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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.19 no.1 São Paulo  2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Mulheres profissionais do sexo e o consumo excessivo de álcool

 

Female sex workers and the excessive consumption of alcohol

 

 

Daniela Pereira Di Bonifácio; Rafael De Tilio

Universidade Federal do Triângulo Mineiro (Uberaba, MG, Brasil)

 

 

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A prostituição é considerada uma das profissões mais antigas existentes, porém ainda é muito discriminada (por motivos como promiscuidade, pecado e ameaça à saúde) e apresenta fatores de risco, dentre eles, o consumo excessivo de bebidas alcoólicas. O objetivo desta pesquisa foi investigar o consumo de álcool por profissionais do sexo feminino, indagando sobre os principais fatores ambientais envolvidos, a trajetória de vida e relações sociais das profissionais. Foram realizadas entrevistas com seis participantes, todas profissionais do sexo numa cidade do Triângulo Mineiro/MG. Os principais resultados apontam que o ambiente de trabalho e o elevado consumo de bebidas alcoólicas pelas profissionais do sexo estão relacionados à comissão que elas recebem por este consumo, porém com consequências para a própria saúde que nem sempre são reconhecidos. Além disso, as participantes dissociam suas identidades entre a do mundo do trabalho e das demais relações sociais como estratégia de enfrentamento das dificuldades no mundo do trabalho.

Palavras-chave: Prostituição, Alcoolismo, Profissionais do sexo.


ABSTRACT

Prostitution is one of the oldest professions and is highly discriminated (promiscuity, sin and health threat), presenting risk factors like excessive consumption of alcoholic beverages. The objective of this research was to investigate the consumption of alcohol by females sexual workers at Triângulo Mineiro (Brazil). Six brazilians females sexual workers were interviewed. The main results indicate that the work environment and high alcoholic beverages consumption were correlated – because of the commission they receive for this consumption; and they know that alcohol causes several health consequences. In addition, the participants dissociate their identities from work and other social relations as a strategy for coping with difficulties in the world of work.

Keywords: Prostitution, Alcoholism, Females sex workers.


 

 

Prostituição, trabalho e consumo de álcool

A prostituição é considerada uma das profissões mais antigas conhecidas, tornando-se foco de vários mitos e histórias desde a Antiguidade (França, 2012). No entanto, ainda há muito receio em relação ao tema e à atividade, pois o controle social, político, penal e médico difundem preconceitos sobre ela: vadiagem, promiscuidade, ameaça à saúde pública e ao casamento, pecado e doença (Moraes, 2011).

Para entender a prostituição no Brasil, é necessário compreender o significado dessa atividade numa sociedade atingida pela rígida divisão (e tradicionalismo) de/entre os gêneros, cindindo os papéis sociais das mulheres em dois: como integrante da casa doméstica (considerada sagrada e constituindo um lar) e como integrante da rua e do espaço público (sendo uma mulher não controlada, com um espírito de malícia e destruição).

Assim, e não raro, uma mulher, ao se tornar profissional do sexo, rompe com o ideal de mulher de família ao mesmo tempo em que não se desvincula completamente daquele ideal, pois no geral não aceita completamente o mundo da rua como o seu: ela considera "estar" na prostituição, mas não "ser" uma prostituta, um momento de transição e de dificuldades, ficando dividida entre o mundo da mulher da casa e da rua, sem pertencer completamente a nenhum deles, gerando muitas vezes sentimentos de abandono, rejeição e autodesprezo (Meis, 2011).

Assim, por causa dessa dicotomia, as mulheres envolvidas com a prostituição foram caracterizadas como responsáveis pela degradação física e moral do ideal familiar, consideradas transgressora de regras e normas sociais. Em suma, as maneiras pelas quais as profissionais do sexo são significadas interferem diretamente nas suas interações, seja na vida íntima e social, seja na busca por serviços e direitos de saúde, tendo muitas vezes negados seus direitos individuais e sociais (Guimarães, & Merchán-Hamann, 2005).

Para Torres, Davim e Costa (1999) e Paiva, Araújo, Nascimento e Alchieri (2013), a principal causa de entrada na prostituição é socioeconômica (obtenção de maior remuneração, "trabalho fácil" e temporário), principalmente e na maioria por parte de mulheres com baixa educação formal e restritas oportunidades de acesso ao mercado formal de trabalho. Portanto, segundo estes mesmos autores, o que num primeiro momento aparenta ser uma escolha livre por uma atividade é, na realidade, resultado de constritores sociais e falta de oportunidades. Neste sentido, muitas mulheres são forçadas à exploração sexual e à prostituição devido à falta de qualificação profissional, documentação irregular, analfabetismo ou baixa escolarização formal e escassas oportunidades de emprego, fazendo com que a prostituição seja a única (ou a mais viável) possibilidade de sobrevivência.

Paiva et al. (2013) e Salmeron e Pessoa (2012), a partir de pesquisas etnográficas realizadas com profissionais do sexo no Rio Grande do Norte e São Paulo, respectivamente, destacam que a participação das mulheres no mundo da prostituição responde por uma diversidade de motivadores, tais como: resultado de falta de oportunidades no mercado de trabalho devido a pouco qualificação educacional e laboral, resultado de explorações, violências e desigualdades sociais acintosas, e (talvez respondendo pela minoria dos casos) escolhas pessoais (Simões, 2010). Todavia, tais autores também destacam que quaisquer que sejam os diversificados meios de encaminhamento (que não são excludentes) das mulheres para o mundo da prostituição muitas consequências são geradas, dentre as quais os conflitos com a família de origem, as dificuldades de reconhecimento pessoal e profissional e a exposição aos diversos riscos e vulnerabilidades (Correa, & Holanda, 2012).

Por isso, segundo Olivar (2012), as discussões acerca da profissionalização da prostituição tornaram-se importante, pois visam garantir diversos direitos a essas mulheres, tais como acesso ao sistema oficial de previdência e assistência social dentre outros; mas, como também destaca o autor, a profissionalização da prostituição se situa numa "zona cinzenta" que coaduna pretensões de distribuições de direitos e controle social.

Neste sentido, para se considerar a prostituição uma profissão socialmente reconhecida, torna-se necessária uma alteração das políticas públicas voltadas para essa atividade. Os movimentos feministas foram aliados na busca pelo reconhecimento dos direitos (sexuais, de saúde, de previdência social etc.) das mulheres profissionais do sexo – o que ocorreu de maneira tímida, porém, significativa, com a inclusão da profissional do sexo na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) (Rodrigues, 2009; Olivar, 2012).

