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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
versão impressa ISSN 1516-3717versão On-line ISSN 1981-0490
Cad. psicol. soc. trab. v.2 São Paulo dez. 1999
MESA REDONDA - REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA: O QUE HÁ DE NOVO PARA A PSICOLOGIA NO MUNDO DO TRABALHO
Sobre a comemoração do primeiro de maio*
Sylvia Leser de Mello1
Enquanto me preparava para falar neste encontro, algumas perguntas insistiam em aparecer em busca de respostas. A primeira delas é a respeito das comemorações. O que torna comemorável uma data? Por que estamos aqui reunidos em função do primeiro de maio? Qual o valor simbólico do ritual que nos reúne?
Para cada data e cada comemoração há uma história a ser contada. A memória, quando o fato já desapareceu, reconstrói o sentido do acontecimento e dele se nutre. Encontrar esse sentido em nossa presença hoje, aqui, não significa que aquelas perguntas tenham resposta única. Ofereço a que me parece, neste momento, mais adequada.
Há mais de cem anos, trabalhadores, que lutavam pela redução da jornada de trabalho, foram massacrados em Chicago. A Segunda Internacional escolheu essa data, o primeiro dia de maio, como o “Dia do Trabalho”, também porque nessa data foi convocada uma greve mundial dos trabalhadores. Parece-me que o sentido maior deste dia é, portanto, homenagear a união dos trabalhadores em torno de seus direitos, garantir que essa luta não chegou ao fim e que, a cada ano, é necessário não só lembrar os mortos daquela data, mas renovar a disposição para a luta e para a união.
Ainda não podemos ter uma perspectiva clara sobre tudo o que ocorreu neste século mas, com certeza, os trabalhadores, através de processos, às vezes violentos, às vezes não, asseguraram um certo número de direitos sociais e políticos e se tornaram conscientes da força que a união propicia. Cresceram também desmesuradamente as forças produtivas e a capacidade de produção, aliada à cegueira do capitalismo, transformou nossas sociedades em sociedades de consumo de massa e o trabalhador em um consumidor. Talvez por isso o ritual do primeiro de maio seja ainda mais necessário hoje e nos ajude a exorcizar alguns fantasmas que acreditávamos vencidos há já muito tempo.
Fenômenos, como a chamada globalização, no que tange aos trabalhadores, nada mais são do que o domínio da economia sobre todos os outros elementos constitutivos da vida social. Baudrillard (1996) diz muito bem que “já não estamos no crescimento; estamos na excrescência. Estamos numa sociedade da proliferação, do que continua a crescer sem poder ser medido por seus próprios fins. O excrescente é o que se desenvolve de modo incontrolável, sem respeito pela própria definição, aquilo cujos efeitos multiplicam-se com o desaparecimento das causas. É o que leva a um prodigioso entupimento dos sistemas, a uma desregulagem por hipertelia, por excesso de funcionalidade, por saturação. A melhor comparação é com o processo das metástases cancerosas: é a perda da regra do jogo orgânico de um corpo que faz com que um determinado conjunto de células possa manifestar sua vitalidade incoercível e mortífera, desobedecer aos próprios comandos genéticos e proliferar ao infinito”. O câncer, no entanto, pode matar o organismo onde se instala.
Entre as perguntas que precisam ser feitas, a relativa às causas é, de longe, a mais importante. Tomemos, por exemplo, o núcleo da temática desta mesa: reestruturação produtiva. Tenho apenas uma vaga idéia do que seja a reestruturação produtiva: sei, por exemplo, que alguns de seus efeitos são de extraordinária perversidade, como o enxugamento dos postos de trabalho e o desemprego conseqüente de milhões de trabalhadores. No entanto, em lugar de me demorar a perguntar o que é, gostaria que a pergunta fosse: porque a restruturação produtiva é necessária, qual a sua causa? A resposta oficial é a da globalização da economia e da necessidade de nos tornarmos competitivos no grande mercado que é o mundo atual. Baudrillard (1996) denomina o sentido desse grande mercado de transeconomia da especulação. A necessidade que conduz à reestruturação produtiva não é mais da ordem do humano. Suas causas residem em outro domínio, que nada tem a ver com o bem estar ou a felicidade dos homens.
