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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717versão On-line ISSN 1981-0490

Cad. psicol. soc. trab. v.7  São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

Controle social do trabalho no setor sucroalcooleiro: reflexões sobre o comportamento das empresas, do estado e dos movimentos sociais organizados1

 

Social control in work in the sugar/alcohol sector: reflections on the behavior of the companies, the state and the organized social movements

 

 

Rosemeire Aparecida Scopinho2

Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo procura-se refletir sobre as relações que se estabelecem entre as empresas, o Estado e os trabalhadores organizados, quando se trata de implementar práticas de controle social das relações e condições de trabalho no setor sucroalcooleiro. Há um distanciamento entre o que preconizam as políticas, a legislação e a realidade concreta. Nas empresas, as inovações tecnológicas e organizacionais desempregam e intensificam o ritmo do trabalho, não significando melhorias reais para os trabalhadores. Os órgãos estatais desenvolvem ações fragmentadas e desarticuladas. Os trabalhadores, ameaçados pelo desemprego e influenciados por uma política de relações sindicais de consenso, buscam soluções imediatistas para os problemas. No entanto, pode-se afirmar que o Comando foi um espaço privilegiado para qualificar os trabalhadores para lidar preventivamente com a saúde e a segurança no trabalho. Reafirma-se a necessidade de intensificar as ações de vigilância em saúde e trabalho neste setor, alertando para os enganos da cultura da qualidade total, da certificação e dos selos de qualidade como fórmulas mágicas para solucionar os problemas trabalhistas e sociais existentes nas empresas.

Palavras-chave: Vigilância em saúde e trabalho, Qualidade total, Política social, Sindicalismo, Agroindústria sucroalcooleira.


ABSTRACT

This paper analyses the relations between enterprises, state and workers organizations to carried out social control pratices at work relations and conditions in the sugar/alcohol sector. There is a gap between what politics and legislation say and what reality shows. In the enterprises, tech-organisational innovations sack workers and make the work load heavier, not leading to real improvement in the quality of life of the employees. The state inspection organs develop actions which are fragmented and disarticulated. The employees, threatened by unemployment and influenced by the politics of consensual syndicate relations, seek immediate solutions for the problems. The Command was a privileged space for the qualification of the employees to be able to deal in a preventive way with health and safety in labour. The need to intensify the vigilance in this sector is reaffirmed, alerting to the delusion of the total quality culture, the certifying and quality stamps seen as a magic formula to solve labour and social problems existent in the businesses.

Keywords: Health and work vigilance, Total quality, Social politics, Syndicalism, Sugar/alcohol agro-industry.


 

 

É indiscutível a importância econômica do setor sucroalcooleiro para a macrorregião de Ribeirão Preto3, especialmente a partir de meados da década de 1970 quando foi implantado o Programa Nacional do Álcool (Proálcool). No ano safra 1998/99, a macrorregião possuía 34% das unidades produtivas sucroalcooleiras paulistas, que eram responsáveis por gerar 34% dos empregos diretos ofertados pelo setor no Estado. Concentram-se nesta região a segunda e a terceira maiores usinas-destilarias do país, que se destacam no ranking nacional de moagem de cana por superarem a marca de sete milhões de toneladas por ano (Anuário Jornalcana, 1999).

Tradicionalmente subsidiadas e protegidas pelo Estado desde os tempos do Brasil colonial, essas empresas intensificaram o processo de reestruturação produtiva a partir de meados da década de 1980, quando, em decorrência das mudanças no cenário político e econômico nacional e internacional, iniciou-se a desregulamentação da economia sucroalcooleira. A partir de então, a reestruturação do setor passou a ser orientada, principalmente, pelas demandas do mercado externo e comandada pela introdução de tecnologias de produção poupadoras de força de trabalho e de outros métodos de gestão empresarial inspirados no modelo da qualidade total (Scopinho, 2000a, 2000b). No entanto, apesar da importância econômica do setor sucroalcooleiro para a economia regional e nacional e da velocidade com que ele se reestrutura, o modo de organização da produção gera um conjunto de impactos sócio-ambientais negativos, destacando-se entre eles a precariedade das relações e condições em que se realiza o trabalho (Alessi & Scopinho, 1994; Pinheiro, 1992; Scopinho & Valarelli, 1995; Scopinho, Eid, Vian & Silva, 1999; Scopinho, 2000b). A situação trabalhista e social desses trabalhadores e as condições legais existentes no sistema de saúde e no sistema de inspeção do trabalho brasileiro, levou o movimento sindical dos assalariados rurais a propor a realização de ações de vigilância como forma de enfrentar os agravos à saúde decorrentes do trabalho.

Neste artigo procura-se refletir sobre as relações que se estabelecem entre as empresas, o Estado e os trabalhadores organizados, quando se trata de implementar práticas de controle social das relações e condições de trabalho nesse setor. Ele foi baseado na análise de uma experiência que consistiu na realização de ações de vigilância em saúde em ambientes e frentes de trabalho, desenvolvidas durante o ano de 1994 por uma comissão interinstitucional e multiprofissional denominada pelos sindicalistas de Comando de Fiscalização Integrada (Scopinho, 2000a).

A experiência do Comando é aqui compreendida como uma possível estratégia coletiva de intervenção e controle social4 das relações e condições de trabalho, visando à saúde e à segurança dos trabalhadores. A análise baseia-se na compreensão de que as relações sociais de produção não apenas são um dos principais condicionantes do estado de saúde dos trabalhadores (Laurell & Noriega, 1989), como também condicionam os processos de formulação e de implementação das políticas e dos instrumentos legais que regulamentam as práticas sociais em saúde e segurança no trabalho (Faleiros, 1992).

A rede de relações que se estabeleceu entre as empresas, o Estado e os trabalhadores organizados ao desenvolver práticas sociais de controle da saúde e segurança no trabalho no setor sucroalcooleiro foi analisada tendo como referência alguns aspectos considerados importantes na totalidade social onde ela estava inserida, quais sejam: a) a reestruturação produtiva em curso no setor na era da desregulamentação estatal, da mundialização da economia e da qualidade total; b) as reformas administrativas promovidas pelo Estado no âmbito da política, da legislação e das práticas governamentais na área saúde-trabalho; c) um momento de forte refluxo do movimento sindical sucroalcooleiro na luta pela melhoria das condições de trabalho e de vida atribuído aos elevados índices de desemprego tecnológico.

A análise procurou reunir elementos para contribuir com a reflexão sobre alguns questionamentos relacionados à saúde do trabalhador sucroalcooleiro, tais como: em que medida as inovações tecnológicas e organizacionais, especialmente aquelas que dizem respeito aos métodos de gestão do trabalho inspirados no modelo da qualidade total estão, realmente, contribuindo para melhorar as relações e as condições de trabalho? Qual foi o comportamento do Estado na década de 1990, com relação à saúde e à segurança no trabalho? Que lugares ocupam, atualmente, a saúde e a segurança no trabalho nas lutas do movimento sindical, principalmente o rural?

O setor sucroalcooleiro tem sido, historicamente, um cenário privilegiado para o estudo das relações que se estabelecem entre o setor privado, o Estado e a sociedade organizada, como já demonstraram os estudos de Gnaccarini (1972), Numberg (1985), Queda (1972) e Szmrecsányi (1979), entre outros. Esse é um setor da economia privada no qual – tanto nas questões econômicas como sociais – a intervenção estatal sempre ocorreu, como resultado das pressões e reclamos dos próprios produtores, e ainda ocorre, institucionalizadamente ou não, apesar da desregulamentação.