Para Moraes (2011) e Olivar (2012), com a inclusão desta atividade na CBO, outra importante mudança ocorreu relacionada à nomeação dessas trabalhadoras: de "prostitutas" e/ou "putas" e/ou "corpo prostituído" (termos claramente pejorativos) para "profissionais/ trabalhadoras do sexo" como forma de obter mais respeito, autonomia sobre seus corpos e defesa dos seus direitos (Moraes, 2011)1.

As atividades das profissionais do sexo se tornam cada vez mais visíveis na sociedade contemporânea por se adaptarem prontamente às demandas do mercado de consumo como, por exemplo, a "prostituição virtual" (sexo vendido por meio de filmes, fotos, ou até mesmo "ao vivo" pelo uso de webcam), a "prostituição de rua" (encontro com clientes em quartos de hotéis e motéis ou em residências) e "prostituição de casa" (as mulheres atendem a seus clientes em lugares específicos como casas noturnas, que geralmente são comandadas pelo dono do estabelecimento) (Ceccarelli, 2008).

Essas adaptações ocorrem provavelmente pelo fato da prostituição ocupar posição de destaque no Sistema de Produção Capitalista: ao mesmo tempo em que pode se tornar um trabalho como qualquer outro (passível de gerar renda, lucro e exploração das trabalhadoras etc.), é um trabalho (formal ou informal, precarizado em diversos níveis) que serve de "válvula de escape" (e de revigoramento) para os demais trabalhadores que, por vezes, consomem a prostituição como forma de obtenção e/ou de substituição de prazeres dificultados pelo Sistema de Produção Capitalista (Westphal, & Barbosa, 2012).

Por ser partícipe de uma estrutura social extremamente exploratória e excludente, essa forma de trabalho fica submetida a diferentes fatores de risco, tais como a violência (o cliente, geralmente homem, comete atos agressivos como forma de satisfazer seus desejos) obrigando a profissional do sexo a práticas sexuais degradantes, gerando medo, afetando sua integridade física e psicológica. As violências ainda podem ser caracterizadas pelo não uso de preservativos por parte dos clientes (o que aumenta a exposição aos riscos de doenças sexualmente transmissíveis), tráfico e cárcere privado de mulheres, roubos, insultos, humilhação, ofensas verbais e morais (Moreira, & Monteiro, 2012).

Outros riscos aos quais as mulheres profissionais do sexo estão submetidas relacionam-se à saúde, dentre os quais se destacam as doenças sexualmente transmissíveis (DST) e HIV/AIDS contraídas pela falta de uso do preservativo devido às resistências dos clientes, além da depressão que acomete usuários de álcool, haja vista a elevada utilização desta substância por parte de profissionais do sexo (Moura, Pinheiro, & Barroso, 2009; Schreiner et al., 2004).

Para Passos e Figueiredo (2004), comparado com profissionais do sexo masculino, um dos fatores de risco mais presente dentre as mulheres profissionais do sexo é o consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Para os autores isso ocorre por que essas trabalhadoras, ao levarem seus clientes a consumirem a maior quantidade alcoólica possível (já que é a partir da venda dessas substâncias que reside parte substancial dos lucros dos estabelecimentos onde a prostituição ocorre) elas também acabam por consumir essa substância. Além da questão financeira (geradora de renda extra para a profissional do sexo que trabalha em estabelecimentos que organizam a comercialização do sexo2, pois elas recebem um percentual do lucro por bebida alcoólica consumida pelos clientes), o consumo do álcool liga-se ao enfrentamento da situação devido ao seu efeito desinibitório, pois as profissionais do sexo sentem-se à vontade (ou menos desconfortáveis) em relação aos programas realizados – assim, não se pode atribuir apenas negatividade ao consumo de álcool por parte dessas profissionais, pois ele pode ser compreendido como estratégia de enfrentamento das dificuldades ocasionadas pelo trabalho (Santos, Fanganiello, Paparelli, & Oliveira, 2008; Salmeron, & Pessoa, 2012).

Ademais, o uso recorrente e excessivo de bebidas alcoólicas por parte dessas mulheres decorre em aumento do número médio de parceiros sexuais e maior descuido quanto ao uso de métodos contraceptivos (Baumgarten, Gomes, & Fonseca, 2012; Mendes, Cunha, & Nogueira, 2011). Não raro, tais práticas geram estigmatizações e ocasionam o afastamento dessas mulheres dos dispositivos e serviços públicos de assistência e saúde (Elbreder, Laranjeira, Siqueira, & Barbosa, 2008).

É importante considerar que as consequências do consumo excessivo de álcool por mulheres são diferenciadas dos homens. Isso se dá pelo fato delas serem metabolicamente menos tolerantes ao álcool, podendo ocasionar complicações clínicas como: mortalidade, doenças hepáticas (cirrose), interferir no ciclo menstrual, impactos no sistema endócrino, osteoporose e câncer entre outros. Portanto, é necessário analisar os fatores socialmente organizados (dentre os quais o mundo do trabalho) que levam mulheres ao consumo exagerado de álcool (Nóbrega, & Oliveira, 2005).

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), os brasileiros exageram no consumo de bebidas alcoólicas com uma quantidade superior ao consumo mundial: 13,6 litros/ano para os homens e 4,2 litros/ano para as mulheres; enquanto, no mundo, estima-se que 7,5% da população consuma excessivamente álcool, no Brasil o percentual chega a 12,5% (Loureiro, 2014).

A OMS classifica como consumo aceitável de álcool a quantia de 15 doses/semana para os homens e 10 doses/semana para a mulher, sendo excessivo o consumo diário médio acima das seguintes recomendações: até duas doses por dia para homens e uma dose por dia para mulheres (Brasil, 2003)3.

O álcool é uma substância psicoativa e na Sociedade de Produção Capitalista seu consumo é legalizado e, certamente, incentivado. No entanto, embora cresça o número de mulheres alcoolistas, elas ainda permanecem como alvo não prioritário das ações de tratamento pelos gestores de saúde pública (Elbreder, Laranjeira, Siqueira, & Barbosa, 2008). O descaso é maior quando a adicção ao álcool está relacionado à prostituição e às mulheres profissionais do sexo, o que requer ações e políticas de saúde específicas e incisivas pretendendo a redução de danos e não a simples abstinência (Simon, Silva, & Paiva, 2002).

Em suma, é de enorme importância a implementação de serviços de saúde para os diferentes grupos populacionais para, no caso das mulheres profissionais do sexo, melhor evidenciar suas necessidades, riscos e vulnerabilidades pretendendo condutas preventivas mais assertivas em relação ao consumo álcool (Miranda, Gadelha, & Szwarcwald, 2005; Santos et al., 2008).

