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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
versão impressa ISSN 1516-3717
Cad. psicol. soc. trab. vol.20 no.2 São Paulo jul./dez. 2017
https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v20i2p129-142
DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v20i2p129-142
ARTIGOS ORIGINAIS
Processos de formação em saúde: a estratégia da educação a distância numa experiência da Política Nacional de Humanização do SUS
Health training processes in health: the strategy of distance education in an experience of the National Humanization Policy of SUS
Hélder Pordeus MunizI,II; Maria Elizabeth Barros de BarrosI,II; Cláudia Elizabeth Abbês Baêta NevesI,II
IUniversidade Federal Fluminense (Niterói, Rio de Janeiro, Brasil),
IIUniversidade Federal do Espírito Santo (Vitória, Espírito Santo, Brasil)
RESUMO
Este ensaio tem por objetivo discutir os desafios na formação de trabalhadoras de saúde sob a estratégia da educação a distância (EaD). Avalia-se a aposta num trabalho em que a experiência, enquanto narrativa de um conhecimento acumulado por gerações, nos torna tanto parte da história quanto abertura ao devir. A metodologia utilizada foi a análise das experiências de trabalhadores e trabalhadoras do Sistema Único de Saúde (SUS), a partir de relatos e situações vivenciadas. Indica como resultado a potência da EaD nos processos formativos â o alcance extensivo desses processos â bem como seus limites no que tange à visualização da emoção, da expressão corporal e da produção de sentido do discurso. Conclui-se que a comunicação virtual permitiu a cooperação de profissionais de diferentes municípios, a despeito de os encontros presenciais terem sido imprescindíveis à construção de diretrizes éticas para o trabalho em comum.
Palavras-chave: Formação, Educação a distância, Política de humanização, Gestão em saúde.
ABSTRACT
This essay aims to discuss the challenges of a training work of health workers in a strategy of distance education. The bet is placed on a work with experience understood as a narrative of an accumulated knowledge of generations, which constitutes us as part of our history, and at the same time, openness to becoming. The methodology that guided the work was the analysis of SUS workers' experiences, based on actual reports and situations experienced. It indicates as a result the power of distance education in the formative processes with respect to the extensive scope of these processes, but also the limits regarding the visualization of emotion, of the corporal expression of the production of sense of discourse. It is concluded that virtual communication allowed the cooperation of professionals from different municipalities, but that face-to-face meetings were essential for the construction of ethical guidelines for common work.
Keywords: Training, Distance education, Humanization policy, Health management.
Introdução
Diversos são os trabalhos assegurando a importância da formação em ações que visam à transformação das situações de trabalho (Barros, 2001; Barros, Cesar & Silva, 2016; Gotardo, Brito, Freitas, Barros, & Araújo, 2016; Neves et al., 2015; Santos, 2004; Schwartz & Venner, 2016; Teiger & Lacomblez, 2013). Enfatizam eles o desafio do exercício de uma estratégia de formação que considere a experiência dos trabalhadores. Santos (2004), ao analisar algumas práticas de formação profissional, verifica que até mesmo trabalhadores experientes focam na transmissão de protocolos e de normas, e, muitas vezes, secundarizam o plano da experiência no debate com os trabalhadores em formação.
Schwartz (2014) entende que o trabalho envolve dramáticas de uso de si por outros (por ser, em parte, heterodeterminado) e de uso de si por si (por envolver renormatizações, criações de novas normas). Esta concepção de atividade como debate entre normas antecedentes e renormatizações vai necessitar uma maior precisão, ao reconhecer que a arbitragem na escolha de normas é encarnada em um corpo-si. Esse si é um sábio "desconhecido", retomando a fórmula de Nietzsche, e traz uma tríplice ancoragem indissociável â biológica, histórica e singular (Muniz, Santorum & França, 2018; Schwartz, 2014).
Sennett (1994), ao pensar historicamente a relação entre corpo e cidade na experiência urbana, mostra que há uma convergência dos processos que atingem o espaço e do que se imprime diretamente na carne (corpo). Na geografia urbana da modernidade, com foco no deslocamento e na velocidade, a mobilidade conquistada pela travessia dos espaços sem muito esforço físico, se, por um lado, possibilitou a ampliação da sensibilidade, por outro, favoreceu a diminuição da experiência sensorial do contato despertada por lugares ou pessoas ali presentes. Simultaneamente ao surgimento das metrópoles do século XIX, a mobilidade conquistada pelo indivíduo moderno, sob o signo da sua liberdade e do seu correlato isolamento em si mesmo, produziu o anestesiamento da experiência corporal do homem moderno. Este, sob a salvaguarda de um olhar estratégico de observador passivo, foge do contato que lhe causa estranhamento e do outro que lhe parece diferente. Essa estética imagética da liberdade de mobilidade (carros velozes, vias expressas, tecnologias) e do menor contato possível do uso dos corpos no espaço com estéticas estranhas aos paradigmas instituídos (telas de computador, guetos, condomínios fechados, shoppings centers), se intensifica, nos dias atuais, sob a tríade da velocidade, fuga e passividade. Como estarmos atentos ao uso das tecnologias e das suas franquias de mobilidade nos processos de formação à distância, sem perdermos a experiência do contato?
Os corpos em contato num dado espaço determinam suas relações mútuas â "como se veem, se ouvem, se tocam ou distanciam" (Sennett, 1994, p. 17). Nos encontros com a cidade, com os espaços e seus estranhamentos, construímos uma experiência de tateio, arriscamo-nos a perceber e a sentir algo ou alguém de modo diferente ao que sentíamos antes. Nesse tateio, aprendemos, descobrimos novos modos de habitar os espaços e, enfrentando dores na carne, perturbando a subjetividade dos limites do sujeito e da cidade, mudamos os modos de sentir e de experimentar os processos de formação.
