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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
versão impressa ISSN 1516-3717versão On-line ISSN 1981-0490
Cad. psicol. soc. trab. v.10 n.2 São Paulo dez. 2007
ARTIGOS
A psicologia hospitalar segundo médicos e psicólogos: um estudo psicossocial
Health psychology according to doctors and psychologists: a psychosocial study
Juliana Wallig; Edson de Souza Filho
Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRJ
RESUMO
O artigo apresenta uma pesquisa exploratória entre médicos não psiquiatras acerca do que conhecem da psicologia e da atuação do psicólogo hospitalar. Adota-se a abordagem das representações sociais como referencial teórico-metodológico principal. A amostra foi composta por sete médicos com experiência profissional junto a psicólogos hospitalares, sete médicos sem experiência profissional junto a psicólogos hospitalares e nove psicólogos hospitalares que trabalham em hospitais particulares e públicos no município do Rio de Janeiro. A pesquisa comparou os dois grupos de médicos segundo a hipótese de que existiriam diferenças nos conhecimentos entre ambos. Comparou também o grupo de médicos com experiência com o grupo de psicólogos hospitalares. Os dados foram coletados através de questionários de perguntas abertas, auto-administrados em lugares livres. Os resultados foram analisados através de uma análise de conteúdo temática e utilizou-se o teste de qui-quadrado nas respostas intra e intergrupos. Dentre os principais resultados figuram a não diferença nos conhecimentos dos dois grupos médicos, uma visão otimista, porém superficial dos médicos com experiência junto a psicólogos e a constatação de que os psicólogos hospitalares acreditam na possibilidade de se construir uma relação interprofissional, sendo que o processo de estabelecimento dessa relação apresenta muitos obstáculos.
Palavras-chave: Psicologia hospitalar, Relações interprofissionais, Representações sociais.
ABSTRACT
The paper presents an exploratory research between nonpsychiatric doctors, concerning what they know about psychology and the health psychologists’ performance. The theory of social representations is adopted as the main theoretical-methodological approach. The sample was composed of seven doctors with professional experience working alongside health psychologists; seven doctors with no experience working with health psychologists; and nine health psychologists. The research proposed to compare the two aforementioned groups of doctors, hypothesizing that there are differences on the knowledge of both groups and to also compare the medical group working with health psychologists to the group of health psychologists. Data was collected through open-ended questionnaires that were self-administered at the subjects’ choice of time and location. The results were evaluated through an analysis of thematic content. Answers were evaluated separately and collectively using the qui-square test. Amongst the more significant findings of this study are: the lack of difference on the knowledge of both medical groups; the optimistic albeit superficial view that the doctors with experience working alongside health psychologists have of health psychologists; and the evidence that health psychologists believe that it is possible to build interprofessional relationships, although there are many obstacles to establishing such relationships.
Keywords: Social representations, Health psychology, Interprofessional relationships.
Introdução
A presença da psicologia no contexto hospitalar é hoje uma realidade. Contudo, a partir da inserção do psicólogo e de outros profissionais não-médicos no hospital sobrevêm questões que permeiam as relações interprofissionais. O trabalho interprofissional efetivo é influenciado pelas atitudes intra e extragrupo dos variados profissionais de saúde (Atwal & Caldwell, 2002; Black & Westwood, 2004; Brow, Crawford & Darongkamas, 2000; Burke, Herrman, Evans, Cockram & Trauer, 2000).
Considerando a existência de barreiras e facilitadores na relação profissional entre médicos e psicólogos hospitalares, a corrente pesquisa é norteada por duas questões primordiais: 1) compreender como os conhecimentos sociais construídos por médicos não psiquiatras acerca da psicologia e da atuação do psicólogo clínico no contexto hospitalar estão engendrados nessa complexa relação interprofissional; 2) compreender como os psicólogos hospitalares conhecem e se orientam na relação profissional com os médicos. Assim, supomos que, diante da presença de saberes psicológicos e médicos em ambientes hospitalares, ocorra a adoção por parte de médicos e de psicólogos de um modo específico de senso comum, estudado pela abordagem das representações sociais a respeito, tanto desses objetos de trabalho, quanto das suas respectivas profissões. Faz-se mister frisar que a abordagem teórica e metodológica das representações sociais foi adotada mais como uma fonte de inspiração para um trabalho de pesquisa, que foi complementado por outras formulações teóricas da área psicossocial expostas mais adiante, tendo em vista a complexidade da problemática das relações interprofissionais.
A teoria das representações sociais procura compreender um fenômeno particular das sociedades modernas, que é “a difusão e apropriação do conhecimento científico, das suas teorias e conceitos pelo homem comum” (Vala, 2000, p. 458). Todavia, a ambição maior dessa teoria envolve analisar quais os processos envolvidos na construção de conhecimentos do senso comum a respeito de objetos sociais, uma vez que eles são construídos na interação social dos indivíduos e viabilizam a comunicação e a organização de comportamentos. Ou seja, as representações sociais não são apenas conhecimentos leigos de teorias científicas, pois elas também se alimentam de ideologias, comunicações e experiências cotidianas. Criamos representações para tornar o estranho e o não familiar em algo familiar, para nos ajustar ao mundo, manejá-lo física e intelectualmente e para que guiem comportamentos. As representações sociais são uma forma específica de conhecer que se encontra entre o saber científico (objetivo) e o saber popular (marcado por ideologias, valores e normas). Ao falarmos de representação, referimo-nos tanto à construção da realidade, quanto à produção de sentido (Flath & Moscovici, 1983).
As representações sociais podem ser definidas como “um conjunto de conceitos, proposições e explicações originado na vida cotidiana no decurso da comunicação interindividual” (Moscovici, 1981, p. 181), ou seja, é um fenômeno coletivo co-construído pelos indivíduos em suas conversas e ações cotidianas. Elas servem como guia na forma como nomeamos e definimos diversos aspectos da realidade, como interpretamos esses aspectos, guiando também posicionamentos e tomadas de decisões frente a eles (Jodelet, 2001).
