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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.19 no.1 São Paulo  2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A preservação da saúde em situações patogênicas de trabalho: um estudo de caso na siderurgia

 

The health preservation at pathogenic work context: a case study in the still manufacturing

 

 

Matilde Agero BatistaI; Maria Elizabeth Antunes LimaII; Renata Bastos Ferreira AntipoffIII

I Conservatoire National des Arts et Métiers (Paris, França)
II Faculdade Novos Horizontes (Belo Horizonte, MG, Brasil)
III Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (Ouro Preto, MG, Brasil)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo pretende fomentar a discussão em torno das relações entre saúde e trabalho, a partir de um diagnóstico sobre as causas de afastamento de trabalhadores de uma empresa do setor siderúrgico de Minas Gerais. Seu objetivo principal foi o de explicitar as estratégias que permitem a alguns trabalhadores preservarem sua saúde, apesar de estarem inseridos em um contexto patogênico de trabalho. A entrevista em profundidade foi o instrumento adotado na coleta de dados. Os resultados apontaram que os trabalhadores que conseguiam manter, ao mesmo tempo seu emprego e sua saúde, construíram, através da experiência profissional acumulada ao longo de sua história laboral, estratégias de enfrentamento da "gestão pelo medo", adotada pela empresa após sua privatização. Observou-se que eles privilegiam a qualidade ao invés da quantidade, sendo a boa qualidade de seu trabalho uma forma de garantir seus empregos. De modo geral, eles não temem a demissão, o que representou também um importante elemento na preservação da saúde. O artigo conclui, alertando para os riscos de se cometer reducionismos como o de atribuir o adoecimento ou a preservação da saúde às características pessoais do trabalhador. Ele propõe que a organização do trabalho seja percebida como um espaço cujo papel é preponderante nos processos saúde/doença.

Palavras-chave: Desemprego, Estratégias de preservação da saúde, Experiência, Organização do trabalho.


ABSTRACT

The article intends to foster the discussion on the relationship between health and work, from a diagnosis of the causes of workers removal from a steel company of Minas Gerais. Its main goal was to clarify the strategies that allow some workers to preserve their health, although they are inserted in a context of pathogenic work. The in-depth interview was the instrument used in the collection of data. The results showed that workers who managed to keep their job and health at the same time, built, through their professional experience accumulated throughout their labor history, confronting strategies of "management by fear", which came to be used by the company after its privatization. It was observed that they focus on quality instead of quantity, being the good quality of their work a way to guarantee their jobs. In General, they do not fear resignation, which represented an important element in the preservation of health. In its conclusions, the article warns of the danger of making reductionism as attributing the illness or the health preservation to the personal characteristics of the worker. It proposes that the work organization should be perceived as a space whose role is important in the health/disease process.

Keywords: Unemployment, Health preservation strategies, Experience, Work organization.


 

 

Introdução

O medo do desemprego acomete trabalhadores de formas variadas em diferentes contextos sociais, econômicos e políticos. Certo nível de desemprego é condição estrutural do sistema capitalista, embora isto não seja muitas vezes perceptível aos trabalhadores, que geralmente se sentem culpados por estarem desempregados (Gaulejac, 2001). Recessão, terceirização, privatização, globalização, flexibilização, reengenharia, informatização de processos (Lima, 2000) são alguns dos fenômenos que atingem diretamente os atuais contextos de trabalho, produzindo, entre outras coisas, o fechamento de milhões de postos de trabalho no mundo inteiro e causando problemas de diversas ordens para os trabalhadores, tais como queda na qualidade de vida, imigração/emigração, trabalho informal, precarização do emprego, adoecimento e desvalorização social (Alves, Vizzacaro-Amaral, & Chapadeiro, 2015, Chesnais, 2006).

Mas não só adoece aquele que é excluído do mercado de trabalho, como bem mostrou Seligmann-Silva (2001). Quem permanece no trabalho em momentos de recessão e demissões é também afetado pelo desemprego, já que a diminuição de postos de trabalho leva, muitas vezes, à sobrecarga para aqueles que permanecem empregados, além de gerar um sentimento onipresente de insegurança. A nova ordem gerencial passa a ser "trabalhar mais com menos", lema este utilizado pelos gestores para "convencer" cada trabalhador a fazer o trabalho que antes era realizado por dois ou três. As consequências nefastas do desemprego não se resumem apenas à elevada cobrança de produtividade entre os que permanecem, mas também à exigência de polivalência que consiste basicamente em realizar diferentes funções, demonstrando flexibilidade, inclusive, para cumprir jornadas prolongadas (horas-extras), aceitar desvios de função, demoção (rebaixamento do cargo), perda de benefícios e direitos trabalhistas. O efeito disso é o aumento do índice de acidentes de trabalho e de adoecimento físico e mental dos trabalhadores (Seligmann-Silva, 2001; Lima 2001).

Foi nesse contexto geral que se deu a pesquisa cujos resultados apresentaremos aqui, e que visou compreender como trabalhadores submetidos às condições acima mencionadas conseguem preservar sua saúde.

Foi na obra de Louis Le Guillant (1984) que encontramos a base de uma compreensão mais elucidativa em torno de nosso objeto. Esse teórico é o maior expoente da Psiquiatria Social, movimento que se constituiu na França no período imediatamente posterior ao fim da II Guerra. Apoiando-se na obra de Politzer (1968) e adotando, como base, teorias de inspiração marxistas, Le Guillant pretendia explicitar o papel do meio no surgimento e no desaparecimento dos distúrbios mentais, sem negar a importância de fatores psíquicos e orgânicos do adoecimento. Ao expor seu projeto de construção de uma psicopatologia social, esclareceu que não se tratava exatamente de uma concepção sociogenética da doença mental, mas sim de mostrar como fatores sociais podem ampliar a compreensão desse campo de estudos. Voltou-se, assim, para a compreensão da totalidade da história do paciente, sempre integrando o meio nesse processo e, baseando-se no pensamento politzeriano, concluiu que, para se compreender o psiquismo e seus distúrbios, é necessário ter em vista as condições reais de existência dos indivíduos (Le Guillant, 1984). Partindo dessa perspectiva, buscamos escutar o que os sujeitos tentam fazer diante das adversidades de trabalho, focalizando não apenas o que sentem, mas igualmente o que fazem diante das dificuldades que encontram e as possibilidades presentes na organização do trabalho que favorecem seu enfrentamento. A contribuição de Louis Le Guillant foi importante, já que o autor insistia em como as situações concretas de trabalho, decorrentes das relações sociais de produção, são essenciais na compreensão da relação do sujeito com seu trabalho. Pautar-se apenas na dinâmica dos afetos e das representações do sujeito, na qual os acontecimentos da primeira infância seriam os maiores determinantes, é psicologizante e inadequado, pois não se analisam as condições sociais em que o sujeito está inserido, o que torna reducionista as compreensões e ações sobre os determinantes do processo saúde/doença no trabalho.