Seguindo essas pistas, apresentamos uma proposta de formação que, não se reduzindo à transmissão de protocolos e de normas, privilegia o plano da experiência como dimensão formadora importante. Assumir essa direção formativa, a partir da concepção da atividade como dramáticas do uso do corpo-si, nos convoca à necessária avaliação acerca dos dispositivos de formação que temos construído e do modo como contribuem para a produção de um espaço de encontros de trabalho a partir das experiências. Contar histórias de trabalho implica contá-las de novo, fazendo emergir outra experiência no ato de contá-las.
A experiência de partilha dessas histórias de trabalho agita potências inesperadas e impensáveis, podendo delinear trajetos eticamente mais dignos, visto que produzem o desmoronamento do que nos é caro e habitual. A dimensão intensiva da experiência é, pois, abertura a outrem, tanto quanto expressão de um mundo possível que "introduz o signo do não-percebido no que eu percebo" (Deleuze, 1974, p. 315), alterando a experiência subjetiva. Outrem não é simplesmente um outro com quem falo ou interajo em uma relação de intersubjetividade, mas abertura a outro plano de sensibilidades, "um operador de diferenciação, que dissolve as identidades, as desterritorializa, leva-nos para longe de nós ao nos distrair com outros mundos possíveis" (Caiafa, 2002, p. 97).
Além disso, as pesquisas de ergonomia da atividade (Teiger & Lacomblez, 2013) e as de psicodinâmica do trabalho (Dejours, 2012) têm demonstrado o papel decisivo dos coletivos de trabalho tanto na forma como o trabalho é gerido quanto no enfrentamento de problemas das condições e organizações do trabalho. A experiência nos processos de formação de trabalhadores, para além e aquém das vivências individuais, traz a este campo um plano da experiência que nos conecta aos estranhamentos e nos transforma ao englobar tudo.
Se essa criação coletiva é necessária, com ela levanta-se o problema sobre como essa cooperação1 e coordenação devem ser construídas e mantidas, já que são fundamentais ao processo de trabalho e à viabilização de modos de trabalhar que produzam saúde e condições dignas aos trabalhadores. A cooperação não é natural nem pode ser imposta, pois é uma construção ativa dos trabalhadores em suas experiências de contato. Uma das primeiras pistas para uma estratégia de formação seria, então, envolver os coletivos de trabalho2, mas, sem cair na armadilha de uma formação afirmadora de processos universalizantes, voltada para indivíduos isolados que realizam seus cursos e depois retornam aos seus trabalhos, buscando a replicação daqueles saberes desencarnados da realidade do trabalho, como se nada tivesse acontecido.
No entanto, isso coloca desafios vultosos, uma vez que esses coletivos de trabalho trazem consigo histórias de lutas, conquistas, fracassos, modos de dimensionamento de valores com criações de normas singulares. Como trabalhar essa riqueza no dispositivo de formação em seu duplo risco: o risco inicial de uma combustão de conflitos â a ponto de o encontro se converter em desencontro desagregador na vida profissional, incluindo a combustão como experiência de acolhida aos constrangimentos cotidianos à atividade â e o risco final de desvio inventivo na passagem de processos de coletivização e de outros modos de cooperação e renormatizações singulares.
Assumimos o pressuposto de que o trabalho envolve os encontros dos usos de corpo-si e de que eles têm sua potencialidade aumentada na cooperação. Como possibilitar, nos dispositivos de formação, a construção da confiança e da convicção de que o encontro de corpos-si se desenvolva como cooperação? Essas questões se tornam importantes no momento em que estratégias de educação a distância (EaD) têm sido propostas. Atentos aos alertas de Sennett (1994) sobre a importância das experiências de contato entre os corpos na abertura de outras sensibilidades e sociabilidades, indagamos: como um curso à distância pode ser o suporte para auxiliar na construção de trabalhos coletivos, ou seja, na construção da confiança que, por sua vez, auxilia na comunicação, cooperação e coordenação dos coletivos de trabalho?
Dreyfus (2012) alerta para a circunstância de a EaD poder auxiliar na transmissão de informações exigidas nos níveis iniciais de formação, embora apresente importantes limites, quando se trata do desenvolvimento da formação profissional ao nível de expert ou mestre, quando é necessário aprender o uso dos saberes em situações de variabilidades, incluída aí a capacidade de tomar decisões profissionais arriscadas. Enfatiza ainda que, em situações de formação presencial, tanto formandos quanto formadores vivenciam apreender reações espontâneas que se dão no coletivo e que não podem ser traduzidas por avatares ou emoticons. É uma aprendizagem não somente de discursos, mas também de procedimentos, que envolve o corpo tanto no debate quanto na ação. Além disso, na sala de aula, a probabilidade para se perceber que o que está sendo dito não está sendo compreendido ou aceito é bem maior, dado o acesso imediato ao estado de ânimo vigente coisa impossível de ser apreendida por uma câmera. Assim, uma formação de maior qualidade crítica não pode prescindir dos encontros presenciais.
Propomo-nos a analisar neste artigo as conquistas e os desafios de uma experiência de EaD em que trabalhamos como formadores3. Já alertamos, porém, não se tratar de tirar lições gerais aplicáveis a qualquer proposta de EaD, já que essa experiência foi dirigida a usuários com características específicas e com objetivos bem singulares.
O que aqui ganha relevo é a compreensão da formação como processo (de)formador, produtor de outros espaços-tempo político-existenciais-territoriais afirmados na inseparabilidade entre experiência/vida. Uma experiência que se produz em meio à atividade como dramática do uso do corpo-si.