Portanto, considerando o breve panorama traçado, o objetivo desta pesquisa foi o de investigar o possível consumo de álcool por parte de profissionais do sexo feminino, indagando sobre os principais fatores envolvidos, suas trajetórias de vida e relações sociais dessas profissionais.

 

Como esta pesquisa foi realizada

Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, amparado na abordagem qualitativa de pesquisa (Bogdan, & Biklen, 1997). Foram entrevistadas seis mulheres profissionais do sexo em plena atividade profissional, com idade superior aos 18 anos e que trabalhavam em casas noturnas próprias para essa atividade localizadas numa cidade da região do Triângulo Mineiro/MG.

O número de participantes (amostra) desta pesquisa é resultante das dificuldades de contato com as casas noturnas nas quais essas profissionais do sexo trabalhavam, haja vista as resistências por parte dos responsáveis ou donos destes estabelecimentos autorizarem a presença dos pesquisadores e o contato com as profissionais do sexo. Além disso, é igualmente importante destacar o receio de algumas profissionais do sexo de exporem suas trajetórias de vida, o que pode ter gerado desinteresse de algumas em participar da pesquisa. Trata-se, portanto, de uma amostra por conveniência.

Como instrumento de coleta de dados, foi utilizada a entrevista semiestruturada a partir de um roteiro de perguntas formulado pelos pesquisadores que visava obter informações sobre a prostituição (vida profissional) e o consumo de álcool; além do mais, entrevistas semiestruturadas permitem, para além das questões pré-formuladas, a inclusão de perguntas que pretendem aprofundar uma temática ou objetivo, numa relativa flexibilidade por parte do investigador na exploração do fenômeno (Turato, 2008).

As participantes foram recrutadas por meio de um contato inicial com os responsáveis pelas casas noturnas e, após a autorização deles, foi iniciado o contato com as participantes e foram explicadas as condições para participação bem como as questões éticas da pesquisa. Apenas aquelas que consentiram e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido foram entrevistadas.

As entrevistas foram realizadas (entre maio e agosto de 2015) individualmente nas próprias casas noturnas em horários nos quais as profissionais do sexo não estavam em atividade profissional; isso pretendia tanto assegurar a privacidade e o conforto material e psicológico das participantes como não prejudicar seus trabalhos. As entrevistas foram audiogravadas com consentimento das participantes.

As entrevistas foram analisadas verticalmente (uma a uma) como forma de conhecer as situações e os sentidos atribuídos por cada participante e, depois, horizontalmente (conjunto) visando identificar semelhanças e diferenças nos relatos. Assim, foi realizada uma análise de conteúdo temática (Bardin, 2000; Oliveira, 2008; Turato, 2008).

Esta pesquisa foi amparada na Resolução nº 466 do Conselho Nacional de Saúde e foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade pública a qual os pesquisadores estão vinculados (Parecer nº 548.279 de 07/03/2014). A participação nesse estudo foi voluntária, obtendo consentimento das participantes a partir da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foram respeitados, assim, todos os aspectos éticos, assegurando o anonimato e sigilo das informações das participantes.

 

O que nos revelam as profissionais do sexo participantes

Foram entrevistadas seis mulheres que atuavam como profissionais do sexo em casas noturnas localizadas numa cidade da região do Triângulo Mineiro. No Quadro é possível visualizar a caracterização das participantes: idades dentre 21 a 38 anos de idade; tempo de profissão entre duas semanas e 21 anos; o principal motivo de entrada na profissão relatado foi a necessidade financeira; a idade de início do consumo de álcool variou bastante, dos 13 aos 23 anos; e o principal fator motivador para o início do consumo de álcool foi o meio social (grupo de amigos), depois o interesse próprio e, por último, o ambiente familiar. Esses dados (caracterização das profissionais do sexo) são similares aos encontrados por Paiva et al. (2013) e Salmeron e Pessoa (2012): as profissionais do sexo são mulheres jovens expostas a riscos (consumo precoce e elevado de álcool) e que adentraram nessa atividade motivadas pelos ganhos financeiros.

Com relação ao consumo de doses alcoólicas, uma participante relatou no momento da entrevista não (mais) ingerir bebidas alcoólicas, enquanto as outras cinco participantes relataram no momento da coleta dos dados um consumo diário entre cinco e 40 doses diárias – bem acima ao recomendado pela OMS (Loureiro, 2014).

 

Quadro: Caracterização das participantes

Identificação e idade

Tempo de profissão

Motivo da inserção

Início da ingestão de álcool

Influência para ingestão do álcool

Consumo de doses alcoólicas diárias

R. 35 anos

21 anos (início aos 14)

Necessidade financeira

14 anos

Curiosidade;

amigos; meio social

Diário, em torno de 10 doses

D. 38 anos

15 anos (início aos 23)

Necessidade financeira

23 anos

Comissão das casas noturnas

Atualmente não consome mais álcool

V. 38 anos

15 anos (início aos 23)

Falta de oportunidade de empregos; Necessidade financeira

13 anos

Meio social; festas; amigos

Bebe no mínimo quatro dias por semana, em torno de 40 doses

S. 21 anos

3 anos (início aos 18)

Necessidade financeira

13 anos

Interesse próprio

Diário, em torno de 10 doses

D. 22 anos

2 semanas (início aos 22)

Necessidade financeira

16 anos

Influência familiar

Diário, em torno de cinco doses

E. 30 anos

Um ano (início aos 17, parou para estudar e agora retornou à profissão)

Necessidade financeira

21 anos

Interesse próprio; meio social; festas

Diário, em torno de cinco doses

 

Os resultados ainda serão apresentados em três eixos temáticos construídos após a coleta dos dados: (1) Trilhando um caminho (que se debruça sobre os principais fatores que contribuíram para as participantes se tornarem profissionais do sexo, além de investigar sobre o início de consumo do álcool e os principais fatores associados); (2) Consequências de um encaminhamento (abarca as principais repercussões por trabalharem como profissionais do sexo, salientando os benefícios e prejuízos causados pelo consumo do álcool no contexto da prostituição); e (3) Uma vida em duas: público versus privado (que retrata as dificuldades em lidar com o meio social [colegas, familiares etc.] e o ambiente de trabalho, a partir do qual as profissionais do sexo dissociam suas identidades para cada um dos contextos visando preservar a saúde mental e melhor controlar seus comportamentos).

