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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.16 no.1 São Paulo jun. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Prática de gestão e controle da subjetividade dos trabalhadores: a ideologia de encantamento em uma empresa de varejo

 

Practice management and control of the workers' subjectivity: the ideology of enchantment in a retail company

 

 

Ana Carolina Horst1; Lis Andréa Pereira Soboll2; Édna Cicmanec3

Universidade Federal do Paraná (Curitiba, PR)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta um estudo de caso realizado em uma empresa do ramo de varejo e aborda a relação entre as práticas de gestão organizacionais e o controle da subjetividade dos trabalhadores. A pesquisa é de natureza qualitativa e está fundamentada em observações, entrevistas, registros fílmicos e análise documental. Os dados foram analisados de acordo com a técnica de análise qualitativa de conteúdo proposta por Bardin. A discussão teórica fundamenta-se nas contribuições de autores da Psicossociologia e da Economia Política do Poder. Destacam-se, na empresa estudada, as seguintes práticas que envolvem subjetivamente o trabalhador com a organização: (i) processo de imersão para integração; (ii) rituais de inauguração das novas filiais, com elaboração de hinos pelos próprios trabalhadores; (iii) internalização das normas e regras de conduta, pela participação dos trabalhadores na construção das políticas de encantamento e pela repetição dos objetivos e valores organizacionais; e (iv) elaboração de livros com as histórias de sucesso que imprimem uma formatação da subjetividade ao destacar um ideal comportamental. Como principais resultados, o estudo destaca a efetividade das práticas de controle da subjetividade que focam o engajamento e o envolvimento sedutor e perverso dos trabalhadores pela organização, além da adesão dos trabalhadores via ideologia do encantamento, que se assemelha a uma instância "religiosa".

Palavras-chave: Práticas de gestão, Controle da subjetividade, Psicossociologia, Ideologia, Encantamento.


ABSTRACT

This paper presents a case study of a retail company and approaches the relationship between organizational management practices and the control of workers' subjectivity. The research is qualitative and is based in observations, interviews, video records and analysis of documents. The collected data were analyzed following Bardin's proposal for qualitative content analysis. The theoretical discussion is grounded on the contributions from authors of Psychosociology and Political Economy of Power. Within the researched company, the practices that subjectively involve the worker with the organization are: (i) process of immersion for achieving integration between workers; (ii) rituals for inaugurating new branch offices, with anthems composed by the workers themselves; (iii) internalization of norms and rules of conduct through the participation of workers in the creation of policies of enchantment and through the systematic repetition of organizational objectives and values; and (iv) production of books with stories of success, shaping the subjectivity by evidencing an ideal behavior. The main result of this essay is to highlight the effectiveness of practices for controlling the subjectivity that reinforce both the involvement and the seductive and perverse engagement of workers with the organization, and their adherence through an ideology of enchantment which resembles a "religious" instance.

Keywords: Management practices, Subjectivity control, Psychosociology, Ideology, Enchantment.


 

 

Introdução

O contexto competitivo que envolve as organizações capitalistas, aliado à busca constante pela elevação dos padrões de excelência, tem conduzido tais empresas a promoverem esforços cada vez maiores para reduzir os custos, diminuir o tempo de produção e, consequentemente, ampliar a lucratividade. Ocorre que, na busca incessante por resultados, essas organizações têm usado estrategicamente a gestão da subjetividade dos trabalhadores como forma de atingir seus objetivos (Alves, 2007; Enriquez, 2006; Faria, 2004; Gaulejac, 2007; Pagès, Bonetti, Gaulejac & Descendre, 1987; Sennett, 2001).

Alves (2011) afirma que o espírito toyotista, enquanto ideologia do capital, dissemina, consolida e explicita sua capacidade de controle social por meio de três dimensões distintas da reestruturação produtiva: (i) inovações tecnológicas – tecnologia, robótica, telemática – aliadas ao aumento da concorrência e da massificação do consumo, acompanhadas de processos produtivos e organizacionais que visam obter o máximo da capacidade produtiva de cada trabalhador (Alves, 2007, 2011; Faria, 2004); (ii) inovações organizacionais, em que o controle e a mobilização da subjetividade dos trabalhadores aparecem enquanto ferramentas de gestão, uma vez que "é a 'alma' do indivíduo que é chamada para a produção" (Lazzarato & Negri, 2001), configurando a cooperação complexa da nova produção capitalista (Alves, 2011); e (iii) as inovações sociometabólicas, entendidas enquanto matrizes analíticas portadoras de múltiplas formas de precarização, objetiva e subjetiva, da força de trabalho (Alves, 2011).

Diante desse contexto, em que as organizações articulam estratégias que empregam métodos instrumentais práticos e ferramentas de controle psicológico, a subjetividade dos trabalhadores passa a ser controlada e mobilizada por meio de mecanismos poderosos e sutis, que têm como finalidade última aumentar sua produtividade e lucratividade, independentemente do custo que isso represente aos trabalhadores envolvidos em seus processos.

De acordo com Faria (2004), esse tipo de controle evidencia que as organizações reconhecem a existência e a importância da subjetividade para a produção. Tal ação explicita que os instrumentos de gestão e os dispositivos de informação e de comunicação dessas organizações estão revestidos por uma visão de mundo que corrobora os ideais da ideologia gerencialista, descrita por Gaulejac (2007).

Para Gaulejac (2007), a ideologia gerencialista preenche o vazio ético do capitalismo, uma vez que o poder contemplado pelo mesmo se desenvolve mediante um movimento duplo de abstração e de desterritorialização do capital. Sob essa orientação, a prática da gestão se perverte em função do favorecimento de uma visão de mundo na qual o humano é convertido em um recurso a serviço da empresa. Nesse contexto, "os negócios se desenvolvem, a ética de resultado substitui a moral, o projeto capitalista procura em si mesmo sua própria finalidade" (Gaulejac, 2011).

Reconhecer e analisar as práticas de gestão nesse momento histórico do trabalho permite compreender as relações que se estabelecem entre indivíduo e organização, tendo em vista que estas se configuram como mecanismos privilegiados de controle da subjetividade dos trabalhadores (Pagés et al., 1987). Permite também destacar as relações de poder que submetem os sujeitos de forma política, econômica, ideológica e psicológica ao processo dominante do sistema do capital (Faria & Meneguetti, 2011).