Podemos afirmar que as representações são uma modalidade de conhecimento prático que auxilia os indivíduos na construção da realidade e que exerce duas funções: 1) as representações sociais estabelecem uma ordem que possibilita a orientação e o manejo do mundo material e social e 2) facilitam a comunicação entre os atores sociais (Wagner et al., 1999).
As representações são constituídas de múltiplos elementos, desde informações, crenças, imagens, até aspectos ideológicos e culturais. Analisá-los torna-se, portanto, uma tarefa difícil, intrincada, senão impossível. Entretanto, pode-se apreender esses conteúdos através de três dimensões que envolvem as representações sociais: dimensão informativa, campo de representação e atitude.
A dimensão informativa refere-se à soma quantitativa e qualitativa de conhecimentos que o sujeito ou um grupo possui sobre um determinado objeto social. Para que ocorra um processo de representação, é necessário que o grupo tenha acesso a uma quantidade mínima de informação acerca do objeto.
A dimensão do campo de representação está relacionada à estrutura da representação; é em um campo específico que os conhecimentos acerca do objeto se combinam e se organizam, estruturando assim a representação social. Esse campo envolve organizadores socioculturais, modelos normativos e esquemas cognitivos (Jodelet, 2001).
A dimensão da atitude implica juízo de valor, faz alusão ao posicionamento que o grupo apresenta perante o objeto. Ou seja, o posicionamento grupal em relação ao objeto pode ser favorável, desfavorável ou neutro.
A aplicação das representações sociais na área da saúde é de extrema importância para os pesquisadores, uma vez que essa aplicação engloba o campo de saber, a área de atuação, os profissionais da área de saúde e, ainda mais além, as interações interprofissionais.
Representações de grupos sociais
O estudo de representações sociais de grupos tem sido objeto de investigações ao longo das últimas décadas (Doise, 1971, 1984) com resultados fecundos. Também a área da psicologia social como um todo vem acumulando teorias e achados importantes no campo das relações intergrupais a serem levados em conta para o melhor entendimento de nossa problemática de pesquisa. Um marco para o estudo de atitudes intergrupais quando existe um interesse em jogo foi o trabalho de Sherif e Sherif (1969), que propuseram a “meta superordenada” (acima dos interesses das partes envolvidas) como uma saída para o conflito e conseqüente diminuição de atitudes mútuas desfavoráveis. Contudo, outros estudos foram capazes de demonstrar o papel de tendência à favorabilidade intragrupal, mesmo quando isso implicava em prejuízo de interesses próprios. Assim, Tajfel, Flament, Billig e Bundy (1971) verificaram que diante da possibilidade de escolha de matrizes de remuneração, simultaneamente, para si e para indivíduos pertencentes a outro grupo fictício, os indivíduos tendiam a preferir as que lhes beneficiassem relativamente mais, mesmo que isso implicasse em redução para o seu grupo em termos absolutos. Esses resultados foram atenuados quando os grupos imaginados foram compostos por membros de ambos os grupos em conflito ou competição (Deschamps & Doise, 1979).
Supomos que as representações sociais estruturam as interações entre os grupos e vice-versa. Ou seja, existem estereótipos que fixam, acentuam dimensões dos grupos e interferem nas interações com indivíduos pertencentes aos grupos assim categorizados (Tajfel & Wilkes, 1963). Na situação de interação intergrupos, tais estereótipos podem ser polarizados ou mais intensificados do que em situações interindividuais ordinárias (Moscovici & Zavalloni, 1969). Por outro lado, pesquisas mostraram que a natureza da interação praticada ou representada pode mudar a representação do outro. Nesse sentido, a pesquisa de Sherif e Sherif (1969) acima mencionada, as de Avigdor (1953) e Wilson, Chun e Kayatani (1965) trataram do papel de práticas e interações sociais adotadas a partir de situações experimentais que induzem ou antecipam representações. Assim, a instrução dada pelo pesquisador de que os participantes interagiriam para cooperar ou para competir os teria levado a mudanças nas representações do outro, em termos favoráveis e desfavoráveis, respectivamente.
Em contraste, outras pesquisas sobre desigualdade de recursos - que pode incluir a quantidade de reconhecimento social antecipado ou acumulado em ambiente de competição - verificaram que os que viviam situação de ameaça ou de perda de valorização e reconhecimento de identidade social tendiam a adotar estratégias de diferenciação social, de criar novas regras de comparação ou de buscar a incomparabilidade (Lemaine, 1974). Nesse sentido, acreditamos que os desafios profissionais encontrados por psicólogos hospitalares, que se inserem entre os psicólogos em geral, sejam uma fonte importante de dificuldades que se somam a inseguranças diante de profissionais que já adquiriram uma alta respeitabilidade social.
As representações sociais da psicologia
O interesse em responder à pergunta “qual é a visão que se tem da psicologia?” não é novidade para os psicólogos. Muitas pesquisas já foram realizadas para que os psicólogos pudessem entender como o público vê, pensa e utiliza a psicologia como ciência e, também, como serviço de saúde disponível à população (Cf. Leme, Bussab & Otta, 1989; Motta, Fernandes, Grzybowski, Brito & Teixeira, 1995; Santos, 1989).
Ribeiro e Sarriera (1997), com o objetivo de verificar como o “fazer” do psicólogo é percebido pela comunidade, encontraram os seguintes resultados: 1) o psicólogo é visto como um solucionador de problemas individuais; 2) foi considerado pela maior parte da amostra como um profissional muito importante e indispensável, porém, respostas como “despreparado profissionalmente” e “percebe o paciente como lucro” também foram encontradas; 3) evidenciaram-se atitudes de respeito para com a profissão, sendo ele associado a competência, seriedade e ética, por outro lado, evidenciaram-se também atitudes de desrespeito, associado a incoerência, desqualificação e despreparo; 4) o trabalho do psicólogo está relacionado à idéia de ajuda.