 

Trilhando um caminho

No senso comum, a prostituição muitas vezes é considerada uma escolha ou decisão "fácil" diante da falta de opções e das oportunidades de trabalho que exigem maior preparação e qualificação. Porém, outros aspectos influenciam este encaminhamento, que nem sempre é livre e consciente, mas socialmente condicionado (Olivar, 2012). Ademais, a prostituição poder ser compreendida como uma resolução/exigência imposta pela sociedade capitalista que visa à obtenção e ao acúmulo de lucro e que necessita da exploração de uma classe pela outra, desencadeando e acentuando as desigualdades sociais (Ferreira, Pereira, & Amaral, 2010).

Em suma, a prostituição acaba sendo um encaminhamento não apenas motivado pelas necessidades financeiras, mas também pelo fato de não precisar de qualificação formal especializada por parte de quem a executa. Relacionados a esse encaminhamento ainda estão presentes as pressões sociais, consequências de uma Sociedade Capitalista e consequentemente exploradora assentada em trabalhos com condições precárias, fazendo com que mulheres (e homens) vendam seu próprio corpo como forma de venda da força de trabalho (Ferreira, Pereira, & Amaral, 2010; Correa, & Holanda, 2012).

Neste sentido, Alves (2005) argumenta que no capitalismo todo trabalho está fundamentado na exploração do saber/fazer e do corpo dos trabalhadores (não à toa muitos dos adoecimentos causados pelo trabalho são resultantes da extenuação do físico) e, mutatis mutandis, podemos considerar que as profissionais do sexo (pelas especificidades das suas atividades) simplesmente escancaram essa exploração do corpo.

Assim, quando questionadas, todas as participantes confirmaram terem enveredado pela prostituição por não terem encontrado outros meios de sobrevivência (trabalhos) para suprir suas necessidades financeiras devido às dificuldades que já enfrentavam justamente por não conseguirem outros trabalhos. Um exemplo disso é a fala de E. (30 anos): "Fácil não é porque eu acho que ninguém quer, né? A gente vai por questão de [falta] outras opções [...] Tem filho, tem dívida, então eu opinei e decidi por esse lado".

Apenas uma dentre as seis entrevistadas relatou que iniciou o trabalho como profissional do sexo antes da maioridade civil: "Bom, eu, tipo assim, eu não escolhi, né? Eu comecei assim, eu tinha meus 14 anos e eu era muito... assediada, sabe? Na rua eu era assediada e eu aceitava todos os assédios, tudo que os homens me ofereciam de dinheiro, de presente eu sempre aceitei" (R. 35 anos).

Todavia, a entrada precoce na prostituição é reveladora do fato de que muitas mulheres (de quaisquer idades) consideram a venda do corpo como única maneira viável de gerarem renda própria pelo fato de não possuírem outras oportunidades e/ou qualificações formais (sejam educacionais, sejam laborais) – resultado de uma estrutura social que não distribui equitativamente tais oportunidades. Isso parece confirmar a exploração sexual comercializada citada por Libório (2005). Para ele a prostituição vem se tornando uma temática global e local a ser enfrentada menos devido aos moralismos, e sim mais pelo fato de infringir diretrizes legais como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ou seja, por dificultar o pleno exercício dos direitos desses sujeitos, demonstrando a fragilização do Estado como ente de proteção social e intensificando as desigualdades sociais.

Porém, não é apenas a entrada na prostituição que é precoce por parte das participantes: três das seis participantes iniciaram o consumo de bebidas alcoólicas antes do permitido por lei (18 anos de idade), aproximadamente aos 13 ou 14 anos de idade e antes mesmo de exercerem a prostituição. Por exemplo, relata V. (38 anos) que iniciou o consumo de álcool em "[...] festinha em casa, churrasquinho, e aí tomava um copinho de cerveja, essas coisas básicas mesmo, 13 anos".

Quando questionadas sobre quais os principais fatores que levaram ao início do consumo de álcool, as participantes destacaram a influência dos amigos e do ambiente social. Suas famílias (por mais que consumissem ou abusassem do álcool) só se mostraram influenciadores diretos em um dos casos: "Foi sempre assim, é de família mesmo. Ah, com certeza, a minha família, se você conhecer a minha família se [sic.] fala assim ‘não, realmente, não tem como se [sic.] não beber’" (D. 22 anos).

Para Rozin e Zagonel (2012), ao realizarem uma revisão da literatura científica sobre os principais fatores que influenciam adolescentes a iniciar e manter na vida adulta, o consumo do álcool ressalta as influências dos grupos de amigos, além disso, os autores destacam que o consumo do álcool é amplamente estimulado por ser uma substância psicoativa lícita e de fácil acesso como forma de resolução de problemas e conflitos. Ademais, o consumo de álcool gera sensações de bem-estar e relaxamento diante das adversidades.

Ao contrário da maioria das participantes (que iniciaram o consumo de álcool antes de se tornarem profissionais do sexo), apenas uma delas relatou que o consumo do álcool foi iniciado após ter começado a trabalhar nas casas noturnas como profissional do sexo, no entanto, o consumo cessou após alguns anos:

Quando eu comecei a trabalhar assim, eu bebia muito pra poder ganhar comissão [percentagem advindo não do pagamento pelas relações sexuais, mas pelo consumo de bebidas por parte dos clientes], aí, com o tempo, eu começava a ver minhas colegas de trabalho, achava assim que eram umas alcoólatras, bebida praticamente toda noite, aí eu decidi que não ia mais beber nada de álcool (D. 38 anos).

No entanto, vale salientar que todas as profissionais do sexo participantes desta pesquisa que trabalham em casas noturnas nas quais funciona o esquema das "comissões" confirmaram que o consumo alcoólico aumentou consideravelmente após a entrada nestas casas noturnas. Elas justificam tal fato por meio do funcionamento da denominada comissão: as profissionais do sexo recebem uma porcentagem dos lucros sobre o valor das bebidas alcoólicas consumido por elas e por seus clientes durante a jornada de trabalho. Ou seja: quanto maior o consumo de bebidas maior o retorno financeiro obtido além do pagamento pelas relações sexuais.

Duas das entrevistadas trabalham em casas noturnas nas quais não funciona o esquema da comissão. Nestes casos, elas não relataram consumir quantidade maior de álcool enquanto estão no trabalho, alegando justamente o oposto: ingerem quantidades maiores de álcool na vida social e fora do ambiente de trabalho como maneira de aliviar as durezas do trabalho. Em outras palavras: relataram não ingerir muito álcool no ambiente de trabalho para melhor controlar a situação/atividade profissional e por não receberem qualquer adicional financeiro caso ela ou seus clientes consumam álcool. Todavia, é relatada ainda por uma das participantes a utilização recorrente de outras drogas ilícitas no ambiente e durante a jornada de trabalho – drogas ilícitas também são consideradas facilitadoras para suportarem as agruras dos programas sexuais.