Curso de Formação de Apoiadores para a Política Nacional de Humanização (PNH) da Gestão e da Atenção a Saúde
No primeiro mandato do governo Lula, diversos profissionais aceitaram o desafio de construir uma transformação no Sistema Único de Saúde (SUS), a partir daquilo que no próprio SUS é índice/potência de aliança com processos de autonomia e de construção coletiva. A estratégia que se produziu foi trabalhar com a perspectiva de humanização na saúde como experiência concreta de um vivente em processo de produção de si e de relações no mundo, desconstruindo a visão humanista dominante calcada em práticas piedosas e assistencialistas â o que não se pode realizar sem o trabalho constante da produção de outros modos de vida e de novas práticas de cuidado consigo e com o outro. O propósito dessa política era contribuir para a melhoria da qualidade da atenção e da gestão da saúde no Brasil por meio do fortalecimento da Humanização como política transversal na rede de saúde. Assim, criou-se a Política Nacional de Humanização PNH (Brasil, 2004), afirmada como transversal a todos os programas do Ministério da Saúde (Martins & Luzio, 2017).
No ano de 2006, apoiados pelo Programa de Ensino à Distância da Escola Nacional de Saúde Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (EAD/ENSPSA/Fiocruz)4, os assessores que trabalhavam com a PNH realizaram um curso de alcance nacional que se utilizou da estratégia de EaD.
O curso buscava oferecer um processo de formação considerando e partindo dos espaços dos sistemas e serviços de saúde. Isso permitiria que os alunos extraíssem das suas experiências os elementos motivadores do estudo e da pesquisa, e que pudessem operar nessas realidades buscando construir soluções inovadoras para os problemas de gestão e de organização da rede de saúde, tendo por referência a PNH e seus dispositivos.
O curso dava ênfase à construção de fundamentos teóricos e metodológicos que instrumentalizassem e habilitassem os alunos a intervir nos problemas complexos pertinentes ao cenário dos estabelecimentos de saúde e aos coletivos que neles operam. Visava formar apoiadores institucionais cuja tarefa principal seria promover, acompanhar e apoiar processos de mudança nos modelos de atenção e nos modos de gestão em saúde, tomados como indissociáveis.
A função de apoio, proposta por Campos (2000), resultante da ação de sujeitos que "atravessam" o processo de trabalho de coletivos, ajudava-os a qualificar suas ofertas clínicas e de saúde pública, e a ampliar o grau de grupalidade. A função de apoio institucional tem sido experimentada em vários serviços de saúde do país, apresentando-se como uma importante novidade na gestão do trabalho em saúde no Brasil (Maia & Neves, 2014; Pinheiro, Coelho, Hebert & Silva, 2014)
O apoiador institucional exerce a função de colaborar e de prestar suporte para que os coletivos alterem seus processos de trabalho, tornando-os mais democráticos. Função fundamental para a construção de processos e para a sua sustentabilidade, permitindo que o profissional de saúde participe do processo de produção de conhecimento acerca da sua prática.
A proposta de formação buscava a experimentação dos dispositivos da PNH de forma crítica e situada com a realidade dos serviços. Objetivava, ainda, analisar de que maneira tais dispositivos poderiam funcionar como instrumentos para o desenvolvimento dos trabalhadores, pois, como afirma Barros (2001): "Pensar a formação como referida à situação de trabalho implica, portanto, ter que levar em conta as condições de trabalho, as formas de organização dos trabalhadores, as relações com outras instâncias da sociedade civil etc." (p. 74). Com essa direção, entendíamos ser necessário viabilizar o espaço de problematizações de como a vida vem se produzindo no embate de forças (Heckert & Neves, 2007).
A metodologia do curso se constituiu em duas etapas. Na primeira â de formação dos tutores que iriam trabalhar na formação de apoiadores institucionais da PNH â todos os tutores se encontraram durante três dias para discussão da PNH e seus dispositivos, a fim de entender os sentidos e objetivos daquela formação, que eram fomentar o apoio institucional e receber o treinamento para lidar com as ferramentas do EAD.
Após esse encontro presencial, foram realizados chats com os tutores e com os coordenadores gerais e regionais do curso, tendo em vista um estudo mais detalhado e qualificado dos dispositivos da PNH.
Cada tutor ficou responsável pelo que se denominava Unidade de Produção (UP)5 â um grupo de apoiadores que se auxiliariam na reflexão sobre sua intervenção nos serviços. Foram criadas dez UPs, em diferentes regiões do país, cada uma delas contando com a supervisão de um tutor. Os apoiadores foram selecionados pelos coordenadores gerais do curso, tendo como um dos critérios a indicação das Secretarias Municipais de Saúde, já que esses apoiadores teriam o compromisso de construir os dispositivos com o apoio político-gerencial das secretarias. Além da coordenação geral do curso, criou-se uma coordenação regional para acompanhar o trabalho das UPs da região. Neste artigo, priorizaremos a análise da experiência de uma UP formada por oito profissionais de um estado do Sudeste, que tinha por especificidade o fato de que todos ocupavam cargos de gerenciamento: secretária municipal de saúde, chefes de serviços em hospitais, diretora adjunta da secretaria, diretora de hospital, coordenadora das emergências da cidade, dentre outros. Esses apoiadores deveriam experimentar dispositivos da política de humanização em serviços de saúde e, lado a lado, procurar conhecer e discutir o conjunto de dispositivos preconizados pela política. Constituídas as UPs, teve início a segunda etapa do curso que, durante sete meses, tratou da formação desses apoiadores.
A estratégia envolveu dois grandes encontros presenciais nacionais em Brasília, no início e no final do curso; e um encontro presencial regional das UPs, na metade do curso. O restante do curso constava de chats semanais ou quinzenais que cada tutor realizava com os apoiadores da sua UP (Passos & Benevides, 2006).
