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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
versão impressa ISSN 1516-3717
Cad. psicol. soc. trab. vol.19 no.2 São Paulo 2016
ARTIGOS ORIGINAIS
Narrar para conhecer os modos de ser-trabalhar-existir: o (difícil) cenário do trabalho contemporâneo
Narrate to know the ways of being-work-exist: the (difficult) scenario of contemporary work
Daniele Almeida Duarte
Universidade Estadual de Maringá (Maringá, PR, Brasil)
RESUMO
Neste texto, recorremos aos campos discursivos que possibilitam vislumbrar quem é o sujeito e seu entorno, sendo contribuintes dessa discussão os pressupostos da Saúde Coletiva e a Psicossociologia, para debater o complexo cenário do trabalho contemporâneo. Com o intuito de desvendar os modos de ser-trabalhar-existir, que conjugam o socius e a subjetividade, propomos a narrativa como dispositivo capaz de evidenciar a complexidade deste fenômeno. Essas referências teórico-conceituais permitem ao pesquisador, profissionais de saúde e diferentes atores sociais identificar o que no trabalho atenta contra o corpo, como também o que afeta a subjetividade, logo, que modos de existência são forjados no campo singular e social. Nesta perspectiva, temos como desafio (re)conhecer a trabalhadora e o trabalhador como sujeitos de saberes que, ao assumirem sua voz e protagonismo, podem conferir meios para transformação laboral e social.
Palavras-chave: Trabalho, Narrativa, Psicossociologia, Saúde coletiva.
ABSTRACT
In this paper, we used the discursive fields that allows to glimpse who is the individual and its media, focusing the discussion from the Collective Health and Psychosociology assumptions, to discuss the complex scenario of the contemporary laboring. In order to unravel the ways of being-work-exist, which combine socius and subjectivity, we propose the narrative as a device capable of highlighting the complexity of this phenomenon. These theoretical-conceptual bases allow the researcher, health professionals and different social actors to identify what on the laboring act against the body, as well as what affects the subjectivity. Thus which form of existence are forced in the singular and social field. In this perspective, we have as a challenge recognizing the workers women and men as knowledge individuals, that by assuming their voice and protagonism can provide means for labor and social transformations.
Keywords: Work, Narrative, Psychosociology, Collective health.
Palavras iniciais
Começava a ser cada vez mais difícil distinguir o passado do presente: o que tinha sido estava sendo, e estava sendo a minha volta, e escrever era minha maneira de bater e abraçar [...] que estou escrevendo, pelo avesso e pelo direito, na luz ou na contra luz, olhando do jeito que for, surgem a primeira vista minhas raivas e meus amores [...] E assim que deve ser. Os que fazem da objetividade uma religião, mentem. Eles não querem ser objetivos, mentira: querem ser objetos, para salvar-se da dor humana.
(Galeano, 2002).
Conhecer a trabalhadora e o trabalhador não implica apenas se reportar a sua atividade profissional. Há que se considerar o universo laboral como aquele que comporta e conforma modos de existência capazes de ultrapassar os muros da fábrica, do escritório, das ruas e da casa. O labor não está circunscrito unicamente a tarefa e atividade que produzem bens e prestam serviços. Quem trabalha mobiliza seu corpo, afeto e inteligência. É transformado pelo labor e também o transforma. Investe-se na atividade laboral o desejo e nela projeta-se a vida singular, familiar e social. O trabalho participa da construção de si, permeando o processo identitário, em que se reconhecer demanda ser reconhecido pelo outro. O labor insere o sujeito no campo social, onde estão enleadas a objetividade e a subjetividade, o concreto e o simbólico, o universal e o particular, o socius e o singular. Não se trata de dicotomias, mas de processos que se constituem no tempo, espaço e relação – passíveis de compreensão. Um emaranhado que faz o ser humano, sendo seus fios difíceis de se desembaraçarem, mas capazes de tecer vida e morte, prazer e sofrimento, saúde e doença. Em suma, o trabalho, ao compor modos de existência, participa de maneira chamejante dos processos de subjetivação que põem em curso (e faz o curso) da vida humana. Adentra na intimidade, forja relações sociais e confere rumo às vivências.
Nesses termos, refletir sobre o labor e quem o realiza é algo complexo e conflituoso, especialmente quando almejamos desvendar os modos de existência. Não existimos apenas para o trabalho, mas pelo trabalho, sim. Uma ação que transforma a natureza, mas também a si e seu entorno, capaz de humanizar e desumanizar (Antunes, 2008).
Compreender qual trabalho e seu significado assumido é um primeiro passo, que requer de antemão entender uma conjuntura sem dispensar a subjetividade. Para tanto, iremos começar pela indagação: qual é o cenário do trabalho contemporâneo? A seguir, amparados pelos pressupostos da Saúde Coletiva e da Psicossociologia, veremos a narrativa como dispositivo capaz de emergir o sujeito, quem, ao assumir voz e protagonismo, permite desvendar o trabalho em seu ardor e pungência, constituindo modos de existência.
O (difícil) cenário do trabalho contemporâneo e seus desdobramentos
Ao pensarmos o contemporâneo como uma incógnita, um acontecer histórico a se desvelar em um curso que não é linear tampouco estanque, deparamo-nos com um cenário que não cessa de ser compreendido. O filósofo italiano nos chama a atenção para isso: "Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente" (Agamben, 2009, p. 63). Nesse prisma, as perguntas (que urgem serem feitas com avidez) devem sobrepor as respostas. As perguntas são as nossas aliadas e com elas devemos assumir o primor de interpelar e ser interpelado.
