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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
versão impressa ISSN 1516-3717versão On-line ISSN 1981-0490
Cad. psicol. soc. trab. v.12 n.1 São Paulo jun. 2009
O significado do trabalho: delimitações teóricas (1955-2006)
The meaning of work: theoretical delimitations (1955-2006)
Patrícia Martins Goulart1
Universidade do Extremo Sul Catarinense
RESUMO
Você continuaria trabalhando se ganhasse na loteria? Da década de 50 até o presente momento, foram realizadas várias investigações, em nível nacional e internacional, sobre o significado do trabalho, as quais fornecem pistas para uma reflexão mais aprofundada sobre o assunto. É nossa intenção, com base em informações pesquisadas na literatura das ciências sociais, desenvolver uma delimitação teórica sobre o significado do trabalho, com foco no mundo do trabalho do século XXI. O método de levantamento de informações consistiu de consulta a autores cujas bibliografias abordam os seguintes aspectos do tema em questão: trabalho, significado, experiência de trabalho, fordismo e pós-fordismo. As obras foram acessadas através de meios impressos e digitais e registradas conforme sua ordem cronológica de publicação. Foram analisadas pesquisas publicadas no período entre 1955 e 2006. Esses textos indicam que o significado do trabalho conserva as funções instrumental (via para obter ingressos) e expressiva (um fim em si mesmo), considerando diferentes matizes no que se refere ao tipo de atividade laboral realizada, à faixa etária e ao nível de renda dos sujeitos. No cenário pós-fordista, observa-se uma ênfase no caráter instrumental do valor do trabalho, algo que parece distanciar-se do que ocorrera nos anos 80, quando predominava o paradigma fordista. A partir dos anos 2000, nota-se uma aproximação entre o significado do trabalho e as condições em que ele se realiza.
Palavras-chave: Trabalho, Significado, Pós-fordismo.
ABSTRACT
Will you keep working if you won the lottery? Since the 50's until the present, various investigations about the meaning of work have taken place, under international and national contexts, contributing with elements of reflection on the topic. We intend, based on a review of the literature in the field of social sciences, to develop a theoretical demarcation on the meaning of work focusing on the world of work in the twenty-first century. The method of gathering information was the reference to authors whose bibliography deal with the following aspects: work, meaning, work experience, post-fordism, and fordism. Their work was assessed through hard copies and soft copies, and registered in chronological order, according to their publication date. The research analyzed, published during 1955 until 2006, indicates that work has been restricted to an instrumental character, turned to economic purposes to citizens with low income levels and social protection. Currently there is a reapproachment between the meaning of work and the working conditions. In the post-fordism scene, there is an emphasis on the instrumental character on the value of work, something that seems to distance itself from what occurred in the 80's, when the fordist paradigm prevailed. Since the 2000s, there has been a smaller distance between the meaning of work and the conditions under which it takes place.
Keywords: Work, Meaning, Postfordism.
Introdução
O significado do trabalho abriga diversas possibilidades de análise e de compreensão. Enfatizamos duas teses que evidenciam a controvérsia sobre o assunto. Uma escola sustenta que, durante a infância, a personalidade vai-se construindo e assimilando uma série de valores sobre o significado do trabalho, os quais dificilmente se modificam. Tais valores são transferidos de pais para filhos e permanecem estáveis ao longo da vida. Já a tese oposta entende que o significado do trabalho é construído a partir da experiência que dele se tem e das interpretações que se faz sobre essa mesma experiência. Sob essa perspectiva, o significado do trabalho assume uma característica cognitiva, na qual os valores podem variar ao longo da vida (Blanch, 1990, 2003; Garcia et al., 2001).
Partimos do pressuposto de que o significado do trabalho pode ser definido como um conjunto de crenças, valores e atitudes em relação ao ato de trabalhar, construídos antes e durante o processo de socialização do labor, com variações dependendo das experiências subjetivas e situacionais que ocorrem no âmbito do emprego e da organização (Blanch, 1990, 2003; Garcia et al., 2001; Goulart, 2006; Salanova et al., 1996).
Blanch, um pesquisador espanhol que se dedica a esse tema desde o início dos anos 80, refere que o campo do significado do trabalho corresponde ao grau de importância que a ele atribuímos bem como aos valores sociais que assumimos via socialização. Esses valores influenciam a escolha da carreira e da profissão, o comportamento organizacional, o enfrentamento das condições de trabalho do estatuto contratual e a satisfação com a atividade específica (Blanch, 2003, p. 7).