Tais informações parecem sugerir que o consumo de álcool não foi ocasionado, pelo menos para essa amostra de profissionais do sexo, originalmente pelo ambiente e/ou condições de trabalho, mas é acentuado por estes quando atrelado ao esquema de comissões; ademais, o consumo de álcool também é significado como lazer fora do trabalho. Isso está coadunado com aos argumentos de Alves (2005) ao comentar como o trabalho na Sociedade de Produção Capitalista (em vez de dignificar o humano) acentua os problemas sociais e os de saúde dos próprios trabalhadores.

 

Consequências de um encaminhamento

Atualmente, na Sociedade de Produção Capitalista, segundo Danziato (2010), ocorre uma priorização das sensações do corpo e dos prazeres e, dessa forma, há intensificação da valorização do corpo como simples objeto para o consumo.

Mesmo diante de significativos questionamentos sociais e culturais (tais como as demandas dos movimentos femininas sobre maior autonomia dos seus corpos e atitudes, envolvendo a busca e a vivência dos prazeres), segundo Olivar (2012), as profissionais do sexo ainda sofrem preconceitos e estigmatizações. Isso é constatado quando as participantes relatam suas dificuldades de adaptação durante o processo de inserção na prostituição, sentindo-se sozinhas e desconfortáveis por causa da falta de apoio: "Meu pai não gostou, me pôs pra fora de casa e eu fiquei um ano e meio sem conversar com ele, aí depois a gente voltou" (S. 21 anos).

Todas as participantes apontaram alguma dificuldade durante o período inicial do exercício da prostituição. No entanto, é importante ressaltar que cada uma relatou um aspecto particularmente significativo durante esse processo: falta de apoio familiar e dos amigos, preconceito de si mesmo e/ou dos outros, e dificuldades na adaptação ao local e condições de trabalho. Esses aspectos também são referidos por outros autores (Paiva et al., 2013; Salmeron, & Pessoa, 2012) como as principais repercussões negativas relacionadas ao exercício da prostituição.

É importante ressaltar que as famílias de origem (incluindo as das profissionais do sexo) de modo geral apresentam um complexo sistema de interação vinculado a crenças, valores, hábitos e expectativas para com seus membros (Botelho, & Ferriani, 2004). A partir disso, são atribuídas expectativas e responsabilidades a cada um de seus membros que poderão interferir tanto nas decisões dos indivíduos (por profissões e atividades que devem exercer) como na reação de seus familiares. Assim, quando do encaminhamento de um dos membros para a prostituição, são perceptíveis dificuldades dos familiares para lidar com essa situação, não raro gerando conflitos (Botelho, & Ferriani, 2004). Para Paiva et al. (2013), a não aceitação da família de origem é a condição mais frequentemente observada nestes casos, mas que pode ser reformulada com o passar do tempo.

Muitas vezes o encaminhamento para a prostituição acaba sendo um tabu na família de origem, por isso os/as filhos/as preferem não contar aos pais por medo das reações e consequências, pois, quando o assunto é exposto, aparecem repreensões, desgostos e preconceitos, quando não violências físicas, considerando o indivíduo como não mais pertencente ao núcleo familiar. O preconceito é caracterizado por ser uma atitude discriminatória com determinados indivíduos ou grupos da sociedade, gerando estereotipias e violência(s) (Bandeira, & Batista, 2002).

Neste sentido, a venda da força do trabalho intermediada pela venda do próprio corpo aparenta ser um dos maiores entraves e da nossa sociedade, gerando recriminações àqueles e àquelas que exercem ou se aproveitam dessa atividade (Feijó, & Pereira, 2014). D. (38 anos) expressa esse fato muito claramente: "A gente tem preconceito dentro de nós mesmas, né? Mas as pessoas que conhecem a gente, não conhecem, elas têm preconceito de mim, né? Agem como se a gente não fosse mais ser humano, é assim que elas agem".

Assim, o preconceito também se faz presente dentre as próprias profissionais do sexo, pois está vinculado aos sentidos que a própria sociedade atribui à venda do corpo para obtenção de prazer sexual, associando sexo ao pecado, ao impuro/sujo. A partir disso, muitas profissionais do sexo se sentem envergonhadas e intimidadas perante suas decisões e encaminhamentos (e aos condicionantes sociais) da sua profissão. Rodrigues (2009) contextualiza este preconceito na história, principalmente pelo fato de esta atividade (a venda do corpo) ser compreendida como destoante das regras sociais impostas, fazendo com que determinados indivíduos sejam constantemente recriminados enquanto buscam o reconhecimento da prostituição como um trabalho como outro qualquer.

Outro aspecto relevante destacado pelas participantes foi a dificuldade inicial das profissionais do sexo em se adaptarem às (precárias) condições de trabalho por se depararem com uma rotina muito particular que envolve: o alojamento em um ambiente totalmente novo e circunscrito por diferentes regras de trabalho e funcionamento; a necessidade de aprender a dividir o espaço com outras mulheres desconhecidas com as quais não há intimidade, como relatou R. (35 anos): "É... no começo é um pouco diferente [...] muitas meninas juntas, aí dá certa dificuldade, né, até você se adaptar também, tanto pra comer, tanto pra dormir, tanto pra usar o banheiro"; o fato de terem que manter relações sexuais com pessoas estranhas e em circunstâncias nem sempre adequadas.

Segundo as participantes, durante os momentos de adaptação ao ambiente e às condições de trabalho, o consumo de bebidas alcoólicas se torna aliado das profissionais do sexo, fazendo com que se sintam desinibidas e mais à vontade para exercerem suas atividades. Além disso, o consumo de álcool tem por função, segundo as participantes, estabelecer um vínculo minimamente confortável com seus clientes e colegas de trabalho e buscar tranquilidade frente às dificuldades individuais.

Tal argumento vai ao encontro do proposto por Santos et al. (2008) em outra pesquisa, o que torna simplista e equivocada a associação entre o consumo de álcool por parte das profissionais do sexo e a geração de danos (a si própria e a sua atividade profissional), pois em alguns casos o consumo de álcool deve ser concebido como sendo o próprio suporte e suportabilidade diante da atividade profissional.