Este artigo apresenta um estudo de caso realizado em uma loja de departamentos que atua em diversos estados do país. O estudo aborda especificamente a relação existente entre as práticas de gestão organizacionais e o controle da subjetividade dos trabalhadores. O objetivo principal deste estudo é identificar, a partir da perspectiva da Psicossociologia e da Economia Política do Poder, como as práticas de gestão empreendidas no interior da organização possibilitam um controle ideológico-comportamental dos trabalhadores. Para tanto, o texto apresenta inicialmente uma breve revisão teórica sobre o controle da subjetividade no trabalho. Em seguida, é feita a descrição da metodologia utilizada para a realização da pesquisa. Os resultados da pesquisa e a análise dos resultados são apresentados no terceiro item de modo articulado e contínuo, relacionando dados da pesquisa com análise teórica, revelando, dessa forma, os mecanismos de controle da subjetividade utilizados na organização pesquisada.

 

Estratégias de controle da subjetividade no trabalho

Os instrumentos de gestão não são uma simples "abordagem racional da realidade", e também não são neutros, uma vez que "são construídos sobre pressupostos raramente explicitados, lógicas implícitas que se impõem por meio de regras, de procedimentos, de ratios e de indicadores que se aplicam sem que haja possibilidade de discutir sua pertinência" (Gaulejac, 2007, p. 100). No mesmo sentido, Pagès et al. (1987) atestam que os dispositivos de gestão e a ideologia estão indissoluvelmente ligados e têm como finalidade fazer que os trabalhadores internalizem normas de conduta e princípios que as legitimam dentro da organização. No modelo toyotista de produção, a "mecanização" atinge o corpo e a mente do homem produtivo, caracterizando uma "subjetividade às avessas" (Alves, 2011), permitindo que não somente o corpo, mas também a mente do trabalhador, sejam utilizados de acordo com a racionalidade instrumental do capital.

A partir desses instrumentos racionalizados de gestão, que não deixam margem para questionamentos ou discussão, as organizações promovem a construção de valores, induzem hábitos e modelam comportamentos que facilitam o controle dos trabalhadores de acordo com os interesses da própria instituição (Gaulejac, 2007). Assim, são construídos instrumentos que subjugam os sujeitos à lógica da empresa, por meio de relações totalmente assimétricas, nas quais prevalecem interesses particulares, com a utilização de um discurso coletivo que dissimula os reais interesses e objetivos promovidos pelas práticas da companhia (Faria & Meneguetti, 2011).

As organizações, por meio de suas práticas de gestão, buscam o primado dos objetivos financeiros, a produção da adesão e a mobilização psíquica. Dessa forma, esperam de seus empregados "uma implicação subjetiva e afetiva" (Gaulejac, 2007, p. 108), que deve ser aplicada sobre a própria companhia, "personificada" com o objetivo de que a energia libidinal de seus empregados seja convertida em força de trabalho. Logo, a empresa apresenta-se ao trabalhador como um ente com o qual este possa identificar-se e satisfazer-se, isto é, a organização propõe ocupar o lugar de "mãe onipotente" (Faria, 2004), "satisfazendo seus fantasmas e seus desejos de sucesso" (Gaulejac, 2007, p. 117), culminando em uma adesão total e uma mobilização psíquica intensa do sujeito para com a instituição.

Para tanto, desde o início do processo, já na seleção de pessoal, são procurados funcionários que tenham valores individuais próximos aos valores da organização (Gaulejac, 2007). Os candidatos são submetidos a um sistema, e não a outros indivíduos no momento dessa seleção, afirmam Pagès et al. (1987). A responsabilização dos trabalhadores pelos resultados esperados pela empresa e pela elaboração de normas também é uma prática que gera a adesão. Sentir o poder nas mãos, e não ser meros cumpridores de ordens, motiva os trabalhadores a dedicarem-se mais pelo sucesso ilusoriamente pessoal e efetivamente organizacional (Gaulejac, 2007).

Nessa atmosfera artificialmente elaborada, os trabalhadores não estão ligados à organização por um mecanismo de coerção; é a dependência psíquica, apoiada em processos de projeção, idealização, angústia e prazer, isto é, processos de mobilização psíquica, que liga os trabalhadores à empresa. Na concepção de Gaulejac (2007), é essa carência de afetos que permite que os empregados se dediquem fielmente a satisfazer os "desejos" da organização. "O indivíduo espera da empresa que ela favoreça sua realização, e a empresa espera do indivíduo que ele dê sua adesão total a seus objetivos e a seus valores" (Gaulejac, 2007, p. 229).

Faria e Meneguetti (2007, p. 50) afirmam que o que ocorre é um "sequestro da subjetividade" dos trabalhadores, em que os mecanismos de gestão do processo de trabalho atuam impedindo que os sujeitos se apropriem da realidade e elaborem seus saberes, "ficando à mercê dos saberes e valores produzidos e alimentados pela organização sequestradora". Alves (2011, p. 114) define essa mesma prática com o nome de "captura da subjetividade", definindo-a como um "processo intrinsecamente contraditório e densamente complexo, que articula mecanismos de coerção/consentimento e de manipulação", mobilizando as instâncias consciente e inconsciente do psiquismo humano.

Portanto, as estratégias de gestão estão organizadas de modo a oferecer soluções para as contradições psicológicas individuais e interindividuais. Desse modo, os trabalhadores aceitam e introjetam os princípios, os valores, as ameaças e os prazeres oferecidos pela organização. "[As empresas] permitem ao indivíduo defender-se da angústia, lhe propõem um sistema de defesa sólido, socialmente organizado e legitimado pela sociedade" (Pagès et al., 1987, p. 39-40).

Esses mesmos autores entendem que são, portanto, os sentimentos de segurança e de poder que facilitariam a adesão dos trabalhadores às regras, aos princípios e aos valores da organização. "Oferecendo um sistema de crenças, um ideal de vida, concretizado por regras e procedimentos, a organização não faz senão responder a uma necessidade profundamente enraizada no indivíduo." (Pagès et al., 1987, p. 158) Por meio da adesão a esse sistema que responde a necessidades inerentes dos indivíduos, os trabalhadores encontram energias para se dedicar de "corpo e alma" ao seu trabalho, e a adesão dos trabalhadores constitui-se em um elemento fundamental para a dominação da empresa e alienação dos trabalhadores, concluem os autores.