O primeiro encontro presencial: narrando experiências
O primeiro encontro presencial foi fundamental para a construção da UP. Pensávamos6 no risco de a UP não funcionar devido às desconfianças que poderia haver por estarem trabalhando com diferentes partidos políticos e à vulnerabilidade política que poderia existir entre os diferentes municípios. Construir direções éticas do coletivo seria o principal a fazer, mais do que as tarefas já acordadas previstas na programação (fazer o diagnóstico dos problemas de sua rede municipal de saúde e decidir quais dispositivos priorizar para serem experimentados). O desafio seria criar condições que facilitassem ao grupo se conhecerem, confiarem uns nos outros e toparem trabalhar juntos. Em consonância com os apontamentos de Sennett (1994) e de Dreyfus (2012), considerávamos importante que o coletivo tivesse encontros de corpo presente e experiências de habitação de espaços conjuntos que auxiliassem na construção de conexões e de posicionamentos entre eles. Presencialmente, percebe-se quando uma brincadeira ou crítica não caem bem para alguma pessoa, porque, mesmo que ela nada fale a respeito, é possível sentir sua reação corporal ou construir qual a proximidade adequada que se pode ter com cada um: aquele que você pode apertar a mão, abraçar, brincar; ou aquele que te impõe reserva e discrição. A experiência de uma risada que contagia todos ao mesmo tempo, um murmúrio de indignação diante de uma situação qualquer todas essas coisas são acontecimentos próprios do coletivo e não se reproduzem à distância.
O encontro era composto de momentos coletivos entre todas as UPs e de encontros destas com o tutor. No primeiro dia, quando uma das profissionais se apresentou como a responsável pelas emergências de um município, outra retrucou que havia ido a um desses serviços e que o achara horrível â causando grande desconforto na profissional responsável. Intervimos dizendo que um dos cuidados que teríamos ali seria não trabalhar com avaliações comparativas acerca dos diferentes serviços, mas admitir que todos eles enfrentavam problemas e que solidariamente iríamos discuti-los. Procuramos construir nesses encontros conjuntos as regras éticas do grupo. Enfatizamos a importância de cada um estar ali criando um espaço de acolhimento mútuo, um lugar onde todos pudessem falar das dificuldades, confiar no grupo, ser escutado e acolhido. Com essa direção, visávamos afirmar a riqueza da multiplicidade de experiências e de saberes daquele coletivo em formação. O grupo pactuou essa forma de funcionamento a partir dessas diretrizes e, assim, adotamos as regras construídas. No último dia de encontro, construímos o plano de trabalho e de estudos. Planejamos que, no retorno, cada um negociaria em seu local de trabalho quais dispositivos apresentados na UP seriam trabalhados.
Sabíamos que estas pactuações iniciais não garantiriam, a priori, esse espaço de acolhimento mútuo; mas, no dia a dia do processo de formação, essa aposta iria se concretizar numa encarnação do modo como experimentássemos o acolhimento desta multiplicidade constituinte da UP.
Nesse primeiro encontro, fomos guiados pela indicação de Dejours (2012) de que cooperação não se decreta, mas se constrói com muito esforço, podendo, no entanto, ser facilmente dissolvida. Uma efetiva cooperação precisa ser erigida pela aceitação, por parte do coletivo de trabalho, de que há um real do trabalho7, ou seja, de que existem eventos que escapam ao controle da técnica e da ciência e que exigem a mobilização das trabalhadoras, o que envolve uma inteligência do corpo capaz de agir frente a eventos inesperados.
Isso implica a necessidade de, por vezes, quebrar normas num contexto de serviços de saúde pública, quando as muitas normas antecedentes8 que referenciam o trabalho não dão conta da variabilidade técnica e humana nem das precarizações das condições de trabalho produzidas pelas políticas de gerenciamento. Daí existir, ao mesmo tempo, inflação de normas e ausência de normas (Brito, Muniz, Santorum & Ramminger, 2011).
Trabalhar num quadro em que as condições de trabalho, repetidamente, contradizem as normas da profissão â sejam as normas dos códigos de éticas profissionais ou dos protocolos de diagnósticos e tratamentos, ou aquelas criadas pelos próprios profissionais â equivale a vivenciar sofrimentos que podem inviabilizar a permanência dos trabalhadores nas situações de trabalho. Consideramos importante atentar para as defesas â habitualmente confundidas como ignorância â constituídas pelos trabalhadores contra o sofrimento, as quais funcionam na atenuação ou na negação da existência dos riscos. Se essas defesas têm a positividade de fazer os trabalhadores conseguirem continuar trabalhando, podem também dificultar a discussão do real do trabalho, já que por vezes implicam agir coletivamente na negação da variabilidade que se apresenta como ameaça à saúde.
Torna-se importante, então, criar um espaço público de discussão para que os trabalhadores possam coletivamente encarar o real do trabalho, de modo a reconhecer que se, por um lado, o serviço não funciona a contento com as normas prescritas, por outro, graças a regulações criadas coletivamente por trabalhadores e mesmo por gerentes, muitas vezes, consegue-se que tudo funcione em atendimento aos usuários. Para isso, é preciso construir confiança no cumprimento das regras de trabalho pactuadas entre os trabalhadores e o uso de uma comunicação menos truncada que permita a fala dos insucessos, dos fracassos, das tentativas bem ou malsucedidas ou seja, a emergência de uma palavra arriscada e seu encontro com uma escuta arriscada que se envolve e se responsabiliza.
No começo, foi fundamental intervir na comunicação que se desenvolvia entre aqueles gerentes. As críticas aos serviços dos outros reforçavam uma dinâmica comparativa propícia a competições e contrária à cooperação baseada no reconhecimento do real do trabalho. Devemos ressaltar que eram gerentes que nunca tinham trabalhado juntos e que vinham de diferentes prefeituras governadas por partidos políticos com ideologias e concepções de gerenciamento diversas; em suma, havia como ponto de partida uma heterogeneidade que, embora potencialmente rica, arriscava-se a produzir combustão explosiva em vez de um fogo propulsor de trabalhos coletivos. Além do mais, considere-se a história dessas cidades com a construção de modos de relações políticas em que práticas como o clientelismo, nepotismo e até mesmo a violência física contra os adversários ainda são utilizadas.