Um estudo no qual os sujeitos pesquisados eram pacientes, funcionários e técnicos de um posto de saúde (que contava com um serviço de psicologia) encontrou as seguintes respostas: 1) o psicólogo é um profissional que lida com problemas emocionais e que ajuda, orienta e conversa; 2) atribui-se ao psicólogo uma multiplicidade de possibilidades de atuação em situações do campo comportamental e emocional, sendo que a valoração e o conhecimento sobre a atuação variam de um grupo para o outro; 3) falta de um conhecimento real acerca da psicologia (More, Leiva & Tagliari, 2001).
Souza e Ferreira (2003) objetivaram investigar quais as representações sociais da psicologia que circulam no meio acadêmico de universitários de cursos das áreas de licenciatura e exatas. A amostra foi composta por alunos dos cursos de farmácia, matemática, pedagogia, geografia, história e letras. As representações sociais encontraram-se estruturadas nos temas do estudo da mente, ajuda profissional, análise do comportamento e entender o outro. No que diz respeito às principais áreas de atuação do psicólogo, a clínica é o item mais citado (57%).
Praça e Novaes (2004) conduziram uma pesquisa cujo objetivo era conhecer as representações sociais da psicologia e da práxis do psicólogo. Os sujeitos do estudo foram alunos universitários do penúltimo ano de graduação de cursos da área de saúde, incluindo, além da psicologia, os cursos de medicina, nutrição, fisioterapia, biologia, educação física e odontologia. As autoras encontraram representações individualizantes e adaptativas da psicologia, excluindo as dimensões históricas, sociais e culturais das experiências subjetivas. À psicologia foi dada uma função assistencialista com a capacidade de melhorar, mudar e resolver a vida e as relações estabelecidas.
As relações interprofissionais
Com a inserção do psicólogo e de outros profissionais não-médicos no hospital, sobrevêm as questões que permeiam o trabalho multiprofissional e elas envolvem dificuldades geradas pela indefinição de papéis e de fronteiras profissionais e subseqüente poder de decisão, competitividade interprofissional, hierarquização das profissões e entraves no entrosamento interprofissional (Gianotti, 1995).
Estudiosos e profissionais da área de saúde têm demonstrado grande interesse em estudar as relações interprofissionais, uma vez que a palavra de ordem dos serviços de saúde é a interdisciplinaridade. O foco de grande parte desses estudos é compreender como acontece o trabalho de equipe, suas barreiras e seus facilitadores. Um alto número desses estudos não envolve necessariamente o profissional da psicologia, mas procura estudar o trabalho multiprofissional e desenvolver melhores formas de relacionamentos interprofissionais.
LaTendresse (2000) utilizou o ambiente hospitalar para investigar como os diversos grupos ocupacionais desse tipo de instituição definem-se em termos de identidades sociais, procurando também aprofundar especificamente as relações intergrupais entre o staff da psiquiatria e o pessoal de apoio. O pesquisador articula variados modelos explicativos acerca das relações intergrupais para tentar dar conta do fenômeno. Algumas conclusões do pesquisador merecem ser destacadas: 1) membros dos grupos mais excluídos reforçam suas próprias estimas tornando os membros intragrupais significativos; 2) grupos minoritários relatam a existência de estereótipos extragrupais por parte dos médicos (grupo majoritário); 3) grupos minoritários abordaram a questão do poder do grupo majoritário (principalmente médicos brancos), o qual dita as normas e políticas da instituição; 4) os grupos majoritários participam de atividades das quais os membros dos grupos menos favorecidos são excluídos.
Alguns estudos foram realizados para se tentar compreender as variáveis envolvidas nas diversas relações profissionais da área de saúde. As pesquisas realizadas acerca da relação médico-psicólogo procuraram identificar tanto a imagem que os médicos fazem desses profissionais, quanto as barreiras e os facilitadores dessa relação.
Nethercut e Piccione (1984) foram praticamente os primeiros autores norte-americanos a questionar as atitudes e a utilização que os médicos fazem da psicologia no ambiente hospitalar. Utilizaram um questionário de quinze itens que procurava contemplar a importância de variáveis psicológicas na etiologia e no tratamento de doenças, o valor dos serviços psicológicos em ambientes médicos, o nível de familiaridade dos médicos com práticas psicológicas nos ambientes de cuidados e se os médicos teriam encaminhado pacientes a algum psicólogo no último ano. Os resultados sugerem a existência de um grande reconhecimento do papel de fatores psicológicos nas doenças e demonstram que as habilidades dos psicólogos clínicos eram bem estimadas pelos médicos. Os autores apontam que seus dados possivelmente superestimam a aceitação médica e argumentam que o retorno dos questionários foi de apenas 40% e que os médicos que desejaram completar a pesquisa podem ser justamente aqueles que demonstram uma atitude mais favorável em relação à psicologia. Os dados coletados demonstram que poucos foram os médicos que realizaram encaminhamentos aos serviços psicológicos e que, entre eles, muitos não estavam satisfeitos com os serviços prestados.
Os autores concluem que as diferenças nas formações de ambas as disciplinas podem contribuir para as dificuldades da relação, uma vez que a formação médica enfatiza o funcionamento biológico e as decisões sobre vida e morte e, por sua vez, a formação dos psicólogos demonstra enfatizar os processos emocionais e sociais. Os pesquisadores defendem a idéia de que os médicos participarão na integração com os psicólogos desde que possuam familiaridade e apoio dos serviços psicológicos e que é papel do psicólogo educar os médicos no que concerne à utilidade das intervenções psicológicas no hospital.
Com o objetivo de tentar compreender a relação entre médicos e psicólogos, vários estudos foram elaborados ao longo dos anos e, guardadas as singularidades de cada pesquisa, os resultados encontrados foram bastante semelhantes.