O individualismo, característica tão marcante da sociedade atual, exacerbado pela lógica de competitividade, do sucesso, da flexibilidade, da urgência, da instabilidade, da fluidez, da dinamicidade (Enriquez, 2006; Faria, 2004; Sennett, 2001), desestrutura a solidariedade e gera a cisão do coletivo (Dejours, 1999), dificultando a formação de vínculos dentro e fora do ambiente de trabalho (Horst, Cavallet, Pimenta & Soboll, 2011). A organização se aproveita dessa carência do trabalhador e se apresenta a este enquanto instrumento de poder e de satisfação. "A necessidade de ser aceito, protegido e amado é refletida na relação que o indivíduo tenta estabelecer com a organização" (Faria & Meneguetti, 2007, p. 55).

O deslocamento dos objetivos econômicos para o plano psicológico serve como uma espécie de ferramenta estratégica para as organizações. Por meio desse tipo de mecanismo, a empresa oferece aos trabalhadores a oportunidade de trabalhar por um objetivo mais nobre que o dinheiro – trabalhar para ser um vencedor. O sucesso dentro da organização torna-se, assim, um ideal para o sujeito, afirmam Pagès et al. (1987).

Acreditando que estão realizando projetos de interesse pessoal e que sua subjetividade está sendo reconhecida, os indivíduos, na verdade, estão a serviço da produtividade e do lucro da organização, colocando seu potencial à disposição do capital (Enriquez, 2006; Pagès et al., 1987). O trabalhador é "instrumentalizado para serventia dos objetivos financeiros, operatórios" (Gaulejac, 2007), enquanto acredita ser em grande parte autônomo (Enriquez, 2006).

Para atingir tais objetivos, as organizações se utilizam daquilo que Faria e Meneguetti (2011) conceituam como "dissimulação discursiva", isto é, a organização propõe uma estrutura discursiva falaciosa na qual os sujeitos acreditam, mas que, em realidade, não corresponde ao enunciado, e, sim, aos objetivos capitais da empresa. Nesse sentido, Alves (2011) afirma que "a organização toyotista do trabalho capitalista possui uma densidade manipulatória de maior envergadura" (p. 111).

Dentro dessa lógica, as práticas de gestão da organização pesquisada evidenciam como são instrumentalizados os mecanismos de poder e de controle da subjetividade dos trabalhadores envolvidos em seus processos. Para a realização da pesquisa, foram utilizados os procedimentos metodológicos descritos a seguir.

 

Procedimentos metodológicos

O estudo que originou este artigo utilizou-se de dados secundários, de natureza qualitativa, coletados em uma loja de departamentos, aqui denominada de CRM. Inicialmente, tais dados foram coletados e tratados por uma das autoras e subsidiaram a realização de uma pesquisa de mestrado (Cicmanec, 2009), a qual foi realizada a partir de dados primários coletados por meio das técnicas de entrevista semiestruturadas, observação não participante, visitas técnicas, registros fílmicos e análise documental.

Posteriormente, para esta pesquisa, obteve-se acesso ao relato original das entrevistas e da observação participante, na íntegra, assim como aos registros fílmicos utilizados na pesquisa original. Os documentos analisados compreendem o manual de boas práticas (chamado de Histórias de Encantamento), cedido pela gerência, e o website da organização, na ocasião da pesquisa realizada por Cicmanec (2009). Os documentos permitiram conhecer as estratégias organizacionais, bem como detalhes da atuação gerencial sobre os grupos de trabalhadores, servindo, assim, como base para as investigações que sucederam.

Foram realizadas três entrevistas individuais semiestruturadas com funcionários do nível operacional da empresa devidamente selecionados pelo critério temporal (estar na filial desde o início de sua operação e ter passado pelo processo de imersão e treinamento) e, também, por acessibilidade e adesão. O conteúdo das entrevistas – registradas por meio de áudio e vídeo e posteriormente transcritas – abordou questões relativas às atividades desenvolvidas pelos trabalhadores, bem como aspectos da prática de gestão da organização. O tempo utilizado para as entrevistas variou entre vinte minutos e uma hora, de acordo com a disponibilidade dos participantes. Durante a observação não participante, a pesquisadora (devidamente autorizada pela gerência da filial) registrou a realização de duas reuniões que precedem o início do trabalho das equipes. Os encontros são parte formal da rotina diária da filial, envolvem colaboradores, supervisores e gerentes e têm como objetivo divulgar a todos os resultados individuais e coletivos conquistados na data anterior, bem como comunicar aos colaboradores as pretensas metas do dia de trabalho que se inicia. As visitas técnicas e demais observações foram registradas na forma de diário de campo. Os registros fílmicos cedidos pela gerência da organização contemplam as formalidades da inauguração da filial pesquisada.

Na fase da análise dos dados, foi empregada a técnica de análise de conteúdo proposta por Bardin (1977). A análise seguiu as etapas propostas pela autora: (i) As descrições foram lidas e categorizadas, considerando a ênfase e a relevância dos temas dominantes encontrados nos dados coletados – o que consistiu na fase de pré-análise e resultou na definição da questão a ser estudada na pesquisa. As práticas de gestão da organização e o controle da subjetividade dos trabalhadores foi o tema escolhido, a posteriori, como foco da pesquisa; (ii) Na fase de descrição analítica, foram escolhidos os pontos recorrentes, que são as categorias de análise e que circundam e esclarecem o tema principal; (iii) Somente após essas duas fases, foi desenvolvida a análise propriamente dita, na qual as categorias encontradas foram interpretadas a partir de fundamentos da teoria.

 

Política de encantamento e controle organizacional – resultados e discussão

As características da gestão que refletem a reestruturação produtiva – tais como a busca do "engajamento estimulado" do trabalho e a ideologia do autoempreendedorismo, descritas por Alves (2007, 2011), a proposta de autonomia controlada, descrita por Sennett (2001), e a lógica da mobilidade perpétua de Pagès et al. (1987) – têm levado a organização a se interessar, como nunca, pelas crenças, pela interioridade e pela personalidade dos trabalhadores, com o objetivo de moldar o mais íntimo do sujeito aos padrões da organização, de modo que este responda às suas demandas produtivas, afirma Alves (2011).