Há um pouco dessa lógica desumana na produção da ciência. Também ela perdeu a causa original de si mesma. Não mais se pergunta hoje como a Psicologia pode oferecer sua contribuição para aliviar a pesada carga dos homens nos seus postos de trabalho ou onde quer que seja, mas como ela pode contribuir para o aumento da produtividade e da competitividade das organizações, acionar programas de consolo aos que perdem o emprego e transformar a insegurança dos que ficam em maior produtividade.
No Brasil, hoje, não vejo grandes motivos para comemorar o dia do trabalho. Dos meados deste século ao seu final os trabalhadores viram seus direitos assegurados e o declínio ou a relativização desses mesmos direitos apregoados pelo ministro do trabalho como medida necessária contra o desemprego! Falamos de frangos e de dentaduras como se fossem o termômetro do fim dos problemas sociais, das desigualdades, da injustiça. O valor mais alto parece ser continuarmos produzindo mercadorias que já são um fim em si mesmas.
O que pode a Psicologia fazer? Num certo sentido, até mesmo a produção do conhecimento engrossa o conjunto da superprodução. “Tantas coisas são produzidas e acumuladas que nunca terão tempo de servir. Tantas mensagens e sinais são produzidos e difundidos, que nunca terão tempo de ser lidos” (Baudrillard, 1996). Há uma impossibilidade de conhecer o que se produz & outra vez a mesma palavra & até mesmo num pequeno nicho do caudaloso rio da produção da ciência.
A globalização da economia e dos mercados, cujo efeito mais visível é tornar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, não facilita a celebração do Primeiro de Maio. Os benefícios para o conjunto dos povos que essa “transeconomia da especulação” promete trazer não são visíveis a olho nu. No Brasil, os seus efeitos são devastadores. Num país em que o emprego sempre foi escasso em relação ao crescimento demográfico ou às populações que eram desalojadas de seus lugares tradicionais no campo e lançadas à aventura da cidade grande, e onde a exploração do trabalhador não conhece muitos limites, o encolhimento maciço de postos de trabalho, a dispensa de trabalhadores aos milhares, só pode significar um acréscimo penoso às dificuldades de vida da grande massa dos trabalhadores que perdem o direito de sê-lo. Nesse sentido, “já não se trata de uma crise, mas de um acontecimento fatal, de uma catástrofe em câmara lenta” (Baudrillard, 1996).
Não gostaria de parecer cética demais, mas acho que perdemos a capacidade de fazer as perguntas pertinentes aos meios e aos fins, aos efeitos e às causas. Admitimos deterministicamente que o processo em curso representa apenas uma crise de ajustamento entre o novo e o velho. Mas “já não é um processo crítico: a crise é sempre questão de causalidade, de desequilibro entre causas e efeitos; ela encontra sua solução ou não num reajustamento das causas. Ao passo que, no que nos concerne, são as causas que se apagam e se tornam ilegíveis, deixando lugar para a intensificação dos processos no vazio” (Baudrillard, 1996).
No caso da psicologia, a humildade seria um bom reencontro com as causas: colocar os homens e suas necessidades novamente no centro das pesquisas, dos métodos, dos procedimentos. Distinguir com clareza os meios dos fins, conselho seguro que Marx já nos deu há mais de um século e que se perde na vertigem da “inutilidade prodigiosa” que nos cerca de todos os lados.
Referência Bibliográfica
Baudrillard, J. (1996). A Transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus. [ Links ]
* Mesa-redonda "Reestruturação produtiva: o que há de novo para a psicologia no mundo do trabalho?", organizada pelo Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho do IPUSP em 29 de abril de 1998. Reconhecendo-se mudanças significativas no mundo do trabalho (relações de trabalho, organização da produção) e suas implicações para o cotidiano dos trabalhadores e para a atuação sindical, a mesa-redonda sobre reestruturação produtiva contou com contribuições de Luís Paulo Bresciani, Roberto Heloani, Remígio Todeschini e Sylvia Leser de Mello para aprofundar o debate sobre essa temática, de modo a trazer elementos que enriqueçam a construção de conhecimentos e das práticas voltadas aos problemas humanos no trabalho.
1 Professora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.