. Contudo, denominá-lo como distopia cientificista e antipolítica faria mais jus7. Afinal, nele se preconiza que a política deve dar lugar à engenharia comportamental, o que equivale reduzir a praxis política à poiesis tecnológica. Da mesma forma, o governo deve ser convertido numa "agência" (1948/1972, p. 168), numa "Junta de planejadores" (1948/1972, p. 56), sendo que estas não terão um poder a exercer mas um trabalho a realizar (Nye, 1992).

Se a política em Walden II se encontra "superada", isso decorreria de que ela, pretensamente, se serve apenas da autoridade externa, isto é, do poder de repressão. E, sendo assim, a práxis política não passaria de reforço negativo. Ou seja: a política é apenas controle externo sobre os indivíduos.

Já a engenharia comportamental se serve, pretensamente, da interiorização da autoridade. Logo, aquela não exerce poder, não reprime. Ou seja, trata-se de reforço positivo. O que haveria aí, portanto, é controle interno8. Desse modo, a engenharia comportamental faria com que o indivíduo fosse determinado mas permanecesse livre. E isso, por sua vez, decorreria de que o objetivo da psicoengenharia não seria o controle do comportamento final do indivíduo, mas o da inclinação para o comportamento.

Em razão de tal controle, em Walden II – ou WII, como se nomeará daqui para adiante - os indivíduos somente querem o que eles próprios escolhem. É claro que, através da "educação", os engenheiros do comportamento cuidarão para que os indivíduos somente queiram fazer o que é o melhor para estes e a comunidade. Quanto a isso Skinner não titubeia: "Nós podemos construir o homem adequado para a convivência em grupo – para a satisfação de todo mundo. Essa era a nossa crença, mas agora é um fato" (1948/1972, p. 199).

Aliás, o dito bem comum não passa também de um suposto fato, devendo ser decidido experimentalmente por especialistas. Se na Didática Magna e na escola da Reforma foi levada longe a participação popular na esfera pública, em WII as decisões de interesse comum são tomadas privadamente por tecnoburocratas (tal como, aliás, se tornaria hegemônico de fato a partir das últimas décadas do século XX).

A práxis política é tão depreciada em WII que sua fundação nunca é lembrada publicamente, ao contrário daquilo que se consolidou como uma tradição fundamental para a cultura política de Roma (Arendt, 1954/2000). Afinal, tudo em Roma remetia à fundação da Cidade bem como ao imperativo de estender tal fundação por toda parte. No caso de WII – uma comunidade interiorana, com cerca de mil habitantes, mas que nem por isso era regressiva tecnologicamente – há apenas um registro histórico de sua fundação. Além disso, a contribuição dos fundadores deve permanecer anônima. Isto é, nada resta aí da implicação do sujeito. Nada resta daquele espírito agonístico do cidadão grego nos debates públicos das assembleias democráticas. É que para Skinner, afinal, a democracia "está baseada numa concepção cientificamente falsa do homem" (1948/1972, p. 269).

Tal esvaziamento esfera pública é indissociável da inflação do tecnocientificismo. Tanto é assim que em WII deve imperar a referida atitude experimental. A propósito, a metodologia experimental é tida como a mãe de toda certeza. Por conta disso, ela deve se estender a tudo. Há que se realizar, por meio dela, uma revisão completa da cultura. Isto é, uma cultura conveniente deve ser cabalmente decidida por experimentos. Ora, uma perspectiva como essa só pode implicar inúmeras distorções graves, uma vez que ela exige renunciar sem mais aos vínculos simbólicos com o passado e com os antepassados.

E assim como o método decidirá acerca da cultura, a vida do indivíduo sofrerá o mesmo destino desde o berço ao túmulo9. Afinal de contas, as experiências com ratos e pombas, na segunda metade do século XX, se mostraram, para Skinner, cada vez mais aplicáveis ao ser humano.