No tocante a barreiras e facilitadores da relação médicos-psicólogos foram encontrados: 1) paradigmas teóricos distintos; 2) linguagens distintas; 3) competitividade profissional; 4) desconhecimento ou conhecimento insuficiente por parte dos médicos a respeito dos serviços psicológicos; 5) falta de conhecimento dos psicólogos acerca do setting médico; 6) indefinição das fronteiras profissionais; 7) falta de uma linguagem comum às duas disciplinas; 8) dificuldade dos psicólogos em traduzir termos e conceitos psicológicos para uma linguagem compreensível aos médicos; 9) diferenças culturais entre a psicologia e a medicina; 10) fixação psicossocial por parte dos psicólogos; 11) fixação no modelo biomédico por parte dos médicos.
Em relação à imagem ou visão médica acerca da psicologia e do psicólogo, os resultados também se assemelham: 1) desapreço por parte dos médicos pelo tratamento psicológico; 2) desvalorização da psicologia; 3) reducionismo interpretativo por parte dos psicólogos; 4) os psicólogos tendem a complicar as relações interpessoais com suas interpretações; 5) os psicólogos são pessoas inteligentes, inventivas, porém insatisfeitas, preocupadas e ansiosas; 6) os psicólogos precisam desenvolver a habilidade de se comunicar clara, sucinta e efetivamente a respeito dos problemas dos pacientes; 7) como se trata de um profissional que não possui uma formação médica, o psicólogo não pode compreender problemas orgânicos, procedimentos cirúrgicos e diagnósticos, tratamentos farmacológicos e tampouco a terminologia médica (Drotar, 2002; Kainz, 2002; Leal, Sicília & Pabón, 1999; Liese, 1986; Mc Daniel, 1995; Miller & Swartz, 1990; Twilling, Sockell & Sommers, 2000).
Uma investigação empírica das representações interprofissionais de médicos e psicólogos
Trata-se de uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório cujos objetivos foram: 1) investigar os conhecimentos sociais construídos por médicos não psiquiatras acerca da psicologia e da atuação do psicólogo clínico no contexto hospitalar e 2) compreender como os psicólogos hospitalares conhecem e se orientam na relação profissional com os médicos.
Participantes
Os participantes que constituíram a amostra da pesquisa compunham dois grupos:
Grupo de médicos, dividido em dois sub-grupos. Sub-grupo 1: sete médicos não psiquiatras que em suas atuações profissionais trabalham ou já trabalharam com psicólogos hospitalares (MCE). Sub-grupo 2: sete médicos não psiquiatras que em suas atuações profissionais não trabalham ou não trabalharam com psicólogos hospitalares (MSE);
Grupo de psicólogos hospitalares: nove psicólogos clínicos que atualmente trabalham em hospitais (P).
Instrumento
Foram estruturados três questionários pilotos para os grupos da amostra a fim de realizarmos a testagem do instrumento. A testagem foi realizada a partir da aplicação dos questionários em cinco participantes de cada grupo da população a ser estudada, sendo os mesmos validados semanticamente por dois analistas independentes.
Faz-se necessário salientar que a inclusão de uma pergunta acerca da definição da medicina (desdobrada em definição e objetivo da medicina) foi aplicada somente aos grupos de médicos, uma vez que boa parte dos conflitos interprofissionais decorre da existência de auto-representações profissionais incompatíveis com as dos demais profissionais, assim como da falta de uma fundamentação teórico-prática-acadêmica para um trabalho em colaboração. Portanto, foi importante sondarmos a possibilidade da existência de pontos de contato interprofissionais na própria definição profissional para o estabelecimento de um diálogo e de metas em comum.
Após a testagem dos instrumentos, foram utilizados três questionários de perguntas abertas. Questionários para os médicos: um questionário de perguntas abertas aplicado em médicos que trabalham com psicólogos hospitalares; um questionário de perguntas abertas aplicado em médicos que não trabalham e não trabalharam com psicólogos hospitalares. Questionários para psicólogos: foi aplicado um questionário de perguntas abertas com psicólogos clínicos que trabalham em hospitais.
Procedimento de coleta
Os questionários foram auto-administrados em lugares escolhidos, sendo que os participantes da pesquisa trabalham em hospitais particulares e públicos no município do Rio de Janeiro.
Análise dos dados
Os dados foram analisados através da análise de conteúdo temática, segundo Bardin (1994). Posteriormente utilizou-se o teste de qui-quadrado1 para avaliar se as repostas intra e intergrupais apresentavam diferenças estatísticas significativas.
Resultados
São apresentados a seguir, segundo os seguintes critérios: 1) comparação dos resultados apresentados por MCE e MSE nas perguntas comuns; 2) comparação dos resultados intragrupais em MCE; 3) comparação dos resultados intragrupais em P e 4) comparação dos resultados entre MCE e P.
Comparação dos resultados entre MCE e MSE nas perguntas em comum
De acordo com as respostas à pergunta sobre o que é medicina, ambos os grupos se aproximaram na questão da medicina como uma realização individual material. Entretanto, notamos diferenças de enfoque entre os grupos nas questões da realização profissional/acadêmica, realização profissional/prática e valor ético/moral. A primeira é citada de forma mais pronunciada pelo grupo MCE (41,7% e 9,0%), enquanto realização profissional/prática e valor ético/moral foram mais citados pelo MSE (31,8% e 16,7% em ambas as temáticas).
Quanto ao objetivo do trabalho médico, nota-se uma diferença pronunciada entre os grupos [ᵪ2 = (temas gerais médicos com e sem experiência) = 10,593; gl = 3; p< 0,0141]. A realização profissional/acadêmica foi considerada em maior grau pelo MCE (46,6% e 17,6%), enquanto que a realização profissional/prática foi altamente estimada pelo MSE (47,0% e 0%), confirmando alguns resultados relatados na pergunta anterior. Os grupos apresentaram valores aproximados no que se refere ao valor ético/moral do trabalho e à realização individual/material.