Neste estudo, há interesse em conhecer as principais considerações sobre o significado do trabalho, a partir de uma perspectiva psicossocial, no contexto pós-fordista. Cumpre salientar que o termo pós-fordismo é empregado para traduzir as alterações instauradas na cultura moderna do trabalho. No cenário fordista, o trabalho pautava-se na jornada de oito horas diárias, no resguardo aos direitos laborais e na representatividade sindical. O ato de trabalhar configurava não só um meio econômico para satisfazer necessidades materiais, mas também um regulador de intercâmbio de bens e serviços, contexto fundamental das relações interpessoais e eixo vertebral da vida de pessoas, povos, cidades e nações (Blanch, 1996). Em contrapartida, o contexto atual, denominado aqui de pós-fordista, rege-se pela aceleração temporal, impulsionada pelas avançadas tecnologias de informação e de comunicação e pela a paulatina fragmentação dos direitos laborais. Observa-se que o individualismo sobrepõe-se aos atos coletivos, reforçando o paradigma da incerteza, descontinuidade e vulnerabilidade dos trabalhadores com baixos níveis de qualificação ou hiperqualificados (Goulart, 2006).
Para buscar uma aproximação com o objeto de estudo, o método utilizado consistiu em uma revisão bibliográfica, considerando-se os seguintes descritores: trabalho, significado, experiência laboral, fordismo e pós-fordismo. A análise das publicações atendeu a uma ordem cronológica, com ênfase nos estudos clássicos e contemporâneos, inseridos no campo das ciências sociais. Todas as obras foram estudadas, resumidas e registradas, focalizando as principais alterações que envolveram o significado do trabalho, de 1955 a 2006.
O significado do trabalho: cenário internacional
Morse e Weiss (1955) produziram um dos estudos pioneiros sobre o significado do trabalho nos Estados Unidos, com a pergunta fundamental: "Você continuaria trabalhando se ganhasse na loteria?". Mais de 80% das respostas foram positivas. O segmento correspondente à faixa etária entre 20 e 25 anos de idade teve 90% das respostas afirmativas.
Os autores pesquisaram 401 norte-americanos inseridos em diferentes categorias profissionais, observando que os indivíduos que exerceram ocupações típicas de nível salarial médio (gestores) associam o trabalho a um objetivo de vida, realização e auto-expressão, enquanto as categorias profissionais de baixos níveis salariais o relacionam à ocupação.
Tausky e Piedmond (1967) corroboraram esses dados ao investigar o significado do trabalho sob a ótica dos trabalhadores manuais. A maioria das respostas apontou para a importância do salário e também para a relevância da pertença e da aceitação pelos grupos com os quais o indivíduo trabalha. Os autores fizeram uma distinção entre as funções instrumental e expressiva do trabalho, com base em entrevistas empreendidas junto a uma população de jovens. Os resultados indicaram uma sobre-valoração por parte dos jovens quanto ao "direito de trabalhar" (obrigações da sociedade para si), compensada por um grau de subestimação quanto ao que esse "direito" representava: "um dever" (compromisso do sujeito com a sociedade). Os dados oriundos dessa investigação não permitiram inferir se os resultados deviam-se a uma ruptura cultural entre gerações (as quais relacionavam comumente o trabalho a "um dever") ou simplesmente ao efeito da evolução do pessoal jovem e a consequente falta de aderência às regras e aos papéis aprendidos na socialização através do trabalho. Tausky e Piedmond (1967), baseados em sua teoria clássica sobre os papéis instrumental e expressivo do trabalho, dissertaram sobre o sentido e a função que ele exerce na vida dos indivíduos. O papel instrumental do trabalho, segundo os autores, restringe-se a atividades desenvolvidas pelas camadas sociais mais baixas da sociedade, enquanto sua representação de caráter expressivo está ao alcance dos estratos médio e superior das sociedades.
O estudo de Williams, Morea e Ives (1975) sobre o significado do trabalho, considerando estudantes e profissionais britânicos, pretendeu avaliar a importância do estatuto profissional em relação a outros sistemas sociais, como família, religião e entretenimento. A família foi considerada a esfera mais importante, seguida do papel ocupacional, conforme respostas dos gestores. Para os estudantes, o trabalho sobrepõe-se à família. Para ambos os grupos, a auto-realização, o contato social e o salário são os principais objetivos a serem conquistados em um posto de trabalho. Esses resultados reforçam o fato de que, no contexto europeu, a esfera econômica não é primordial no que se refere ao significado do trabalho (Blanch, 1990).