Foi fundamental, durante esses encontros do grupo, poder olhar a expressão das pessoas e sua postura corporal quando algo era dito (Dreyfus, 2012). Alguns mantinham uma expressão sisuda no rosto ao ser falado algo, mas não se expressavam. Procuramos então conversar individualmente com esses profissionais para entender o que se passava. Tivemos que trabalhar também durante os intervalos, na hora em que almoçávamos juntos, a fim de irmos construindo essa grupalidade. As conversas que tínhamos, fora do momento oficial de trabalho do grupo, com uma ou duas pessoas, foram fundamentais. Uma das profissionais, por exemplo, nos procurou fora da reunião para dizer que estava temerosa de falar e de participar, porque tinha pouco tempo de experiência no SUS e percebera que as outras pessoas eram muito experientes. Pudemos trabalhar essa insegurança reforçando a ideia de que não devíamos hierarquizar contribuições e de que todos tinham como contribuir a partir de sua experiência singular.
Vale a pena salientar aqui o que entendemos sobre o conceito de grupo. Assumimos, como Barros (2007), o pressuposto de que grupo não é unidade, não é conjunto de pessoas nem homogeneidade, mas multiplicidade. Há uma dimensão de produção no dispositivo grupal na qual as transformações se operam, de modo que as pessoas vivem um processo de diferenciação que não é a mesma coisa que deparar com o diferente. Tomemos, por exemplo, uma profissional que por ser a mais nova do grupo esteja se sentindo insegura. Não sendo, em realidade, inexperiente nem mesmo insegura, tal vivência pode ser transformada, à medida que o processo grupal modula sua impressão inicial, diferenciando-a, ao final, da suposta identidade estabelecida por ela para si mesma.
Nesse sentido, a aposta grupal, aqui, não é respeitar os diferentes, numa lógica liberal que os torne impermeáveis ou subjetividades-produto já consumadas, mas afirmar a diferença como processo de alterização constituinte na produção de coletivos grupais. O interessante do processo é justamente a possibilidade de ultrapassar as posições iniciais e de construir novas. O grupo, como dispositivo de coletivização, é uma obra aberta cujo início conhecemos, mas não temos como prever todo o percurso. Essa é a sua força instituinte para experimentações de um percurso, com seus riscos e desafios, em que as dramáticas do uso de si estão presentes o tempo todo exigindo escolhas de normas. Era preciso, então, acompanhar a gestação do grupo, não se considerar criador e controlador dele, mas também não se entregar à ilusão de que se cria sozinho, de que é uma plantinha que cresce solitária ou de que a melhor intervenção é não fazer nada. Pois omitir-se pode ser tão equivocado quanto controlar de forma obsessiva e autoritária o processo grupal.
É preciso, então, encontrar o grupo, estar nele intervindo, gerindo, gestando coletivamente um processo que precisa de atenção constante, posto que vivemos num contexto em que destruir processos coletivos é tarefa das mais fáceis. Saidon (1991) alerta que "nosso desafio, particularmente na América Latina, é como escapar de um estatuto burocrático totalizador sem cair na fragilização ou demolição" (p. 45).
Nesse processo, mobilizamos uma inteligência do corpo (Dejours, 2012) que, ativada nos encontros com outros corpos, consegue diagnosticar e intervir. Enfim, acreditamos que o momento presencial produziu um encontro de corpos de trabalhadores e de formadores que permitiu emergir uma grupalidade, suas fragilidades e toda sua potência normativa de vida.
O encontro por meio dos chats
Depois que todos voltaram a seus municípios, ficamos nos comunicando pelos chats. Havia também as apoiadoras, que liam os textos e respondiam as questões sobre os dispositivos constantes no livro didático, e que depois enviavam suas respostas para a plataforma do curso a fim de que nós as corrigíssemos. Nos chats, discutíamos os dispositivos e as dificuldades que estavam tendo na construção das políticas em seu município.
A estratégia nos chats era estimular uma conversa livre e, aos poucos, dar início a uma maior explicitação dos argumentos de cada um do grupo. Assumíamos nossa ignorância a respeito de muitas coisas do SUS e solicitávamos que explicassem mais detalhadamente o que escreviam. Procurávamos ampliar o debate sobre algumas questões colocadas primeiramente de forma apressada. Outra estratégia era aproveitar as metáforas produzidas pelo próprio coletivo no chat, devolvê-las a fim de produzirem mais reflexão e, por conseguinte, transformar o modo de lidar com os problemas. Foi assim que, em dado momento, quando alguém disse que tinha que matar vários leões por dia e os outros concordaram, resolvemos relançar, perguntando: não é um problema ecológico matar vários leões por dia? A partir daí, a conversa tomou outra direção, em que o bom humor e o lúdico permitiram lidar com os desafios com mais leveza.
Cru (1993) salienta que não se deve ir contra os sistemas defensivos, mas utilizar suas características para transformá-los. Sendo o humor e a brincadeira coisas constantes nas atitudes desafiadoras diante de riscos, provocamos um jeito de lidar com os problemas de forma bem-humorada, confiantes na possibilidade de encarar o leão.
Percebemos que a ferramenta do chat possibilitava o compartilhamento da experiência e sua análise coletiva. Esse instrumento foi útil ao permitir o trabalho em comum, já que os alicerces para a grupalidade tinham sido construídos durante os encontros presenciais. Percebíamos que aquelas trabalhadoras necessitavam construir, primeiramente, uma confiança mínima antes de escrever sobre problemas no trabalho, atitude esta que poderia ser utilizada depois como arma política por parte de grupos opostos ao do prefeito para quem trabalhavam. Logo, a construção da confiança, no sentido de respeito às regras pactuadas de trabalho, foi fundamental para o sucesso do chat. Dreyfus (2012) salienta que, se estivermos cientes dos limites da EaD e se não pretendermos abolir as situações de formação presenciais, esses dispositivos poderão auxiliar na democratização das informações e ajudar na potencialização dos encontros presenciais.