Pagès et al. (1987), em um estudo acerca das estratégias de gestão de uma organização hipermoderna, apontam para a ocorrência de um domínio ideológico sobre os trabalhadores. Neste estudo, os autores identificaram os processos pelos quais a organização "responde às mais profundas expectativas dos empregados, à sua 'necessidade de crer' [...] na medida em que participam (os funcionários) da sua elaboração, em um vasto processo de autopersuasão" (Pagès et al., 1987, p. 74), por meio de dispositivos de gestão explícitos, reforçando a dominação e a exploração dos trabalhadores. A empresa é como uma "religião" para os trabalhadores, em que a dedicação a um objeto de culto surge enquanto satisfação de uma necessidade inerente de crença dos sujeitos.

Tal estratégia organizacional é exitosa na medida em que os sujeitos do trabalho estejam alienados não somente com relação a sua força de trabalho, mas também no que se refere aos âmbitos político e psicossocial de suas ações:

As novas condições de trabalho impostas pela reorganização e pelo desenvolvimento das forças produtivas passam a ser aceitas como naturais por se constituírem em práticas comuns da sociedade. Daí decorre que a alienação invade o mundo do trabalho não apenas em seu aspecto econômico, mas político e social. [...] No entanto, é necessário considerar que a violência não é originária da falta de consciência dos trabalhadores em função do condicionamento que os leva a serem explorados. Ao contrário, é a lógica do sistema de capital que faz dos indivíduos alienados tanto dos objetos de criação (dos resultados de seus trabalhos) quanto de sua consciência política e psicossocial. (Faria & Meneguetti, 2011, p. 5).

Nesse contexto de alienação, são cada vez mais utilizadas a dominação e a manipulação por meio de estratégias de gestão que sequestram a subjetividade dos trabalhadores. Uma das características do processo de mediação das organizações é o desenvolvimento da organização como um lugar autônomo de produção ideológica, criando-se uma espécie de religião da empresa que articula e legitima suas práticas, conforme descrevem Pagès et al. (1987). A CRM, da mesma forma, é identificada pelos entrevistados como uma "religião". A organização propõe a criação de um sistema religioso, fundamentado em crenças, ritos e uma hierarquia que serve a um deus, encarnado pela organização e seus representantes. Por meio das estratégias de gestão, a empresa torna-se um lugar de produção de conceitos e de valores que justificam as práticas desenvolvidas. Assim, a "contribuição do indivíduo para a produção depende em grande parte de sua integração ideológica" (Pagès et al., 1987, p. 74).

Desse modo, as políticas de gestão de pessoal, como dispositivos operacionais, têm a função de interiorizar certas condutas e princípios que as legitimam, de maneira que "dispositivos operacionais e ideologia estão indissoluvelmente ligados" (Pagès et al., 1987, p. 98), replicando tais posicionamentos por meio de rituais que multiplicam os momentos e os lugares de difusão dessa ideologia que reconhece a grandiosidade do sujeito que com ela se identifica.

Na organização pesquisada, a "nova" religião desenvolvida está fundamentada em uma política de encantamento e é difundida por meio de práticas que compõem as estratégias de gestão de pessoas: imersão para integração, rituais de inauguração de novas lojas, rituais de avaliação e histórias encantadoras. Tais estratégias serão analisadas pela ótica da ideologia religiosa tal como descrita por Pagès et al. (1987), a partir dos ritos religiosos. A descrição dos rituais da CRM e a análise teórica estão organizadas em quatro categorias: (i) o batismo, como imersão para integração; (ii) a missa, observada pelos rituais de inauguração das novas filiais; (iii) a liturgia, proposta por meio da internalização das normas e regras de conduta; e (iv) os manuais de direito canônico, expressos por meio dos livros com as histórias de sucesso.

Na CRM, o "engajamento" dos trabalhadores é decorrente de um conjunto de rituais que geram a adesão aos objetivos de produtividade da organização, ao mesmo tempo que oferece um projeto com o qual o trabalhador pode se identificar e se dedicar. A organização propõe uma política de atendimento excelente, a qual pretende que o trabalhador vá além, faça o que não se espera, surpreenda, encante o cliente. As práticas de gestão são um mecanismo que busca "dar vida" a esta "filosofia".

O batismo: imersão para integração

Os trabalhadores contratados pela organização passam por uma fase de seleção, treinamento e ambientação na empresa visando a composição das equipes das lojas que estão por inaugurar. Após uma etapa classificatória (promovida por testes de conhecimento), os funcionários permanecem reunidos em imersão durante alguns dias em um local determinado pela organização, participando de dinâmicas e palestras. Nesse processo, o novo funcionário conhece melhor a empresa, sua história, princípios, valores, regras e sistemas e passa por algumas atividades coletivas a fim de promover sua interação com os demais funcionários. Entre as atividades propostas para os novos funcionários da organização está a composição de uma música que será o hino da nova filial.

Para Pagès et al. (1987), a identificação com a ideologia da empresa é facilitada na medida em que os funcionários participam da sua elaboração, contribuindo, eles mesmos, para sua submissão. Na CRM, constata-se esse processo pela colaboração dos trabalhadores na criação das referidas canções, facilitando a internalização das regras e a submissão aos mecanismos de controle.

Um trabalhador explica esse processo:

Na época do treinamento inicial, a gente ficava dez dias no hotel. E desde o primeiro dia, eles pediram que fizéssemos um hino para apresentar aos clientes e ao presidente da organização no dia da inauguração da loja. E temos várias músicas. Música de tudo o que você possa imaginar (sexo masculino, 20 anos, atendente – produtos financeiros, 11 meses de empresa).

Estes programas têm como propósito favorecer a internalização das regras, dos controles e dos princípios da organização, a partir de um ritual de iniciação, como em uma religião. A forma mais eficaz de controle é a autopersuasão, pois parte de uma escolha pessoal, de uma participação voluntária no processo. Dessa forma, a cobrança não se dá de forma direta, mas associada a outros interesses dos trabalhadores, como visibilidade para obter reconhecimento e sucesso na organização (Pagès et al., 1987).