O Brasil tem sofrido intensas transformações em seu recente cenário político e institucional. Há um recrudescimento neoliberal, em que o conflito capital e trabalho, manifestado em sucessivas crises, tem se acirrado ainda mais. Segundo Chaui (2008), a política neoliberal dispensa a garantia de direitos para que estes se tornem serviços, mercadorias a serem vendidas e compradas, sendo um privilégio de classes abastadas. Essa realidade nos faz interrogar os atuais rumos da democracia e do campo social ao observar a ameaça aos direitos históricos atinentes à classe trabalhadora e à sociedade.
A conquista dos direitos das trabalhadoras e trabalhadores remonta a uma tenra história, cravada por conflitos e lutas1. Ao longo do percurso histórico esses direitos têm sido constantemente ameaçados, sendo a fragilidade e a instabilidade legislativa aspectos que evidenciam esse cenário brasileiro obscuro. Exemplo disso, entre inúmeros projetos de lei e outras proposições desta natureza que tramitam2, é a proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287/2016, versando sobre a reforma do sistema previdenciário, o Projeto de Lei (PL) 6787/2016, conhecido como reforma trabalhista, aprovado pela Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado como Projeto de Lei da Câmara (PLC) 38/2017, o qual põe em risco centenas de itens da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), como a sobreposição da tese do negociado sobre o legislado em relação a direitos até então garantidos pela lei trabalhista, e o PL 4330/2004 e PLC 30/2015, que estão no Senado, sobre a terceirização.
Conforme o Dossiê reforma trabalhista, recente documento publicado pelo Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (2017), realizado por meio de um Grupo de Trabalho que, ao elaborar uma arguta análise desse cenário de desmonte e ao resgatar o processo histórico pré e pós-legislação trabalhista no Brasil, explicita os desastrosos efeitos sobre a vida das trabalhadoras e trabalhadores.
O mantra da "reforma trabalhista" geralmente emerge em momentos de fortes instabilidades políticas e institucionais. Trata-se de uma história que se perpetua e se reinventa na atual conjuntura, que coloca em xeque a democracia e a luta dos trabalhadores por direitos. (...) Dessa forma, pregar a inexistência das atuais instituições públicas do trabalho é manifestar-se contra os patamares legais construídos a ferro e fogo em um Brasil de capitalismo tardio, com normas de proteção social ao trabalho que foram sendo institucionalizadas de forma sistemática a partir de 1930, passando pela CLT, pela criação e instalação da Justiça do Trabalho e pela elevação dos direitos dos trabalhadores à condição de direitos sociais fundamentais pela Constituição de 1988. É opor-se às possibilidades de resolução de conflitos por via da ordem legal, ordem essa que visa à requalificação do espaço público do país (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, 2017, pp. 7 e 15).
Nestes termos, estas proposições ferem diretamente as políticas de proteção e de direitos humanos, arduamente conquistados na história brasileira, especialmente na virada do século XIX para o XX, em um cenário onde mais que uma industrialização postergada, tardou o processo de institucionalização de uma regulação social protetora do trabalho. Isso em um país que, além da persistência de altíssimos índices de acidente e adoecimento relacionados ao trabalho, são vividas ainda condições de trabalho análogas à escravidão3 (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, 2017).
É em meio a esse panorama que se delineiam de modo funesto condições e relações de trabalho precarizadas que têm atingido incontáveis trabalhadoras e trabalhadores brasileiros. Incontáveis porque não se traduz em números fidedignos a quantidade de sujeitos que adoece e morre em decorrência do trabalho e do não trabalho (jogam-se no limbo aqueles que foram excluídos do mercado de trabalho). A subnotificação, a invisibilidade e o silenciamento são marcos que constituem esse universo de estatísticas díspares, conforme a fonte e as bases de dados consultadas. Além destes registros serem escassos, os dados não estão integrados entre as instituições que deles se encarregam4, por exemplo: o Ministério da Previdência Social (que reporta apenas aos trabalhadores formais), o Ministério do Trabalho e Emprego e o Ministério da Saúde, sem mencionar os próprios sindicatos das diferentes categorias.
Segundo o Ministério Público do Trabalho (MPT Notícias, 2017), em torno de R$ 22 bilhões foram os custos com benefícios acidentários decorrentes de acidentes e doenças ocupacionais desde 2012. Isso significa que ao menos 280 milhões de dias de trabalho foram perdidos por mulheres e homens estarem incapacitados para o exercício do labor. Na tentativa de dimensionar este cenário da nocividade do trabalho no Brasil, como indicadores de frequência de acidentes de trabalho, número de notificações de acidentes de trabalho, gastos previdenciários acumulados, afastamentos e mortes por acidente de trabalho, localização, os ramos de atividade econômica envolvidos, bem como os perfis das vítimas e descrições da Classificação Internacional de Doenças (CID), foi criada uma ferramenta online. Trata-se do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho (https://observatoriosst.mpt.mp.br), lançado pelo MPT e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) este ano.