Dessa forma, o consumo de álcool auxilia a suportar clientes indesejados, sentir-se à vontade na frente de um desconhecido e espairecer diante das dificuldades do trabalho ou do dia a dia: "Pra você entrar num quarto com uma pessoa que se nunca viu na vida cê [sic.] tem que pelo menos bebe [sic.] alguma [bebida] pra você segurar, se não, não vai" (V. 38 anos).

De maneira mais precisa, quatro participantes relataram consumir álcool como estratégia para sentir-se mais à vontade e desinibidas no trabalho, sendo que duas participantes também afirmaram ingerir bebidas alcoólicas quando se sentem desconfortáveis ou estressadas após um dia difícil de trabalho, e isso não difere muito da realidade de trabalhadores de outros ramos ou especialidades (Meloni, & Laranjeira, 2004). No entanto, como discutido anteriormente, faz-se necessário destacar que o principal motivador para o consumo do álcool por parte destas profissionais do sexo é a obtenção de lucro por meio da comissão da compra/venda de bebidas alcoólicas: cinco dentre as seis participantes afirmaram que passaram a consumir mais álcool após começarem a trabalhar nas casas noturnas. Especificamente, três destas participantes ressaltam esse aumento devido ao lucro obtido pela comissão e a única participante que não bebe álcool atualmente afirmou que começou a consumir álcool após passar a trabalhar nas casas noturnas como forma de aumentar seus ganhos justamente por meio da comissão.

Duas participantes relataram que também aumentaram o consumo pessoal do álcool mesmo que em casas noturnas nas quais não ocorre o esquema da comissão, mas este consumo é menor quando comparado com as demais participantes que trabalham em estabelecimentos nos quais a comissão funciona; porém, mesmo assim, elas relatam consumir quantidade superior de álcool do que a população geral, por exemplo: "[...] se a gente tá trabalhando é todo dia, acaba que todo dia se bebe; e na minha vida social, na minha casa, não é todo dia" (E. 30 anos); ou: "Com certeza eu bebo mais porque quando eu tô aqui eu bebo todo dia, todo dia vem algum cliente que vai pagar dose com certeza" (S. 21anos).

Dessa forma, evidencia-se maior consumo do álcool pelas profissionais do sexo que trabalham em casas noturnas, pois tendem a influenciar seus clientes a consumirem a maior quantidade alcoólica possível ("Assim ó, uma garrafinha de ice, vamos supor, aqui nessa boate uma garrafinha de ice são vinte reais, quinze reais é da casa e cinco reais é a minha comissão, é um exemplo". [R. 35 anos]) ou utilizam o álcool como suporte diante das precárias condições de trabalho.

Porém, é importante ressaltar que, por mais que o álcool possa ser utilizado como um facilitador para o trabalho, ele pode acarretar prejuízos e dificuldades para a saúde da própria profissional do sexo. Diversas pesquisas referem os prejuízos à saúde causados pelo álcool (prejuízos cognitivos e de sociabilidade, patologias no período perinatal, neoplasias malignas, condições neuropsiquiátricas, doenças cardiovasculares, cirrose, diabetes, exposições aos riscos etc.) e essa substância, portanto, é de risco para diversos agravos em saúde e pode causar mortes (Meloni, & Laranjeira, 2004).

Todas as participantes destacam nas entrevistas que possuem conhecimentos acerca das dificuldades e prejuízos à saúde resultantes do consumo excessivo do álcool. Porém, todas citaram e destacaram os efeitos imediatos e de curto prazo consequentes do consumo do álcool: "Se você for pensar no certo pelo certo com certeza a saúde tá indo embora, né? Então, de toda forma, não vou falar pra você ‘não, não tem desvantagem nenhuma’ [em consumir álcool], logicamente que tem as desvantagens de você... de você perder um pouco da sua saúde, né?" (R. 35 anos).

Assim, o consumo de álcool em excesso pode acarretar perda da qualidade de vida pessoal e no trabalho dessas mulheres, gerando improdutividade e dificuldades por fragilidade, falta de hidratação e dor de cabeça dentre outros efeitos característicos dessa substância (Galassi, Alvarenga, Andrade, & Couttolenc, 2008); tal como relatou uma entrevistada: "Às vezes eu bebo demais num dia, aí no outro eu não dou conta de trabalhar, aí eu acabo perdendo programa, igual muitas vezes acontece" (V. 38 anos).

Os principais aspectos relatados pelas participantes como consequência do consumo excessivo do álcool no ambiente de trabalho estavam associados à incapacidade de produção, além de outros perigos como a falta de consciência ou diminuição de responsabilidades perante seus atos (expondo-as ao risco da violência sexual, esquecimento de utilizar métodos contraceptivos, e exposição às doenças sexualmente transmissíveis com a AIDS): "Desvantagem tem se você ficar bêbada a ponto de não prestar atenção no que você tá fazendo, e aí é bem perigoso, aqui a gente nunca sabe com quem a gente tá, qual que é a intenção do cara" (S. 21 anos).

Mas para não limitar essa discussão a um moralismo que pretende à abstenção do consumo de álcool por estas profissionais (o que poderia duplicar sua estigmatização: prostituída e alcoolista), é preciso considerar a funcionalidade dos demais motivadores para o consumo de álcool por parte destas mulheres (por exemplo, suportar o próprio trabalho) – portanto, não se trata de não beber álcool, mas sim de como e quando ingeri-lo4.

Porém, as consequências e prejuízos não se limitam apenas às profissionais do sexo que ingerem bebidas alcoólicas, pois igualmente o não consumo desta substância no ambiente de trabalho também pode gerar prejuízos:

Difícil é as casas aceita [sic.] mulheres que não bebem, hoje elas aceita [sic.] mais, mais [sic.] a maioria das casas não gosta de mulher que não bebe, porque o homem, tipo assim se eu chega numa pessoa e fala me dá um litro de whisky ele me dá, mas se eu pedi uma dose e ele ver que é suco, ele não vai (risos), é engraçado a dose é R$ 20,00 reais mas se eu fala que o litro de whisky é R$ 1.000,00 reais, mas [sic.] fácil ele me dar um litro de whisky do que um copo de suco, e eu vou tratar ele do mesmo jeito, com o mesmo carinho, as vezes até melhor do que as outras que bebe, mas ele quer bebe, os homem gosta de ver as mulher bêbada, eu tenho é essa sensação (D. 38 anos).

O relato acima revela o preconceito dos proprietários e dos clientes das casas noturnas que preferem profissionais do sexo que consumam (e estimulem seus parceiros a consumirem) bebidas alcoólicas, haja vista que parte substancial dos lucros destes estabelecimentos está assentada na venda dessa substância. Além disso, a participante D. ressaltou a discriminação por parte dos clientes que preferem mulheres profissionais do sexo que necessariamente consumam bebidas alcoólicas.