A elaboração de músicas pelos trabalhadores em diversos rituais promove a internalização dos valores e a cumplicidade na sua difusão, ao mesmo tempo que propicia ao trabalhador um espaço de reconhecimento pelos pares e diferenciação no coletivo, aos olhos dos superiores, reforçando a ideia de que a organização atende às expectativas dos seus trabalhadores (Dejours, 1999). Ocorre aquilo que Faria e Meneguetti (2011) apontam como a manipulação de símbolos e fantasias decorrentes de expectativas, de desejos de reconhecimento e de idealizações próprias da condição humana.

A organização espera que seus colaboradores, por meio da internalização das regras estabelecidas – via identificação organizacional –, busquem, incessantemente, alcançar os objetivos propostos por ela. Para tanto, a política de encantamento dos clientes está estruturada de modo a promover o encantamento e a sedução dos trabalhadores pela organização, por um processo de imersão em uma nova cultura, de acordo com os objetivos da empresa.

Nós temos que fazer as coisas muito mais rápido, de uma forma muito mais eficiente. Nós vamos ter que atender nas nossas lojas como nunca atendemos. Nós vamos ter que encantar como nunca encantamos (sexo masculino, aproximadamente 45 anos, presidente da organização CRM, mais de quinze anos de empresa).

Finalmente, como orientação, a organização CRM tem os seguintes valores: encantar é nossa realização. Nos colocamos no lugar de nossos clientes, fazendo por eles tudo aquilo que gostaríamos que fizessem por nós. Devemos entender seus desejos e necessidades, exceder suas expectativas e, assim, encantá-los. Não somos meros trabalhadores, somos encantadores de clientes (site da organização CRM).

Desse modo, a "lei não precisa ser imposta de fora, pois está interiorizada: o 'você deve' dá lugar ao 'é preciso'" (Sennett, 2001, p. 160). Não é necessário que alguém diga o tempo todo o que cada um deve fazer, uma vez que a vontade de ser uma pessoa encantadora, que supera as expectativas, é fonte de desejo desses trabalhadores. O trabalhador se submete ao projeto organizacional como se este fosse seu e, assim, tem sua autonomia sequestrada por um contrato psicológico inconsciente (Faria & Meneguetti, 2011).

A missa: inauguração de novas filiais

Os eventos de inauguração de novas filiais da empresa têm status de grande "espetáculo": reúnem-se diversos gerentes das linhas superiores da empresa, funcionários de outras filiais que ocupam posições hierárquicas de destaque, celebridades da sociedade local (políticos, empresários etc.) e a equipe de trabalho. A organização procura ainda, quando possível, contar com a presença do seu presidente.

Na inauguração, todos os convidados vindos de outras filiais fazem seu discurso, contam suas histórias e reafirmam a importância da contribuição dos funcionários no cumprimento de suas obrigações, na superação de metas, na busca frequente de recursos para a empresa e do entendimento de que fazem parte de algo especial, uma vez que são considerados "pedras brutas"4 cuja lapidação é promovida pela organização. É como se houvesse sacerdotes destinados a repassar aos seguidores as doutrinas defendidas pela "religião" e as condutas esperadas dos mesmos.

O processo de "deificação da organização" é apresentado nos estudos de Pagès et al. (1987), que destacam a descrição da organização como uma entidade suprema que enuncia grandes princípios, como um ente criador de todas as coisas, um modelo de conduta aos seus próprios sujeitos, "criados à sua imagem e semelhança". Na organização estudada, esse processo aparece nos dispositivos que fazem crer que participar de tal "religião" é um privilégio que transforma pedras brutas em peças lapidadas. Em um evento de inauguração, um gerente de loja explicita a expectativa depositada sobre os novos colaboradores:

Agora chegou a hora de dar resultados. A festa é muito legal, até aqui tudo foi divertido, mas, a partir de agora, esta unidade precisa dar lucro. É isso que a diretoria espera, é isso que vocês vieram fazer aqui. Temos de pensar em ser, daqui pra frente, a melhor unidade da empresa, a melhor unidade das Américas. Precisamos superar todas as metas. Já tive uma demonstração de que vocês têm condições, vocês mostraram isso no período de treinamento (sexo masculino, 45 anos, gerente de vendas, mais de dez anos de empresa).

O diretor de operações da CRM, no discurso de inauguração da unidade, aponta:

Com a ajuda dos nossos colegas, do RH, de lideranças da loja, tivemos a chance de garimpar 60 pedras preciosas brutas, que são vocês, os novos colaboradores da CRM. Estamos, desde então, começando a lapidar essas pedras. Assim começa nossa política de encantamento. [...] Trabalhadores comprometidos, que realmente tenham dentro do seu espírito o desejo de encantar, terão muito sucesso na família da CRM (sexo masculino, 45 anos, diretor de operações, mais de quinze anos de empresa).

No fim do evento, os funcionários e a equipe de gerência da filial se reúnem para apresentar diversos cânticos, com dança coreografada, que exaltam os princípios, as regras e as crenças da organização, como a força da equipe, o comprometimento de todos e a imagem da organização. As músicas feitas pelos funcionários durante o processo de treinamento demonstram a medida de adoração desses colaboradores. Nesse sentido, participar da organização já é um privilégio, segundo Gaulejac (2007).

Destaca-se um trecho de uma das músicas elaboradas pelos colaboradores da CRM:

Vem chegando um novo dia. Chega de mágoas, tristeza, esqueça o lado negativo, abra o seu coração. Não esconda sua alegria quando supera fraquezas e descobrir que não está sozinho não […].

Encantar é fazer o que não se espera. Encantar é ver o que ninguém enxerga. Encantar é mostrar muita vontade. Encantar é vida com humildade.

É fácil de ser contagiado, lembra uma filosofia, parece uma religião é nosso jeito de atender. Encante e será encantado, é como uma magia, trate todos como irmãos, vêm ver pra crer.

A internalização das regras da "religião" CRM fica evidente por meio das letras das músicas. A empresa é colocada como aquela que proporcionará felicidade para a vida dos funcionários, apontando para a submissão às regras colocadas. A deificação da organização é expressa pelos "colaboradores" na medida em que assumem tudo aquilo que é proposto pela organização como uma ordem suprema, afirma Pagès et al. (1987).