No índice para catálogos sistemáticos (1948/1972, s/p), o livro Walden II é designado como uma ficção científica sociológica. A despeito disso, Skinner é categórico ao afirmar que "a previsão no campo das Ciências Sociais é muito duvidosa" (1948/1972, p. 159) - o que para ele desqualifica tal ciência tanto quanto, decerto, lhe desagrada a imprevisibilidade do destino humano nos termos em que é reconhecida em Comênio. Analogamente, a História não possui valor reflexivo em WII: ela se presta ao entretenimento cultural por não ser capaz de conduzir metodicamente os experimentos.

A propósito disso, nem mesmo a Natureza conduz os experimentos adequadamente, o que significa que o método não deve mimetizar o labor natural como propõe Comênio (Smith & Maria, 2010, p. 73). Para Skinner, se trata de aperfeiçoar o método experimental a fim de com ele triunfar sobre a Natureza. E a educação seria um campo propício para tal alegado triunfo.

Na educação se pretende, assim, levar longe a manipulação do ambiente através da psicoengenharia, e por meio do quê se espera aproveitar ao máximo as potencialidades dos genes humanos. É que Skinner acredita que os gênios não derivam dos genes. O que os gênios tiveram foi, antes, o ambiente correto. Logo, cabe ao cientista conduzir metodicamente as experimentações laboratoriais a fim de obter dos genes o máximo. E WII não seria senão a experiência das experiências: tratar-se-ia da "realização máxima da história do intelecto humano" (1948/1972, p. 285).

As condições educacionais "corretas" para os bebês de WII consistem em passar seu primeiro ano em um berçário longe dos pais e também das infecções (biológicas e psíquicas) causadas por estes. Nos berçários os bebês são alojados em cabines de vidro semelhantes a aquários. E, nelas, a temperatura e a umidade ambiente são alegadamente as ideais. As crianças ficam aí de fraldas, dormindo sobre um tecido plástico que absorve a umidade. Os pais se limitam a vê-las alguns minutos por dia (Martins, Carvalho & Mayer, 2017, p.86).

Longe dos pais, as crianças permanecem bem perto dos especialistas. E são estes que asseguram, com a ajuda de enfermeiras, que os bebês iniciem a vida livres do medo e das frustrações. Graças a isso, os bebês apresentam, por suposto, um vivo interesse pelo que os cerca. Ou seja: bebês não frustrados se interessariam naturalmente por tudo.

Entretanto, bebês que nunca viessem a realizar quaisquer experiências de frustração cresceriam alienados da realidade. E, por conta disso, a questão para os engenheiros do comportamento é introduzir gradualmente a frustração na vida dos bebês. Tal procedimento, por suposto, criaria a tolerância à frustração. Ora, é exatamente isso que a História, a Sociologia e a Natureza seriam incapazes de realizar, motivo pelo qual as pessoas se tornam, ao acaso, menos ou mais tolerantes à frustração. Mas tal contingência seria contornada pela poiesis da engenharia do comportamento. Graças a esta, todos poderiam ser bem sucedidos10.

A introdução gradual de frustrações equivaleria à imunização por meio de vacinas. É que assim como a inoculação controlada de agentes infectantes leva à produção de anticorpos, a exposição controlada a frustrações promoveria a resistência psicológica a estas. Eis como Skinner apresenta essa "imunização":

Entrega-se a crianças de 3 ou 4 anos pirulitos previamente mergulhados em açúcar (o que permite identificar o menor toque da língua neles). Diz-se a elas que tais guloseimas somente poderão ser comidas posteriormente, mas conquanto não tenham sido lambidas. Depois, para que elas realizem o dito treinamento ético pelo qual aprenderão a se livrar da tentação de lamber os pirulitos antes do permitido, essas guloseimas serão escondidas em armários. Então, a atenção dos pequenos é fortemente distraída (com um jogo divertido, por exemplo). Após algum tempo, as crianças são lembradas a respeito dos pirulitos e estimuladas a examinar suas reações de redução de tensão, de felicidade etc. em face do adiamento da satisfação11. Daí elas finalmente podem ir aos armários para apanhar aos pirulitos. No dia seguinte, quando o experimento é repetido, são então as próprias crianças que correm para os armários e colocam os pirulitos fora de alcance. Ora, não sem razão, o personagem Castle, em face disso, manifesta sua revolta por tamanha "exibição de tirania sádica" (1948/1972, p. 110)12.