No artigo Comparando a qualidade da experiência de trabalho em organizações governamentais e privadas, Cacioppe e Mock (1984) comparam grupos de trabalhadores inseridos em empresas públicas e privadas, no que se refere ao significado do trabalho. Os assuntos foram divididos em categorias de alto (gestores, professores) e baixo nível ocupacional (trabalhadores da indústria, escritório, assistentes etc.). Os autores observaram que os trabalhadores inseridos em organizações públicas estavam significativamente menos satisfeitos com a vida profissional que os trabalhadores inseridos no setor privado, e que as diferenças eram mais acentuadas nas profissões consideradas de alto nível ocupacional.
A Equipe MOW2(1987), por sua vez, parte do pressuposto de que o trabalho tem uma grande importância histórico-filosófica na vida das pessoas e que o seu significado exerce um impacto expressivo sobre a experiência de laboral.
Essas considerações pautam-se em dados oriundos de uma macropesquisa, empreendida com o objetivo de entender a diversidade e os padrões de significados que os indivíduos e a coletividade atribuem ao trabalho em sociedades industriais. Objetiva também compreender as suas consequências para os indivíduos, organizações e sociedades; estimar-lhe os respectivos significados em diferentes países e compará-los. Pretende-se, ainda, compreender as histórias dos sujeitos, bem como suas diferenças e semelhanças suscetíveis de generalização.
De acordo com a equipe MOW, o trabalho é uma categoria central da experiência humana, pessoal e social. É, ainda, uma atividade cujo objetivo transcende o âmbito da economia e abriga um conceito multidimensional, que integra três eixos semânticos principais:
O primeiro eixo inclui a centralidade do trabalho. Trata-se de um indicador geral da importância pessoal que é dada ao labor, bem como do papel vital a ele atribuído. Isso nos leva à compreensão do núcleo axiológico do significado do trabalho, o qual vai adquirindo importância para as pessoas, antes que elas integrem a população ativa e ao longo de sua vida profissional. O índice de centralidade, por sua vez, refere-se à centralidade relativa que é obtida mediante a comparação da importância atribuída ao trabalho com outros aspectos da vida quotidiana (família, lazer, religião, comunidade). Já a centralidade absoluta é obtida com base na avaliação da importância do trabalho para a própria vida (Blanch, 2003).
O segundo eixo configura as normas sociais sobre o trabalho, relativas aos direitos e deveres, percebidos como associados ao exercício da função laboral. Essas normas sintetizam as valorações que as pessoas atribuem ao trabalho, sendo que as principais giram em torno do direito e do dever que o envolvem. A primeira norma refere-se ao que a pessoa "pode" e "merece" exigir da sociedade e da organização, enquanto trabalhadora, e a segunda envolve as obrigações de cada trabalhador com relação à organização para a qual labora e à sociedade em geral.
As metas e os resultados laborais configuram o terceiro eixo semântico. As primeiras tratam das características pertinentes à atividade de trabalho desenvolvida (autonomia, tarefa, interesse, tempo, ambiente social, níveis salariais, oportunidades de aprendizagem ou promoção etc.). Os resultados esperados, por sua vez, incluem o que as pessoas buscam no trabalho (remuneração, auto-expressão, reconhecimento social, contatos etc.).
Os dados obtidos a partir de cerca de quinze mil respostas de pessoas oriundas de oito países distribuídos em três continentes, durante seis anos, indicaram que existe uma elevada centralidade do trabalho em todas as categorias, envolvendo idade, sexo e país, sob considerável variabilidade, em relação aos níveis interindividual, internacional e interprofissional, e uma acentuada importância e reconhecimento quanto aos direitos e deveres dos trabalhadores.
Entre as metas e os resultados de um trabalho, a Equipe MOW (1987) argumenta que os resultados valorados no ato de trabalhar podem ter propriedades concretas ou simbólicas, que podem ser de caráter individual ou universal. Nesse sentido figuram interesse na tarefa, bons salários, autonomia, clima de trabalho, segurança e higiene, adequação ao posto, habilidades e competências pessoais, oportunidades de aprendizagem, variedade de tarefas, horário, ambiente e perspectivas de promoção (Blanch, 2003, p. 21).
O MOW (1987) refere que as relações conceituais e empíricas dos conceitos sobre o significado de trabalhar podem relacionar-se ao mercado de trabalho, às características das profissões, às diferenças culturais e aos próprios conceitos do significado do labor para cada pessoa. Atesta ainda que as experiências de trabalho podem alterar os valores e as experiências cognitivas, relacionadas ao próprio trabalho.