Só pelo fato de enunciar grandes princípios, a organização erige-se em entidade suprema, em sujeito da história, em princípio ativo da criação. As crenças postulam que é a própria organização que tem consideração pelas pessoas, oferece o melhor serviço e realiza todas as tarefas com cuidado da perfeição. [...] Ao se instituir como sujeito princípio de todas as coisas, a organização se propõe como modelo de conduta a seus próprios sujeitos, como Deus criou o homem à sua imagem, pois é a seus membros que ela se dirige antes de tudo (Pagès et al., 1987, p. 85).

Com relação ao comparecimento do presidente da organização a algumas inaugurações de novas unidades, diz uma funcionária:

Eu quase desmaiei quando ele veio aqui. De repente chegou a gerente e falou: "A., você viu quem ta lá fora? Não é o E. (diretor); é o G. (presidente)". Eu respirei e fiquei assim (expressão de falta de sentido, desorientação), aí ele me chamou pra tirar foto com ele porque ele ficou encantado comigo (sexo feminino, 21 anos, atendente/caixa, 11 meses de empresa).

A organização ganha o status de entidade suprema que premia seus seguidores ao conceder que representantes apareçam encarnados ou personificados nas filiais da empresa (Enriquez, 1994; Pagès et al., 1987).

A liturgia: internalizando o sistema de avaliação

Outra prática de controle ritualizada adotada pela CRM é o "cliente surpresa". Esta prática é uma espécie de avaliação inesperada a que todos os funcionários da empresa estão sujeitos durante seu horário de trabalho, na qual um membro externo (consultor), que se passa por um cliente normal, avalia se o colaborador está cumprindo as orientações da empresa como fora estabelecido.

Por meio desse processo de avaliação, os colaboradores devem externar toda a "liturgia" proposta pela organização, apresentando, no dia a dia, ações que demonstrem quanto são obedientes às propostas da empresa e aos seus valores já internalizados. Na ação, o consultor "travestido" de cliente observa a "atuação" do funcionário (como se comporta, qual é a qualidade do seu atendimento, como estão as condições gerais de seu espaço de trabalho, sua aparência, comunicação, agilidade, entre outros aspectos). Ainda em sigilo, o consultor deixa a loja, e os funcionários não sabem exatamente em que momento e por quem estão sendo avaliados. Instala-se aí uma estratégia de controle permanente, com a semelhança de um panóptico (Foucault, 1977), diante do qual o trabalhador está constantemente sendo vigiado pela possibilidade de avaliação, instituindo um comportamento padronizado e docilizado. A percepção dos trabalhadores com relação a essa prática da empresa é ilustrada pela fala de uma entrevistada: "A CRM seleciona um profissional para que ele avalie o nosso atendimento. Nós temos de ficar o dia inteiro sorrindo" (sexo feminino, 18 anos, atendente, 11 meses de empresa).

Como resultado da avaliação do "cliente surpresa", é enviado à gerência geral da organização um relatório com a nota atribuída ao funcionário e à filial onde ele trabalha. De acordo com a avaliação feita pelo "cliente oculto", é atribuída uma "nota" para o setor do funcionário pesquisado. Se o atendimento prestado foi considerado adequado (cumpre as exigências da organização), o setor recebe uma carinha verde5; a carinha amarela é atribuída a um atendimento intermediário, que descumpre alguns itens de qualidade estabelecidos pela organização; a carinha vermelha corresponde à avaliação de que o atendimento prestado não cumpre grande parte dos itens exigidos; e, por fim, a carinha roxa significa que o funcionário não estava disponível para atender ao cliente no momento. Essa modalidade de avaliação aponta para o fato de que, quanto maior é o investimento do indivíduo dentro da organização, maior é a dominação desta sobre ele, afirma Pagès et al. (1987).

O relato de uma das entrevistadas ilustra esta relação:

Se o colaborador oferece ajuda, não espera o cliente solicitar alguma coisa; se o colaborador procura no estoque algo que o cliente não está encontrando na loja, por exemplo, ganha a carinha verde. Se ninguém estiver no setor para atender ao cliente, o setor ganha a carinha roxa, que é a pior de todas! (sexo feminino, 18 anos, atendente, 11 meses de empresa).

Para Sennett (2001), as empresas modernas reconhecem seus trabalhadores por uma medida objetiva, embora estas sejam fundamentadas em um controle subjetivo, que passa pela internalização das práticas organizacionais como modelos inquestionáveis que subsidiam a aceitação dos critérios de desempenho dados pela organização (Gaulejac, 2007), muitas vezes centrados em resultados parciais e distantes do trabalho efetivamente realizado.

Segundo Sennett (2001), essa concepção, que se pretende racional, tende a reconhecer o indivíduo apenas em função de sua utilidade para a organização – medida por meio da avaliação quantificada de seu rendimento e de sua adaptação às regras e aos mecanismos que veiculam as exigências do sistema. Instaura-se o totalitarismo, a homogeinização da forma de um pensar coletivo. "Não há a possibilidade da multiplicidade das visões de mundo, de onde decorre a alienação a qualquer modelo de pensamento diferenciado" (Faria & Meneguetti, 2011, p. 9).

É um aspecto de controle do rendimento dos trabalhadores segundo um sistema pré-definido que canaliza o máximo de energias em prol da organização.

Ele é encorajado e sustentado não apenas por seu gerente, mas também pelo sistema que valoriza, através de boas notas, boas apreciações, todo dispêndio de energia que seja "no bom sentido", e desvaloriza aquela que é despendida para outros fins (Pagès et al., 1987, p. 105).

As práticas de reconhecimento na CRM são desenvolvidas no nível simbólico. Os colaboradores se sentem felizes porque o supervisor ou gestor os elogia em reuniões, ou durante o horário de funcionamento das unidades pelo sistema de som. Uma colaboradora demonstra sua alegria por ter esse tipo de reconhecimento: "Cada vez que você acerta, eles te elogiam, falam no "bocão"6: Parabéns, A., pelo que você fez. Você faz acontecer" (sexo feminino, 21 anos, atendente/caixa, 11 meses de empresa).

A empresa, por meio dessas avaliações, permite que o sujeito se supere, vá além da execução simples e objetiva de uma atividade, dá um sentido à vida dos trabalhadores, oferece a possibilidade de ser reconhecido e amado e de vencer (Sennett, 2001). Os trabalhadores são levados a acreditar que precisam trabalhar muito e bem por um objetivo maior, que é encantar as pessoas, e não para ganhar mais, apontando para o deslocamento do nível financeiro para o nível psicológico de mobilização. Nesse sentido, a organização passa para o indivíduo a ideia de que é ele quem está se superando em sua carreira, quando, na verdade, são os objetivos da organização que estão sendo atingidos (Pagès et.al., 1987).