Os limites que se apresentavam ao uso dessa ferramenta diziam respeito à manutenção do fluxo da conversa, pois, em se tratando de diálogo escrito, o tempo de entrada não segue a sequência do assunto anteriormente abordado. Em um grupo presencial, as pessoas anunciam verbal ou corporalmente (levantando a mão) que querem assumir o turno de fala; no chat, porém, aparece na tela quem escreveu primeiro, mas a introdução de outros assuntos ao seguir a sequência de entradas faz que quem escreveu sobre um assunto inicial veja sua comunicação aparecer na tela num momento já descontextualizado. Além disso, os períodos têm que ser curtos, o que dificulta maior elaboração em linguagem da experiência.
Consideramos, também, as dificuldades de tempo dessas profissionais de saúde para se dedicarem a essa formação, pois trabalhavam com cargos gerenciais, assim como o esforço que faziam para participar dos chats e discussões. Outro limite percebido tinha relação com o fato de que era a primeira experiência da maioria das trabalhadoras, inclusive do tutor, no uso dessas ferramentas, o que certamente dificultou o uso mais criativo das mesmas. Não existia ainda, naquele momento, o hábito disseminado de usar as redes sociais para discutir.
Encontro regional das UPs Sudeste
Dois meses depois do encontro em Brasília, a coordenação geral realizou o encontro presencial regional com todas as UPs do Sudeste. Nesse encontro, que incluía também reuniões com todas as UPs e o encontro interno de cada UP, os dispositivos de acolhimento e o Grupo de Trabalho de Humanização (GTH) a serem experimentados pela nossa UP já haviam sido escolhidos. Esse momento presencial foi fundamental porque permitiu que o grupo conversasse olhando nos olhos sobre as dificuldades na experimentação dos dispositivos. Uma realidade comum emergiu: a política de humanização visava ser uma política pública criada para mobilizar o protagonismo dos profissionais e dos usuários do SUS; enquanto a hegemonia de uma política de governo (nos níveis federal, estadual e municipal) se alimentava da dependência, na tentativa de conseguir os votos dos eleitores, a partir da criação e da manutenção de uma relação clientelista, seja com os profissionais seja com os usuários. Os vários tipos das intervenções políticas na gestão das unidades nada visavam senão manter a concepção de que saúde não é direito, mas favor que um determinado político concede ao seu eleitor.
Embora já aparecesse de forma incipiente nos chats, foi nesse encontro presencial que cada profissional compartilhou como vivenciava suas relações com os vereadores que faziam a sustentação política do prefeito. Várias histórias sobre o uso manipulador dos serviços apareceram, bem como relatos de estratégias de como lidar com essas situações ou de como argumentar com os próprios políticos acerca desses dispositivos serem politicamente importantes, visto que a população sentiria os efeitos na melhoria dos serviços. Então, depois de um tempo se permitindo como eles falavam "dar a choradeira básica"â, eles passaram a discutir quais ações deveriam ser implementadas para avançar na experimentação dos dispositivos nos próximos meses. Ficou evidenciado o quanto o encontro presencial permitira que uma questão delicada â porque envolvia falar de políticos que poderiam fazer eles perderem seus cargos â pudesse ser tratada em confiança no coletivo que acolhia e que não julgava as pessoas. Isso se percebia no jeito de dialogar, na expressão do rosto e nas risadas coletivas que revelavam a cumplicidade entre os colegas ao narrarem as estratégias usadas quando um político lhes falava um absurdo: "eu aprendi a fazer cara de paisagem", e encenava como o fizera.
Encontro presencial proposto pela UP: churrasco, susto e analisador-participação
Nos meses seguintes, estando algumas pessoas com dificuldades de fazer os exercícios propostos no livro de atividades do curso, continuamos com os chats. Combinamos então mais um encontro presencial: foi quando uma das apoiadoras propôs um churrasco em sua casa. Esse encontro não estava previsto no programa do curso, sendo uma iniciativa dos membros dessa UP. Pudemos então almoçar juntos e mais uma vez discutir questões que estavam dificultando a experimentação dos dispositivos. Algumas divergências surgiram. Uma das apoiadoras relatou a dificuldade em pactuar o cumprimento de uma carga horária com os médicos do hospital que dirigia. Relatou o fato de um péssimo médico que não podia ser demitido do hospital porque um vereador não o permitia, enquanto outro, um bom médico, fora demitido porque o vereador assim determinara. Uma das apoiadoras falou da importância de se construir essa contratação com os médicos e de como ela a havia conseguido. Além disso, comentou a corda bamba em que vivia em seu cargo de secretária, por tomar decisões que desagradavam politicamente a alguns vereadores.
Durante o almoço, um susto! Em meio à conversa sobre as inúmeras atividades que dificultavam a realização dos trabalhos pactuados na UP, o marido de uma das apoiadoras disse que "algumas vezes ajudava a mulher substituindo-a nos chats". Silêncio, desconcerto, entreolhares e. . . ocasião de novas pactuações e de atenção problematizadora aos dispositivos avaliativos que incluíam, na certificação do curso, a participação de cada membro das UPs nos dispositivos de EAD pactuados.
Como tutor e orientador pedagógico da UP, experimentamos uma dramática do uso de si em nossa decisão de â num curto espaço de segundos â silenciar. Entendemos que, naquela situação inesperada e singular, naquele susto, caberia aquietar a indignação e tomar este susto para além do julgamento individual da apoiadora e/ou da acusação de quebra de confiança.
Naquele encontro, pudemos conhecer outros limites dos chats como dispositivos avaliativos de participação: não vermos a pessoa, não escutarmos sua voz, não sabermos com quem realmente estamos nos comunicando. Daí a necessidade de maior confiança e de maior responsabilidade do grupo com o processo.