A partir de todas essas situações e consequências as quais muitas vezes estão expostas as profissionais do sexo, elas optam por buscar formas de proteção para suportar o ambiente e as condições de trabalho (dentre elas, mas não apenas, o aumento do consumo de álcool). Essas seriam táticas para evitar ou minimizar as dificuldades, preconceitos e estigmas da sociedade e do trabalho que exercem; outras defesas também seriam possíveis, tais como desenvolver personalidades consideradas "fortes", mas ao mesmo tempo fragmentadas – como se fossem escudos protetores para a vida e interações sociais ocorridas fora das casas noturnas.

 

Uma vida em duas: público versus privado

Reflexo de uma estrutura de produção de bens e de relações sociais específicas, a Sociedade Capitalista assume atualmente uma postura individualista e narcísica, com pessoas buscando constantemente uma exaltação de si, tornando as interações sociais e as próprias pessoas descartáveis, utilizando e aproveitando dos outros como meio para obtenção de autossatisfação (Cunha, 2012).

Na prostituição (e, por muitas vezes, para as mulheres profissionais do sexo), o corpo é compreendido como mercadoria colocada à disposição (venda) pelo qual os clientes pagam visando obter satisfações. A partir disso, como argumentam Guimarães e Bruns (2008), as profissionais do sexo desenvolvem táticas para suportar a condição que ocupam e as atividades que exercem (muitas vezes degradantes ou em situação de degradação). Como visto, uma destas táticas é o consumo de álcool; outra tática frequentemente relatada é a dissociação entre mente e corpo durante as relações sexuais. Para Guimarães e Bruns (2008), isso corresponderia a uma alienação dos próprios sentimentos e, por vezes, da própria consciência do que executam ou ao que estão submetidas, e/ou dissociam drasticamente suas identidades dentro e fora do ambiente/momento de trabalho (como se tivessem uma identidade no e outra fora do trabalho).

Gaspar (1988) afirma que ser uma garota de programa (termo utilizado pela autora) ou profissional do sexo representa apenas parte do universo subjetivo e de relações sociais dessas mulheres. Dessa maneira, elas constituem e executam identidades vinculadas a cada um desses ambientes (ou seja, uma identidade para o mundo do trabalho e outra identidade fora do trabalho), estabelecendo relações com seu corpo e com os clientes durante a atividade profissional distintas das demais relações sociais vivenciadas com outras pessoas em outras situações (no espaço doméstico e familiar, com filhos e amigos, com namorados/esposos, em outros trabalhos etc.).

Dessa forma, as mulheres profissionais do sexo criariam uma forma de "racionalização" do e no trabalho (que envolve a fragmentação da subjetividade no e para o trabalho), a partir da qual pretendem preservar a si mesmas por meio da separação entre as experiências obtidas dentro e fora da prostituição (Gaspar, 1988). Mesmo que esse seja um movimento subjetivo inconsciente na maioria das ocasiões, o que importa são as consequências dessa dissociação: uma mulher durante seu trabalho (visando interesses financeiros, autonomia, despertando desejos e fantasias dos clientes) e outra fora do ambiente de trabalho (quando for o caso, mulher do lar, preocupada com o sustento da família e dos filhos, com os afetos despendidos ao namorado etc.).

Essa dissociação pode ser compreendida e motivada também por questões de gênero tipificadas na nossa sociedade, ou seja, aquilo que se espera que as mulheres exerçam – que não é a prostituição, mas sim a maternidade e as atividades domésticas. Por isso, como forma de proteção pessoal e social, costumeiramente as profissionais do sexo julgam estarem trabalhando provisoriamente na prostituição e não se definem como totalmente pertencentes àquele ambiente:

Eu encaro aqui como trabalho, eu venho aqui, trabalho, mantenho minha casa e volto pra casa como se tivesse... na minha cabeça, pô, quando eu tô aqui eu sou a [fulana]. Quando eu volto pra casa eu sou a [beltrana], eu consegui separar isso pra não me envolver nas drogas, na bebida, se [sic.] entendeu? [...] eu venho, trabalho, ganho meu dinheiro e vou pra minha casa, aí aqui eu sou a [fulana], eu vim aqui pra ganhar dinheiro (D. 38 anos).

Portanto, devido aos condicionantes sociais e aos processos de exclusão e de desigualdades sociais, algumas decisões e encaminhamentos (incluindo os profissionais) que aparentam ser provisórios, não raramente tornam-se perenes por conta da ideologia do Sistema de Produção Capitalista que organiza as produções e circulações de objetos/bens e subjetividades no mundo contemporâneo. Para Chauí (2012), num mundo calcado no empreendedorismo individual como valor supremo, as dificuldades de mobilidade social são atribuídas à falta de empenho, vontade e pró-atividade dos indivíduos, mas, na realidade, são resultantes das desigualdades e discrepâncias de oportunidades (escamoteadas, contudo) do próprio modus operandi da estrutura social.

Ademais, o próprio fato de apresentarem nomes e atributos diferentes (um no trabalho e outro nos demais ambientes de vivência) revela a separação de interesses e valores dessas profissionais do sexo, conforme relataram as participantes. Isso deve ser compreendido como uma proteção do indivíduo e do papel que ele assume na sociedade/ambiente de trabalho, pois a divisão de papéis faz com que compreenda a dissociação das identidades como maneira de viabilizar e sobreviver em ambos ambientes, tentando lidar com as dificuldades surgidas nestes diferentes universos.

Além disso, tal dissociação também é visualizada nos momentos em que todas as participantes relataram que ingerem doses diárias de álcool acima da quantidade estipulada pela OMS. Mesmo sabendo dos prejuízos associados ao consumo excessivo do álcool, nenhuma delas se denomina alcoolistas (dependentes de álcool) e consideram o consumo excessivo de bebidas alcoólicas como consequência e/ou parte integrante e aceitável da profissão que exercem, pois apenas ingerem maior quantidade de álcool pelo fato de obterem lucro por meio da comissão.