Entretanto, em nome da dita libertação psicológica das crianças diante desse expediente comportamental chamado por Skinner de limitado (e que é o de ocultar a desejada guloseima), o experimento avança em sua gradação, de modo que, agora, cada pirulito ao qual se deve resistir já não é escondido, mas pendurado no pescoço das crianças como um bentinho. Eis, assim, a ordem metódica com o qual se pretende corrigir a Natureza ao imunizar as crianças contra frustrações. Eis, também, o paradoxo de uma prática cientificista cuja semelhança com flagelos religiosos é notória. Nesse sentido, compreende-se talvez a verdadeira razão pela qual Skinner caracterizou WII como uma religião na qual não há ligação com o sobrenatural.

E quanto à escola em WII? Nela, o controle do ambiente é relaxado, uma vez que não se recorre ao dito reforço negativo do poder. O controle deve, antes, ser transferido do adulto para as crianças. A propósito, grande parte da educação deve se dar sem o auxílio adulto. Ou seja: as crianças menores aprenderão imitando as mais velhas. Ora, comparativamente à Didática Magna, novamente se constata aí uma distinção radical, posto que na Didática Magna o professor é concebido como o astro que descreve a cada ano o mesmo curso ao redor dos alunos. Isto é, em Comênio o professor não é instigado a renunciar à sua autoridade; e, logo, a educação das crianças não é concebida sem o auxílio do adulto (ainda que Comênio reconheça de bom grado que cada aluno aguça a inteligência do outro, como já referido).

Em WII, ademais, não há também salas de aula nem séries escolares:

Não precisamos de "séries" [...]. Um leitor de quarta série pode ser um matemático de sexta série. A série é um expediente administrativo que violenta a natureza do processo de desenvolvimento. Aqui [em WII], a criança progride à velocidade que ela queira em qualquer campo. [...] Não insistimos num certo conjunto de cursos. (1948/1972, p. 121).

A criança progride na velocidade e no campo que quer. Ou seja, "cada uma tem seu ritmo", tal como preconiza o mantra contemporâneo da educação psicologizada. E não que duvidemos, entretanto, da singularidade das crianças! Mas na escola elas devem, também, fazer uma experiência pública na qual o tempo em comum tenha às vezes a primazia.

De fato, não há em WII preocupação com a transmissão cultural e, assim, não se atribui dignidade aos bens simbólicos que os adultos julgam dignos de legar aos mais novos (bens esses que os novos só podem conquistar sob a condição de engendrar com isso a diferença geracional). O que importa em WII – tal como se tornaria hegemônico no século XX - é que as crianças sejam felizes:

Uma vez que nossas crianças estejam felizes, cheias de energia e curiosas, não precisamos ensinar nenhuma "matéria". Ensinamos somente as técnicas de aprender e pensar. Assim, para Geografia, Literatura, Ciências — damos às nossas crianças oportunidade e orientação e elas aprendem por si mesmas. Deste modo, dispensamos metade dos professores exigidos no antigo sistema e nossa educação é incomparavelmente melhor. Nossas crianças não são negligenciadas, mas raramente, se é que alguma vez isso acontece, ensina-se alguma coisa (1948/1972, p. 122. Grifo do autor).

Criança feliz, criança pesquisadora. Eis que em estado de gozo a criança tiraria de si a curiosidade como a aranha tira de si a teia. Ou seja, sob o viés comportamental, a curiosidade da criança não é concebida como algo que se estrutura em um campo simbólico a partir do liame discursivo entre pais e filhos – ou entre professores e alunos –, liame esse que atiça ou não o desejo de conhecer por parte da criança. Sob o prisma behaviorista, o testemunho prestado inconscientemente por um professor ao ensinar - testemunho que é inerente à relação estabelecida por ele com os saberes públicos - não possui valor. Com isso, resta então às crianças - uma vez dispensadas de se apropriar subjetivamente dos conhecimentos em comum - a adesão a objetivas e anônimas técnicas de aprendizado individual.