Nosso objeto de estudo, a preservação da saúde em situações patogênicas de trabalho, embora muito pertinente para compreender o processo de saúde-doença nos contextos laborais (Laurell e Noriega, 1989), é pouco explorado pelas pesquisas em Saúde Mental e Trabalho (SM&T), que têm privilegiado o adoecimento. Na literatura em torno do tema, foi Dejours (1992) quem mais ressaltou sua importância quando passou a discutir a relação entre saúde e normalidade, interrogando-se sobre "como [...], apesar de condições de vida tão duras e desestabilizantes, tantas pessoas, senão a maioria delas, conseguem resistir, sobreviver, e até conquistar um pouco de felicidade" (p. 165).

Desde a primeira fase de suas pesquisas, Dejours (1987) tentou contribuir para o avanço do entendimento da preservação da normalidade em contextos adversos ao propor o conceito de "ideologia defensiva ocupacional". Segundo o autor, essa ideologia é uma forma específica de estratégia coletiva de defesa, desenvolvida com o objetivo de minimizar o sofrimento dos trabalhadores frente à organização patogênica de trabalho, mas, admitia que, ao mesmo tempo em que protege sua integridade psíquica, coloca em risco sua integridade física. Isto ocorre porque os sujeitos simplesmente negam a realidade, o risco e o perigo iminente, trabalhando como se as condições reais não existissem. Este mecanismo defensivo de negação da realidade é, para Dejours, uma estratégia frágil, pois o real não deixa de agir sobre o sujeito, mesmo que este não queira admitir sua existência.

Ele abordou também o contexto específico do trabalho individualizado, ou seja, organizações onde os sujeitos são separados, isolados em seus postos de trabalho e submetidos, individualmente, às pressões. Assim, "por causa do fracionamento da coletividade operária, o sofrimento que a organização do trabalho engendra exige respostas defensivas fortemente personalizadas. Não há mais lugar praticamente para as defesas coletivas" (p. 40). Nesse caso, apenas alguns trabalhadores conseguiriam desenvolver tais estratégias, levando a maioria a viver passivamente o sofrimento e a desenvolver um possível adoecimento. O autor ressalta que não devemos subestimar seu benefício mental, mas, ao mesmo tempo, essas estratégias têm modesto valor funcional e uma dimensão estreita face à imensidão do sofrimento que gera tal organização1.

Em um segundo momento de suas pesquisas, Dejours (1992) deixa claro o deslocamento de sua atenção para o período anterior ao adoecimento mental. Portanto, o sofrimento e as defesas contra o sofrimento passam a ser seu foco de interesse. Ele propõe, então, a mudança do nome da disciplina para "Psicodinâmica do Trabalho", admitindo a existência de outros fatores importantes na preservação da saúde dos trabalhadores, como o reconhecimento, que atuaria no sentido de transformar o sofrimento em prazer.

Silva, Deusdedit-Júnior & Batista (2015) trataram dessa questão na perspectiva dejouriana, segundo a qual sem a dinâmica do reconhecimento não pode haver a transformação do sofrimento em prazer, e não se encontra um sentido para o trabalho, o que poderia levar o indivíduo a uma descompensação psíquica ou somática por não conseguir desenvolver estratégias defensivas que evitem o adoecimento mental.

Já para a Clínica da Atividade, o reconhecimento no trabalho é menos o reconhecimento pelo outro, conforme proposto pela psicodinâmica do trabalho, do que a possibilidade de um autorreconhecimento, ou seja, a possibilidade de o indivíduo se reconhecer no que faz, de reconhecer-se em alguma coisa (Silva, Deusdedit-Júnior, & Batista, 2015).

Trata-se, portanto, de se reconhecer na história de um ofício, inscrevendo-se, por sua contribuição, em um gênero profissional, que é constituído pelas ações possíveis e impossíveis de um determinado grupo, pelo que se deve dizer ou não, pelas regras de valor que definem se um trabalho e bem-feito ou não. Tudo isso é construído e continuamente reconstruído diante das adversidades impostas pelo real. Os obstáculos na realização da atividade de trabalho impulsionam os sujeitos a contribuírem para o contínuo desenvolvimento do gênero profissional afim que este possa servir como meio, instrumento psicológico, permitindo que os trabalhadores realizem um trabalho de qualidade e com menos esforço (Clot, 2010).

Quando o trabalhador é impedido de contribuir para o desenvolvimento do gênero profissional, o ofício se desregula e ele não consegue se reconhecer em algo diferente da sua história pessoal. Se ele é impedido de se reconhecer naquilo que se faz, nasce o desejo de reconhecimento voltado às hierarquias, o que se configura como uma reparação imaginária, produzindo um reconhecimento falsificado, pois reconhecer-se em algo é a garantia de suportar as desilusões da solicitação de reconhecimento pelo outro. Esse algo é o resultado da ação avaliado sob o ponto de vista da qualidade do objeto ou do serviço prestado como critério para se reconhecer naquilo que se faz (Silva, Deusdedit-Júnior, & Batista, 2015).

É na busca incessante para garantir um trabalho bem-feito e com maior eficiência que encontramos o engajamento dos sujeitos. Além disso, quando não são impedidos pela organização e condições de trabalho, eles constroem formas mais rápidas e menos custosas de realizar sua atividade de trabalho e, assim, manterem sua saúde. É na construção de uma atividade eficaz2, quando observamos a alternância na construção de um trabalho bem-feito, e na economia dos meios para garantir os objetivos que o sujeito se engaja. É, portanto, na realização de algo com outros e não no reconhecimento do outro que o trabalhador busca se reconhecer, sendo nesta direção que compreendemos o esforço de criação das estratégias observado neste estudo.

 

Aspectos metodológicos

Para efetuar a coleta de dados, utilizamos entrevistas individuais em profundidade com seis trabalhadores e realizamos um grupo de discussão com outros que se dispuseram a participar do estudo. Todos eles não apresentavam sinais de adoecimento. Como os sinais e o desgaste que denunciam geralmente têm um caráter cumulativo (Le Guillant, 1984), optamos por escutar aqueles que já tinham muito tempo de casa, isto é, acima de 15 anos. Portanto, tratava-se de um grupo de trabalhadores que estava conseguindo preservar seu emprego e sua saúde por um período relativamente longo, apesar de estarem expostos a condições extremamente adversas de trabalho.

As entrevistas foram gravadas e transcritas, sendo que os sujeitos, após explicitarmos o objetivo do trabalho, manifestaram interesse em contar mais detalhadamente suas histórias, o que foi decisivo para a compreensão do tema proposto. As entrevistas não tinham um roteiro pré-definido. Interessava-nos compreender suas histórias para, concomitantemente, analisar os sentidos que atribuíam ao trabalho, às relações que desenvolviam no contexto laboral, às pressões psicológicas a que eram submetidos e, finalmente, identificar as estratégias que desenvolviam para preservar sua saúde mental.