A investigação aportou quatro padrões de respostas que fornecem um conjunto de modelos hipotéticos para a atribuição dos significados do trabalho. O padrão instrumental corresponde a 30% da amostra. Nesse, o desempenho econômico é considerado importante e o trabalho não representa um lugar central na vida, mas uma maneira de obter-se dinheiro. O padrão de centralidade corresponde a 25% da amostra e pressupõe que as pessoas tendem a expressar-se através do trabalho, reservando-lhe um lugar central na vida e atribuindo ao salário um valor secundário. As normas de "direito ao trabalho" configuram cerca de 20% do conjunto da amostra (alto padrão), enquanto 25% da amostra apresenta uma baixa orientação sobre o dever de trabalhar (baixo padrão).
Durante os anos 90, foram sendo desenvolvidas outras investigações (Blanch, 1990; Salanova et al., 1996), considerando o modelo metodológico de MOW (1987). Em geral, os dados empíricos atestavam que o trabalho funcionava como um meio de sustento material e também como um poderoso fator de estruturação da vida psíquica, sócio-política e cultural, ao possibilitar salário, status, identidade, direitos e deveres, certeza e segurança (Blanch, 1990, 2005).
Nos anos 2000, quando a precariedade incide sobre as relações laborais (Antunes, 1995, 2000; Blanch, 2003, 2005; Dowbor, 2007), outros estudos (Borges & Pinheiro, 2002; Gaggiotti, 2004) seguem a tradição metodológica de MOW ( 1987).
Em síntese, os autores argumentam que as diferentes considerações sobre o significado de trabalho são afetadas pelas experiências laborais concretas e também por diferentes momentos temporais (Garcia et al., 2001).
Em 2004, Hugo Gaggiotti publica o estudo Quem quer ser global? (Des)localização, trabalho e sentido de resistência à globalização, nos gestores e spanhóis da América Latina e nas empresas multinacionais, com referência conceitual à equipe MOW (1987).
A fim de discutir sobre as possibilidades de estudar a relação entre os aportes do MOW, expatriação e relocalização/deslocalização, o autor realizou dois estudos exploratórios sobre o assunto. Em primeiro lugar, foram realizadas treze entrevistas com executivos de empresas multinacionais, com interesses nos mercados da Argentina e do México, entre o início de 2002 e o final de 2003.
Esses estudos de campo em empresas espanholas demonstraram uso recorrente, pelos executivos, dos termos "deslocalização", "responsabilidade social" e "trabalho" (reportando-se este último à atividade remunerada). Nas entrevistas, foram detectadas preocupações com a perda de posições laborais, com a reestruturação organizacional e com a demissão de funcionários, como formas de as empresas reduzirem custos. A deslocalização refere-se à transferência dos trabalhadores para outros países. A responsabilidade social, a ética do trabalho e a recolocação foram apontadas como políticas necessárias para que as empresas pudessem subsistir. Finalmente, referiram-se à aceitação de diferentes lugares de trabalho (países) para os gestores de uma mesma corporação. Expressão usada por um diretor espanhol e outros sujeitos que abordaram o tema num contexto semelhante: "À medida que encontram um lugar mais barato, se vão".
Essa primeira aproximação sugeriu a possibilidade de realizar algumas entrevistas não-diretivas com gestores espanhóis nas quais se questionava como eles acreditavam que deveriam ser vistas, a partir de uma perspectiva ética, as empresas que (des)locavam sua produção para diversos países da Europa ou para outros continentes e não levassem em conta sua responsabilidade social, interna e externa, ou que não concedessem a seus trabalhadores ou gestores a possibilidade optarem por serem ou não expatriados.
Na maioria dos casos, afirmaram que as empresas "faziam a sua parte" e acrescentaram: "Embora ele me ofereça outro lugar, não vou, porque eu sou daqui". Também houve explicações como: "Não teria problemas em ir para onde eles quiserem, dependeria da localização e das condições".
As respostas sugeriram que não havia, necessariamente, uma avaliação ética por parte das empresas multinacionais e que o deslocamento de pessoas, com ou sem um plano de expatriação, era uma alternativa viável.
Os resultados advindos do estudo Gaggiotti (2004) indicaram que o significado outorgado ao trabalho e a (re)localização/(des)localização não só dizem respeito a um determinado esquema de valores individuais, como também está relacionado com a identidade local ou extralocal que as pessoas atribuem à empresa.