 

Antecedentes, objetivos, concepção e método da experiência

O Comando de Fiscalização Integrada organizou-se como uma comissão interinstitucional e multiprofissional, constituída por representantes dos diferentes órgãos governamentais encarregados da vigilância das relações e das condições de trabalho, das diferentes categorias de trabalhadores sucroalcooleiros, de organizações não-governamentais, de órgãos de pesquisa e de imprensa. As ações tiveram como referência, de um lado, a realidade trabalhista e social existente no setor e, de outro, a legislação trabalhista e sanitária (Lei 8.080/90 e Instrução Normativa Intersecretarial 1 de 21/03/94, do Ministério do Trabalho e Emprego) e o que preconizava a política nacional de saúde do trabalhador definida pela CIST, Comissão Interinstitucional de Saúde do Trabalhador (1993).

Entre março e outubro de 1994, sob a coordenação da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE)5, o Comando inspecionou frentes e ambientes de trabalho objetivando desenvolver ações de fiscalização integrada. Essas ações eram definidas pelos trabalhadores como uma forma coletiva e organizada de controle social sobre a saúde e a segurança no trabalho, o que pressupõe a atuação conjunta da sociedade organizada (especialmente os sindicatos) e dos diferentes setores governamentais que possuem competência legal para intervir nas relações e condições de trabalho, cada qual na sua área de competência específica, mas também considerando as devidas intersecções que se apresentam entre elas. Essa forma de definir as ações de controle social do trabalho tanto fundamentava-se nas necessidades objetivas dos trabalhadores e na avaliação da experiência sindical com os órgãos estatais regionais ligados à questão saúde-trabalho, quanto vinha ao encontro do que no setor saúde é tecnicamente denominado de Vigilância em Saúde e Trabalho (VST).

A VST é uma prática social exercida no contexto da relação capital-trabalho que pressupõe o envolvimento de diferentes forças sociais na regulação e no monitoramento das relações e das condições de trabalho tendo em vista preservar e garantir a saúde dos trabalhadores. Em síntese, é um processo caracterizado, principalmente, por: 1) procurar esclarecer os condicionantes sociais da saúde-doença que atingem grupos específicos de trabalhadores devido ao modo como estão inseridos nos processos produtivow; 2) definir estrat&eagute;gias e descentralizar ações de enfrentamento e de superação das condições adversas geradas pelo modo de organizar e de realizar a produção a partir do levantamento e da hierarquização dos problemas e das necessidades de seúde dos trabalhadores; 3) trocurar articuler as diferentes dimensões da saúde do trabalhador, uuaiw sejam: a assiwt&ecirg;ncia curativa-preventiva, a promoção da saúde e a orienteção trabelhiwta-previdenciárie, as vigilâncias epidemiológica e sanitária, a pesquisa sobre o adoecer individual e coletivo relacionado ao trabelho, avticulando saberes distintos (dos$técnicos e dos trabelhadores); 4) pvessupov uue o conjunto de$pváticas$que atendem$à saúde$do trebalhador não podem ser tomadas como exclusividede dos técnicos, maw wão temfém$de vesponwabilidade$e$de competêncie da sogiedade$civil orgenizeda, tendo, necessariamente, o trabalhador como um dos protagonistas principais, por ser ele o maior interessado na transformação da realidade trabalhista e sanitária (Lacaz, 1992; Machado, 1996; Ministério da Saúde, 1993; Pinheiro, 1994; Sato, 1996). Essas características – mais precisamente a de considerar o trabalhador como um dos sujeitos ativos de uma rede social, interdisciplinar e multiprofissional, que busca exercer o controle sobre as relações e as condições em que se realiza o trabalho, objeto da ação de vigilância – diferenciam a VST das práticas de inspeção/fiscalização do trabalho que, tradicionalmente, têm sido exercidas no âmbito do Ministério de Trabalho.

Surgindo na década de 1980 como prática social inserida nos Programas de Saúde do Trabalhador implantados na rede oficial de serviços de saúde nos Estados de Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e, principalmente, em São Paulo (Costa, Carmo, Settimi & Santos, 1989; Lacaz, 1992, 1997; Machado, 1996; Mendes, 1986; Pinheiro, 1994), a VST tornou-se política estatal respaldada por uma legislação específica somente a partir dos anos de 1990, com a aprovação da Lei Orgânica da Saúde. Nessa década, em meio à polêmica e corporativa disputa de natureza legal e política entre o Ministério do Trabalho e o Ministério da Saúde pela competência para inspecionar os ambientes de trabalho6, algumas propostas metodológicas e experiências concretas de implementação de ações de VST foram desenvolvidas, principalmente no Estado do Rio de Janeiro, através do Centro de Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Freitas, 1994; Machado, 1997; Miranda, 1997; Vasconcellos & Ribeiro, 1997), fundamentando o processo de aprovação da Lei Estadual 1.979, de 23/03/92, que proíbe o uso do jateamento de areia7 no processo de trabalho de construção e reparo naval. No Estado de São Paulo, a região canavieira de Ribeirão Preto, entre meados da década de 1980 e meados da década seguinte, foi palco de algumas experiências que procuravam exercitar e ampliar o controle social sobre os ambientes de trabalho, principalmente no setor sucroalcooleiro (Alessi, Biondi, Pinheiro, Palocci-Filho & Franco, 1989; Goulart, 1996; Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, 1987), entre as quais pode-se referir o Comando.

Pensar o Comando sob a perspectiva da VST requer que se apresente, brevemente, quem são os trabalhadores protagonistas da experiência e o contexto no qual ela se desenvolveu. Alves (1991), D’Incao (1984) e Ferrante (1992), estudando a relação entre as mudanças na organização do trabalho e o comportamento político do movimento sindical no setor, mostraram que, apesar dos percalços encontrados na trajetória, houve avanços no processo de formação da identidade de classe e até no processo organizativo dos trabalhadores rurais. Esses avanços estão expressos na conquista de direitos sociais mínimos, destacando-se, entre eles, a regulamentação de alguns aspectos das relações de trabalho – obtidos a partir das greves ocorridas em Guariba e Leme (cidades paulistas) entre 1984 e 1986 – e na capacidade de esboçarem um projeto político próprio, concretizado na fundação da Federação dos Empregados Rurais Assalariados no Estado de São Paulo (Feraesp) em 1989.8

Mas, se são inegáveis os avanços político-organizativos, também é verdade que uma das conseqüências do ocorrido é que o movimento sindical rural da região de Ribeirão Preto é marcado pela heterogeneidade de concepções e práticas político-organizativas e não tem logrado enfrentar adequadamente e, tampouco, superar as dificuldades vivenciadas pela categoria no seu cotidiano, na reivindicação e na defesa dos seus direitos básicos de cidadania. O comportamento político da categoria é ambíguo, contraditório e tanto reflete como é reflexo das fissuras, dos contrapontos e das inúmeras divergências existentes no movimento sindical rural regional. Isso igualmente ocorre em relação à questão saúde-trabalho. Se, por um lado, é evidente a relação entre organização do trabalho e desgaste dos trabalhadores, por outro, entre eles predomina uma representação biologicista, individual e curativa da saúde-doença, que tanto está relacionada ao modo como, hegemonicamente, a questão é concebida e tratada na nossa sociedade, como também ao próprio modo de organização da produção sucroalcooleira e às formas de exploração e de controle dos trabalhadores, a cada dia renovadas no contexto da reestruturação produtiva. E, seguindo a lógica da ambigüidade e da contradição, entre esses mesmos trabalhadores também é possível identificar a existência de focos de resistência, a capacidade de mobilização e de articulação para o enfrentamento dos problemas. A experiência do Comando pode ser entendida como um exemplo disso.