Entendemos que a entrevista em profundidade é a forma mais pertinente de abordagem desse tipo de problema. Primeiro, porque esse instrumento nos possibilita apreender uma realidade "pelo interior", já que a melhor pessoa para falar sobre a relação homem/trabalho é o próprio sujeito que trabalha. Mesmo as pesquisas que se interessam por essa relação, a partir de coletivos de trabalhadores, somente conseguem apreendê-la ao se debruçarem sobre cada um individualmente. Isto porque o coletivo se concretiza a partir de vários indivíduos. Ter acesso a uma realidade pelo seu interior significa entender de que forma o trabalhador lida e atribui um sentido às questões que se apresentam a ele cotidianamente. O que buscávamos era entender como se articula a relação entre o psíquico e o social em um sujeito singular e em um contexto específico de trabalho3.

Os sujeitos foram escolhidos tendo em vista sua atividade de trabalho, o que resultou em uma amostra composta por trabalhadores ocupando postos diferenciados: ponte rolante, alto forno, posto de recebimento, beneficiamento de matéria prima e manutenção de máquinas.

 

A empresa

Os resultados de um diagnóstico realizado sobre as causas de afastamento de trabalhadores da Acesita-MG (Lima, & Júnior, 2006) revelaram que uma elevada produtividade vinha sendo exigida após a privatização da empresa, acompanhada de uma diminuição drástica do número de empregados e, consequentemente, de um grave prejuízo para os que permaneceram. O preço pago por aqueles que preservavam seus empregos era alto: aumento dos acidentes e várias formas de adoecimento (inclusive mental); insegurança e precarização do emprego (cujo exemplo maior era o aumento da terceirização e suas consequências nefastas para a saúde, para a segurança e para níveis de renda dos trabalhadores); fortes pressões internas e exigências absurdas de produtividade; realização de horas extras excessivas e, por conseguinte, redução das horas dedicadas ao descanso e ao lazer; jornadas extensas, sendo que, após a entrada de uma nova parceira, a jornada, que era de 8 horas, passou para 12 horas. Tudo isso sem contar o custo social desse processo de demissão em massa, uma vez que toda a economia da cidade dependia da empresa, por ser ela sua maior fonte de empregos.

Outro ponto que merece destaque na caracterização da organização do trabalho nessa empresa era a associação entre a jornada de 12 horas e o trabalho em turnos. Com essa longa jornada de trabalho, ela passou a impor a seus trabalhadores uma carga ainda maior de atividades em um período prolongado, aumentando ainda mais seu esforço e desgaste. O trabalho em turnos, que já era penoso pelos danos físicos, psicológicos e familiares, tornou-se ainda mais desgastante com a ampliação da jornada. Ao que tudo indica, o processo de desgaste que já vinha ocorrendo desde a privatização, acelerou-se ainda mais com a entrada da nova parceira, já que apenas nos anos de 2001, de 2002 e de 2003 ocorreram 48% do total de afastamentos, considerando os últimos 10 anos. Além da longa jornada, as folgas não eram respeitadas pela empresa e os trabalhadores eram chamados nesses períodos, não ousando recusar por medo de perder o emprego ou reduzir seu prestígio junto à chefia. Assim, muitos relatavam perturbações físicas, psicológicas e de ordem familiar devido ao pouco tempo de folga e lazer.

Após a privatização, a política tradicionalmente autoritária adotada pela empresa foi intensificada. Apesar de alegar que se baseava em modelos modernos de administração de pessoal, ela treinava seus quadros de chefia para adotar formas centralizadoras de gestão, assegurando o cumprimento das medidas adotadas, através de ameaças e punições4. Causar medo e insegurança nos subordinados e tratá-los de forma desrespeitosa era uma estratégia gerencial de controle e disciplina em benefício da produtividade, contando, inclusive, com o incentivo da própria empresa. Os sujeitos da pesquisa relataram que, mesmo dando ordens impossíveis de serem cumpridas, a chefia não assumia sua responsabilidade, culpando os trabalhadores pelos erros e acidentes decorrentes dessa prática. Esse estilo de gerenciamento gerava discórdia e uma extrema competitividade entre os trabalhadores, criando uma situação de grande desconforto e desmotivação que contribuía para o desgaste no trabalho e, portanto, para o alto índice de afastamentos.

Diante de uma situação tão ameaçadora e que estava levando um grande número de pessoas a um desgaste acelerado da saúde (Lima, & Júnior, 2006), concluímos que seria importante nos interrogar sobre o que permitia a alguns se manterem saudáveis.

 

Resultados e discussão

Assim como ocorria com os colegas que adoeciam, percebemos que aqueles que não apresentavam sinais de adoecimento apontavam muitas dificuldades com as quais tinham de lidar cotidianamente no seu trabalho. Durante nossa análise, nos reportamos com frequência ao diagnóstico dos trabalhadores afastados, pois muitos problemas eram comuns aos dois grupos, isto é, aos que apresentavam alguma patologia e aos que conseguiam preservar sua saúde. Discutiremos, neste tópico, os elementos que emergiram como possíveis causas de adoecimento e sofrimento em ambos os grupos e com os quais os trabalhadores tinham de lidar para minimizar o desgaste sofrido no trabalho. O que mudava, portanto, era a forma de lidar com esses problemas e é exatamente essa diferença que buscamos privilegiar em nosso estudo. Assim, buscamos evidenciar as estratégias de enfrentamento adotadas pelos trabalhadores que não adoeciam frente às adversidades presentes na situação de trabalho.

Os trabalhadores afastados se referiam constantemente às mudanças introduzidas após a privatização como as principais causas dos problemas constatados nas condições e na organização do trabalho da empresa (turno de 12 horas, aumento de postos sob a responsabilidade de apenas um trabalhador, aumento das exigências de produtividade, diminuição significativa do efetivo de trabalhadores, incremento da terceirização, maior número de horas extras, maior pressão e mais humilhações impostas pelos gerentes). Nos relatos daqueles que não adoeceram, a percepção era similar. Vejamos, a seguir, como os trabalhadores que preservam em grande medida sua saúde, lidam com os problemas identificados.

 

Enfrentar o medo da demissão: a saúde e segurança como prioridades

No diagnóstico sobre os afastamentos da empresa, um dos aspectos discutidos foi a redução drástica do quadro de trabalhadores, após sua privatização: em 1992, o número de empregados era de 7.375 e, em 2001, esse número foi reduzido para 3.129, ou seja, ocorreu uma redução de quase dois terços do efetivo. Salientamos que as demissões não ocorreram de uma só vez, mas resultaram de um processo crescente de esforço pela redução de custos e de procura por parcerias que garantissem a competitividade da empresa em nível internacional, além da busca por lucros cada vez mais altos. Dessa forma, o "fantasma do desemprego", como foi nomeado no relatório realizado pela equipe de pesquisadores, se caracterizou pela imprevisibilidade das demissões ou de quem seria demitido, o que parece ter repercutido negativamente na saúde dos trabalhadores que continuaram na empresa. Percebemos como essa ameaça era uma constante por parte da chefia, levando-os a se submeterem às pressões e exigências como forma de garantir seu emprego.