A partir desses dados, Gaggiotti (2004) desenvolveu um segundo trabalho exploratório no qual indagava sobre a importância que os gerentes atribuíam ao local (sentido amplo) em que trabalhavam. Os dados foram obtidos a partir de um breve questionário, distribuído entre aproximadamente cinquenta gestores de diferentes níveis, idade, sexo e com diversos graus de responsabilidade. O modelo foi uma versão modificada e condensada daquele utilizado pela Equipe MOW. Foram conduzidas entrevistas não-estruturadas com doze executivos.
Entre os objetivos da investigação (Gaggiotti, 2004), figura o sentido que os gerentes atribuíram ao trabalho em um contexto de forte discurso público e privado sobre a (des)localização. Os resultados preliminares revelaram que os gerentes, em geral, consideram seu trabalho muito importante para o próprio futuro. Quando indagados: "Pense sobre os próximos cinco ou dez anos. Que grau de importância você concederá ao trabalho?", cerca de 88% dos gestores consideraram que seu trabalho será importante ou muito importante.
Destacam-se as respostas, dentro do contexto atual, à pergunta clássica empreendida pela Equipe MOW, questionada anteriormente por Morse e Weiss (1955) e revista por Hugo Gaggiotti meio século mais tarde: "Imagine que você ganhe na loteria ou que herde uma fortuna que lhe permitirá viver sem trabalhar pelo resto de sua vida, o que você faria com seu emprego?", 72% continuaria a trabalhar, mas mudaria as condições; 22% continuaria no mesmo trabalho; 3% deixaria de trabalhar; 3% não responderam (Gaggiotti, 2004). Dos resultados, mais de 90% da amostra investigada permaneceria trabalhando e quase 72% alteraria as condições de trabalho, o que poderia corroborar o contexto de precarização das condições de trabalho na atualidade.
O significado do trabalho no cenário brasileiro
Desde os estudos de MOW (1987), foram-se originando diversas investigações sobre o significado do trabalho no contexto brasileiro, como se percebe em Soares (1992), Santos (1994), Tamayo (1994), Borges e Pinheiro (2002) e Goulart (2006).
Uma das questões observadas por Tamayo (1994) e por Borges (1999) sobre a importação do método de estudo empreendido pela equipe MOW no contexto brasileiro, reporta-se ao viés econômico. Segundo os autores, o significado econômico atribuído às garantias de sobrevivência no Brasil é diferente do significado atribuído a pessoas que vivem em países desenvolvidos e, portanto, não pode ser discutida de forma indiscriminada.
Outra pesquisa, frequentemente mencionada sobre o significado do trabalho no Brasil, foi empreendida por Soares (citado por Santos, 1994). A partir do modelo proposto pela equipe MOW (1987), foi explorado o significado atribuído ao trabalho, considerando 915 pessoas de diferentes categorias profissionais. Os participantes foram agrupados em categorias ocupacionais diversas: funcionários administrativos, gerentes/conselheiros, trabalhadores semi-especializados, atendentes de níveis médio e técnico.
O construto "normas sociais" foi suprimido. Dos resultados da investigação surgiu um novo modelo quanto ao significado do trabalho, e delinearam-se dois domínios: centralidade da família e centralidade da religião.
Dez anos mais tarde, Borges e Pinheiro (2002) publicaram o artigo Estratégias de coleta de dados co m trabalhadores de baixa escolaridade, o qual faz alusão aos limites do estudo empírico de Soares (1992). A crítica dos autores reside no fato de o estudo de Soares utilizar-se dos mesmos instrumentos da equipe MOW, que eram dirigidos a um público com nível de educação relativamente elevado, para investigar a variabilidade do significado do trabalho com pessoas de baixo nível de escolaridade. Borges e Pinheiro perguntam: "Se fossem consideradas categorias profissionais com diferenciados níveis de educação, não se encontraria uma relação mais estreita entre significado do trabalho e categoria profissional?" (p. 7).
Com base nas contribuições dos autores mencionados, principalmente no que tange ao modelo MOW (1987), Goulart (2006) desenvolveu uma tese de doutorado intitulada Trabajar en el nuevo capitalismo: cultura y experiencia del trabajo en el Brasil contemporáneo3. O objetivo geral da pesquisa consistiu em conhecer o significado do trabalho a partir da perspectiva de brasileiros que vivem no sul, por meio de um método de investigação de cunho quantitativo e qualitativo.