Experimentamos uma suspensão espaço-temporal, não conseguindo falar. Percebemos, em ato, a força do pensamento de Espinosa (2008): a potência de nosso corpo é, simultaneamente, a nossa potência de pensar. Oscilamos entre uma pedagogia impiedosa que, centrada no pensamento, estimula as multiplicidades, exercitando o corpo e o pensamento a vivenciar seus limites e a ultrapassá-los porque os quer fortes; e uma pedagogia piedosa que considera o corpo fraco para ultrapassar seus limites e se rende ao medo da destruição grupal e da prática da vingança.
Fomos "salvos" pela força do grupo. Era preciso apostar na força do grupo, acompanhar os efeitos, nos guiarmos por ele e com ele para enfrentar esse analisador9 participação. Em outro momento e de modo indireto, essa situação retorna quando o grupo valoriza uma discussão sobre modos de gerenciar e de resistir às interferências de grupos políticos locais, potencializando o debate de valores mediante justificativas de submissão e de ações inventivas adotadas no cotidiano. O grupo tomou a guia e nos possibilitou experimentar a força da roda girando e o deslocamento de lugares instituídos de decisão.
Nesse terceiro encontro presencial, uma nova fase se constituiu e se pôde falar acerca de modos diferentes de gerenciar e de gerir o serviço. Esses modos, como afirmam Schwartz e Venner (2016), trazem consigo escolhas de normas que por sua vez são a declinação de valores do bem comum. Um dispositivo construído para a transformação do trabalho deve se ocupar tanto da produção de saberes quanto do trabalho com os valores. Porque não adianta ter boas intenções: as diferentes estratégias passíveis de lidar com os problemas envolvem uma melhor afirmação de um valor ou de outro.
Não há neutralidade técnica na gerência, assim como em nenhum trabalho, portanto, o processo de formação precisa incluir uma discussão dos diferentes projetos políticos e de qual sentido a intervenção nos serviços vai ter. Cada decisão pode ter um peso importante no destino coletivo a viver. Novamente, o grupo tem de conseguir expor as diferentes concepções, trabalhando com as divergências, mesmo com o risco de separação, pois, um grupo que teme a morte se estagna por não conflitar e vira um morto-vivo.
Último encontro presencial nacional: encerramento do curso
O último encontro presencial nacional com as UPs ocorreu em Brasília. As apoiadoras já haviam feito suas monografias sobre a experiência de experimentação dos dispositivos e iriam apresentá-las às colegas de outras UPs que, igualmente, haviam apresentado aquele dispositivo. Todos dessa UP terminaram as monografias. Em pelo menos um caso, porém, a apresentação da experiência com o dispositivo foi incipiente, o qual remontava ao analisador-participação e à nossa dificuldade de afirmar e de bancar o adiamento da certificação.
Nesse último encontro, tentamos discutir se seriam possíveis formas de continuidade da relação de trabalho dos membros da UP. Embora tivéssemos construído uma boa relação e algumas cooperações já estivessem acontecendo entre eles, a vida atribulada de cada um em seus diferentes municípios, as mudanças políticas que não permitiam que ninguém tivesse certeza de que estaria no mesmo cargo amanhã: nada disso os auxiliava a assumir um projeto comum no futuro. Combinamos pensar formas de manter alguma relação, por meio de projetos de pesquisa-intervenção, e assim o fizemos. Além disso, os coordenadores gerais e as apoiadoras pedagógicas regionais do curso continuariam como assessores da Política de Humanização trabalhando com as demandas de suporte que os apoiadores iriam produzir.
Conclusão
A análise dessa experiência de formação indicou que uma estratégia de EaD pode ser útil para auxiliar o acesso de pessoas que moram em lugares diferentes no compartilhamento de experiência e de trocas importantes. Por outro lado, aprendemos, como sustenta Dreyfus (2012), que isso só produz liga se vier acompanhado de encontros presenciais que permitam a experiência de contato dos corpos com o estranho, na lida com os conflitos e com o diferente de si. É na abertura de espaços para estranhamentos, para outras percepções e para sensibilidades que a experiência formativa viabiliza dizer da atividade e, num mesmo movimento, fazer dizer a atividade. Nesse duplo movimento da experiência â dizer da atividade e fazer dizer a atividade â os trabalhadores compartilham, têm a possibilidade de tecer relações de confiança e de construir uma linguagem comum que lhes possibilite a cooperação e a responsabilidade com o processo de formação coletivo.
Nessa experiência, os chats viabilizaram um nível de compartilhamento de algumas das dificuldades que estavam sendo vivenciadas na construção dos dispositivos e um momento de reforçamento de ânimo para enfrentar os desafios. Porém, ficou evidente que o diálogo nos chats sofre a limitação dos períodos curtos, que impedem uma expressão mais elaborada. Ademais, o fato de as pessoas não estarem se vendo impede aspectos fundamentais da linguagem, isto é, a entonação e a expressão corporal como suportes na construção do sentido para o diálogo. Por conseguinte, sentimos que nos encontros presenciais o grupo avança mais na discussão de temas delicados de seu trabalho, como a necessidade de lidar com os políticos na gerência dos serviços. Isso se dá porque a presença corporal produz acontecimentos coletivos que não são possíveis de replicar na internet. Haja vista à reação do público em um show de rock ou em uma assembleia sindical de trabalhadores. Nessas situações, as pessoas têm uma experiência sensorial corpo-espacial (Sennett, 1994), vivenciando estados de ânimo que se tornaram possíveis pela proximidade corporal (Dreyfus, 2012) ativada num dado espaço por sensações, percepções ou pessoas que neles se encontram.