Os trabalhadores que preservavam a saúde relataram igualmente que o medo de ser demitido era bastante presente na empresa e apontavam esse fator como significativo para o adoecimento dos colegas. Percebiam que esse medo levava à submissão em relação à pressão da chefia e muitos passaram a realizar o trabalho com pressa, deixando de respeitar seus limites e se submetendo a situações de perigo, o que, evidentemente, aumentava a possibilidade de ocorrência de acidentes e erros no trabalho.

No entanto, embora tenham manifestado também um medo de perder o emprego, isto ocorria de uma forma diferente daquilo que prevalecia na empresa, como podemos observar nos relatos abaixo:

Tem essa concorrência doida aqui fora, lá dentro é a mesma coisa. [...] O cara quer mostrar que ele é melhor que o outro. E acaba acidentando. [...] porque não adianta trabalhar com pressa. Tem que trabalhar sincronizado. Cê trabalha com pressa, você acaba estressando, eu vejo lá a correria. Não adianta. [...]. É o medo. Eu nunca tive medo de chegar e falar assim: ‘você vai ser mandado embora’. Eu vou fazer meu serviço bem-feito, agora, não vou acidentar, não (Pedro)5.

Eu atribuo (o adoecimento) ao medo. Medo da vida. [...] E eu, graças a Deus, gosto de trabalhar, faço minha obrigação direitinho. Mas, eu nunca fiz com medo. Eu não tenho medo. Por exemplo, se eu for demitido, tem que ter uma causa. Eu sabendo daquela causa, eu não tenho medo, não. Não é dizer que eu quero perder meu emprego. Eu preciso do meu emprego, eu tenho família. Mas, se eu perder, toco o barco pra frente. A vida continua. Eu vou chorar pelos cantos, vou ficar doente? Não! A vida tem que continuar de uma forma ou de outra. Eu não vou entregar os pontos com três filhos pra cuidar. Perdi meu emprego, vou entregar os pontos, vou ficar quietinho? Não, a gente tem que continuar de uma forma ou de outra. É um pensamento que a gente tem que não deixa a doença chegar (Toninho).

Eu nunca importei em ser mandado embora. Porque eu sei trabalhar aqui fora, entendeu? Agora, uma pessoa, igual muitos colegas, que só sabe fazer aquilo lá dentro. É muito pior do que eu. Então, toda vida eu tive uma certa tranquilidade (Pedro).

O medo de ser demitido é um aspecto essencial para compreender o adoecimento e o não adoecimento dos trabalhadores (Seligmann-Silva, 2001). Neste estudo, percebemos que a forma de lidar com um possível desemprego difere entre os trabalhadores que adoecem e os que preservam sua saúde. Vimos que estes últimos não percebiam a demissão como fator tão preponderante em suas vidas como ocorre entre aqueles que adoeceram. Os que preservavam sua saúde também ressaltaram que o emprego era importante em suas vidas e queriam continuar trabalhando na empresa, mas não temiam ser demitidos. Os motivos para não terem medo da demissão eram bastante variados: ter outra profissão fora da empresa, como no caso de Pedro que tinha uma oficina no terreno onde morava; crença religiosa e despreocupação em viver com reduzidos recursos materiais, como era o caso de José que relatava acreditar em uma vida após a morte e, por isto, não se prendia às coisas materiais ("eu sei viver no muito, mas sei viver com pouco também"); não ver o trabalho na empresa como única possibilidade de sobrevivência ("eu sei trabalhar aqui fora"); sentir-se competente e capaz de realizar o trabalho com qualidade ("gosto de trabalhar, faço minha obrigação direitinho"); ser otimista mesmo diante do desemprego ("a vida continua").

Além disso, demonstravam saber que "não adiantava" trabalhar com pressa e estressado, dizendo que isto só iria aumentar o risco de acidente, além de conseguirem lidar de forma mais saudável com as pressões da gerência. Ou seja, eles não se submetiam às pressões temporais (pressa) e prescritivas (fazer o que não pode) impostas pela gerência, uma vez que priorizavam a segurança e a saúde em detrimento da preservação do emprego a qualquer custo. Era preferível ser demitido a se acidentar, como ilustrou uma fala de Pedro.

Essa forma de lidar com o medo de perder o emprego tinha uma consequência importante: o enfrentamento das exigências gerenciais em torno do aumento da produtividade. Ou seja, quem não tinha medo – ou tinha, mas não se deixava levar por ele –, tinha mais coragem de enfrentar a chefia, falar do que não gostava, se defender diante de um erro, exigir registro do risco que assumia ou simplesmente se recusar a fazer o que foi solicitado, como veremos a seguir.

 

Enfrentar as exigências abusivas da gerência

Como apontou o diagnóstico sobre os afastamentos na empresa estudada (Lima, & Júnior, 2006), a postura dos chefes era autoritária, em especial, após a privatização, já que eram treinados para assegurar a produtividade e os interesses da empresa mediante ameaças e punições. As falas sobre a falta de espaço para conversar com a chefia eram muito frequentes entre os trabalhadores que estavam afastados. No caso dos nossos entrevistados, apesar de alguns relatarem que não tinham problemas com seus chefes, admitiram serem práticas recorrentes na empresa as humilhações, as exigências abusivas mediante ameaças e o autoritarismo. O depoimento abaixo ilustra bem o problema, além de mostrar a forma pela qual os sujeitos do nosso estudo lidam com as atitudes da gerência que consideram desrespeitosas:

No passado, eu tive um líder, que ele começou a apontar o dedo no meu nariz e eu segurei no dedo dele: ‘eu vou fazer com você o que eu fiz com meu filho. Só que meu filho, ele é meu filho e você é o superior a mim. Se você fosse uma pessoa de respeito, você jamais apontaria o dedo pra mim’. Ele achou um desafio. Isso foi na época em que a pressão era forte. Então, a chefia dava pressão de cima da supervisão, a supervisão dava a pressão em cima dos líderes de equipe, o líder de equipe dava pressão em cima do nível operacional, dos operadores. Então, você trabalhava massacrado porque você não tinha onde dar pressão lá. Então, se você não tem pra onde dar pressão, a pressão fica aonde? Na sua mente. Você vai absorvendo isso, até que um dia, você explode. É onde que, hoje, o número de afastamento é grande, por pressão psicológica. Porque o indivíduo não tinha pra onde descarregar isso mais (Elias).

Apesar de viverem experiências bem semelhantes àquelas relatadas pelos afastados, os trabalhadores que preservavam sua saúde revelaram outras maneiras de lidar com as agressões vindas da hierarquia. Mesmo admitindo que também não eram ouvidos pelos seus superiores, nossos entrevistados apontaram para a necessidade de colocarem seu ponto de vista e este parece ser um fator que reduzia seu sofrimento e insatisfação. Além disso, os que se contrapunham às exigências abusivas percebiam que esta atitude fazia com que fossem menos cobrados do que aqueles que se submetiam.