Ao abordarmos a definição que os grupos fazem da psicologia, notamos afastamentos intergrupais significativos [ᵪ2 = (temas gerais médicos com e sem experiência) = 14,8; gl = 8; p< 0,0632]. O grupo MCE considera de forma pronunciada os aspectos da mente ao definir a psicologia (21% e 5,3%), enquanto que o MSE alude os aspectos existenciais (21% e 5,3%). Outro dado significativo que vem reforçar os afastamentos intergrupais quanto à definição da psicologia é a categoria sem definição própria enunciada pelo MSE (21% e 0%). Destacamos dois dados interessantes que se apresentam nessa pergunta: 1) a convergência dos grupos em relação às categorias da ciência (26,3% em ambos os grupos) e do comportamento (10,5% em MCE e 15,8% em MSE); e 2) a baixa freqüência da categoria emoções em ambos os grupos (10,5% em MCE e 0% em MSE).
Convergências intergrupais fazem-se presentes nos resultados, quando consideramos qual o objetivo do trabalho do psicólogo no ambiente hospitalar. O trabalho clínico do psicólogo hospitalar é tido como o maior objetivo por ambos os grupos (69,2% em MCE e 40,0% em MSE), sendo que o auxílio na relação da tríade (equipe de saúde-paciente-familiares) é também aludido por ambos os grupos de forma quase igualitária (7,7% em MCE e 6,6% em MSE). Ainda nesse tema, destacamos diferenciação intergrupal na questão da equipe de saúde, bastante considerada por MSE (40% e 15,4%).
Comparação dos resultados intragrupais - MCE
Ao analisarmos as repostas intragrupais sobre a experiência inicial e a atual com psicólogos, verificamos que os médicos desse grupo apresentaram similaridades nas respostas. Elas variaram entre experiências excelentes (40%) e boas (20%), sendo que o grupo apresentou um pequeno afastamento na questão de uma experiência inicial trabalhosa (30%). O grupo MCE evidenciou uma unanimidade ao afirmar que não encontra dificuldades na comunicação/relação com o psicólogo (100%).
Comparação de resultados intragrupais - P
Quando perguntamos aos psicólogos como foram a experiência inicial e a atual com médicos, os resultados revelam dados muitos interessantes, pois ao analisarmos as atitudes relacionadas a cada categoria, percebemos afastamentos intragrupais importantes [ᵪ2 = (temas gerais de psicólogos hospitalares) = 55,234; gl = 18; p< 0,000]. Destacamos a categoria sentimentos em relação à interação inicial com médicos, na qual nenhuma atitude favorável foi mencionada, sendo as atitudes neutra (20%) e desfavorável (20%) as mais pronunciadas. A noção de que a relação foi construída através de um processo favorável (15,9%) contrasta com uma posição neutra (10%) em relação a ele. Sobre a visão da equipe de psicologia acerca da equipe de saúde e vice-versa, as atitudes favoráveis (18,1%) foram mais freqüentes do que as desfavoráveis (10%). Um outro afastamento intragrupal é apresentado na categoria aspectos atuais da interação interprofissional, contrapondo-se entre atitudes desfavoráveis (20%) e favoráveis (13,6%).
A convergência intragrupo apresenta-se nas atitudes desfavoráveis em relação aos entraves (25%) e nas atitudes favoráveis (9%) e desfavoráveis (10%) em relação ao início da relação profissional .
Quando pesquisamos as dificuldades encontradas pelo psicólogo no ambiente hospitalar, deparamo-nos com afastamentos e convergências intragrupais [ᵪ2 = (temas gerais de psicólogos hospitalares) = 15,152; gl = 6; p< 0,0191]. As convergências intragrupais relacionam-se às dificuldades da práxis, destacando-se com maior freqüência os aspectos institucionais (30,3%), sendo também mencionadas com alta freqüência as categorias excessos (18,2%) e falta de integração interequipes (24,2%).
Os afastamentos intragrupais, entretanto, ocorrem nas categorias que não se relacionam com os aspectos mais práticos do trabalho, tais como reconhecimento (12,1%) e conscientizar auto-cuidado (3%).
Comparação dos resultados entre MCE e P
Ao compararmos os resultados intergrupais de MCE e P nas questões sobre a experiência inicial e a atual interprofissionais, encontramos divergências curiosas entre os grupos [ᵪ2= (temas gerais médicos com experiência e psicólogos hospitalares) = 42,375; gl = 10; p< 0,000]. Uma primeira divergência nítida relaciona-se com a categoria excelente pouco mencionada por P (1,3%), mas ocorrendo de forma significativa em MCE (40%). Outra divergência intergrupal ocorreu na noção de processo que embora mencionada em uma freqüência mais baixa por P (10,8%), não ocorreu no outro grupo. Em relação à comunicação interprofissional, notamos que ela é relatada por P (18,9%) e não mencionada por MCE. Percebemos também um afastamento intergrupal referente à boa experiência, relatada em MCE (20%) e não aparecendo em P.
Não obstante, os dados demonstram a existência de algumas aproximações intergrupais. Elas fazem-se presentes nas categorias início (10% em MCE e 8,1% em P), visão da equipe da psicologia acerca da equipe de saúde e vice-versa (10% em MCE e 14,9% em P) e nos aspectos atuais da interação interprofissional (10% em MCE e 14,9% em P).
Um dado interessante e importante a ser destacado é a contraposição de respostas emitidas pelos dois grupos. O grupo P emitiu 74 respostas ao avaliar sua experiência, enquanto o grupo MCE demonstra maior parcimônia ao enunciar 10 respostas.
Cabe destacar também a questão das atitudes em relação à categoria início. Apesar do total geral aparecer de forma moderada (10% em MCE e 8,1% em P), as porcentagens das atitudes de MCE parecem-nos realçadas quando comparadas com as porcentagens das atitudes demonstradas por P. O grupo MCE cita de forma pronunciada (50%) uma atitude desfavorável em relação ao início, enquanto P contrapõe-se em atitudes favoráveis (9%) e desfavoráveis (10%).