Embora não seja foco deste texto trazer uma análise pormenorizada desse quadro nocivo do trabalho, iremos destacar dele alguns aspectos dos agravos que assaltam a mulher e o homem que trabalham. Segundo a Empresa Brasil de Comunicação (2016), o país possui pelo menos 700 mil acidentes de trabalho a cada ano. Esse índice, conforme a OIT, insere o Brasil no quarto lugar do mundo em acidentes de trabalho, estando somente atrás da China, Índia e Indonésia.
Constatar que o Brasil é o quarto em acidentes no mundo não é suficiente. É preciso compreender, em um processo de escuta, diálogo e acolhimento dos incontáveis brasileiras e brasileiros, a gênese dos agravos que adoecem e matam todos os dias o sujeito no exercício do seu trabalho. Estamos lidando com fenômenos que extrapolam o universo estatístico, pois não se rendem exclusivamente à codificação numérica, mas demandam uma construção compreensiva e interpretativa por se referir à esfera das experiências, do vivido, das situações, opiniões, crenças, palavras, representações, dos sentidos da ação e seus significados no campo singular e coletivo.
O aviltamento a vida humana no trabalho urge ser superado. É indispensável transpor a lógica de monetização dos riscos, agravos e mortes relacionados ao trabalho. Essa lógica perversa atua de maneira que não somente o empregador abstraia ou negue o risco a que estão submetidos, mas também a própria trabalhadora e trabalhador. Conforme Seligmann-Silva (2011), a pessoa que labora, ao tornar-se uma entidade contábil, as suas ações passam a ser ditadas pelo valor monetário, impelindo-a a aceitar as condições precárias de trabalho, sendo essas, pagas em dinheiro – o que impede a transformação dessa realidade laboral penosa. Acresce-se a isso o desrespeito às necessidades fisiológicas e aos afetos que perfazem as relações laborais deterioradas, as quais ignoram a condição humana ao submeter o sujeito a situações perniciosas. A negação do ser humano implanta-se por intermédio tanto do desrespeito ao corpo da trabalhadora e do trabalhador quanto do ataque à dignidade.
Nessa lógica, a voz dominante pertence ao conhecimento técnico, deslegitimando o saber do trabalhador. Isso impera desde os primórdios da legislação trabalhista no Brasil sobre os acidentes de trabalho. Uma tabela de cálculos de indenizações foi construída, sendo cada parte do corpo humano remetida a uma porcentagem a ser indenizada com determinado valor, caso fosse constatada uma incapacidade. Acerca disso, Munakata (1984) analisa o campo legislativo, ao expor, desde o início do século XX, a construção de dispositivos legais que atendiam aos interesses patronais, centrando em torno da trabalhadora e trabalhador a responsabilização pelo risco profissional e a ideia de negligência. O que nos interessa, nesse pensamento arcaico, é demonstrar que essa lógica ainda perdura: a culpabilização e silenciamento do trabalhador de um lado, e do outro, a omissão dos empregadores e instituições afins: "...a morbidez delirante da burocracia que trata o corpo do operário como num açougue. Mais do que isso, ela é uma tentativa de retirar do trabalhador a capacidade de controlar e avaliar o seu próprio corpo" (Munakata, 1984, p. 35).
Efeito disso "...é criar, em nome da neutralidade técnica, da objetividade científica e do cálculo exato, não apenas um mecanismo no qual o operário não tem mais acesso: é roubar ao operário o saber que este já possui e que é sua arma" (Munakata, 1984, p. 36, grifos do autor).
No tocante a isso, em recente publicação, Lacaz (2016) circunstancia a persistência do adoecimento e morte de trabalhadoras e trabalhadores brasileiros, discute o campo das Políticas Públicas em Segurança e Saúde do Trabalhador e os desafios da execução delas em uma conjuntura em que as instituições estão fragmentadas, desarticuladas e as tradicionais formas de representação fragilizadas. Neste ensaio, mediante a análise de notícias de acidentes de trabalho publicadas em jornais e revistas, o autor aponta um cenário: a "...catástrofe social que vem vitimando milhões de trabalhadores brasileiros ao longo dos anos" (Lacaz, 2016, p. 6).
Mas o que tem ocorrido no mundo do trabalho? Diferentes estudos sobre o Brasil e a conjuntura internacional vêm sendo realizados. A fim de situar as principais transformações na produção e gestão do trabalho no final do século XX e início do século XXI, apresentamos um quadro abaixo que menciona as transformações em vigor e alguns de seus efeitos5.
Quadro 1: As transformações em vigor e alguns de seus efeitos
Transformações | Efeitos |
Acirramento da concorrência interna e externa. | Banalização da injustiça; negação do sofrimento; violência; fragilização dos pertencimentos; degradação da saúde do trabalhador. |
Acentuação das aquisições, fusões e privatizações perversas. | Quebra dos laços sociais e afetivos; perda do sentido do trabalho; sentimento de deriva – dentro e fora do trabalho. |
Flexibilização. | Perda e restrição dos direitos trabalhistas; vivência de constrangimentos e inseguranças do mercado de trabalho desigual, incerto e imprevisível; culpabilização do indivíduo de modo unilateral (por seu sucesso e fracasso). |
Evolução tecnológica e automatizações (informatização e implementação digital). | Aumento do trabalho morto; perda do sentido do trabalho; necessidade do capital do trabalho vivo. |
Flutuação e exclusão da mão de obra. | Exército de reserva; exclusão permanente; perda da cidadania e empobrecimento. |
Recorrentes crises financeiras. | Ausência de pleno desenvolvimento econômico-social; falhas do ideário neoliberal na promessa de amadurecimento do sistema econômico; imprevisibilidade das crises e do mercado. |
Fonte: Duarte (2015).