Elias, por exemplo, descreveu a estratégia que desenvolveu para lidar com a exigência de seu chefe direto quando este impôs uma mudança com a qual não concordava, pois achava que poderia originar um acidente:

Você quer que eu te atenda, então, faz um relatório pra chefia e fala pra ela que tem que fazer as alterações em todo movimento do equipamento, pra frente, pra subir, pra esquerda e pra direita, os motores, todos eles devem ser alterados, que aí eu vou atender. Agora, o que vai acontecer, se vai acontecer acidente, se vai haver consequências é uma outra questão. [...]. Aí, ele falou: ‘você sempre arruma uma saída’. É claro que eu tenho que ter saída, ou do contrário, eu vou ficar tentando fazer milagre. Quem faz milagre é Jesus Cristo, eu não vou fazer milagre. Eu vou levando por essa forma (Elias).

Enquanto Elias pedia ao chefe um relatório que comprovasse sua exigência, como condição para atender uma demanda com a qual não concordava, João fingia não escutar o rádio para realizar seu trabalho mais tranquilamente, conforme explicou:

É que, muitas vezes, o que estressa muito a pessoa é a cobrança. [...]. E no momento que você está fazendo manobra no equipamento, que demora uns 10 minutos, dentro de dois minutos, a pessoa já está te cobrando. Ele sabe que demora. Então, eu tenho que fazer manobra neste equipamento que demora de 10 a 15 minutos. Então, daí a dois minutos tá tocando (o rádio) de novo. Então, eu procuro não ouvir. Depois que eu tô com o equipamento preparado, aí então eu falo: ‘liga o seu equipamento que o meu já está preparado’. Eu finjo que eu não escuto. Porque esse escutar demais, você passa a ser uma pessoa muito cobrada na área também. Cobrado na área não em termos de produção, mas em termos de encheção de saco (João).

Já outro trabalhador não resistia de imediato às demandas da chefia, mas sempre que era exigido para além da sua carga horária ordinária, ele se queixava das horas extras ou as cumpria a contragosto. Isto acabava produzindo um efeito na chefia que exigia menos dele.

A minha chefia sabe que eu não gosto de hora extra, mas, se me chamam, eu vou. Mas, pelo menos, eu falo [...]: "eu não gosto de hora extra". [...] E isso me ajuda, porque se eu nunca falasse que eu não gostasse, me prejudicava mais tarde. Porque eu ia triste, ia revoltado... [...] E só d´eu falar que não gosto de fazer hora extra, eles me chamam menos (Toninho).

Percebemos que a atitude de se contrapor a determinadas ordens da chefia, ou pedir que esta assumisse as consequências dessas ordens, permitia que esses trabalhadores se resguardassem mais dos erros, atrasos na produção e até de sofrer acidentes, confirmando-se como um dos aspectos de preservação de sua saúde. Diante da exigência de alta produtividade, alguns não discutiam com seus superiores, no entanto, afirmaram que, mesmo não se contrapondo às ordens da chefia, não as seguiam à risca. Deixaram claro que faziam sempre o que estava dentro de suas possibilidades e, posteriormente, esclareciam à chefia a respeito dos empecilhos encontrados para atingir as metas ditadas.

Toninho, por exemplo, ao ser questionado se era considerado um bom trabalhador, respondeu:

Sou. Pelos colegas e pela chefia. Porque o próprio meu chefe já falou pra mim que eu sou considerado um bom funcionário. Porque, eu sou do tipo o seguinte, se tiver uma quantidade de serviço pra fazer hoje X, eu faço. Se amanhã o cara falar que tem que fazer trinta por cento a mais, eu não discuto, eu não falo que não dá pra fazer, entendeu? Simplesmente, eu calo. Vão ver o que que dá né? Se deu, beleza. Se não deu, eu não tenho medo de explicar. Como se diz, é .... não tenho medo de explicar sobre um tempo perdido... Então, eu acho que isso influi muito. Têm certos tipos de pessoas que se a pessoa falar que tem que fazer X de trabalho hoje, ele quer fazer de qualquer maneira. Então, se ele não conseguir, o coração dispara e fica todo complicado. E quando o chefe chega, ele tá gaguejando, ele não sabe explicar um atraso que teve, [...] porque é por causa disso, é por causa daquilo, faltou energia, precisou de um equipamento ali que não conseguiu atender no horário certo... [...] Então, eu acho que se a gente souber conversar, dá tudo certo. Se eu tenho que fazer X e eu não consegui, eu tenho que ter um argumento pra explicar aquilo. [...] Normalmente, as pessoas não conseguem e se complicam (Toninho).

Segundo o mesmo entrevistado, alguns trabalhadores não conseguiam explicar os problemas para a chefia por que sentiam medo, o que acabava acarretando o aumento da carga de trabalho, já que, pelo receio do confronto, iam além de suas possibilidades para satisfazer à gerência e evitar o risco do desemprego:

Eu acho que é falta de argumento, medo. [...] É esse medo que traz as complicações. Porque se o chefe não concordar comigo, ele não vai me bater, ele não vai me matar, ele não vai fazer nada comigo, só vai não concordar. [...] Pode ser isso. Pode ser não, eu acho que noventa por cento é. Se eu fiz errado, vai me mandar embora. Mas, as pessoas têm que ter a consciência de que se mandou embora, não vai morrer. Não vai acabar o mundo, não vai acabar a vida. Quantos milhões de pessoas que não têm o emprego que eu tenho hoje, que sobrevivem? (Toninho).

Assim, o medo da demissão apareceu como um elemento central, permitindo entender a falta de enfrentamento dos abusos gerenciais. Em contrapartida, aqueles que conseguiam enfrentá-los não se deixando abater, confrontando as ordens da chefia e se justificando sobre possíveis erros e problemas, apresentavam menos sinais de adoecimento ou de desgaste físico e mental. Sabemos que a possibilidade de autorregulação é um fator crucial de preservação da saúde (Canguilhem, 1990; Clot, 2008). Não ter medo de perder o emprego, portanto, apareceu como um aspecto essencial na redução da carga de trabalho. Os trabalhadores saudáveis conseguiam regular a quantidade de trabalho a executar respeitando seus limites e suas capacidades e, com isso, afastavam o processo crescente e cumulativo de desgaste, fadiga e exaustão.

 

Autorregulação da carga de trabalho: pausas, horas de descanso, tempo

A gestão pelo medo e por meio de humilhações adotada pela empresa se manifestava de diversas maneiras nos trabalhadores que adoeciam, e a manifestação mais evidente parece ser a aceitação do excesso de trabalho para além das capacidades físicas e mentais, como ilustra o relato abaixo:

Todos nós precisamos trabalhar, claro. De uma hora pra outra a companhia pode mandar você embora, acabou, põe outro no lugar. Agora, a pessoa tem que saber que não adianta nada esta inseguridade, se apavorar, querer trabalhar além da sua capacidade. Da onde vem este problema de depressão (João).