Como se nota, a escola em WII está dispensada, assim, de estabelecer um currículo e de preservar a diferença (e a articulação) entre Ginásio, Colégio, Faculdade (isto é, o "plano orgânico dos estudos", segundo Comênio). Não há também necessidade de provas, notas e aulas. O edifício escolar moderno é desconstruído sem mais.

Para Skinner, é preciso mesmo abandonar as técnicas superadas da educação pré-científica e, assim, abraçar a nova educação comportamental. O benefício seria para todos sem qualquer exceção:

Práticas [educacionais] tradicionais são reconhecidamente melhores do que nada, continuou Frazier [personagem que é o mentor e realizador de WII, além de um eu ideal para Skinner]. Espartano ou puritano, ninguém pode questionar o resultado ocasionalmente feliz. Mas o sistema inteiro repousa sobre o desperdício do princípio de seleção. A escola pública inglesa do século XIX produziu homens corajosos — estabelecendo barreiras quase insuperáveis e elevando ao máximo os poucos que conseguiram ultrapassá-las. Mas seleção não é educação. A sua safra de homens corajosos será sempre pequena e a perda, enorme. Como todos os princípios primitivos, a seleção vale como educação apenas através do uso desregrado de material. Multiplica de maneira extravagante e seleciona com rigor. É a filosofia da "grande ninhada" como alternativa para a boa higiene infantil. Em Walden II, temos um objetivo diferente. Fazemos de cada homem um homem corajoso. Todos eles ultrapassam as barreiras. Alguns requerem mais preparo do que os outros, mas todos o fazem. O uso tradicional da adversidade serve para selecionar o forte. Nós controlamos a adversidade para construir força. E fazemo-lo deliberadamente, não importa quão sádicos o Sr. Castle nos possa julgar, a fim de preparar para as adversidades que estão fora de controle (1948/1972, p. 116).

Segundo Skinner, a educação chamada tradicional se limitava a selecionar o forte. Assim, ela supostamente criava adversidades extraordinárias para fazer os fracos ficarem pelo caminho. Ao contrário disso, na visão de Comênio a escola deveria estar aberta a todos, além de se servir de métodos universais - a despeito de imperfeições inerentes a este – a fim de alcançar sua finalidade. Com isso, a escola decerto não asseguraria o que ela não pode (e não deveria, caso pudesse) assegurar: o destino de cada pessoa na vida. Todavia, ela oferecia dessa forma condições de partida razoavelmente equânimes para todos.

Mas já a educação comportamentalista asseguraria que todos os alunos obtivessem êxito total. Isto é, todos ultrapassariam as adversidades, ainda que alguns necessitassem de maiores doses de condicionamento. Nada seria impossível para tal metodologia. Ora, cabe então indagar aqui se haveria uma modalidade de educação supostamente mais universalista e democrática do que essa. Enquanto a dita escola tradicional, por suposto, deixaria a seleção dos melhores ao sopro do espírito ou, numa versão laica, ao acaso, em WII o controle metódico das adversidades a que são expostos os alunos (como no experimento do pirulito) iria condicioná-los a enfrentar as adversidades que ficam fora de controle. Quem poderia recusar essa nova educação que ilustraria um triunfo "científico" livre de quaisquer exceções?

Bem, talvez devessem recusá-la aqueles que pensam que a escola dita tradicional não selecionava os fortes. Ela, antes, oferecia – tal como ainda ocorre em não poucos países republicanos – condições assemelhadas de formação. Tal oferta, entretanto, não implica a pretensão onipotente e tirânica de garantir o aprendizado ou preestabelecer o destino dos alunos, e isso até mesmo porque, ao se admitir a margem de liberdade subjetiva de cada estudante, não aprender se torna então um destino possível (muito embora, por princípio, se trate de algo indesejável aos olhos de um professor e da própria escola). Afinal, por melhores e mais democráticos que sejam as políticas educacionais e o próprio sistema escolar, nada desincumbe o professor e o aluno de se responsabilizarem pela educação. Ou seja: se fosse realmente possível assegurar - metodologicamente ou não – o aprendizado do aluno ou o dito êxito na educação, isso implicaria reduzir os professores e, sobretudo, os alunos, a meras ilustrações ou objetos desta ou daquela metodologia ou teoria.