Não é acontecimento recente os riscos e o desamparo a que estão submetidos os sujeitos que laboram. Mattoso (1995) já acenava as diferentes modalidades de insegurança e desproteção que trabalhadoras e trabalhadores viviam e que ainda hoje persistem: a insegurança no mercado de trabalho, no emprego, na renda, na contratação, na legislação e na representatividade. Tal insegurança ultrapassa a aparência simplista e pragmática que muitos empresários (e o próprio Estado) vociferam na atualidade: flexibilização trabalhista. Para além do campo legislativo e jurídico, as transformações referentes aos direitos no trabalho, as mudanças nos modos de gestão e processo laboral são experimentadas no corpo, nos afetos e nas relações sociais – dimensões estas que constituem modos de ser-trabalhar-existir. São nessas dimensões que são experienciadas as diversas formas de inseguranças apontadas até aqui. Nelas são modulados os modos de existência dos sujeitos, assumindo formas de sofrer e adoecer que ultrapassam a individualidade, alçando as relações familiares, comunitárias e com o território.
A subjugação dos sujeitos dá-se mediante a construção de um imaginário social dominado pela lógica capitalista que captura desejos, aspirações, projetos e ideais. Um domínio que excede o campo da economia, atingindo a sociedade inteira. Trata-se de um paradigma utilitarista que transforma a sociedade em máquina de produção, tendo como executores o ser humano, que, além de ser instrumentalizado para satisfazer a produção em detrimento de si, é enquadrado em um padrão de valores cujos critérios de medição são exclusivamente financeiros, o qual designa quem é (im)produtivo e quem é (in)útil. Nessa análise, Gaulejac (2007) evidencia a ideologia dominante que constrói um imaginário em torno da realização de si, desatando o tecido social: "A finalidade da atividade humana não é mais 'fazer sociedade', ou seja, produzir ligação social, mas explorar recursos, sejam eles materiais ou humanos" ( p. 77).
Ao nos vermos nesse horizonte desolador é importante conclamar o direito à vida que se faz por condições de existência e trabalho dignas, afirmativas e promotoras de saúde. Todavia, para avançar nessa direção é necessário reconhecer a relação entre saúde e campo social, sua complexidade e seus processos que compõem os modos de viver. Para tanto, o diálogo entre a Saúde Coletiva e a Psicossociologia são seminais, respaldando o desvendar do trabalho a partir de uma acepção que busca entender a conjuntura sem dispensar a subjetividade.
O aprofundamento da noção de saúde é contributo da Saúde Coletiva enquanto campo de conhecimento e práticas caracterizado pela interdisciplinaridade que legitima o diálogo entre saberes. A Saúde Coletiva, mediante o conceito dos Determinantes Sociais de Saúde (DSS), entende a saúde atrelada à produção social ao explicitar seus determinantes e condicionantes para além do indivíduo e seu aparato biológico. Nesses termos, deve-se conhecer onde a vida transcorre, sendo esta afetada pelas condições em que se vive e trabalha. Os DSS alertam-nos para identificar e deslindar os fatores sociais, econômicos, culturais, psicológicos, étnicos/raciais que interferem na saúde, especialmente os que criam as desigualdades e iniquidades em saúde, lançando pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade e expostos a diversos riscos (Buss & Pellegrini Filho, 2007).
Para além da doença, ao visar a Promoção de Saúde (PS), os princípios da Saúde Coletiva remetem aos sujeitos concretos e seu cotidiano. Requer conhecer sua realidade e se debruçar sobre os territórios de existência singular e coletiva. Segundo Westphal (2006), está no bojo da PS o processo participativo capaz de gerar melhorias nas condições de vida das comunidades e grupos – o que faz da Atenção Primária em saúde o principal dispositivo para essa produção.
Nesse prisma, a Psicossociologia dialoga com a Saúde Coletiva, com destaque para os DSS, ao conceber a mulher e o homem como sujeitos sociais e atuantes, ao buscar nas condições materiais e históricas os modos de existir produzidos. Trata-se do sujeito que se constitui na relação com o outro e em situação, por não estar apartado o individual e o coletivo, o afetivo e o institucional, os processos que são inconscientes, mas também sociais. Isso implica uma co-determinação entre indivíduo e sociedade. Na Psicossociologia, o campo de análise e intervenção é o "entre" que vincula o social (constituído pelas dimensões subjetivas, afetivas e inconscientes) e o psíquico (constituído pelas dimensões culturais, discursivas, sociais, históricas e políticas) (Ardoino & Barus-Michel, 2005; Gaulejac, 2001).
Diante dessa relação entre sujeito e sociedade, fruto de um processo histórico, as dimensões macro e micro da realidade social remontam à existência singular situada em uma conjuntura, pois sujeito e subjetividade estão inscritos em uma determinada época, lugar, cultura, (não) trabalho, classe social, grupos e instituições (Gaulejac, 2001, 2009).