Para compreender o Comando, também é importante referir algumas condições societárias preexistentes na região, expressas na articulação e na atuação de vários atores sociais para debater e propor soluções para os problemas sociais e ambientais. No âmbito não-governamental, destacam-se: a FASE, que desenvolveu programas de educação popular na região (Scopinho & Valarelli, 1995); o Movimento do Ministério Público Democrático e a Associação Ecológica e Cultural Pau Brasil, que moveram ações judiciais contra as usinas devido à queima da cana-de-açúcar, à poluição dos rios e do ar provocada pela prática da monocultura canavieira, dentre outras (Baccarin & Peruzza, 1995); os esforços para coibir o uso do trabalho infanto-juvenil na lavoura canavieira (Goulart, 1996) e os acidentes rodoviários que envolviam trabalhadores rurais transportados em caminhões (Federação de Assistência Social e Educacional, 1991; Silva, Baldin, Scopinho & Alessi, 1994); as Pastorais da Igreja Católica (da Terra e do Migrante) e a defesa dos direitos de cidadania dos migrantes, o combate à migração agenciada, à discriminação da mulher e ao processo de crescimento desordenado e de favelização das “cidades-dormitório”, (E. A. Silva, 1995; M. A. de M. Silva, 1999). Deve-se levar em conta também a atuação das organizações governamentais, tais como alguns serviços da rede oficial de saúde ligados ao então denominado Escritório Regional de Saúde-50 (ERSA-50), outros ligados à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (Hospital das Clínicas e o Centro de Saúde Escola), bem como os órgãos de pesquisa e difusão do conhecimento ligados à Universidade de São Paulo, tais como o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Saúde e Trabalho (NEPST) e o Centro de Estudos Regionais (CER). Esses serviços e órgãos de pesquisa criaram algumas condições para a realização das primeiras fiscalizações integradas na agroindústria sucroalcooleira (Alessi, Biondi, Pinheiro, Palocci-Filho & Franco, 1989), para o desenvolvimento de programas de controle de intoxicações por agrotóxicos – como o Provesa, Programa de Vigilância Sanitária e Epidemiológica em Agrotóxicos (Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo, 1987) – e a implantação de Programas de Saúde do Trabalhador na rede de serviços de saúde (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Saúde e Trabalho, 1993; Alessi, Palocci-Filho, Biondi & Pinheiro, 1994; Alessi et al., 1994).

Essas foram algumas das experiências acumuladas na região, que destaco aqui para compor o quadro dentro do qual estava situada a experiência do Comando. Ao destacar esses momentos, não desconsidero todas as demais formas de luta travadas pelos trabalhadores e outros atores no sentido de garantir o cumprimento de direitos sociais e melhorar as condições de vida, mas somente pontuo aquelas que, de alguma forma, resultaram em ações de controle social das relações e condições de trabalho no setor sucroalcooleiro.

É importante frisar ainda que, na época da constituição do Comando, no âmbito nacional, havia também um certo clima de pressão social para concretizar as mudanças sociais anunciadas na Constituição Federal de 1988, ao lado de uma conjuntura favorável no âmbito dos diferentes ministérios envolvidos com a saúde do trabalhador, no qual cargos de direção considerados estratégicos para promover a renovação das políticas e das práticas estavam sendo ocupados por profissionais tidos como progressistas. No âmbito regional, acrescente-se como importante componente daquela conjuntura, a mudança de orientação política no governo da cidade de Ribeirão Preto (considerada uma espécie de “capital regional”) a partir de 1992, o que facilitou a aproximação dos atores e reanimou a perspectiva de desenvolvimento dos seus projetos sociais. Em suma, pode-se dizer que, entre 1993 e 1994, havia uma conjuntura política, nacional e regional, favorável ao desenvolvimento de experiências como as do Comando.

Dentro desse quadro conjuntural resumidamente apresentado, o Comando deve ser entendido como uma iniciativa do movimento sindical dos assalariados rurais canavieiros, representados pela Feraesp. Em fevereiro de 1993, diante do agravamento crescente da situação trabalhista e social no setor rural, a Feraesp reuniu as inúmeras denúncias de irregularidades, apresentando-as no Seminário Nacional Sobre Mercado de Trabalho no Meio Rural, realizado em Belo Horizonte pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), que contou com a presença de representantes do Ministério do Trabalho. Para solucionar os problemas trabalhistas no campo, a Feraesp propôs que fossem realizadas fiscalizações integradas, entendidas do modo como explicitei anteriormente. Incentivada pela Secretaria de Saúde e Segurança no Trabalho e apoiada pela rede societária referida, durante o segundo semestre do mesmo ano, a Feraesp articulou experiências concretas em usinas-destilarias localizadas nos municípios de Cosmópolis e Bebedouro (ambos no Estado de São Paulo). Paralelamente, ela desencadeou um processo de discussão entre os sindicatos que representam as diferentes categorias de trabalhadores sucroalcooleiros e outros atores sociais ligados a setores governamentais e não-governamentais da região para identificar aqueles que, comprometidos com a defesa dos direitos de cidadania, vinham apresentando propostas de atuação que articulavam forças para o enfrentamento da realidade trabalhista e social vivida no setor. Durante o II Congresso da Feraesp, realizado em Brodosqui (SP), entre 4 e 5 de fevereiro de 1994, a proposta do Comando de Fiscalização Integrada foi debatida no contexto da discussão sobre a importância de revisar as cláusulas sociais existentes no acordo coletivo de trabalho da categoria como forma de prevenção dos agravos à saúde.

Como fruto e síntese desse processo, em março de 1994, criou-se a comissão interinstitucional e multiprofissional denominada Comando de Fiscalização Integrada, que discuto a seguir em termos de objetivos, composição, concepção, método e estratégias definidas para o desenvolvimento das ações.

As ações do Comando tinham o objetivo de, em curto prazo, detectar e sanar as irregularidades trabalhistas e, em longo prazo, desencadear processos educativos com vistas a re-orientar as práticas trabalhistas e sanitárias vigentes. Dessas ações participaram 39 instituições: 21 sindicatos (16 de trabalhadores rurais e 5 de trabalhadores da indústria), 12 órgãos do Estado (ligados ao Ministério Público, do Trabalho, da Saúde, da Previdência e Assistência Social, a Secretaria de Estado de Relações do Trabalho, o Instituto de Pesos e Medidas e a Polícia Militar do Estado de São Paulo), 4 ONGs com atuação na área de direitos humanos, um núcleo de pesquisa ligado à Universidade de São Paulo e a imprensa.

As experiências prévias do movimento sindical com a inspeção do trabalho e o processo de discussão ampliada que precedeu a existência do Comando apontavam os seguintes problemas como principais obstáculos existentes para o exercício do controle social do trabalho no setor sucroalcooleiro: demora no atendimento dos pedidos de inspeção protocolados na Subdelegacia Regional do Trabalho e no Escritório Regional de Saúde; a morosidade e a falta de informações sobre o desfecho dos processos resultantes das ações; a fragmentação das ações, o excesso de burocracia, as incertezas quanto às competências dos diferentes órgãos para inspecionar e, principalmente, a exclusão dos trabalhadores do processo de planejamento e de execução das ações. A avaliação centrava-se, principalmente, no desempenho do Ministério do Trabalho. Era natural que assim fosse, já que a experiência sindical acumulada era maior com esse órgão, que tradicionalmente sempre foi o encarregado pela inspeção do trabalho. Essas características são, em grande parte, condizentes com aquelas apontadas por Oliveira (1994), ao analisar o processo de trabalho dos agentes de inspeção da Delegacia Regional do Trabalho do Rio de Janeiro na década de 1980.

Tomando como parâmetros a reflexão sobre as experiências acumuladas pelo movimento sindical e pelos movimentos sociais regionais, o que preconizava a política nacional de saúde do trabalhador e as especificidades da organização do setor sucroalcooleiro, delineou-se a concepção e o método de atuação do Comando.