Discussão
Antes de começarmos a discutir os dados apresentados, é importante salientar que as amostras dos três grupos que observamos sistematicamente foram de tamanhos menores do que seria necessário para consolidar a análise psicossocial almejada. Apesar disso, consideramos que os resultados alcançados nos permitiram fundamentar algumas tendências, a serem averiguadas em trabalhos ulteriores.
Ao analisarmos como os dois grupos de médicos (médicos com experiência e médicos sem experiência junto a psicólogos hospitalares) definiram a medicina, encontramos dois perfis contrastantes: o grupo dos médicos com experiência de trabalhar com psicólogos revelou uma forte aproximação da medicina como realização profissional/acadêmica, enquanto o grupo sem experiência de trabalhar com psicólogos demonstrou um perfil de realização profissional/prática, mencionando ainda o valor ético/moral da disciplina. Essa diferença de perfis também se revela quando considerado o objetivo do trabalho para cada profissional. Ambos os perfis voltaram a se apresentar nessa questão, sendo o valor ético/moral do trabalho bastante considerado por ambos os grupos. De forma geral, a medicina está ligada a uma idéia de ajuda e cuidado na qual se busca a diminuição do sofrimento, o bem-estar, através da aplicação dos conhecimentos médicos. Além da noção de realização individual, coloca-se a questão de sustento e sobrevivência financeira. Tendo em vista que os participantes responderam às perguntas de modo voluntário e espontâneo, consideramos possível que o grupo de médicos com experiência tenha procurado apresentar uma imagem do seu trabalho mais condizente com a problemática da pesquisa, em torno de um trabalho interprofissional ainda incipiente no país - ainda mais acadêmico do que prático -, o que pode ter gerado a diferença de conhecimentos que encontramos quanto à profissão. Assim, supomos que a colaboração tornada mais freqüente entre psicólogos e médicos no ambiente hospitalar venha a exigir algumas mudanças na formação acadêmica tanto dos médicos quanto dos psicólogos. Já os médicos sem experiência expressaram mais o foco do seu trabalho na realização prática, diminuindo a possibilidade de adoção de uma colaboração interprofissional menos reconhecida e fundamentada, em termos de resultados mais divulgados e adotados numa área com altas expectativas de realização profissional.
Segundo os dados obtidos com os dois grupos médicos, confirmamos nossa hipótese de que os médicos não conseguem definir claramente o que é a psicologia. Embora a disciplina seja considerada uma ciência, atribuiu-se a ela uma multiplicidade de objetos de estudo. Assim como encontrado por Souza e Ferreira (2003), os conhecimentos dos dois grupos de médicos estruturam-se nos temas do estudo da mente e do comportamento. Confirma-se que os grupos demonstram uma falta real de conhecimento acerca da psicologia, estando ela estritamente relacionada a uma função assistencialista, capaz de melhorar e mudar o ser humano e as relações interpessoais. Esses dados nos permitem inferir que a psicologia está fortemente associada à psicologia clínica. Nesse sentido, gostaríamos de lembrar que no estudo princeps de Moscovici (1981), realizado a partir de amostra representativa da população parisiense e de outros contingentes específicos, segundo os parâmetros demográficos da época, foram encontrados alguns grupos com nível de informação baixo ou nulo, como os operários, dos quais 51% afirmaram nunca terem ouvido falar de psicanálise. Isso não impediu o referido autor de considera-los para fim de análise, inclusive para permitir relacionar atitudes e níveis de informação. Destarte, foi possível constatar não existir uma relação unívoca entre atitudes e níveis de informação: os operários, mesmo conhecendo menos e possuindo representações sociais mais fragmentadas a respeito da psicanálise, apresentaram atitudes mais favoráveis que os intelectuais comunistas, estes últimos em maioria desfavoráveis a àquele campo de saber, ainda que conhecendo relativamente mais sobre o mesmo assunto (Moscovici, 1976, pp. 85-90). O fato de que em nosso estudo o principal objeto de representação tenha sido a psicologia hospitalar, que é relativamente menos inserida e conhecida no país, pode sugerir que o material analisado por nós seja o de um conhecimento ainda menos elaborado e partilhado. Tratar-se-iam antes de outros construtos psicossociais próximos ao das representações sociais, tais como as percepções, atitudes e opiniões formadas mais no âmbito individual. Mesmo ao apresentar similaridades interindividuais a respeito de assunto social, os construtos mencionados da psicologia social cognitiva não poderiam ser considerados produto de atividade coletiva visando metas sociais, tais como serem conscientemente partilhadas, por exemplo. Quando Moscovici propôs o estudo do fenômeno das representações sociais, as sociedades modernas já se encontravam em grande ebulição informativa além de viverem em certa expectativa de mudança a partir de ação individual/social em geral, o recorte individual adotado pela psicologia social cognitiva tendo servido de base teórica/metodológica parcial para estabelecer a sua proposta, o que foi consideravelmente ampliado pelo mesmo autor, como se sabe, a partir de outras observações tal como da imprensa etc. Segundo o modelo teórico das representações sociais, os fenômenos individuais de conhecimento seriam parte inclusiva de processos sociais mais amplos que ocorrem nas sociedades atuais, às vezes precedendo em termos de psicogênese estes últimos. No caso da difusão da psicanálise, ela gerou curiosidade e debate social na sociedade francesa e em outras partes do mundo, inclusive por sua originalidade e aspectos polêmicos da teoria, como a sexualidade. Contudo, outras contribuições acadêmicas/profissionais não tiveram a mesma forma de recepção e tratamento psicossocial, levando alguns a considerarem inapropriado tratar como representações sociais todos os fenômenos de difusão e formação de conhecimentos. Ou seja, o surgimento de um objeto de saber no espaço público não geraria por si só um fenômeno de representações sociais em todos os grupos sociais, alguns podendo limitar-se a acompanhar tendências gerais da sociedade. Enfim, apesar dos grupos utilizarem uma linguagem mais acadêmica para descrever a psicologia em nossa pesquisa, eles explicitaram informações a esse respeito muito semelhantes às de outros grupos descritos em estudos aqui reportados, ou seja, o conhecimento médico acerca da psicologia seria atualmente um saber próximo ao do senso comum.