Recorrer a compreensões que superem dicotomias, como a corpo-psique, permite manifestar os fatores que compõem as difusas formas de mal-estar e sofrimento psíquico que têm acometido a mulher e homem que laboram nesse cenário. Esta demarcação conceitual permite remontar ao socius o que de maneira contumaz se atribui exclusivamente como responsabilidade do indivíduo. Tal assertiva visa superar concepções solipsistas em que as causas do sofrimento, adoecer e morte são impugnadas na vivência da culpa e da individualização – o que, além de sujeitar o ser humano, impede a compreensão e combate das causas dos agravos.
E quais podem ser esses agravos que marcam os modos de ser-trabalhar-existir? Além das diferentes doenças profissionais e relacionadas ao trabalho, mais o acidente de trabalho, a vivência do sofrimento no trabalho assume um espectro amplo. Em um estudo circunscrito, realizado por Brant e Gomez (2005), podemos ilustrar as facetas que o sofrimento vinculado à gestão e os processos produtivos podem assumir, lançando os sujeitos a distintos mal-estares: somatização, patologização, psiquiatrização, medicalização, licença médica, internação hospitalar, aposentadoria por invalidez, demissão.
São nesses feixes sociais e singulares que o sofrimento toma forma, por isso a indispensabilidade da Saúde Coletiva e a Psicossociologia para respaldar a investigação dos modos de ser-trabalhar-existir. Contudo, para compreendê-los, propomos o campo narrativo como dispositivo capaz de evidenciar a complexidade deste fenômeno ao conferir meios de identificar o que no trabalho atenta contra o corpo, como também o que afeta a subjetividade, logo, que modos de existência são forjados no campo singular e social.
O campo narrativo e a potência deste ato como dispositivos que nos convidam a olhar, escutar e acolher a trabalhadora e o trabalhador
Recordar: Do latim re-cordis, tornar a passar pelo coração.
Galeano (2002).
Como desvendar os DSS e conhecer o sujeito social, manifestados nos distintos modos de ser-trabalhar-existir, a fim de desnudar a potência de vida e morte contidos no trabalho? Para pensar isso propomos a narrativa como dispositivo, uma vez que ultrapassa o campo metodológico por possuir um caráter epistêmico e ontológico que a Psicossociologia ajuda-nos conceber.
As narrativas, de maneira simples, são o contar, o falar de si (de algo). E quem fala de si (de algo) refrata o campo social, um período histórico. O sujeito social, conforme a Psicossociologia compreende, é o sujeito que enuncia algo na primeira pessoa do plural: "O nós proclama o laço solidário, a subjectividade da unidade social, e o reconhecimento mútuo forja um imaginário que dá o seu vigor ideal às trocas e às práticas" (Ardoino & Barus-Michel, 2005, p. 208).
Isso nos aproxima de Le Grand (2005), que analisa a história de vida (ou relatos de vida). Para o autor, antes de ser uma abordagem ou um método, ela possui uma dimensão antropológica porque diz respeito à função da vida humana: "A história de vida faz mesmo parte das artes da existência" (p. 276). Está circunscrita em um universo simbólico, geracional, social e temporal.
O narrar possibilita deparar-se consigo e com o outro, exprimindo a densidade existencial: perdas, lutos, desejos, lutas e projetos. Coerente com os DSS e o campo psicossociológico, as narrativas, ao manifestarem as histórias de vida, estão na intersecção do individual (exalando a subjetividade e singularidade) e do sócio-histórico e político.
A potência do ato narrativo evoca um encontro entre interlocutores: "Com efeito, não há história sem interlocutores, há sempre um destinatário actual na interacção relacional..." (Le Grand, 2005, p. 276).
Poderíamos pensar um encontro a acontecer entre os profissionais de saúde e as trabalhadoras e trabalhadores nos equipamentos e serviços de saúde, encontros intersetoriais entre educação e assistência social, um encontro no campo social mediante a atuação do controle social e de entidades representativas do trabalhador, um encontro entre universidade e a comunidade-serviço, um encontro entre saberes, inclusive os da trabalhadora e trabalhador. Distintos encontros podem ocorrer e serem criados, em que o ato narrativo, ao requerer um diálogo, oportuniza o anunciar dos modos de ser-trabalhar-existir; logo, explicita o processo saúde-doença relacionado ao trabalho.
Ao envolver memória, enunciado e interlocutores, a narrativa torna-se um potente dispositivo para examinar os modos de trabalho e sociedade que temos construído, bem como seus efeitos. A narrativa nos impulsiona a ampliar a indagação acerca do vivido, especialmente no viés ético e político sobre as condições de existência, uma vez que, segundo Ardoino e Barus-Michel (2005), são as interações e as trocas que produzem significações.
Além disso, quem narra, protagoniza e se apropria de sua história. Um protagonismo que deve ser fortalecido no campo social, cabendo a trabalhadora e ao trabalhador anunciar e interrogar (para si e para o outro): Qual trabalho é digno e humano? O que é ser trabalhadora ou trabalhador? Como é (não) trabalhar e existir mediante o (não) labor? Qual a origem do meu sofrimento, está relacionado ao trabalho?
Ao narrar, a vida adquire densidade e concretude mediante o relatar dos dilemas, incertezas, inseguranças, sofrimento e dor do trabalhar. Mas também permite encontrar a manifestação do desejo, do prazer, do reconhecimento (de si e do outro) e da saúde no ato laborativo.