Entre os elementos importantes da concepção do Comando destacavam-se: 1) a eleição do ambiente ou frente de trabalho – e não o escritório e os arquivos da empresa – como local privilegiado da ação; 2) considerar também a saúde do meio ambiente e da comunidade mais ampla em que a atividade canavieira se insere, dada a amplitude espacial da organização das unidades produtivas; 3) entender o Comando como um espaço para discutir alguns problemas sociais regionais; 4) discutir e contribuir para a revisão da legislação, das normas regulamentadoras do trabalho e dos mecanismos de punição dos infratores; 5) eleger a Ação Civil Pública como um instrumento jurídico mais eficiente do que as tradicionais formas de reparação monetária (multas, indenizações, adicionais de salário, entre outros), já que, juridicamente, ela reclama os direitos da sociedade e não os de indivíduos isolados; 6) realizar cada ação a partir de um diagnóstico mínimo da situação de trabalho realizado pelos trabalhadores; 7) priorizar a qualidade e não a quantidade, pois a participação dos trabalhadores no planejamento, desenvolvimento e avaliação das ações era condição fundamental para que o Comando atingisse seus objetivos; 8) ser, sobretudo, um espaço pedagógico privilegiado para sindicalistas e trabalhadores exercitarem a prerrogativa legal e legítima da vigilância das relações e das condições de trabalho, conhecerem as conseqüências do modo de organizar o trabalho para a saúde e as formas de defesa e de proteção contra elas, romperem com a cultura de tutela e de suposto protecionismo dos órgãos estatais e assumirem uma postura ativa no controle dos agravos à saúde.

No seu cotidiano, o Comando procurou seguir alguns procedimentos básicos para garantir o desenvolvimento das ações, sem perder de vista a concepção de inspeção acima apresentada. As ações foram coletivamente planejadas, executadas e avaliadas, procurando atender às inúmeras denúncias sindicais de não cumprimento da legislação trabalhista e sanitária. Realizaram-se 27 reuniões: dez para inspecionar ambientes e frentes de trabalho, nove para planejar e avaliar as ações, quatro para realizar seminários e desenvolver atividades de formação dos envolvidos em temáticas específicas e quatro para avaliar o processo.

Aos sindicalistas, com base na demanda dos trabalhadores, cabia a discussão e a elaboração coletiva de um roteiro – do qual constava precisamente a localização geográfica das frentes de trabalho, assim como informações sobre o processo de trabalho objeto da vigilância – que embasava a formação de uma equipe para realizar a ação constituída por agentes estatais, sindicalistas e representantes de outras organizações civis. Aos representantes dos órgãos estatais, além de cumprirem papéis e exercerem competências técnicas específicas definidas pela legislação vigente para atuarem em ambientes de trabalho (Comissão Interministerial de Saúde do Trabalhador, 1993), cabia recrutar e garantir os recursos institucionais, materiais e humanos, indispensáveis para a realização da ação planejada.

Os sindicatos detectavam as demandas acompanhando o movimento dentro das empresas, nos bairros, nos pontos de ônibus e caminhões que transportavam trabalhadores, orientando-os a respeito dos seus direitos trabalhistas e estimulando-os a participar das ações de vigilância do trabalho. As demandas eram priorizadas de acordo com a gravidade do problema, elegendo casos exemplares e divulgando as ações junto à imprensa, depois de realizada a ação. Em um primeiro momento, priorizou-se o atendimento das demandas dos sindicatos rurais, devido à gravidade da situação da categoria. Como não seria possível inspecionar todas as empresas existentes, optou-se por atingir bases sindicais consideradas estratégicas do ponto de vista da existência de unidades produtivas funcionando irregularmente e localizadas em diferentes pontos geográficos da região de modo a, gradativamente, conferir ao trabalho um caráter abrangente e de impacto regional. Após ter sido definido o território objeto da ação e especificada a demanda sindical, os demais sindicatos que poderiam ter trabalhadores de suas bases desempenhando atividades naquele município eram convidados para participar da ação, mesmo que não fossem membros ativos do Comando. Como as lavouras de cana ocupam grandes extensões de terra, a participação desses outros sindicatos possibilitava uma maior cobertura de representação sindical no território inspecionado e ainda contribuía para amadurecer a reflexão sobre a necessidade de romper com a territorialidade das bases sindicais definida na legislação que, na prática, é um empecilho para o atendimento das necessidades e interesses da categoria (Alves, 1991; L. A. Silva, 1995).

Ao término de cada ação, com base na experiência de campo e nos relatórios dos agentes estatais, os membros do Comando reuniam-se para avaliar o trabalho, procurando detectar e corrigir as suas falhas e também discutir os possíveis desdobramentos da ação. Durante a avaliação das ações, assim que emergiam temas que mereciam debate mais aprofundado (por exemplo, a respeito de como os sindicatos poderiam valer-se dos relatórios para encaminhar ações civis públicas e criminais contra as empresas, sobre a legislação que regulamenta saúde e segurança no trabalho etc.), agendavam-se outras reuniões para discuti-los. Assim, procurava-se refletir sobre as práticas do Comando, acentuando e reafirmando a sua importância enquanto instrumento de formação e capacitação, principalmente para os sindicalistas e os trabalhadores.

Com esses procedimentos, procurava-se superar ou, pelo menos, minimizar o caráter ativista, paternalista e assistencialista que habitualmente emerge da relação entre o movimento sindical e as demais instituições, principalmente os órgãos do Estado, reforçando a importância da qualidade das ações e a necessidade de prosseguir com os seus desdobramentos. As reuniões de avaliação das inspeções resultavam no planejamento de novas ações do Comando.

A articulação planejada em diferentes níveis (entre órgãos estatais, entre sindicatos que representavam diferentes categorias de trabalhadores e demais organizações sociais) era feita não apenas porque preconizava a política estatal em saúde-trabalho, mas também porque é uma exigência colocada pela complexidade dos ambientes e frentes de trabalho do setor sucroalcooleiro em tempos de reestruturação produtiva e pela própria configuração territorial da atividade canavieira. Além de reunir saberes, competências técnicas e legais, específicas e comuns, essa articulação era uma importante medida prática para racionalizar o uso dos tão escassos recursos materiais (como veículos, combustível e equipamentos de medição) e humanos (agentes de inspeção qualificados) e contribuía para contornar os obstáculos postos pelos limites da jurisdição na qual se circunscreve a atuação dos órgãos estatais. Diferentemente dos problemas sócio-ambientias existentes no setor sucroalcooleiro que não conhecem fronteiras, a jurisdição dos órgãos estatais e a base de atuação dos sindicatos é restrita dentro de uma determinada área geográfica (região administrativa, de governo, comarca, base sindical etc., dependendo do tipo de instituição).

Por último, é importante destacar que as organizações não-governamentais limitaram-se a contribuir na organização da demanda e a participar dos trabalhos de campo, resguardando-se o papel de apoiar e de enfatizar a dimensão político-educativa das ações sem, no entanto, interferir diretamente na rotina e nos instrumentos de inspeção, até porque, como disse Dal Rosso (1999), a inspeção é um serviço estatal mesmo que o suporte necessário para realizá-la provenha de outros grupos sociais. A indicação da FASE para coordenar a experiência ocorreu por consenso entre os próprios membros do Comando, tanto pelo reconhecimento de ser ela portadora de um acúmulo de experiências na assessoria aos movimentos sociais regionais, quanto por ser considerada uma organização “neutra”, pois não disputava a competência legal para inspecionar nem os recursos do governo. Essa indicação, por parte dos órgãos estatais, pode ser vista como mais uma tentativa de repassar suas responsabilidades para a sociedade civil; por parte dos sindicatos, pode ser entendida como expressão da cultura da dependência que marca essas instituições, principalmente no meio rural. Certamente, a FASE não pretendia assumir para si uma responsabilidade que é, sobretudo, do Estado e dos sindicatos. Ao contrário, as suas ações educativas junto à sociedade civil tinham como objetivo o fortalecimento dos princípios e das instituições ligadas ao Sistema Único de Saúde. Como entidade de utilidade pública e educação popular, a pretensão da FASE era tão somente a de contribuir no processo de formação, mobilização e organização dos trabalhadores para a vigilância das relações e condições de trabalho.