Aqueles que lidavam com o medo, enfrentando-o, ao invés de fugir dele, adotavam atitudes diferentes em relação aos trabalhadores que adoeciam, como a regulação cuidadosa e atenta da sua carga de trabalho para não ultrapassar seus limites: "Na área, eu sou o mais velho. A pessoa, ela pode adquirir a experiência com o tempo, mas ela tem que conscientizar que o ser humano ele tem limite. E as pessoas não trabalham com limite. Elas trabalham sem limite" (João).

Uma estratégia importante para respeitar seus próprios limites era o respeito às pausas e às horas de descanso, como podemos observar a seguir:

Eu forço a minha parada: ‘eu tô indo ao banheiro’. (Outros operadores): ‘ah, porque tem uma manobra pra fazer e tal’. ‘Peraí, eu vou te atender, mas assim que eu te atender, você tá sabendo que o equipamento meu tá parado, porque eu vou ao banheiro tá?’. Porque eles vão ao banheiro só em casa. Porque eu imagino que seja a tensão muito forte pra poder dar conta do recado, pra mostrar que sabe, que corre atrás, que eles são insubstituíveis... então, por medo disso, eles... ‘ah, não, eu vou ao banheiro só em casa’. [...] Eu faço o contrário (Elias).

A gente tem que manipular esse trem todo aí. Dar a produção correta. Porque se você dá produção demais, todo dia eles vão querer mais ainda que você produz. Você tem que segurar próximo ao limite [...] se é meu tempo de almoçar, eu vou almoçar com dez minutos e voltar? Eu tenho trinta minutos, pra que que eu vou queimar 20 minutos pra ficar correndo atrás de equipamentos? Outras vezes, tá na hora de lanchar, eu deixo de lanchar, mas eu tô acabando de fazer um serviço que eu sei que depois eu vou lanchar (João).

Reconhecer seus limites e não ultrapassá-los nos pareceu um aspecto fundamental para garantir a saúde. Os trabalhadores entrevistados deixaram clara esta posição de respeito aos seus limites. Eles não pareciam se preocupar demasiadamente em mostrar produção para os chefes e faziam seu trabalho em um ritmo que não os prejudicava. Assim, autorregular a carga de trabalho, não se submetendo às exigências da chefia, implicava em não ultrapassar seus limites, significado fazer pausas, horas de descanso, trabalhar com calma e fazer o que é possível nas condições dadas.

 

Zelar pelo trabalho bem-feito: a experiência e a competência no trabalho

A experiência e consequente competência adquirida no trabalho emergiram como fatores importantes no que diz respeito à manutenção da saúde dos trabalhadores. Nesse sentido, como apontamos, os trabalhadores experientes eram, geralmente, bem mais capazes de fazer seu trabalho com qualidade, o que resultava na sua maior importância para a empresa. Quando perguntamos aos entrevistados a que eles atribuíam a manutenção de seus empregos diante de tantas demissões, eles destacaram a qualidade do trabalho realizado, além da habilidade na resolução de problemas e da utilização de medidas que minimizavam os custos da produção. Como trabalhavam há muitos anos na empresa, alguns já tinham passado por várias áreas da produção, o que também parecia contribuir para realizar o trabalho com qualidade e entender os problemas que se apresentavam.

Porque tem 22 anos e é muito tempo... muito tempo. [...] Convivo com aquilo e já fiz muito trabalho de CCQ6 lá e melhorei muita coisa... [...] Porque tinha tanta coisa lá que acontecia, que a gente foi fazendo trabalho de CCQ, foi modificando, foi melhorando equipamento, entendeu? É umas coisas dessa que eu acho que segura emprego é isso (Pedro).

Além da qualidade do próprio trabalho, alguns atribuíam a garantia do seu emprego à displicência da empresa em não treinar outros operadores para ocuparem suas funções. Isto fazia com que ela ficasse mais dependente do seu trabalho, já que eram os únicos que possuíam aquela especialidade: "Eu tenho uma certa estabilidade. Tenho pouca, mas tenho. É tempo de serviço mesmo. O que segura mais mesmo é porque... determinado serviço que eu faço lá, praticamente é só eu que faço" (Pedro).

Outro trabalhador falou sobre a importância da experiência como fator de preservação do emprego, levando-o a recusar uma transferência de área:

Eu já tive até chance para ser transferido para outra área, só que eu já tinha muito tempo lá nessa área que eu trabalho. Só que pra mim não compensava, porque eu já tava trabalhando e ia pra outra área iniciar. [...] vão supor, se eu fosse voltar e a outra área precisasse de reduzir pessoas, eu seria o primeiro. Eu era novato lá. Eles conheciam, mas podiam me tirar. Na sua terra você é rei. Então, a gente tem sempre que guardar isso (João).

A competência adquirida pela experiência também diminuía o desgaste no cotidiano laboral, pois proporcionava aos trabalhadores o conhecimento dos equipamentos e da melhor forma de realizar a tarefa, permitindo-lhes anteciparem problemas que poderiam gerar maior desgaste e resolvê-los sem muito esforço, além de realizar o trabalho com mais tranquilidade.

Assim, possuir uma competência reconhecida era fator importante para o sentimento de segurança e confiança, afastando o medo de ser demitido. Trabalhadores e gerência sabiam que a empresa precisava deles porque não havia mão de obra qualificada no mercado que pudesse substituí-los facilmente.

A negociação com a gerência ganhava um novo contorno pela importância desses trabalhadores para a empresa. A gerência autoritária e ameaçadora, que usava o medo da demissão como arma de controle e disciplina dos trabalhadores, perdeu seu poder, pois esta arma não funcionava com esses subordinados, que partiam para o confronto direto não se submetendo às pressões abusivas da hierarquia. Como consequência, conseguiam respeitar seus limites físico e mental, controlando sua carga de trabalho de acordo com suas possibilidades. Aqueles que se sentiam competentes, mesmo sabendo dos riscos de uma demissão, não se apavoravam diante das ameaças, pois se sentiam importantes e seguros naquilo que faziam. A segurança, fruto do trabalho bem-feito e da competência adquirida, rompia com o círculo vicioso caracterizado pelo medo-submissão-sobrecarga-adoecimento. Conseguindo preservar sua saúde e desenvolver suas competências, esses trabalhadores contribuíam para a eficácia da organização já que não se afastavam do trabalho ou faltavam menos. Além disso, os acidentes diminuíam e a qualidade do trabalho era garantida. Por conseguinte, eram mais produtivos do que aqueles que adoeciam ou estavam em processo de adoecimento, o que também ajudou a entender a preservação dos seus empregos.