A narrativa visa à produção de sentido, o qual não é dado de antemão. Faz-se ao anunciar, recordar e visitar o vivido numa perspectiva temporal capaz de conjugar passado-presente-futuro – o tríplice presente que Ricoeur (2010) nos ensina. Essa tríade temporal contida no enredo da narrativa traz lembranças e expectativas ao mesmo tempo que evoca atenção e memória, pois é neste tríplice presente que a narrativa se desenvolve. Da história universal à história de uma vida. Por essa via, o contemporâneo, conhecido e a se conhecer, como havíamos sinalizado no início deste texto, é capaz de conjugar distintas temporalidades, demanda-nos uma reflexão mais ampla da conjuntura histórico-social sem dispensar os processos de subjetivação.
A produção do sentido é indispensável para rever a si, o outro e o mundo ao derredor, pois enquanto sujeito de experiência e desejo, o narrar permite elaborar critérios, escolhas, valores e elementos para julgar algo. Tal como o esforço da Saúde Coletiva de vincular o campo social a saúde, ao alargar sua visão de clínica ampliada em busca da produção de sentido, o sujeito da Psicossociologia vai ao encontro dessa premissa, permitindo-nos assumir que a narrativa é uma via de afirmar esse sujeito e a construção da sua identidade por meio do esforço de atrelar sua história, seus atos e seus projetos – um concatenar do acontecer e dos encontros que se dão no tempo e no espaço.
Diante disto, são muitos os aspectos a se inquirir acerca dos fatores que constituem os modos de ser-trabalhar-existir: como se vive a pressão de (não) conseguir entrar no mercado de trabalho, a pressão por resultados e suficiência, as relações perversas de trabalho que se desdobram em distintas modalidades de violência? Onde, como e por que estão adoecendo e morrendo as trabalhadoras e trabalhadores brasileiros? Quem são? Quais são os seus destinos? Como enfrentar essa realidade no campo social?
Não são apenas essas trabalhadoras e trabalhadores que padecem dessas formas de sofrer vinculadas ao trabalho, mas também seus familiares, vizinhança, grupos e comunidade. Um olhar atento para os casos de adoecimento e morte relacionados ao trabalho permitem reconhecer que as consequências desses agravos ultrapassam o local de atividade profissional, estendendo-se à esfera privada, doméstica e relacional.
É preciso desvendar, nos índices de absenteísmo e presenteísmo, a relação com o trabalho e os seus sentidos e significados assumidos no campo singular e social. A constante ameaça da perda do trabalho ou do posto ocupado, faz com que esse sofrimento venha ocultado. Para adentrar neste meandro, a porta se faz pela ato narrativo. Por meio do narrar podemos olhar, escutar e acolher o silêncio, medo, a angústia, vergonha e humilhação da trabalhadora e trabalhador. No sintoma, buscar entender o que se anuncia. Uma via longa que requer uma disponibilidade ética e política para isso. Por que narrar? Narrar para viver, mas denunciar a morte, indagando que forma de vida temos construído e qual almejamos.
Diante do exposto, narrar não tem desdobramento apenas teórico-metodológico. Ultrapassa a largo este âmbito. O ato narrativo anuncia a existência e seu entorno psicossocial. Explicita modos de vida e morte, prazer e sofrimento. Reflete a sociedade de uma época e sua história tracejada. É capaz de desvelar o processo saúde-doença. Abre espaço para a autoria do vivido em uma perspectiva de protagonização, evidenciando o sujeito social. Nesses termos, ultrapassa a esfera privada para situar o jogo de forças que fragiliza e desumaniza, bem como os movimentos desejantes e de resistência.
Segundo Ardoino e Barus-Michel (2005), o sujeito é também capaz de agir no mundo, com possibilidades de invenção. Na perspectiva clínica da Psicossociologia, vemos que o sujeito é compreendido como aquele que se manifesta pela enunciação e pelo desejo em um contexto, pois é ser de linguagem e por meio dela se faz conhecido e permite conhecer o mundo e a si.
Narrar é algo em que devemos nos aprimorar, seja enquanto cientistas, profissionais do campo social (saúde, educação etc.) seja enquanto ser humano imerso em distintas instituições (família, grupos, organizações, comunidade etc.).
E por tratarmos do labor, objeto de discussão neste texto, o ato narrativo torna-se imperativo. Narrar para produzir vida, pois é demanda para o campo social explicitar, compreender e debater no foro público os modos de trabalho e existência que estamos construindo nesse momento histórico.
Por isso insistimos, será que estamos disponíveis a olhar, escutar e acolher o corpo, a voz e a subjetividade da mulher e do homem que trabalham? Estamos atentos para as narrativas a serem abertas, conforme nos anuncia a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (2012, p. 2, grifos nossos), ao afirmar que:
III - o conhecimento técnico e os saberes, experiências e subjetividade dos trabalhadores e destes com as respectivas práticas institucionais (...).
- Interdisciplinaridade: a abordagem multiprofissional sobre o objeto da vigilância em saúde do trabalhador deve contemplar os saberes técnicos, com a concorrência de diferentes áreas do conhecimento e, fundamentalmente, o saber dos trabalhadores, necessários para o desenvolvimento da ação (...).
As pessoas e os grupos vulneráveis de que trata o caput devem ser identificados e definidos a partir da análise da situação de saúde local e regional e da discussão com a comunidade, trabalhadores e outros atores sociais de interesse à saúde dos trabalhadores, considerando-se suas especificidades e singularidades culturais e sociais.