Foram quinze as empresas atingidas pelas ações do Comando: três usinas-destilarias de açúcar e álcool (pertencentes a grandes grupos econômicos), quatro destilarias de álcool, sete empresas prestadoras de serviços de mão-de-obra (empreiteiras ou “gatos”) e uma fazenda fornecedora de matéria-prima. Foram atingidos um total de 12 dos 85 municípios (14%) que compõem a macrorregião de Ribeirão Preto, quer seja pela localização das unidades produtivas e frentes de trabalho inspecionadas, pela presença de sindicatos com bases nesses municípios ou pela presença, nas frentes de trabalho visitadas, de trabalhadores neles residentes. Os municípios atingidos foram os seguintes: Barrinha, Cravinhos, Morro Agudo, Pitangueiras, Pontal, Ribeirão Preto, Sales de Oliveira, São Joaquim da Barra, Serrana, Sertãozinho, Terra Roxa e Viradouro. Totalizou 3.198 o número de trabalhadores atingidos pelas ações sendo que desses 1.622 eram rurícolas e 1.576 industriários. Entre os rurícolas, foram encontrados 125 trabalhadores sem registro em carteira e 18 crianças e adolescentes. Apoiados nos dispositivos legais da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), nas Normas Regulamentadoras do Trabalho (NR), nas Normas Regulamentadoras do Trabalho Rural (NRR) e nos Acordos Coletivos de Trabalho (ACT), os agentes de vigilância do trabalho emitiram um total de 27 documentos oficiais, sendo 15 Autos de Infração, seis Termos de Notificação e seis relatórios.

Esses números em si mesmos são reveladores da precariedade do trabalho sucroalcooleiro e do descumprimento da legislação social. No entanto, mais importantes do que eles, são os resultados das ações do Comando que não foram passíveis de mensuração objetiva, ou seja, o processo pedagógico inerente ao seu desenvolvimento, que permitiu aos seus participantes aprenderem um pouco mais sobre a organização e os impactos sócio-ambientais da produção sucroalcooleira e sobre como têm se comportado as empresas do setor, os órgãos estatais regionais e a sociedade organizada, quando se trata de vigiar os agravos à saúde. Isso é o que será discutido, sinteticamente, no próximo tópico.

 

Empresas, Estado e sociedade organizada: as forças sociais e a saúde do trabalhador sucroalcooleiro

A análise da experiência do Comando de Fiscalização Integrada demonstrou a existência de um distanciamento entre o crescimento da preocupação social com a saúde do trabalhador e as práticas concretas das organizações empresariais, estatais e sindicais em saúde e segurança no trabalho. No contexto das ações de vigilância realizadas, esse distanciamento se expressou em inúmeros obstáculos de natureza técnica e, sobretudo, política para a efetiva implementação de práticas integradas em saúde e segurança no trabalho. Os obstáculos estavam relacionados aos redirecionamentos que ocorrem nas atuais estratégias empresariais de organização da produção, às mudanças e contradições existentes no papel do Estado – no que se refere à intervenção na área da saúde e segurança no trabalho – e às dificuldades que, atualmente, atingem o movimento sindical para lutar pela melhoria das relações e das condições de trabalho.

Para adequar-se às exigências dos mercados na era da qualidade total e da desregulamentação estatal da economia sucroalcooleira, as empresas se reestruturam utilizando tecnologias poupadoras de força de trabalho e a gestão dos trabalhadores diretamente contratados é realizada através da implantação de Programas de Qualidade Total. No entanto, ao contrário do que apregoa o discurso empresarial, nem toda a tecnologia aplicada ao processo produtivo tem sido capaz de transformar a organização do trabalho em favor da melhoria real da saúde e das condições de vida dos trabalhadores.

De fato, nas frentes de trabalho rural, as ações do Comando mostraram que a subcontratação é um dos principais impactos negativos da reestruturação produtiva para os trabalhadores, porque informaliza as relações contratuais e precariza ainda mais as condições de realização do trabalho. Mostraram também que dela decorrem inúmeras outras irregularidades trabalhistas como: a realização de jornadas extensas e irregulares; o não fornecimento de instrumentos de trabalho e equipamentos de proteção elementares; a utilização indevida do trabalho infanto-juvenil; as condições inseguras do transporte de trabalhadores; as fraudes no controle da produção; a ausência de medidas mínimas de controle e de proteção contra as cargas laborais existentes nos locais de trabalho, destacando-se dentre elas a falta de sinalização adequada e de proteção em locais perigosos, a não realização de exames médicos, o funcionamento inadequado dos serviços de atenção à saúde e das comissões de proteção contra acidentes.

Nos ambientes de trabalho industrial, as ações realizadas reafirmaram a existência da insalubridade, da periculosidade e da penosidade como características marcantes do trabalho. No conjunto das cargas próprias do trabalho industrial, destacaram-se o ruído e a utilização de produtos químicos tóxicos como os mais importantes fatores de desgaste e de adoecimento dos trabalhadores. Assim, pode-se reafirmar o que já era fato amplamente sabido: que havia descumprimento da legislação trabalhista e social nesse setor e que as ações de vigilância nas frentes e ambientes de trabalho deveriam ser intensificadas.

O que se passa é que as empresas intensificam o controle sobre a força de trabalho diretamente contratada através do redirecionamento das técnicas de gestão para garantir a produtividade, a qualidade, a redução dos custos de produção e, principalmente, a manutenção de uma imagem de modernidade e de utilidade social perante o mercado. Mas, também subcontratam, sonegando direitos sociais básicos para garantir o processo de reprodução ampliada. Apesar de as empresas terem renovado seus discursos e práticas de gestão introduzindo o ideário da qualidade total, a saúde do trabalhador ainda é tratada, predominantemente, apenas como um fator de produção essencial.

A política empresarial nessa área está voltada para o marketing social e para as práticas restringem-se, quando muito, ao cumprimento da legislação. A saúde do trabalhador ganha importância na medida em que a ocorrência de acidentes ou de doenças, além de representar uma diminuição da produtividade e custos adicionais de produção, pode também prejudicar a imagem da empresa no mercado. Ocorre que o cuidado com a saúde e com a segurança dos trabalhadores e a preservação ambiental constitui um dos requisitos básicos para a obtenção dos selos, das certificações e para a elaboração dos pactos sociais, hoje tão necessários para romper as medidas protecionistas e para facilitar a colocação dos produtos no mercado, principalmente o internacional.

Em suma, a análise da política e das práticas empresariais em saúde e segurança no trabalho nesse setor, a partir da experiência do Comando, revelou que é grande a preocupação empresarial com a qualidade dos produtos, mas o mesmo não pode ser dito em relação à qualidade de vida dos trabalhadores.

O Estado, por sua vez, procurava atender as demandas dos movimentos sociais organizados implementando iniciativas como, por exemplo, as do Comando. No entanto, ele não garantia estrutura administrativa e não demonstrava vontade política para o enfrentamento adequado dos problemas relacionados à saúde e à segurança no trabalho nem mesmo para enfrentar, de fato, as irregularidades largamente demonstradas durante o curso das ações do Comando.