Porque, sei lá, foi um desafio assim para mim trabalhar com metas. Eu nunca tinha trabalhado com metas até então [...] Fico chateado, desesperado, totalmente estressado, fico tudo. Tudo o que você imaginar. Eu fico mesmo. E daí eu fiquei desesperado, naquele esquema. Meu Deus do céu, eu não acredito que não vai bater a meta (sexo masculino, 20 anos, atendente – produtos financeiros, 11 meses de empresa).

Para Faria e Meneguetti (2007), a necessidade de ser aceito, protegido e amado é refletida na relação que o indivíduo tenta estabelecer com a organização, aceitando seus mecanismos de gestão em troca de pequenas recompensas simbólicas oferecidas aos que superam as expectativas.

Manuais do direito canônico

As histórias encantadoras constam no relato semanal dos trabalhadores, destacando algo a mais que foi feito em favor de um cliente da empresa. Dependendo do efeito ou de como foram realizadas, essas histórias podem fazer parte de um rol de relatos considerados encantadores. A organização já publicou um livro com várias dessas histórias, que foram selecionadas entre mais de dez mil relatos.

No livro, temos a expressão do que significam tais ações realizadas pelos colaboradores: "Histórias de encantamento. Nossa razão de ser. O segredo da felicidade. Quem encanta é encantado".

Nas entrevistas e também nas observações, é possível perceber a preocupação dos funcionários em descrever casos encantadores e também a satisfação daqueles que conseguiram ter suas histórias aprovadas para o livro.

As histórias encantadoras evidenciam a internalização da ideologia da organização CRM pelos trabalhadores. Várias ações relatadas como histórias encantadoras são realizadas em horários em que o trabalhador não está na empresa, isto é, fora de seu expediente de trabalho e/ou com seus próprios recursos, quando abre mão de uma parcela de seu tempo de lazer e/ou de seu salário para este fim. A história relatada ilustra a dissolução das fronteiras do trabalho para a ideologia religiosa do encantamento:

Quando eu estou em algum lugar, por exemplo, dentro do ônibus, e escuto uma conversa assim: "Ah... eu tô precisando de um empréstimo...". Eu digo: "Eescuta, eu trabalho na organização CRM. De repente, se você quiser dar uma passada lá, nós oferecemos esse tipo de serviço...". Eu tô sempre correndo atrás... A minha história de encantamento é resultado de uma ação fora da empresa, eu conquistei um cliente pra CRM... Até hoje essa pessoa vai lá e tudo... Eu trabalho fora do trabalho [risos] (sexo masculino, 20 anos, atendente de produtos financeiros, 11 meses de empresa).

A intensificação do trabalho, portanto, não precisa ser imposta ou cobrada; o próprio trabalhador, por meio da internalização da lógica de autocontrole e pela expectativa de reconhecimento simbólico da organização (Faria & Meneguetti, 2007), trabalha além das oito horas diárias, de modo voluntário, numa relação de exploração consentida.

É importante destacar que "o fazer", neste caso, está atrelado à "visibilidade do que se faz". Nesse sentido, esta prática de gestão atribui sentido às relações sócio-profissionais ao permitir o reconhecimento de sua ação como uma história encantadora. Sendo assim, reforça também o sentimento de pertença a essa "família" organizacional encantada. A ideologia da organização, que leva os funcionários a desejarem seguir regras e normas, também é um mecanismo de difusão da fé, em que os "colaboradores" estariam seguindo os manuais daquela religião (Pagès et al., 1987).

A internalização dos valores da empresa e o reconhecimento se evidenciam no discurso do trabalhador, o qual assume que a política de encantamento o tornou uma pessoa melhor, como no trecho de entrevista transcrito abaixo:

Eu acho que foi coisa da organização CRM, porque desde o momento em que entrei aqui, na primeira reunião do treinamento, onze meses atrás, o nosso lema era encantar. Encantar o cliente, fazer o que ele não espera. Então isso entrou dentro de mim. E entrou dentro de cada colaborador também. Depois que entrei na organização CRM, várias coisas mudaram. A minha visão global, assim, mudou tudo. O mundo pessoal, profissional, tudo mudou. Eu devo bastante à organização CRM, porque ela me proporcionou isso (sexo masculino, 20 anos, atendente – produtos financeiros, 11 meses de empresa).

Sennett (2001) afirma que, "neste universo, o homem é despersonalizado. A medida de suas aptidões e seu potencial 'em si', sua capacidade em se adaptar às normas, planos, quotas, objetivos fixados [...] tomam para ele o lugar de identidade" (p. 118).

Segundo Enriquez (1997), na medida em que se identificam com a empresa, os trabalhadores tornam-se serviçais voluntários, tendo, inclusive, satisfação nessa submissão. Buscar tudo o que seja possível para atender às expectativas da empresa torna-se algo inerente, interno ao colaborador. Sennett (2001) complementa apontando algumas consequências desse processo de internalização para a subjetividade dos trabalhadores:

A mais direta é a introjeção pelos indivíduos das exigências fixadas pela organização. […] De sua parte, o indivíduo submetendo-se totalmente (corpo e alma, como diríamos em outros tempos) trabalha para a organização como se esta fosse ele próprio. Ele acredita que a organização faz parte dele, da mesma forma que ele faz parte da organização, o que o liga ao futuro dela (p. 158).

A organização propõe que o valor da empresa na vida dos colaboradores seja grande ao ponto de ocupar um espaço que transcende o ambiente de trabalho, fazendo que toda a vida do funcionário fique condicionada às especificações colocadas pela organização. Num processo de evangelização, os trabalhadores são levados a internalizar as regras e os valores da empresa e, a partir de então, moldar suas vidas para responder a tais princípios. Os trabalhadores se submetem a um poder condicionado que, na maioria das vezes, não é perceptível, passando a aceitar, admirar e se dispor a regras sem questionar sua validade e legitimidade (Faria & Meneguetti, 2007).