Quais são os campos discursivos e conceituais que designam lugares, concebem sujeitos e inserem saberes manifestados em práticas, técnicas e operações dos profissionais atuantes em Saúde do Trabalhador? Será que de fato instaura-se um campo narrativo e dialógico com a trabalhadora e o trabalhador?
Além do degradante cenário político, social e institucional que estamos atravessando, alavancado pelo recrudescimento neoliberal, estamos enquanto profissionais, pesquisadores e trabalhadoras e trabalhadores desafiados a promover em nossa atuação um encontro legítimo entre saberes, sendo a narrativa um campo e dispositivo a potencializar o resgate de quem labora, em busca da vida e da dignidade.
Quais caminhos seriam possíveis? Em tempos de fragilização democrática e destituição de direitos, temos um horizonte em que precisamos (re)construir ações legitimamente democráticas, dialogadas e emancipadoras em nossa atuação. Seja para realizar um contra-poder, seja para intervir nas ações pública e privada que ferem a saúde da trabalhadora e do trabalhador, logo, da sociedade.
São os distintos coletivos de iniciativa popular de base e autogestionários que podem compor (com) o controle social, extrapolando os equipamentos e serviços de saúde. Um locus onde a participação das trabalhadoras e trabalhadores na fiscalização, no controle do trabalho, no cuidado e assistência (proteção, prevenção a promoção), na produção e difusão de informações e do próprio processo de vigilância pode conferir rumos mais promissores à saúde no trabalho. Isso significa sobrepujar o discurso predominante dos técnicos que falam pelo trabalhador, reconhecidos como "...'isentos', 'objetivos', 'neutros', 'científicos' e 'competentes' (...) Os trabalhadores, por sua vez, são relegados ao terreno da incompetência: eles não podem mais falar deles mesmos" (Munakata, 1984, p. 36).
É preciso participar da elaboração e decisões políticas, intervir na definição de diretrizes afetas ao universo do trabalho e dos orçamentos públicos a fim de garantir tanto o acesso quanto a proteção e defesa em Saúde do Trabalhador. Construir formas de intervenção em que o narrar possa oportunizar a comunicação e trocas de experiências de modo participativo, desde os dispositivos de assistência e cuidado até os de avaliação e produção de saúde – para além da doença, ao examinar o processo produtivo, assim como a conjuntura socioeconômica e político-institucional. Enfim, são muitos os caminhos a serem abertos, criados, inventados e experimentados.
Palavras finais
Os pressupostos dos DSS na perspectiva da Saúde Coletiva, mais os da Psicossociologia, operacionalizadas por meio da narrativa, possuem elementos fundamentais para investigar a conjuntura e a subjetividade da mulher e do homem que trabalha. Por meio dessa triangulação podemos (re)conhecer e (re)construir tanto os modos de ser-trabalhar-existir quanto a sociedade, pois é com o saber da trabalhadora e trabalhador que podemos encontrar pistas não somente capazes de denunciar o quadro de morbimortalidade relacionado ao labor, mas também caminhos de vida para transformação. A narrativa, enquanto ato enunciador, é potente para produzir sentido ao declarar as formas de dominação, contradição, negação do ser humano, bem como seu contrário: "...inscrevendo-se numa história onde ele puxa os fios na fruição ou no sofrimento, decifra ou fabrica um sentido para se afirmar sujeito; mesmo a sua queixa de ser objecto maltratado exprime essa sede de ser sujeito" (Ardoino & Barus-Michel, 2005, p. 206).
Assumir o ato narrativo, seja enquanto forma de produção de conhecimento como também de posicionamento ético-político (uma atuação profissional regida pela perspectiva de luta), é um desafio que requer enfrentamentos diários. Reconhecer como legítimo o saber da trabalhadora e trabalhador, escutá-lo e acolhê-lo em seu sofrimento e desejos, assim como dialogar e debater sem subjugar, é uma via longa. Principalmente por estarmos inseridos em um modo de produção capitalista, cuja égide do conflito capital e trabalho (com o qual devemos atuar) é demarcado pela exploração, exclusão e dominação. Soma-se a isso a realidade de um país em que impera uma frágil democracia, sustentada por uma sociedade oligárquica, hierárquica, violenta e autoritária, onde os direitos básicos são negligenciados, conforme aponta Chaui (2008).
Não é novidade que na história do Brasil o poder deliberativo está restringido às trabalhadoras e aos trabalhadores, como afirma Manukata (1984). Anunciar a vida, ao narrá-la, é denunciar o cerne social e econômico vigente, devendo persistir a mesma saída, lutar.
Perante isso, a narrativa, ao ser algo a se contar, é também uma forma de testemunhar o mundo, o vivido e a existência. Ela tece um depoimento e um enredo em que a realidade (em suas dimensões subjetiva, social, histórica, econômica, política, cultural e ética) pode ser desvelada naquilo que nega o ser humano ou que afirma a humanidade. Portanto, um importante dispositivo de análise, reflexão, luta e subversão, ao fazer emergir outras verdades e versões da história, ao revelar um mundo que assume forma e concretude por expressar o vivido de um grupo social, organização e instituição. Ricoeur (2010) nos alerta que a linguagem articula experiência e ação.