Principalmente a partir da década de 1990, a necessidade de modernizar as relações de trabalho e a preocupação com a saúde e a qualidade de vida no trabalho constituíram-se em motivos para o Estado definir políticas e dirigir investimentos estratégicos em saúde e segurança no trabalho (Ministério do Trabalho, 1993, 1996). Esses esforços tanto foram impulsionados por um conjunto de pressões sociais internas advindas da Reforma Sanitária (Comissão Interministerial de Saúde do Trabalhador, 1993), quanto pelas demandas internacionais por produtividade e qualidade (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos, 1994; Ministério da Indústria, Comércio e Turismo, 1996), sem falar nas pressões que sempre exercem os organismos internacionais influentes, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), pela melhoria das condições de trabalho e de vida nos países signatários. Nesse contexto, deve-se creditar grande importância pela determinação da mudança da política de saúde e segurança no trabalho não apenas aos ganhos políticos do processo da Reforma Sanitária e aos reclamos por melhoria nas condições de vida e de trabalho de vários outros segmentos sociais, mas também às novas exigências do mercado e da produção, que, sob o impacto da mundialização da economia, estão centradas na obtenção de aumento da produtividade, na melhoria da qualidade dos produtos e na redução dos custos de produção.

A postura do Estado em relação à saúde e à segurança no trabalho tem sido, no mínimo, contraditória. De um lado, ele assumiu a saúde do trabalhador como um dever para com todos os cidadãos e elaborou uma política que foi definida e deveria ter sido implementada de forma integrada pelos setores governamentais envolvidos com as questões trabalhistas, sanitárias e previdenciárias (Comissão Interministerial de Saúde e Segurança no Trabalho, 1993). De outro lado, no bojo das reformas administrativas do Estado e do sistema de relações de trabalho, intensificou-se o processo de reformulação do sistema de inspeção do trabalho (Dal Rosso, 1999).

Em consonância com a postura do Estado e as políticas sociais de cunho neoliberal que foram implantadas na década de 1990, uma das características principais dessa reformulação diz respeito ao método de desenvolvimento das ações de inspeção, que está migrando de uma forma em que o controle das ações é estritamente estatal, para outra que, pelo menos teoricamente, possibilitaria a participação social, ou seja, permitiria formalmente a presença dos trabalhadores e das demais instituições da sociedade organizada nos eventos, nas manifestações e na luta concreta em defesa dos direitos trabalhistas (Ministério do Trabalho, 1996). Porém, contraditoriamente, cada vez mais o Estado tem procurado flexibilizar a legislação que rege as relações de trabalho, remetendo as questões que dizem respeito à regulação da produção aos Contratos Coletivos de Trabalho (Ministério do Trabalho, 1993, 1996). O problema é que isso ocorre em um contexto de visível enfraquecimento político das organizações sindicais, devido aos elevados índices de desemprego e à conjuntura econômica recessiva e instável. Ou seja, o Estado vem administrando as demandas das diferentes forças sociais, criando uma legislação que protege o trabalhador para beneficiar as relações com o mercado, mediando o atendimento das reivindicações dos movimentos sociais e ao, mesmo tempo, flexibilizando o cumprimento da legislação para rebaixar o chamado custo social do trabalho.

Apesar de todas as reformas e mudanças que estão se processando na forma e no conteúdo do Estado brasileiro, a cidadania continua sendo objeto de concessão e não de conquista social. Na política de saúde e segurança no trabalho é incorporada, às vezes distorcidamente, parte das reivindicações dos movimentos sociais. Apesar de aparentar uma preocupação com as questões sociais através de um discurso humanista, democrático, participativo e integrador, na prática, a política de saúde e segurança no trabalho não atende às reais necessidades de reprodução social dos trabalhadores, podendo tornar-se mais um instrumento de reforço das estratégias patronais de controle da força de trabalho que estão sendo redimensionadas no contexto das mudanças que ora ocorrem na produção. Como observou Faleiros (1992) em seu estudo sobre o desenvolvimento da política de saúde e segurança no Brasil no século XX, o Estado capitalista põe limites à exploração do trabalho, mas não a ponto de contradizer a acumulação do capital.

A análise da experiência do Comando demonstrou que há uma distância muito grande entre os princípios integradores e participativos que embasam a definição da política de saúde do trabalhador na década de 1990 e as práticas concretas dos órgãos estatais. A política prevê a integração das forças sociais no controle do trabalho mas, na prática, a ação estatal ainda está voltada para a indenização das vítimas e não para a abolição dos riscos existentes nos ambientes de trabalho. Aparentemente, os agentes estatais assumiram a fiscalização integrada mas, na prática cotidiana, as intenções e as propostas de trabalho não conseguiram superar a burocracia, o corporativismo, o autoritarismo, o paternalismo e o assistencialismo característicos das relações historicamente construídas com os empresários e os trabalhadores (Dal Rosso, 1996; Oliveira, 1994). Apesar da adesão e do apoio à iniciativa sindical de interferir no modo de organizar e realizar o trabalho, de fato, houve dificuldade concreta para romper com a rotina burocrática das instituições estatais e para desenvolver ações de vigilância de modo articulado devido, principalmente, à falta de recursos humanos qualificados para atuar de acordo com o que preconiza a política e com as necessidades dos trabalhadores.

A integração é dificultada porque os objetivos das diferentes instituições estatais sempre foram historicamente fragmentados e separados, acarretando diversidade e heterogeneidade de projetos e de práticas. Pode-se dizer que a ação estatal na área é descoordenada, carece de planejamento e que muitas ações só se concretizam devido às características pessoais e à boa vontade de alguns profissionais.

De modo geral, no cotidiano das ações, os órgãos estatais criaram mecanismos de neutralização das iniciativas sociais, não reconhecendo os trabalhadores, as organizações sindicais e as não-governamentais como agentes de controle social das relações e das condições de trabalho. Permaneceu a exclusão dos trabalhadores do processo de discussão, decisão e encaminhamento dos assuntos relativos à saúde e à segurança no trabalho já apontada por Dal Rosso (1996, 1999) e Oliveira (1994), mesmo depois das conquistas legais.

Em geral, identificou-se entre os agentes de inspeção a falta de disposição para romper com as práticas antigas de inspecionar, o medo de utilizar metodologias inovadoras, a desconsideração e a desqualificação do saber operário, a concepção de que a presença dos trabalhadores nas ações retira a necessária imparcialidade das ações etc. O discurso governamental aponta a negociação como solução para os problemas trabalhistas e sanitários (Ministério do Trabalho, 1993, 1996). Mas, de fato, nos sete meses de funcionamento do Comando, nenhuma negociação oficial foi convocada e nenhuma medida concreta foi tomada para proteger a saúde dos trabalhadores sucroalcooleiros.

Pode-se afirmar que a política estatal de saúde e segurança no trabalho não enfrenta a tradição de descumprimento generalizado da legislação trabalhista e social existente no setor sucroalcooleiro da macrorregião de Ribeirão Preto. Quando muito, os agentes governamentais fizeram cumprir o que prescrevia a legislação, mas as suas ações não se articulavam nem para realizar aquele mínimo que preconizava a política.

A histórica relação orgânica existente entre as usinas açucareiras e o Estado brasileiro, já demonstrada por tantos autores e sob tantos diferentes ângulos, está fortemente evidenciada na questão da saúde e da segurança no trabalho. No geral, os órgãos estatais aderem e até apropriam-se de projetos como o do Comando, mas apenas para cumprir o que determinam tecnicamente a burocracia e politicamente a necessidade de apresentarem-se à sociedade como o Estado provedor do bem-estar e garantidor dos direitos mínimos de seus cidadãos. Certamente há exceções, mas, quando elas ocorrem, estão relacionadas às posturas técnicas e políticas diferenciadas que assumem alguns agentes, não sendo, propriamente, o resultado de decisões institucionais. A realidade mostrou que há fissuras e conflitos entre as concepções e as práticas no interior de um mesmo órgão e dos órgãos fiscalizadores entre si.