Os colaboradores reconhecem a organização como aquela que "tem consideração pelas pessoas, oferece o melhor serviço e realiza todas as tarefas com o cuidado da perfeição" (Pagès et al., 1987, p. 84), visando o benefício dos colaboradores. Eles se sentem acolhidos por esta "grande mãe" e devedores com relação a todos os benefícios que dela recebem, como evidenciado no relato:

Eu fico imaginando vocês chegando em casa... antes o assunto era futebol, o que eu vou comer à noite, o que tem de almoço, e agora vocês provavelmente devem estar falando muito da organização CRM, não é?!! [...] E deve ser isso mesmo. O maridão querendo dividir alguma coisa com vocês, a esposa, namorado, e vocês ficam falando da organização CRM (sexo masculino, 45 anos, gerente regional, mais de 15 anos de empresa).

A organização incute nos trabalhadores a ideia de que é uma grande mãe para eles, que lhes oferece a possibilidade de, por meio do trabalho, serem reconhecidos como pessoas de sucesso, que têm condições de "encantar" outras. Isso, na visão de Sennett (2001), é um mecanismo de controle em que "o maior objetivo é o de alcançar a adesão, impedir o desvio, o que é alcançado pela oferta de amor (gratificação, reconhecimento) ou pela retirada do amor da mãe (o desprezo pelo fracasso)" (p. 156).

Os colaboradores comprometidos que realmente tenham dentro do seu espírito o desejo de encantar vão ter muito sucesso na família da organização CRM. Quem são os responsáveis por essa lapidação? Eu sempre coloco que os primeiros responsáveis por isso são vocês (sexo masculino, aproximadamente 45 anos, diretor de operações, mais de 15 anos de empresa).

Pagès et al. (1987, pp. 134-135) afirmam que vencer dentro de uma organização é o modo para ser reconhecido, aceito; responde à fantasia de ser "amado" pela organização. "Veremos que este mecanismo contribui para a introjeção da organização pelo Ego: o indivíduo reproduz nele o modelo da organização, visto que ele se estrutura em função deste modelo. Sua necessidade de reconhecimento será satisfeita quando reconhecer a empresa nele, isto é, quando ele não for mais ele mesmo".

As estratégias de gestão organizacionais, apesar de todos os efetivos mecanismos de identificação e de adesão, não estão livres de contradições de ambivalência. Apesar de a organização ser amada e respeitada, há, ao mesmo tempo, um sentimento contrário, em que, de acordo com Pagès et al. (1987, p. 147), "a organização-droga é, ao mesmo tempo, amada e detestada": "Um ambiente que eu amo e detesto ao mesmo tempo", o que é confirmado pela fala de um colaborador: "Não sei se foi bendito ou maldito o dia em que entrei na CRM" (sexo masculino, 20 anos, atendente – produtos financeiros, 11 meses de empresa).

Portanto, ainda que os colaboradores se submetam às regras da organização, internalizem os valores e objetivos da mesma para alcançar sucesso para si e para a empresa, isso não ocorre livre de contradições.

 

Considerações finais

Ao analisar de forma articulada as diversas práticas de gestão da empresa CRM, percebe-se um sistema coeso de controle da subjetividade, que deixa pouca margem para a dominância de valores externos ao da ideologia religiosa de encantamento.

As diferentes práticas de gestão identificadas e descritas evidenciam a adesão dos trabalhadores via controle da subjetividade. A empresa, ao propor uma ideologia religiosa de trabalho, oferece um sentido de vida, que faz o sujeito se descobrir "uma pessoa melhor", quando, efetivamente, a organização busca canalizar afetos e energia psíquica em prol de seus objetivos; oculta e desloca os objetivos financeiros e os substitui por objetivos psíquicos. Essa ideologia religiosa de encantamento transcende as fronteiras da organização e invade a vida e o tempo privados.

Ao pautar-se por um discurso de encantamento do outro, a organização efetiva o encantamento dos trabalhadores, que, sem perceber, reproduzem, colaboram na construção e estimulam essas práticas. O reconhecimento dos pares, dos clientes e dos supervisores renova a adesão e a submissão. O encantamento cega os trabalhadores, que, dedicando-se para surpreender os clientes, não notam as contradições organizacionais e os exageros da ideologia religiosa proposta pela empresa. Cantam, dançam e vivem a ambivalência de prazer e angústia em uma relação fundada na exploração, mas que se mascara no discurso da colaboração e do serviço ao próximo.

O sucesso dessas práticas organizacionais se evidencia na criatividade e na mobilização de tais sujeitos, que, "encantados", agem encantando clientes, e também a organização, que tem seus objetivos de exploração e lucro alcançados. O controle que se evidencia, extremamente sutil e refinado, que sequestra a subjetividade e substitui os valores pessoais por valores da organização, efetiva a dissimulação discursiva das organizações que têm suas práticas organizacionais manipulatórias tornadas imperceptíveis para os trabalhadores.

 

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Endereço para correspondência
anacarolinahorst@yahoo.com.br, lisdrea@gmail.com,
ednacicmanec@gmail.com

Recebido em: 16/02/2012
Revisado em: 02/10/2012
Aprovado em: 09/10/2012

 

 

1 Mestre em Organizações e Desenvolvimento (FAE-PR). Psicóloga (UFPR). Advogada com bacharelado em Direito (UEPG).
2 Professora no Departamento de Psicologia da UFPR. Psicóloga e Mestre em Administração pela UFPR. Doutorado em Medicina Preventiva pela USP. Site: www.assedioorganizacional.com.br
3 Doutoranda PMDA (Universidade Positivo). Mestre PMDA (Universidade Positivo). Administradora de empresas (Faculdades Integradas do Brasil). Professora da FAE-PR.
4 A expressão "pedras brutas" foi amplamente utilizada por um dos diretores da empresa durante seu discurso na inauguração da filial. A ideia era demonstrar aos funcionários, por da desta metáfora, a preocupação da organização com o desenvolvimento destes.
5 Imagem impressa em cores diferentes, afixada em um painel próximo ao local em que são realizadas as reuniões de início das atividades dos grupos de trabalhadores, que indica qual é a qualidade do atendimento prestado pelos trabalhadores/setores abordados/visitados pelo cliente oculto dentro de um período específico de avaliação.
6 "Bocão" é o nome atribuído pelos trabalhadores ao sistema de som da loja.