O instrumento utilizado no referido inquérito foi um macroquestionário (Blanch, 2006) que incluía sete escalas, um inventário de valores e seis inventários sobre o significado do trabalho, além de uma série de questões abertas e uma seção reservada aos dados sócio-demográficos (Goulart, 2006).
Das informações qualitativas, destacam-se as questões abertas, tais como: o que os brasileiros do sul pensam sobre o trabalho, como vivem sua situação laboral e como a visualizam e enfrentam o seu próprio futuro laboral em tempos de desemprego e subemprego.
A pesquisa foi realizada em três fases. A primeira ocorreu na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, com a participação de 212 pessoas que pertenciam a três segmentos distintos: trabalhadores desempregados formais (registrados no Sistema Nacional de Emprego e Desemprego, SINE); trabalhadores com emprego estável (funcionários da Justiça Federal do Estado do Rio Grande do Sul, Tribunal da 4ª Região) e um terceiro grupo, denominado de população em geral, com status profissional diverso.
A segunda fase da investigação foi desenvolvida na cidade de Criciúma, Santa Catarina, envolvendo 300 pessoas que pertenciam a dois grupos diferentes: estudantes e população em geral. A terceira fase da investigação foi realizada nas cidades de Porto Alegre e Criciúma, simultaneamente. Entre os sujeitos, concederam entrevistas 168 pessoas pertencentes ao grupo dos subempregados.
De modo resumido, a partir da investigação de Goulart (2006), pode-se observar que um grupo de 680 pessoas do sul do Brasil ainda espera "algo" do trabalho, além do mero retorno financeiro. O coletivo investigado vê no trabalho um papel vital e uma fonte de satisfação e realização pessoal. Também se reportaram ao valor instrumental do trabalho, mas não de forma direta ou explicitamente voltada ao "dinheiro" (para gastar), mas para "sobreviver" (o que pode, com termos diferentes, significar a mesma coisa).
Os dados obtidos no estudo (Goulart, 2006) indicam que metade dos inquiridos na amostra brasileira valoram o dinheiro como resultado do trabalho, o que revela uma forte ideia sobre seu caráter instrumental. Algo que parece distanciar-se do que ocorrera em amostras recolhidas nos anos oitenta, quando ainda predominava o paradigma fordista (Blanch, 1986, 1990; Blanch & Salleras, 1987; MOW, 1987).
Considerações finais
Em um balanço final, a partir dos estudos descritos, podemos dizer que o trabalho, fruto de uma construção social, está relacionado na modernidade à instituição emprego, e o significado do trabalho, por sua vez, está subordinado às condições em que os indivíduos o exercem. Pode-se inferir que na cultura fordista o significado do trabalho configura não só uma forma de satisfazer necessidades econômicas e materiais, mas também representa um meio de regular trocas comerciais de bens e serviços (contexto fundamental das relações interpessoais), eixo vertebral na vida das pessoas, cidades e nações (Blanch, 1996).
No pós-fordismo, comumente o trabalho se restringe a uma natureza instrumental direcionada a fins econômicos, para os cidadãos com parcos níveis de proteção social e ameaçados pela perda das condições mínimas de segurança e proteção. Os dados obtidos indicam ainda que o trabalho assalariado continua sendo valorado e considerado a principal via para inclusão, coesão social e integração.
No momento atual, o significado do trabalho parece refletir um modelo de incerteza, descontinuidade e vulnerabilidade social e exigir a pulverização dos modos de pensar, visualizar e enfrentar o futuro laboral.
Os preceitos neoliberais que embalam o atual mundo do trabalho preconizam uma maior autonomia (individual), em detrimento de menores recursos (e direitos) de proteção social (coletivos), e tendem a precarizar as relações e as condições de trabalho. Essa realidade reforça o comportamento individualista do homem sujeito no pós-fordismo, o qual busca no consumo uma forma de obter satisfação pessoal.
Referências
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Endereço para correspondência
patricia.mg@globo.com, pmg@unesc.net
Recebido em: 21/05/2008
Revisado em: 31/10/2008
Aprovado em: 05/11/2008
1 Psicóloga. Doutora em Psicologia Social pela Universidade Autônoma de Barcelona. Docente dos cursos de graduação e de pós-graduação em Psicologia e Economia da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC).
2 Meaning of Work International Research Team.
3 Tese de doutorado orientada por Josep Maria Blanch (Universidade Autônoma de Barcelona).