Atualmente, frente à crise regional no tocante à empregabilidade, as ações de vigilância do trabalho vêm perdendo lugar para as ações de defesa do emprego e da qualificação da força de trabalho, seja qual for o emprego, as formas e os conteúdos da qualificação. Com essa prática, os órgãos estatais transformaram-se em verdadeiras agência de emprego e mediadores da qualificação daquela força de trabalho que ainda é necessária ao processo produtivo. Isso pode ser aquilatado pela importância que assumem projetos como o do Sistema Nacional do Emprego (SINE) e a bolsa de qualificação profissional instituída pela Medida Provisória 1.726/98.

No âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), as ações de inspeção estão hoje inseridas no Programa de Combate aos Acidentes e Doenças Decorrentes do Trabalho e voltadas, prioritariamente, para os setores da economia que geram maior número de benefícios previdenciários por ocorrência de acidentes e de doenças. Obviamente, isso ocorre devido ao elevado custo financeiro que a saúde dos trabalhadores representa para o próprio Estado. Esse quadro remete para a seguinte questão, que até poderia ser considerada ingênua, não fosse o discurso governamental de proteção da qualidade de vida no trabalho: não seria justamente neste momento, quando o desemprego tecnológico ameaça piorar ainda mais a situação dos trabalhadores, que os órgãos estatais de controle das relações e condições do trabalho deveriam estar ainda mais atentos e voltados para a defesa do trabalho e não apenas do emprego?

Diante da velocidade das mudanças e ameaçados pelo desemprego tecnológico, os trabalhadores sucroalcooleiros ora resistem e enfrentam, ora consentem em nome da necessidade de sobrevivência. Os trabalhadores reagem politicamente às conseqüências da reestruturação produtiva: a formação do Comando foi um exemplo disso. Mas, de certa forma, a própria experiência do Comando demonstrou que a reação tem sido insuficiente e cada vez menos obtém-se resultados satisfatórios no que se refere ao controle e à melhoria das relações e das condições de trabalho.

Atualmente, observa-se que as negociações realizadas e os acordos firmados têm resultado na retirada de direitos já conquistados. A luta pela melhoria das condições de trabalho, quando ocorre, tem sido um expediente estritamente legalista, sendo travada, predominantemente, no âmbito da Justiça do Trabalho e não mais no “chão de fábrica”. A Vigilância em Saúde e Trabalho, como forma de luta pela melhoria das condições de trabalho e de vida, deixou de ser uma preocupação sindical, pois foi perdendo lugar para a luta pela manutenção do emprego e pela qualificação profissional (porque se entende que essa segunda luta é a via para se obter emprego). Particularmente, o movimento sindical dos assalariados rurais tem se voltado para a luta pela posse da terra9, como alternativa para enfrentar os elevados índices de desemprego.

As recentes transformações ocorridas na agricultura regional, particularmente no setor canavieiro, contribuíram para alterar as formas de representação e atuação dos sindicatos rurais (Alves, 1991; Ferrante, 1991). Mas, mesmo depois de todas as mudanças, parece que ainda permanece o desafio: como englobar a heterogeneidade, a complexa diversidade de interesses e de reivindicações que caracteriza essa categoria? A agricultura tecnificada agrega os assalariados rurais, volantes ou fixos, os tratoristas e os operadores de máquinas em geral que, apesar de estarem diminuindo em número devido à própria tecnificação, reivindicam direitos trabalhistas relacionados, principalmente, ao salário. Aos pequenos produtores – também em número cada vez menor, devido ao processo de concentração da terra – interessa uma política agrícola que atenda às suas necessidades de reprodução social. Aos que conquistaram vínculos mais recentes com a terra é importante alcançar o padrão tecnológico e de mercado impostos pela modernização da agricultura para se manterem na terra.

No início de década de 1990 o sindicalismo rural da região de Ribeirão Preto ensaiou a implementação de estratégias inovadoras na luta pelos direitos de cidadania, especialmente no que diz respeito à saúde dos trabalhadores. Tais estratégias, que foram orientadas pelo ideal de transformação das condições desgastantes do trabalho (e não apenas pela monetização dos riscos), estiveram marcadas por tentativas de institucionalização própria (através da formação de instâncias de organização no local de trabalho) e por tentativas de construir alianças com a sociedade organizada (principalmente as ONGs ligadas à defesa dos direitos humanos, de cidadania e à proteção ambiental). No entanto, parece que esse redirecionamento na ação sindical rural perdeu o sentido porque as estratégias inovadoras não são uniformes no universo sindical rural. Por exemplo, o Comando reuniu 21 organizações sindicais, sendo 16 rurais, mas isso não significa que havia homogeneidade nas concepções e nas práticas no que se refere à saúde e à segurança no trabalho. Existe heterogeneidade sindical tanto no enfoque dado à questão da saúde, quanto no alcance dos objetivos pretendidos pelas entidades. A diferenciação evidencia-se em determinados perfis sindicais definidos em função das características estruturais, políticas e ideológicas das organizações. Além disso, acentuou-se a crise econômico-social que incide diretamente no potencial de mobilização e organização dos trabalhadores sucroalcooleiros e induzem as organizações sindicais a priorizar ações que, pretensamente, defendem a sobrevivência dos trabalhadores ao lhes garantir condições mínimas de emprego e salário. Resta apenas saber até quando os trabalhadores estarão empregados.

 

Considerações finais

Do ponto de vista da implementação das ações de Vigilância em Saúde e Trabalho, pode-se afirmar que o Comando não atingiu os objetivos esperados, porque não passou da ação punitiva e fiscalizadora, reproduzindo na prática os velhos modelos de inspeção e atuando, predominantemente, naquele limite operacional de “apagar os incêndios”. O Comando foi uma ação tímida e finita. Não deixou marcas ou sinais muito significativos no tempo pois não logrou, efetivamente, interferir na política e na prática em saúde e segurança no trabalho no âmbito do setor sucroalcooleiro. Apesar do esforço dos diferentes atores sociais, predominaram as ações de natureza legalista, tecnicista ou assistencial-paternalista.

Não obstante isso, a experiência do Comando, como todas as demais, além dos impasses e dificuldades, não deixou de apresentar também os seus ganhos. Se ela não conseguiu transformar profunda e estruturalmente para melhor a realidade de trabalho e de saúde no setor sucroalcooleiro, se não conseguiu implementar nem mesmo apontar nenhuma transformação na legislação e nas normas que regulam essa atividade, pelo menos ela conseguiu manter um fórum de discussão sobre os problemas regionais e implementou algumas ações para tentar superá-los, envolvendo 39 diferentes instituições governamentais e não-governamentais, permanecendo em atividade durante o ano-safra de 1993-1994, atingindo 3.198 trabalhadores e inspecionando 15 empresas. Nesse sentido, o Comando não foi apenas mais um espaço de denúncia pública das irregularidades trabalhistas, mas também funcionou como um instrumento de formação sindical, uma tentativa de articulação de sujeitos sociais e de retomada dos debates sobre as problemáticas sócio-ambientais regionais.

Em síntese, o Comando teve o mérito de sensibilizar e mobilizar diferentes forças sociais para tratar as questões trabalhistas e sociais existentes no setor sucroalcooleiro, tornando-as objeto de discussão institucional veiculada publicamente através da imprensa e entre os trabalhadores. A ação coletiva e organizada serviu como instrumento de pressão para que as diferentes instituições procurassem cumprir mais adequadamente os objetivos para cujo atendimento foram criadas, embora ainda estivessem longe de promover mudanças estruturais na realidade sucroalcooleira. Particularmente para os sindicalistas, a experiência foi positiva porque esteve associada a um processo pedagógico, que teve seu limite no tempo, mas que possibilitou uma maior aproximação dos dirigentes com suas bases e também com os órgãos estatais responsáveis pela vigilância da saúde e do trabalho, reanimando o funcionamento dos sindicatos. De certa forma, o Comando foi um processo de aprendizagem, de construção coletiva do conhecimento sobre saúde e segurança no trabalho, um espaço privilegiado para apreender a dinâmica do modo de organização e funcionamento do setor sucroalcooleiro, a ação empresarial, estatal e sindical em saúde-trabalho.