Tal sistemática, contudo, permite reafirmar, tal como faz Chauí (2012), a inversão produzida pelo trabalho na Sociedade de Produção Capitalista: novamente, aquilo que num primeiro momento parece ser resultado de uma escolha individual livre e esclarecida por parte dos trabalhadores (no caso, o consumo de bebidas alcoólicas visando ganhos financeiros pessoais para, no futuro, obter sua própria libertação devido ao acúmulo de capital) na realidade é o resultado de um condicionamento estabelecido pela estrutura social montado para manter o enriquecimento de uns (poucos) indivíduos diante da exploração de muitos (no caso, o consumo de álcool é parte integrante de um universo que vende sexo e bebidas para enriquecer os proprietários das casas noturnas, e não as profissionais do sexo). Assim é gerada a ilusória suposição de provisoriedade da situação de trabalho para estas profissionais do sexo.

É possível perceber que para as participantes as atividades e ações realizadas durante o expediente de trabalho estão vinculadas apenas àquele ambiente, como se não pudessem interferir nas outras identidades extemporâneas ao trabalho e vinculadas ao grupo social e familiar. Por isso, as participantes relataram que ingerem quantidade grande de álcool devido aos benefícios obtidos pela comissão e ressaltam os possíveis prejuízos acometidos à saúde, porém não se consideram alcoolistas, criando assim reais impedimentos para a autoproteção e/ou redução dos danos relativos ao consumo do álcool.

A dissociação das identidades surge como uma forma de proteção por meio da diferenciação, a partir da qual a profissional do sexo consegue organizar e obter relativo controle sobre sua própria vida, pretendendo distinguir os aspectos profissionais dos pessoais.

 

Considerações finais

A prostituição e/ou a comercialização da sexualidade é um campo complexo de investigação por ser uma atividade que desde sua origem sofre preconceitos tanto da sociedade como das próprias profissionais do sexo. Sendo uma possível resposta frente às necessidades econômicas acentuadas na Sociedade de Produção Capitalista, a prostituição é resultante de um ambiente social marcado pelas desigualdades e pela exploração da força de trabalho pautada no gênero.

A discriminação também se acirra quando a prostituição está associada ao consumo de álcool, principalmente quando em excesso. Esta pesquisa destacou que as casas noturnas, apesar de incentivarem, parecem não ser o elemento desencadeador e/ou originário para a utilização de bebidas alcoólicas por parte das profissionais do sexo – isso seria decorrente do meio social (amigos e família).

Porém, o ambiente de trabalho das profissionais do sexo surge como estimulador ao aumento do consumo de álcool por fazer com que essas mulheres trabalhadoras consumam grandes quantidades de bebidas seja por receberem parte do valor dessa consumação (comissão), seja para se sentirem à vontade no ambiente de trabalho. Além disso, o consumo de álcool também é consideravelmente elevado fora do ambiente do trabalho (mas como reação a esse) por ser significado como forma de obtenção de lazer e relaxamento.

Tais hábitos de consumo potencialmente ocasionam riscos e prejuízos para a saúde física e mental destas trabalhadoras. Em suma, pode-se considerar que as profissionais do sexo são submetidas a condições degradantes no trabalho que, todavia (e infelizmente), são por elas percebidas como relativamente normais e/ou aceitáveis, quando na verdade são mecanismos de manutenção da exploração que ocorre pelo trabalho e à revelia das disposições particulares.

Os resultados das entrevistas também destacam que as profissionais do sexo dissociam suas identidades como mecanismo de autopreservação e cuidado com a saúde mental, buscando manter uma identidade restrita ao ambiente do trabalho e outra reservada para o meio social/pessoal – isso também deve ser compreendido como tática para suportar as dificuldades e estigmatizações decorrentes do mundo do trabalho.

Em outras palavras, essa dissociação da identidade potencialmente pode gerar prejuízos, tal como o consumo excessivo do álcool, pois o aumento de seu consumo e suas consequências à saúde não são percebidos como causados e impostos (condicionadas) pelo próprio trabalho (ou seja, como elementos externos), mas sim são compreendidos como parte integrante do trabalho (ou seja, devem ser assumidos porque as profissionais do sexo decidiram por essa atividade).

Não foi objetivo dessa pesquisa estabelecer generalizações dos resultados para a totalidade das mulheres trabalhadoras profissionais do sexo, principalmente porque se trata de uma amostra de tamanho limitado e de um contexto geográfico específico. Ademais, generalizações seriam imprudentes diante da diversidade e complexidade do fenômeno da prostituição e da variabilidade das profissionais do sexo.

Estar em contato com a prostituição e com algumas trabalhadoras profissionais do sexo foi um trabalho complexo e desafiante, mas compensado pela riqueza das informações obtidas, da escuta atenta e do esforço em compreender as vivências dessas mulheres. No entanto, destaca-se que este é um campo muito rico e com potencial para novas investigações e intervenções por parte dos profissionais da saúde e da educação.

Afinal, compreender fatores e elementos que influenciam o consumo do álcool por mulheres profissionais do sexo e suas consequências possibilitam a produção de conhecimento e de ações visando diminuir riscos envolvidos nessa atividade. Isso pode também auxiliar na construção de espaços de trabalhos menos precarizados, discriminatórios, excludentes e danosos aos próprios trabalhadores.

 

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Endereço para correspondência
danidibonifacio@gmail.com, rafaeldetilio.uftm@gmail.com

Recebido em: 19/10/2015
Revisado em: 08/12/2016
Aprovado em: 10/12/2016

 

 

1 A descrição das atividades das profissionais do sexo é basicamente buscar programas sexuais; atender e acompanham clientes; participar de ações educativas no campo da sexualidade. Portanto, suas atividades não se limitam ao exercício de relações sexuais mediante pagamento, mas incluem serviços de caráter afetivo e de esclarecimento relacionados ao exercício da sexualidade junto aos clientes e comunidade.
2 Isso a despeito da existência de locais próprios (estabelecimentos e/ou pessoas) que agenciam e organizam a (exploração da) prostituição ser crime no Brasil. Além disso, pode-se considerar que, se por um lado tais estabelecimentos fornecem relativa segurança às profissionais do sexo (comparado àquelas que trabalham nas ruas), isso não diminui as desigualdades/explorações a que estão submetidas; ademais, o fato de serem estimuladas naqueles estabelecimentos a consumirem álcool pode ser compreendido como um fator de risco adicional ao seu trabalho.
3 Uma dose padrão seria meia garrafa ou uma lata de cerveja (350 ml), um cálice de vinho (150 ml) ou uma dose de bebidas destiladas (50 ml de aguardente, whisky, vodka etc.), contendo aproximadamente 10 g de álcool puro.
4 Aqui não se pode deixar de considerar os trabalhadores de outras categorias profissionais que igualmente recorrem ao consumo de álcool ou como expediente para suportar o trabalho ou como estratégia de obtenção de prazer fora do ambiente de trabalho.

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