 

Considerações finais

Este estudo permitiu explicitar alguns aspectos fundamentais para a proteção da saúde dos trabalhadores. A não submissão a exigências abusivas e não ir além dos limites pessoais são elementos que estiveram presentes, de alguma forma, em todos os relatos daqueles que preservavam sua saúde. Conseguir manter certa tranquilidade em relação a uma possível demissão e falar o que pensa em relação ao trabalho e ao tratamento oferecido pela chefia são atitudes que parecem ajudar também nessa preservação. A experiência adquirida no trabalho apareceu igualmente como fator importante na criação de estratégias que minimizavam os efeitos negativos das adversidades do trabalho, reduzindo o medo de acidentes. Além disso, essa experiência permitia aos trabalhadores realizar o trabalho com qualidade e dentro dos níveis de produtividade exigidos, mas sem ultrapassá-los. O fato de não ter outros trabalhadores treinados para realizar determinado tipo de trabalho, criava certa dependência da empresa em relação àqueles que o realizavam, o que aumentava a segurança de emprego e dava-lhes uma margem maior de negociação com a chefia.

Vários aspectos comuns aos relatos dos trabalhadores que fizeram parte desta pesquisa podem ser corroborados por outros estudos em torno da preservação da saúde (Araújo, Lima, & Lima, 1998).

Assim como foi constatado por nós, esses estudos concluíram que os trabalhadores que não adoecem procuram realizar seu trabalho com qualidade, em vez de privilegiar a quantidade ou tentar, inutilmente, conciliar essas duas exigências. Para tal, desenvolvem várias estratégias, sendo a qualidade de seu trabalho uma forma de garantir seus empregos. Além da recusa em responder às altas exigências de produtividade, esses trabalhadores se recusam a admitir humilhações e atitudes desrespeitosas da chefia. Falar o que pensam e recusar os maus-tratos da chefia são formas de exteriorizar seus sentimentos e conquistar um tratamento mais humano. Não ter medo da demissão também foi um importante elemento identificado por nós e que aparece em outros estudos. Não se trata de uma despreocupação em relação ao desemprego, mas sim de uma definição de prioridades: eles preferem arriscar seus empregos a se submeterem às exigências abusivas e às humilhações, por exemplo. Vimos que os sujeitos entrevistados por nós estavam atentos aos seus limites e não os ultrapassavam. Eles eram muito habilidosos em desenvolver estratégias que revelassem seu valor para a empresa e, mesmo não priorizando a quantidade, nem a ultrapassagem das metas, eram respeitados pela sua competência e qualidade do seu trabalho.

A competência, advinda da experiência no trabalho, como vimos, contribuiu significativamente para sua tranquilidade na realização das atividades e, consequentemente, na manutenção de seus empregos. Essa tranquilidade, associada à competência, também permitia a eles uma maior margem de negociação e mesmo de confrontação com a hierarquia. A experiência no trabalho é, assim, um elemento decisivo que afasta o equívoco de se pensar que apenas a personalidade do sujeito seria suficiente para garantir a preservação da saúde no trabalho. Mas é importante reconhecer o risco de que esses resultados sugiram, mesmo erroneamente, que o trabalhador é o único responsável pelo seu adoecimento ou pela preservação da sua saúde. Ademais, é possível pensar que essas estratégias têm seus limites e aqueles que adoeceram podem ter recorrido a elas no passado, mas acabaram por sucumbir. Ou até mesmo que os próprios sujeitos da nossa pesquisa podem ter se deparado, após nossa pesquisa, com os limites das suas formas de regulação e desenvolvido alguma patologia. No nosso entender, é importante evitar o reducionismo de se concluir que são as características pessoais que determinam (ou não) o adoecimento no trabalho. Tal reducionismo pode, por exemplo, levar à ideia de que o problema do adoecimento no trabalho será resolvido por meio de uma boa seleção de empregados, ou seja, que a solução seria, por exemplo, selecionar trabalhadores com as mesmas características dos nossos entrevistados. Mas, a complexidade de tal seleção começa pela definição das características individuais que deveriam estar presentes nos candidatos ao posto de trabalho. Os sujeitos de nosso estudo, embora tenham várias características em comum, apresentam histórias de vida muito diferentes, que resultam em personalidades diversas. Portanto, selecioná-los pelo perfil psicológico ficaria inviável, pela simples impossibilidade de se estabelecer esse "perfil". Outra alternativa seria a de selecioná-los pela forma de lidar com o trabalho. Mas, aqui, outro problema se coloca: antes, seria preciso observar o sujeito realizando o trabalho, o que inviabiliza uma seleção prévia, pois seria impossível antecipar o que o sujeito faz na prática, diante das invariabilidades do meio, do próprio sujeito e dos imprevistos recorrentes no contexto laboral. Ainda que fosse possível uma seleção na qual algumas características fossem exigidas, tendo como referência os sujeitos de nossa amostra, tais como priorizar a qualidade ou não se sujeitar às humilhações e pressões abusivas de produção, o problema é evidente: a empresa teria que selecionar aqueles trabalhadores mais dispostos a se contraporem às suas próprias políticas. Além disso, vimos que a experiência no trabalho tem fundamental importância, chegando a ser o principal fator para a manutenção da saúde de alguns desses trabalhadores. Neste caso, a empresa teria que esperar muito tempo para saber se seus empregados conseguiriam desenvolver estratégias de regulação mantendo sua saúde. Tais especulações em torno de possíveis formas de seleção revelam a inutilidade dessa medida e, portanto, a impossibilidade de se prever, mesmo tendo em vista as características pessoais dos sujeitos de nossa pesquisa, as possibilidades de manutenção da saúde e, sobretudo, deixam claro que não é por essa via que o problema será resolvido.

É claro que as características pessoais dos sujeitos são importantes na preservação de sua saúde. Entretanto, elas não explicam, isoladamente, esse fato, assim como a personalidade dos trabalhadores que adoecem não explica, por si só, seu adoecimento. O fato de os trabalhadores serem competentes e dificilmente substituíveis pela empresa lhes dá segurança para negociar e confrontar as exigências abusivas, o que é crucial para a autorregulação da sua carga de trabalho, para o enfrentamento dos abusos em torno da produtividade, como também para exigir respeito e tratamento digno pela gerência. Ademais, o conhecimento profundo e consistente sobre o funcionamento da empresa, das máquinas e da produção também lhes dá tranquilidade para fazer o serviço com segurança, calma e qualidade, uma vez que conhecem, mais do que qualquer outro, os meandros da atividade. Desse modo, não se pode psicologizar, isto é, atribuir exclusivamente (ou predominantemente) a traços psicológicos essa possibilidade de preservação da saúde identificada entre os trabalhadores da nossa pesquisa. Se estes demonstram mais coragem no enfrentamento com a chefia, é por que podem ser mais corajosos, uma vez que seu saber sobre o trabalho que realizam os protege do desemprego. Além disso, observando os colegas, aprenderam que ter medo não é eficaz na preservação do emprego. Descobriram que aqueles que sentem medo, estão mais perto da demissão do que os que não sentem. Ou seja, foi na vivência de situações reais de trabalho que esses trabalhadores desenvolveram crenças, valores e atitudes que os tornaram mais ou menos afetados pelas exigências do trabalho. Isto só reforça a posição que defendemos, desde o início deste artigo, juntamente com Le Guillant (1984), de que o meio tem um papel decisivo na compreensão do adoecimento, mas também do não adoecimento.