Sendo assim, a Saúde Coletiva e a Psicossociologia, no horizonte da Saúde do Trabalhador, consente o trabalhador como sujeito não apenas de direitos, mas de saberes irrenunciáveis, pois suas vivências, além de sinalizarem seu próprio sofrimento, abrem para a análise do real do trabalho. O direito à saúde, cidadania, justiça, diversidade e à vida passa pela transformação do processo de produção, das instituições e da sociedade, que, de fonte de agravos e de morte, deve ser um fator de proteção e de promoção da vida (Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, 2012; Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador, 2006).
Distinguir esse panorama é imprescindível para tecer contraposição e enfrentamento. O ato narrativo, amparado na análise dos DSS e na concepção de sujeito de direito, que compõe o sujeito social na Psicossociologia, é uma via aberta. O sujeito de direito, conforme Ardoino e Barus-Michel (2005), em um viés ético e democrático, é um sujeito que dispõe da voz em uma perspectiva política de reconhecimento do outro, de sua pertença ao campo social e coletivo, em uma pluralidade, por intermédio do estabelecimento de princípios que garantam a preservação da existência e a afirmação da dignidade.
Nesta via, temos como desafio (re)conhecer a trabalhadora e trabalhador como sujeitos de saberes que, ao assumirem sua voz e protagonismo, podem conferir meios para transformação social e laboral, abrasando inquietações e mudanças: sendo "...uma forma de hermenêutica da existência, ou por outras palavras, de dotação de sentido sobre a existência humana..." (Le Grand, 2005, p. 277).
Como apontamos anteriormente, estamos atravessando um momento de acentuado retrocesso e subtração dos direitos sociais, o que nos instiga, enquanto uma sociedade que se almeja democrática, (re)afirmar os direitos conquistados e criar direitos reais, ampliar os existentes e construir novos nivelados à demanda da trabalhadora e do trabalhador, como nos encoraja Chaui (2008).
É urgente construirmos outras narrativas, capazes de desnudar os argumentos falaciosos e frágeis que compõem o rol da reforma trabalhista que, aliás, estão claramente alinhados aos interesses patronais e de lucratividade, regidos pelo livre mercado. A retirada de direitos, além de ir na contramão da Constituição, ignora a assimetria de poder, força e desigualdade gerada na relação entre trabalho e capital. Sem essas balizas legais à classe que vive do trabalho, as trabalhadoras e trabalhadores estarão a deriva em meio a ascendentes riscos e inseguranças que acometerão suas existências. A iniquidade, injustiça e decadentes situações de negociação serão expressas nos modos de ser-trabalhar-viver, inclusive na esfera da saúde e segurança, haja vista que sem a regulação pública do trabalho (como as normas e parâmetros protetivos), o aumento da precarização, vulnerabilização e insegurança serão acentuados nos modos de adoecer e morrer relacionados ao trabalho.
Nesse contemporâneo, ansiamos compreender e produzir significados que afirmem a vida em seus modos de ser-trabalhar-existir. Para tanto, acreditamos que a Saúde Coletiva, a Psicossociologia e a narrativa são aliadas nessa empreitada.
Referências
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Endereço para correspondência
daduarte@uem.br
Recebido em: 03/02/2017
Revisado em: 01/07/2017
Aprovado em: 10/07/2017
1 Ao resgatar o processo histórico da construção da legislação trabalhista brasileira, Munakata (1984) assinala que a organização e a mobilização permanente dos trabalhadores (desde sindicatos até associações e movimentos sociais de diferentes vieses políticos e ideológicos) foram fundamentais para a defesa das categorias, sobretudo em um contexto em que não havia instituições que conferissem garantias, tanto de direitos a serem cumpridos pelo Estado quanto de leis e estabelecimentos judiciais desta natureza. Se no século XXI houver o desmonte das atuais leis trabalhistas, retrocederemos ao século XIX, quando não havia estes marcos regulatórios. Além de não serem criados efetivamente novos empregos, a classe trabalhadora é quem viverá distintas formas de insegurança, incerteza, vulnerabilização e precarização da vida e do trabalho (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, 2017).
2 Para acompanhar estas tramitações e outras atividades legislativas afins, apresentadas na forma de projetos de lei e outras proposições, bem como de diferentes matérias, acessar a página da Câmara dos Deputados http://www.camara.leg.br/ buscaProposicoesWeb/pesquisaSimplificada e do Senado Federal https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/ acompanhamento/minhas-materias.
3 Desde 1995, estima-se que mais de 50 mil pessoas foram resgatadas, no Brasil, do trabalho em condição análoga à de escravo. Dados do trabalho escravo no território brasileiro podem ser pesquisados em Observatório Digital específico (https://observatorioescravo.mpt.mp.br/), lançados pelo Ministério Público do Trabalho e pela Organização Internacional do Trabalho.
4 Alguns destes registros podem ser consultados, como o Anuário Estatístico da Previdência Social (2014) e o Anuário da Saúde do Trabalhador (2016), organizado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE).
5 Temos clareza da amplitude de publicações nesta área. Contudo, buscamos de maneira pontual situar alguns elementos com o objetivo de nomear, para essa discussão, a problemática que desafia os atores sociais e as instituições. Para tanto, o quadro foi reproduzido de maneira parcial, podendo sua versão completa ser consultada diretamente na fonte (Duarte, 2015).