No tocante à questão dos conhecimentos dos médicos a respeito da psicologia, nossos achados vão ao encontro dos resultados obtidos em outras pesquisas. Contudo, ao considerarmos as atitudes dos médicos em relação à disciplina, notamos uma ligeira favorabilidade e evidencia-se uma tendência maior à neutralidade. Esses dados não confirmaram nossa hipótese de que os médicos não possuem uma atitude favorável perante a psicologia. A questão das atitudes em relação à psicologia também não foi um ponto de consenso nos resultados obtidos por outros pesquisadores, Liese (1986), Miller e Swartz (1990), Mc Daniel (1995), Leal et al. (1999), Twilling, Sockell e Sommers (2000), Drotar (2002) e Kainz (2002) praticamente não encontraram tendências à neutralidade na questão da imagem do psicólogo; Nethercut e Piccione (1984) encontraram atitudes favoráveis ou ligeiramente favoráveis e Ribeiro e Sarriera (1997) mencionaram uma ambigüidade na questão favorabilidade/desfavorabilidade. Fato é que não podemos precisar as causas desses “desencontros”; é preciso considerarmos a complexidade dos fenômenos sociais, onde muitas variáveis se manifestam.
Quanto à definição do trabalho do psicólogo no ambiente hospitalar, evidenciou-se a atuação clínica, sendo que a equipe de saúde foi igualmente mencionada. Esse é um ponto que merece maiores considerações, pois encontramos detalhes conflitantes. A literatura expõe o debate acerca da definição do campo da psicologia hospitalar. Ou seja, a própria psicologia não conseguiu ainda estabelecer um paradigma científico do contexto hospitalar, o que gera ambigüidade, confusão e profusão de papéis profissionais. Acreditamos que, ao enunciarem o objetivo do trabalho do psicólogo no hospital, os médicos estão nos mostrando o que esperam da psicologia e do psicólogo. Ambos os grupos explicitaram a expectativa de suporte, auxílio nas relações com pacientes e familiares e a aplicação dos conhecimentos psicológicos, além dos objetivos anteriormente mencionados. Não estamos afirmando que devemos suspender o debate acerca da definição do campo de atuação que, de fato, ainda está em elaboração. Mas é de extrema importância que a psicologia escute o que a medicina tem a dizer. Parece-nos que a confusão a respeito da delimitação do papel do psicólogo parte também dos próprios profissionais da área psi. A falta de clareza que se anuncia no discurso médico em relação à atuação do psicólogo parece se fazer na forma como se aplica e como se dá a atuação do profissional.
Apesar dos médicos explicitarem os objetivos do trabalho do psicólogo, o discurso foi bastante superficial principalmente quando abordado o tema da equipe de saúde. Respostas como “integrar equipe multidisciplinar” não se aprofundaram na questão e forneceram poucas pistas de investigação. Acreditamos que a questão “qual é e o que é equipe de saúde para os médicos” deva ser mais investigada, uma vez que o presente estudo revelou essa lacuna.
Ao analisarmos a experiência inicial e atual dos médicos com experiência junto a psicólogos, notamos que ela oscila entre experiências boas e excelentes na maior parte das respostas. Chama-nos a atenção a utilização de um discurso superficial, com poucos detalhes e qualidades. Esse fato sugere uma certa falta de comprometimento e aprofundamento. Entretanto, também consideramos que esse pode ser um assunto mais pertinente e interessante aos psicólogos do que aos médicos.
Outro dado que vem a confirmar essa visão médica traduz-se na afirmação unânime de que não são encontradas dificuldades por parte dos médicos na comunicação/relação com o psicólogo. Esse dado não foi confirmado nas pesquisas acerca da relação profissional entre médicos e psicólogos, que apontam a existência de barreiras nessa relação. Liese (1986), Miller e Swartz (1990), Mc Daniel (1995), Leal et al. (1999), Twilling, Sockell e Sommers (2000), Drotar (2002) e Kainz (2002) demonstram a existência de ruídos na comunicação médico-psicólogo. Segundo esses estudiosos, parte dos médicos a afirmação de que os psicólogos apresentam dificuldades em traduzir termos e conceitos psicológicos em uma linguagem compreensível aos médicos. Ou seja, é preciso que os psicólogos desenvolvam a habilidade de se comunicar clara, sucinta e efetivamente. Acreditamos que uma investigação aprofundada acerca dessa relação é de extrema importância para que possamos compreender e aperfeiçoar a interação interprofissional, o que, conseqüentemente, resultará em uma melhor atuação do psicólogo no ambiente hospitalar.
Considerando a ambigüidade atitudinal do grupo com experiência, acreditamos que ela surge em função de um conhecimento do psicólogo que ainda é pouco claro e sedimentado.
Ao descreverem a experiência inicial e atual com médicos, os psicólogos indicaram que a interação inicial é vista de forma bastante desfavorável, o que faz emergir sentimentos de “insegurança” e “dúvidas quanto à minha própria competência”. Entretanto, existe a noção de que a relação é estabelecida através de um processo que é visto de forma favorável.
A comunicação interprofissional foi também bastante mencionada. Esse é um dado interessante, pois essa categoria foi citada de forma favorável e desfavorável. Ao olharmos com atenção para as repostas dos psicólogos, percebemos que a comunicação interprofissional foi vista de forma desfavorável no início da interação; respostas como “no início a comunicação com os médicos era rara” apareceram no discurso do psicólogo. Ligando-se à noção de processo mencionada pelos participantes, a comunicação interprofissional passa a ser vista favoravelmente ao longo da interação.