Vejamos o que afirma Skinner sobre isso: "você não pode forçar a felicidade [...]. Nós não usamos força! Tudo o que nós precisamos é de engenharia comportamental adequada" (1948/1972, p. 164. Grifos do autor). Na esteira disso, condicionar os alunos a querer aprender não seria, por suposto, forçá-los a aprender. Ao contrário, seria, para Skinner, assegurar-lhes a felicidade. Ora, mas condicionar o aluno a ser livre não é exatamente aquilo que uma formação que preserva a margem de liberdade do sujeito não deve nunca admitir?

 

Algumas conclusões

Mesmo sendo pertinente afirmar que Comênio e Skinner superestimam a metodologia, tal traço é insuficiente para irmaná-los. É muito mais justificável afirmar que suas visadas apresentam divergências fundamentais, sobretudo quanto ao modo de conceber a práxis política. E tal concepção, por sua vez, é decisiva na atribuição das finalidades da escola e no reconhecimento ou não da falibilidade do método de ensino (isto é, de sua impossibilidade no sentido proposto a partir da Psicanálise e Educação).

Na Didática Magna pretende-se que a escola torne públicos os saberes por meio de um plano orgânico de estudos pautado na ordem natural, plano que é dividido em níveis, classes, aulas etc. Sua finalidade é que os jovens de todas as idades, sexo e extração social, adquirindo assim uma cultura universalista, pautem suas vidas privadas e públicas de forma digna (Gomes, 1966; Narodowski, 1994/2001).

Já em WII opta-se por uma escola desconstruída, sem currículo, classes, matérias, ensino, provas etc. Nela, o condicionamento comportamental, graças ao reforço positivo, faria os alunos desejarem o que o método experimental estabelece como o bem social e individual - isto é, o bem para o todo e não para todos (Voltolini et al., 2018).

Ora, tal divergência entre os autores talvez possa, afinal, ser assim sintetizada: enquanto Comênio é um precursor da organização institucional da escola moderna, a qual é concebida como um fundamento da polis, Skinner anuncia o fim da mesma. Este último procura, desse modo, desescolarizar a escola para submeter o que restaria dela à tecnociência. E, nesse sentido, enquanto a Didática Magna foi contemporânea da ascensão da esfera pública na modernidade, WII prenunciou seu declínio na modernidade tardia (Nye, 1992).

Em suma, enquanto na Didática Magna a escola cumpre uma função pública que é a de formar os alunos em nome da ética da vida ativa na polis, em WII a escola é condição de possibilidade de uma distopia antipolítica em que as incertezas inerentes à praxis seriam superadas pelas certezas da poiesis da engenharia comportamental. E, por seu turno, um dos mais graves efeitos educacionais disso é a supressão do sujeito no que diz respeito tanto ao professor quanto ao aluno.

Em Comênio, a praxis não é redutível à poiesis. Isto é, muito embora a observância da metodologia pelo professor seja indispensável, a abertura da escola a todos se configura como uma brecha ao que não se controla pelo método. Trata-se do determinismo divino que atua sobre os humanos (e que numa perspectiva laica concerniria antes à margem de liberdade subjetiva dos implicados na e pela educação). Ora, pretender suprimir tal inelutável margem de incerteza (ou simplesmente o impossível no sentido psicanalítico) seria suprimir a educação mesma. E de mais a mais, o que está em questão aí, afinal, é que a indispensável universalização da oferta educacional pública de forma alguma pode dispensar professores e alunos de se implicar subjetivamente com o ensino e o aprendizado escolares.

Em Skinner o controle metodológico do ambiente permitiria escapar aos determinismos naturais e sociais a fim de substituí-los pelos da psicoengenharia. O autor não duvida da onipotência do método para modelar os indivíduos, condicionando-os sem exceção13. Em face dessa crença ilimitada na atitude experimental, Skinner não titubeia em subsumir a sociedade à felicidade que a experiência laboratorial seria capaz de definir e de engendrar. O psicólogo, sendo assim, confia ao método a missão inequívoca de instaurar um mundo sem conflitos, mundo que seria constituído por indivíduos igualmente livres de conflitos consigo mesmos e com os outros. A questão, justamente, é se tal pretensão de unificação não implicaria o espírito de massa que define os regimes totalitários e, logo, o voto de levar a cabo com toda a certeza o pretendido bem e a dita liberdade do todo.