Mesmo considerando as dificuldades surgidas para conciliar tantos interesses distintos, a experiência do Comando demonstrou que o controle social em saúde e segurança no trabalho é possível de ser realizado, mas seria necessário fazer investimentos reais, com vistas a criar condições institucionais, técnicas e políticas para isso, especialmente no que se refere à formação e à qualificação dos sujeitos envolvidos. Acredito que um dos modos adequados para realizar esse processo de formação é justamente ensaiar, avaliar e reimplementar experiências como essas. Lembrando Faleiros (1997): “O ponto de partida teórico e prático para o movimento de conscientização é a própria realidade, a realidade concreta histórica como um todo, e que se manifesta nas particularidades de cada situação” (p. 99). A qualificação, a mudança da cultura assistencialista e paternalista (que não se encontra apenas no meio sindical, mas também nos os órgãos estatais e nas demais instituições sociais) para uma postura ativa e propositiva não é uma questão simples na nossa sociedade e também não se realiza através de decretos, leis ou, muito menos, por meios de “fórmulas mágicas”, mas requer tempo e oportunidade para o aprendizado, já que a conscientização “não se produz por um movimento de idéias, mas se enraíza nas situações concretas, nas contradições, nas lutas cotidianas para superação dessas contradições” (Faleiros, 1997, p. 99).

Embora tenha sido um campo fértil para refletir sobre a relação saúde-trabalho e sobre o funcionamento do sistema de proteção à saúde do trabalhador brasileiro, a análise da experiência não permite conclusões acabadas nem a prescrição de receitas. A vigilância em saúde e trabalho é uma prática possível, mas o desenvolvimento das ações requer que se conheça o universo onde elas serão implementadas: a organização do trabalho, a cultura empresarial, as relações que se estabelecem entre as empresas, o mercados e os outros setores da economia; a cultura predominante nas instituições estatais e o modo como elas se relacionam com os movimentos sociais; as experiências dos trabalhadores e a correlação de forças políticas existente no movimento sindical. Contudo, é importante destacar duas questões que considero essenciais quando se trata de pensar, atualmente, a saúde do trabalhador, em geral, e do trabalhador sucroalcooleiro, em particular.

A primeira surge como um alerta para os enganos da cultura da qualidade total que hoje se desenvolve dentro das empresas como meio de melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores, pois parece que ela apenas mascara ou procura tornar socialmente invisíveis os riscos e os agravos à saúde. É necessário desenvolver estudos específicos para melhor esclarecer os tipos de cargas laborais geradas com a modernização tecnológica e organizacional nas empresas e a relação destas com as possíveis mudanças no padrão de desgaste e de adoecimento dos trabalhadores.

A segunda observação diz respeito à formulação dos pactos sociais e à concessão de certificados, que hoje têm sido vistos como verdadeiras panacéias, fórmulas mágicas para resolver todos os males existentes no interior das empresas. Eles podem até ser uma via de melhoria efetiva das relações e das condições de trabalho. Mas, para que isso ocorra é preciso que sejam firmados e conferidos com base em análises aprofundadas e críticas sobre o modo de organizar e de realizar o processo produtivo. É necessário também que, efetivamente, eles considerem as reais necessidades e interesses dos trabalhadores e não somente os das empresas, como sempre ocorreu e ainda ocorre, especialmente no setor sucroalcooleiro. Mais do que a formulação de acordos, pactos e da concessão de certificados de qualidade, é preciso desenvolver um sistema efetivo de vigilância social e cotidiana para o seu cumprimento. Porque, se não for assim, estaremos simplesmente criando e recriando outros sistemas de normas paralelos ou alternativos à legislação estatal, mas que, na prática, tornar-se-ão igualmente “letra morta”.

 

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Endereço para correspondência
Email: scopinho@power.ufscar.br

Manuscrito recebido em: 26/03/2003
Envio de pareceres à autora em: 22/05/2003
Aprovado para publicação em: 22/09/2003

 

 

1 Baseado em Scopinho, R. A. (2000a). Vigiando a vigilância: um estudo sobre a política e a prática em saúde e segurança no trabalho. Tese de Doutorado, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara.
2 Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), LABOR – Laboratório de Psicologia Organizacional.
3 A macrorregião de Ribeirão Preto é composta pelas Regiões Administrativas de Ribeirão Preto, de Franca, de Barretos e Central. Este conjunto de regiões administrativas abarca 85 municípios (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, 1992) e é considerada a mais importante região canavieira do país.
4 Entende-se por controle social das relações e condições de trabalho, a luta que desenvolvem os trabalhadores como cidadãos para melhorar as suas condições de trabalho e de vida. Como esclareceu Alves (1991) a respeito dos assalariados rurais canavieiros: “As reivindicações por controle do processo de trabalho colocam no horizonte de luta a questão da autogestão do [trabalho] e não a posse ou propriedade dos meios de produção” (p. 44).
5 A FASE é uma ONG, entidade de utilidade pública que desenvolveu e apoiou projetos de pesquisa e de educação popular junto ao movimento sindical rural na região de Ribeirão Preto, entre 1987 e 1995.
6 Uma discussão sobre o assunto pode ver encontrada em Oliveira (1994). O autor observou que a batalha estava no campo jurídico, mas a disputa era política, no sentido da preservação do poder de intervenção do Ministério do Trabalho nas questões do trabalho. Parece-me que as observações do autor são pertinentes, pois na região de Ribeirão Preto, contraditoriamente, ao mesmo tempo em que existia a disputa, havia também um descaso no cumprimento das atribuições. A esse respeito, um sindicalista membro do Comando assim se expressou: “...boi de muitos donos morre de fome”.
7 O jateamento de areia é considerada uma tecnologia obsoleta e “suja”, devido à sua capacidade de produzir adoecimento e morte por silicose.
8 Em 1989, com base no capítulo II, artigo 8º da Constituição Federal, que declara liberdade de organização sindical, e procurando criar uma nova estrutura sindical rural, 19 Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STR) da região transformaram-se em Sindicatos de Empregados Rurais (SER), que representam exclusivamente os assalariados na agricultura. Esses 19 STRs desvincularam-se da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de São Paulo (Fetaesp) e constituíram a Federação dos Empregados Rurais Assalariados no Estado de São Paulo (Feraesp). A Feraesp é a organização sindical específica dos assalariados rurais no estado de São Paulo que surgiu procurando romper com a tradição corporativista da estrutura sindical brasileira e mobilizar e organizar politicamente os novos segmentos de assalariados que emergiam do processo de modernização do campo (por exemplo, os operadores de máquinas agrícolas), buscando incorporá-los em suas lutas. Para melhor entender o desenvolvimento das lutas dos trabalhadores sucroalcooleiros na região de Ribeirão Preto e as fissuras políticas do movimento sindical rural ocorridas na década de 1990, consultar Alves (1991) e Ferrante (1991).
9 Segundo representantes da Federação dos Empregados Assalariados Rurais na Agricultura do Estado de São Paulo (Feraesp), em março do ano 2000 havia 12 assentamentos oriundos do processo de reforma agrária e seis áreas ocupadas em disputa pela posse da terra na macrorregião de Ribeirão Preto. A partir de 1998, a ação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na região resultou em várias ocupações e um assentamento.

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