É importante ressaltar o aspecto positivo da construção de um coletivo de apoiadores que produziu não apenas um compartilhamento de experiências, como também uma reflexão crítica conjunta. O encontro presencial inicial ajudou na construção das regras éticas e do sentido da atividade coletiva, produzindo a confiança e a cooperação que permitiram ao grupo ousar criticar o modo de gerenciamento político que vinham enfrentando nos municípios.
Tendo-se conhecido minimamente nos encontros presenciais e tendo construído um acordo ético que iria guiar o processo, o grupo conseguiu viver o chat de forma aberta, embora notássemos que nos encontros presenciais a discussão sempre parecia dar um salto qualitativo na direção de uma maior abertura e criticidade sobre suas experiências, reforçando a análise de Dreyfus (2012) sobre a importância dessa vivência corporalizada na formação.
Outro fator que muito ajudou a experiência de EaD foi o fato de esses trabalhadores já compartilharem entre si muitos saberes sobre o SUS e sobre os problemas comuns enfrentados, o que lhes facilitava bastante a compreensão e a comunicação.
Consideramos igualmente importante colocar em análise as práticas e os lugares do tutor e do acompanhante pedagógico na lida com a "função-apoio" nos cursos de EaD. O trabalho com os analisadores que emergem no processo grupal é fundamental para deslocarmo-nos tanto do lugar de especialismos quanto de sua contraface, qual seja: acolher o que vem, sob o medo de "julgar" as experiências, deixando de exercer uma maior criticidade e de apostar na potência do grupo, na lida com seus conflitos e heterogeneidade de valores.
Por fim, é importante retomar o objetivo principal do curso, que foi a formação de apoiadores para a PNH. O trabalho de apoio é como o trabalho de um guia de cego: o guia ajuda o cego a ir na direção que ele (cego) quer, conforme verbalizado por R. B. Barros (comunicação pessoal, 2006). É um encontro de corpos-si onde o sentido da visão de um está à disposição da direção da vida do outro. A formação de apoiadores visa produzir um corpo-si que esteja disponível a essa experiência, portanto, não pode ser apenas um dispositivo de transmissão de conhecimentos.
Os encontros presenciais permitiram a visualização da emoção, da expressão corporal e da produção de sentido do discurso expressas na entonação dada ao enunciado. Esses elementos corporais do cheiro, da emoção, da expressão de ideias que estão para além da argumentação escrita foram fundamentais para o sucesso desse processo de formação de apoiadores. É preciso ressaltar que os chats permitiram manter acesa a chama desses encontros, na medida em que viabilizaram os encontros quinzenais pela internet de profissionais que moram em municípios diferentes. Assim, as duas dimensões do curso permitiram um processo de formação que foi além da mudança das representações, ajudando na produção de um corpo-apoio que guia e que é guiado nos encontros de corpos-si com usuários e profissionais.
Referências
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Endereço para correspondência
heldermuniz@uol.com.br
betebarros@uol.com.br
abbes@luma.ind.br
Recebido em: 09/08/2017
Revisado em: 18/09/2018
Aprovado em: 08/10/2018
1 Dejours (2012) defende que a cooperação não é algo que se prescreve, mas que é construída pelos trabalhadores, envolvendo a criação de regras que vão guiar os coletivos num interesse comum no trabalho.
2 Desde a pesquisa de Elton Mayo, em Hawthorne, que evidenciou não só como as trabalhadoras da empresa constituíam grupos não prescritos no organograma oficial, mas também que essas relações tinham um efeito na produtividade no trabalho, muitas abordagens têm estudado essa dimensão coletiva do trabalho (Athayde, 1996). As pesquisas e intervenções realizadas pela ergonomia da atividade, bem como pela psicodinâmica do trabalho e pela clínica da atividade, têm ressaltado como os trabalhadores, além de romper com as normas do trabalho, também criam novas formas de cooperação e de coordenação não previstas. Alguns autores, como é o caso de Cru (1987), vão denominar de "coletivos de trabalho" esses coletivos que se formam e que, juntos, trabalham construindo e seguindo regras comuns.
3 Um dos autores fez parte da coordenação geral do curso, outro foi apoiador pedagógico da Regional Sudeste e outro foi tutor da Unidade de Produção (UP) a ser abordada neste trabalho.
4 O Programa EAD/ENSPSA/Fiocruz, criado em 1998, possuía significativa experiência em processos de formação para os trabalhadores da saúde por meio dessa modalidade de educação, exercendo um compromisso com a sustentabilidade de políticas públicas que concretizam o SUS. Nele, a EaD não é apenas uma alternativa à educação presencial, mas processo educacional singular, qualificando-se para a construção de políticas públicas.
5 Por Unidade de Produção se define um coletivo que possui objeto e objetivo claros e definidos e que desenvolve processos de cogestão.
6 Embora o trabalho de tutoria junto aos apoiadores da UP tenha sido realizado por um dos autores, entendemos que foi uma obra coletiva, pois coordenadores gerais e orientadora pedagógica regional acompanhavam, discutiam e sugeriam encaminhamentos; por conseguinte, utilizaremos a primeira pessoa do plural ao descrevermos o processo de tomadas de decisões éticas e metodológicas nessa experiência.
7 Segundo Dejours (2012) "o real se deixa conhecer pelo sujeito por sua resistência aos procedimentos, ao saber-fazer, à técnica, ao conhecimento, isto é, pelo fracasso imposto ao domínio sobre ele o real. O mundo real resiste" (p. 25).
8 Todas as normas que antecedem e que referenciam o trabalho, sejam prescritas pela gerência ou elaboradas pelos próprios trabalhadores, sejam transmitidas de forma escrita, oral ou gestual.
9 Analisador é um conceito formulado por Félix Guattari, no contexto da psicoterapia institucional e incorporado pela análise institucional socioanalítica (Lourau, 2014). Segundo Barros (2007), os analisadores são acontecimentos: tudo aquilo que produz rupturas, que catalisa fluxos, que produz análise, que decompõe os modos naturalizados de lidar com o cotidiano.