 

Referências

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Recebido em janeiro de 2019 – Aceito em outubro de 2020.

 

 

1 Vale dizer que aqui ampliamos a perspectiva teórica já apresentada em nossa tese de Doutorado (Batista, 2013), tese essa que contou com financiamento da Capes e que teve como Orientador o Prof. Leandro de Lajonquière.
2 No caso, deduzir a priori não pode significar deduzir a partir das estruturas inerentes à razão como em Kant, posto que a razão humana foi afetada pela queda (ou seja: nossa razão é adâmica). Sendo assim, resta analisar o entorno a fim de identificar e mimetizar a intocada ordem do labor natural.
3 Para Cambi (1995/1999), é somente imitando as leis naturais que o método comeniano de ensino pode atingir níveis graduais de complexidade. Entretanto, não só as lições devem ser ensinadas com método pelos professores (ou seja, progressivamente). O método mesmo só pode ser universalmente compartilhado pelos professores na medida em que mimetize a progressão inerente à ordem natural. Acerca disso, ver também Cauly (1999).
4 Para a Psicanálise a educação não é da ordem da Natureza, mas da Cultura. Ou antes: há educação em função da sujeição do humano ao registro do Simbólico. E tal como aludido na introdução deste artigo, a educação é um ofício impossível (mas não impraticável) na medida mesmo da imprevisibilidade da emergência do sujeito no que tange ao aluno e ao seu aprendizado.
5 Segundo Narodowski (1994/2001), para Comênio a distribuição universal dos conhecimentos produzidos pela humanidade seria impensável no contexto escolar sem a imprescindível referência à "progressão natural".
6 Sobre a diferença entre endereçar-se a todos e ao todo, ver Voltolini et al. (2018, pp. 31 - 43).
7 Acerca do debate em torno do caráter utópico ou distópico de Walden II ver Baum (1994/1999).
8 Skinner não distingue poder e autoridade. Para Arendt (1954/2000), ao contrário, enquanto o poder implica que alguém dispõe de meios coercitivos para levar outro alguém a obedecer, no caso da autoridade quem obedece o faz por atribuir legitimidade a uma relação hierárquica. Tal distinção, decerto, põe em xeque o ponto de vista comportamentalista. De mais a mais, hoje há até mesmo comportamentalistas para os quais a coerção é considerada, dentre de certos limites, como algo inerente à vida social (cf. Martins, Carvalho & Mayer, 2017).
9 A concepção de Skinner é, nesse ponto, antípoda à de Comênio, uma vez que para este o método não estava à altura de predizer – e muito menos preestabelecer - o destino humano.
10 O tudo e, mais ainda, o todos sofrem em Comênio arrefecimentos que livram sua teoria de um viés totalitário. Já Skinner não é propenso a um arrefecimento da onipotência do método.
11 Segundo Nico (2001), embora adiar a satisfação nesse caso seja algo aversivo para a criança, é o controle da dose de aversão da criança que assegurará que o condicionamento buscado seja atingido.
12 O filósofo Castle é um personagem que, ao visitar WII, crítica tal comunidade. Tal crítica reflete os conflitos que habitavam a alma do autor (Baum, 1994/1999, p. 273). Todavia, ao final do livro, o personagem Burris – que encarna o próprio Skinner – abre mão dessa luta subjetiva ao fazer as malas e se mudar para WII.
13 Comênio é pré-moderno quando postula que o ser humano é ministro da natureza e não seu senhor. Já Skinner é moderno por postular o triunfo sobre a natureza. Todavia, se a Modernidade pode ser definida pelo esvaziamento dos marcos da certeza, a visão de Skinner quanto ao método faz dele um antimoderno.
Revisão gramatical: Thais Silva Cervini
E-mail: thaiscervini@hotmail.com

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