Mister se faz compararmos as experiências inicial e atual dos médicos com as dos psicólogos. Um primeiro dado que nos chama a atenção é a quantidade de respostas emitidas por ambos os grupos: enquanto os médicos emitem 10 respostas para descreverem suas experiências, os psicólogos emitem 74. Notamos que os médicos utilizaram um discurso pelo menos parcimonioso, senão superficial, ao passo que os psicólogos apresentaram um discurso com detalhes, qualidades e sentimentos. Embora não possamos afirmar que esse contraste nos discursos aconteça em função das formações e práxis de ambos os profissionais, elucubramos a respeito da valorização da objetividade e do pragmatismo por parte da medicina. Esses também são aspectos importantes para a psicologia, mas fato é que a subjetividade é bastante valorizada pela disciplina e pelos profissionais. Outro dado relevante dessa comparação envolve a questão da comunicação interprofissional. Ela foi citada de forma mais favorável do que desfavorável pelos psicólogos, entretanto, a desfavorabilidade apresentou uma porcentagem considerável (15%). Lembramos que ao questionarmos os médicos com experiência acerca da relação/comunicação com os psicólogos, eles afirmaram de forma unânime que não encontravam qualquer dificuldade nesse ponto. Por que essa é uma barreira apenas relatada pelos psicólogos? Reiteramos a necessidade de uma investigação abrangente acerca da relação/comunicação médicos-psicólogos.
Constatamos que os médicos dispõem de uma visão otimista acerca da relação com o psicólogo, embora de forma muito superficial. O relato médico limitou-se ao “muito boa”, “excelente” sem se aprofundar na questão. A visão da psicologia foi de certa forma mais “balanceada” que a dos médicos, considerou-se as qualidades (favoráveis e desfavoráveis) dos diversos aspectos de interação. O relato dos psicólogos nos mostrou uma visão também otimista, de que é possível construir uma relação, mas o percurso é difícil. Quanto à pergunta acerca da contribuição da experiência profissional na manutenção ou mudança de conhecimento dos médicos em relação à psicologia, podemos inferir que a experiência profissional junto a psicólogos não atua de forma significativa para uma mudança do que se conhece em outros meios sociais a respeito dos psicólogos. Enfim, poderíamos considerar que existe entre os médicos uma expectativa positiva de que a psicologia hospitalar venha a fazer contribuições no futuro. Contudo, tendo em vista o pouco aprofundamento das respostas que obtivemos entre eles, poderíamos interpretar seja como uma reticência em fazer afirmações sem fundamentos, seja como uma forma de corresponder a certa expectativa ou desejabilidade social quanto ao reconhecimento da psicologia hospitalar nesse ambiente profissional.
Os resultados apresentados e discutidos acima colocam alguns desafios para os profissionais implicados. Se as relações interprofissionais precisam ser aperfeiçoadas como decorrência da importância crescente da psicologia hospitalar como um saber validado e reconhecido acadêmica e profissionalmente, esse fato não redunda em automática legitimidade ou mesmo prioridade na área de saúde. Em conseqüência, para instaurar um ambiente de colaboração interprofissional seria preciso aumentar a informação disponível entre os profissionais de saúde a respeito das realizações da psicologia em geral e, em particular, da área de saúde. Ademais, é preciso sublinhar que a constituição de interações de reciprocidade interprofissional, no sentido de uma moralidade de respeito mútuo e cooperação, pode estar mais relacionada às decisões políticas em saúde coletiva em função de existência de metas supra-ordenadas a serem atingidas a partir de práticas/conceitos como o de “integralidade” (Camargo Jr., 2007), indo da forma de atendimento do paciente/comunidade à articulação interprofissional (Ceccim, 2004; Gomes, Pinheiro & Guizardi, 2005). Assim, a gestão no âmbito dos sistemas de organização públicos tem contribuído para a colaboração interprofissional a partir de estudos e trabalhos, como os relacionados às redes (Bernardes, Medeiros & Guareschi, 2007; Pinheiro & Mattos, 2006), estendendo-se à sociedade como um todo a partir de práticas/exercício da cidadania etc., ampliando consideravelmente a problemática de trabalho e pesquisa no âmbito da saúde coletiva. Nesse sentido, é bom lembrarmos que a confiança interprofissional e entre psicólogos e outros meios sociais decorre também da instauração da mesma postura de reciprocidade com relação a suportes sociais e políticos, tal como a que é depositada por pacientes e comunidades, bem como por outros sujeitos, como entidades políticas ou civis.
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Endereço para correspondência
E-mail: juwallig@gmail.com, edsouzafilho@gmail.com
Recebido em: 03/07/2007
Revisado em: 28/08/2007
Aprovado em: 30/10/2007
1 Como se sabe, o qui-quadrado é um teste de significância usado para comparar duas ou mais amostras em termos de freqüência sem que a característica estudada tenha necessariamente uma distribuição normal na população investigada, nem mesmo que ela possa ser reduzida a uma variável intervalar ou numérica. Trata-se de um teste não-paramétrico. Ou seja, ele permite-nos verificar se a distribuição de freqüências da característica apresentada pelos grupos em comparação não se deve ao mero acaso, sem pretensão de encontrar causalidades ou mesmo poder generalizar para além das amostras particulares observadas. Porém, ele pode ser útil na pesquisa qualitativa de dados simbólicos ao permitir-nos saber se as freqüências dos mesmos estão mais associadas ou não aos grupos particulares que comparamos. No caso da pesquisa em foco, aplicamos para cada pergunta que fizemos uma versão do teste que compara os grupos segundo o conjunto de temas usados para responder. Para tornar a apresentação menos volumosa, os resultados das análises serão informados de modo abreviado onde χ2 é o valor obtido da aplicação da fórmula do qui-quadrado aos resultados de cada pergunta; gl é o grau de liberdade, calculado segundo o número de colunas e linhas das distribuições de freqüências observadas; p é a probabilidade de que as freqüências diferiram entre si em função do acaso ou não, aceitando-se que houve diferença significativa entre os grupos quando a probabilidade for menor ou igual a 0,05 (Cf. Levin, 1987).