Tudo isso significa que a preservação da saúde não é fruto de uma personalidade enquanto algo dado, um a priori, mas resulta de uma negociação sutil, delicada e sempre situada entre as exigências externas (advindas das condições e da organização do trabalho) e internas (corporais e subjetivas). Como acreditamos ter ficado demonstrado, não existia qualquer trabalhador impermeável aos problemas impostos pela organização do trabalho, pois todos tinham de se confrontar com as mesmas dificuldades se diferenciando apenas nas suas estratégias de autorregulação. Ou seja, tudo indica que o ponto-chave na preservação da saúde é a regulação da carga de trabalho, isto é, o equilíbrio entre a quantidade de trabalho a ser realizado, o tempo disponível e a qualidade do trabalho, sempre respeitando os limites físicos e mentais. Simplesmente se submeter às condições impostas pela empresa pode levar ao adoecimento e ao trabalho sem qualidade. Foi por este motivo que os sujeitos de nossa pesquisa foram forçados a desenvolver estratégias para minimizar o desgaste provocado pelo trabalho e para garantir sua importância na empresa. Tais estratégias representam formas de resposta a uma dada organização de trabalho, visivelmente patogênica, o que era revelado pelos altos índices de acidentes e de afastamentos com as mais diversas patologias, inclusive, transtornos mentais graves (Lima, & Júnior, 2006).

Podemos pensar também que os trabalhadores afastados poderiam ter mantido sua saúde se tivessem sido submetidos a outras formas de organização do trabalho, mais flexíveis e que oferecessem condições favoráveis ao seu desenvolvimento. É diante de uma organização específica de trabalho que as características pessoais assumem uma acuidade particular que irá conduzir para a manutenção da saúde ou para o adoecimento (Le Guillant, 1984). E, como vimos, a organização do trabalho na empresa estudada era de tal forma rígida que não possibilitava espaços para que grande parte dos seus empregados pudesse alcançar uma adaptação favorável à sua saúde, o que se confirma pelo número importante de afastamentos. Por isso, a maioria dos nossos entrevistados dizia que, quando se aposentassem, não pretendiam continuar na empresa devido às pressões a que eram submetidos, sugerindo que a manutenção de sua saúde vinha exigindo deles um grande esforço. Alguns disseram mesmo que precisavam se aposentar antes de adoecer. Dessa forma, fica evidente que manter a saúde nessa empresa não é algo fácil e alcançado com conforto.

Resta destacar os limites do estudo exposto frente às adversidades impostas pelos atuais contextos de trabalho. Sabemos que, cada vez mais, encontramos um contexto ainda mais adverso e, provavelmente mais hostil, o que torna quase impossível a elaboração de estratégias como aquelas identificadas no nosso estudo.

Vimos como a chefia da empresa se esforçava para fazer com que os trabalhadores respeitassem suas ordens e como o espaço para negociação entre operadores e chefes era restrito. A maioria dos operadores que mantinham sua saúde burlavam essas ordens através de estratégias ou de confrontos diretos, o que garantia um menor desgaste e a execução de um trabalho de melhor qualidade.

Percebemos como essa atitude da chefia comprometia não apenas a saúde dos seus subordinados, mas também a eficácia do trabalho e, portanto, da empresa. Mas foi possível mostrar também como os trabalhadores desenvolveram estratégias para realizar suas atividades de trabalho, mesmo diante de tantos impedimentos. As estratégias criadas por eles e as margens de manobras conquistadas com grande esforço, revelam sua capacidade de agir sobre si mesmos, sobre sua atividade e sobre a organização do trabalho, contribuindo para a preservação de sua saúde e para a superação de problemas que a própria empresa não encontrava soluções, como é o caso do grande número de acidentes e de afastamentos.

Embora fosse impossível, naquele momento, propor qualquer forma de intervenção na empresa com vistas ao desenvolvimento do trabalho e, consequentemente, à preservação da saúde dos seus empregados, acreditamos que os resultados aqui reportados são importantes, pois revelam como os trabalhadores são capazes de dar sua contribuição nesse sentido, apesar das enormes adversidades que enfrentam no seu cotidiano laboral.

 

Referências

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Silva, R. V. S., Deusdedit-Júnior, M., & Batista, M. A. (2015). A relação entre reconhecimento, trabalho e saúde sob o olhar da Psicodinâmica do Trabalho e da Clínica da Atividade: debates em psicologia do trabalho. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 8(2), 415-427.

 

 

Endereço para correspondência
matildeagero@yahoo.com.br, antuneslima15@gmail.com, renata.antipoff@ifmg.edu.br

Recebido em: 06/01/2016
Revisado em: 09/12/2016
Aprovado em: 12/12/2016

 

 

1 A equivalência ou não dos conceitos de normalidade e saúde é uma questão controvertida no campo da psicologia do trabalho. Devemos ressaltar que não compartilhamos essa perspectiva de equivalência dos conceitos, mas preferimos não tratar a relação entre normalidade, saúde e estratégias defensivas neste artigo. Para uma aproximação da questão, ver Clot (2010).
2 A eficácia em clínica da atividade é construída pela alternância funcional entre sentido e eficiência da atividade de trabalho. Para maiores detalhes dessa relação, ver Clot (2010).
3 Gostaríamos de assinalar um aspecto importante no que concerne à coleta de dados: a falta de acesso dos pesquisadores à realidade estudada, devido às circunstâncias sob as quais o estudo foi realizado. Acreditamos e defendemos que observações e análises ergonômicas do trabalho nos trazem elementos importantes para ampliar nossa compreensão a respeito da relação entre saúde mental e trabalho. Entretanto, ao começarmos nosso trabalho, a empresa não permitiu a nossa entrada na fábrica, uma vez que o diagnóstico foi realizado a partir de uma demanda do sindicato. Diante disso, fomos obrigados a abrir mão das observações, baseando nossa coleta de dados aos questionários, documentos, estudos de casos e reuniões com trabalhadores, além de outros estudos acadêmicos realizados sobre a empresa.
4 As queixas sobre a constante pressão, as humilhações e a falta de liberdade para conversar com a chefia eram frequentes entre os trabalhadores afastados, mas apareceram também, como veremos, no relato dos que preservaram sua saúde.
5 Todos os nomes são fictícios.
6 Este entrevistado está se referindo ao Círculo de Controle de Qualidade, um programa inspirado no Modelo Japonês e que se baseia no estímulo ao desenvolvimento de ideias e soluções para os problemas enfrentados pelos operadores no quotidiano de trabalho.

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