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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. v.1 n.1 Fortaleza set. 2001
RESENHAS DE LIVROS
Cristiane Vasconcelos
Psicóloga Clínica e Mestranda do Curso de Psicologia da UNIFOR
Henrique Figueiredo Carneiro
AIDS. A NOVA DESRAZÃO DA HUMANIDADE
São Paulo, Ed. Escuta, 2000, 151p.
Mais um livro sobre AIDS, folhetim ou boletim informativo, recheado de números de óbitos, quantidades de portadores do HIV e previsões epidemiológicas do Ministério da Saúde? Não! Henrique Carneiro no seu livro AIDS: a nova desrazão da humanidade, nos oferece um olhar especial para a AIDS através de uma viagem pela história das enfermidades e a construção do rechaço dirigido aos que se enfermaram. Resgata, com uma escrita elegante e uma rica articulação de conceitos, um sentido para a desrazão vivida nos tempos da AIDS, tomando como construção deste saber os templos da Medicina, Religião e Filosofia.
Psicanalista, cearense, graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), possui um amplo e vasto percurso em atividades clínica e docente, tendo sido o fundador do Serviço de Psicologia do Hospital São José, marco para o Estado do Ceará, no tratamento de doenças infecciosas e referência para os pacientes de AIDS. Atualmente é Professor Titular, Coordenador do Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Doutor em Fundamentos y Desarrollos Psicoanalíticos e Diretor do Logos Espaço Psicanálise.
AIDS, Sindrome da Imunodeficiência Adquirida, GRID, Gay Related immmnuno Deficiency ou Peste Rosa. O nome por um momento parece distante da realidade de cada um, na medida em que o observador não se inclui dentro de um determinado espaço, seja pelos costumes, tradições, dietas ou condutas. Mas a AIDS cresce, avoluma-se, aproxima-se até atingir um parente ou um amigo; faz-se presente, convocando os edifícios do saber e mobilizando os pensamentos dos especialistas, não só nas áreas biológica e médica, mas também exigindo estudos históricos e culturais, para a compreensão das implicações que ela traz. A falta de saúde provocada pela AIDS e o fracasso de seu tratamento assustam e angustiam o humano, na medida em que o coloca diante de um saber não conhecido, onde a imunodeficiência como sintoma é o companheiro mais estranho, ao mesmo tempo em que é estrangeiro ao homem. É dessa forma que ela se apresenta como ameaçadora. É desse ponto que Henrique Carneiro inicia uma análise que envolve uma articulação psicanalítica sobre o peso que a palavra imunodeficiência joga no cenário social e individual.
O livro é, a meu ver, de extrema importância, pelo serviço que presta frente a escassez de conhecimentos disponíveis sobre a AIDS, quando se transita sobre o contexto cultural e histórico da enfermidade. Mostra que na busca de uma compreensão sobre as implicações relacionais, advindas com o aparecimento de uma nova doença, revela-se uma intrincada rede de desconhecimento do sujeito em relação a si e ao outro, bem identificada pelo autor no resgate do rechaço vivido em outras enfermidades que afetaram o homem ocidental. Neste sentido, o autor explora com densidade de conhecimentos, fruto de leituras e pesquisas em obras clássicas como Fedón, Decamerón e outros trabalhos de autores contemporâneos, uma arqueologia que ele chamou de Escalada da desrazão, situando algumas epidemias - como a Lepra, a Sífilis, a Peste Negra, a Tuberculose, o Câncer - dentro de um espaço do não-saber, com maestria. O autor faz uso de uma rede de metáforas e desdobramentos de conhecimentos que exemplificam as associações destas doenças ao rechaço desencadeado frente ao outro, localizado na imagem do corpo, na potência sexual ou internamente em algum órgão, como fundamento da desrazão.
Em seguida o autor propõe a caracterização da AIDS como uma enfermidade, privilegiando o conceito de dietética, como traço mais antigo da ética, que reaparece na contemporaneidade com um suporte de análise fundamental na compreensão do rechaço institucionalizado através da religião e da medicina. Este é um conceito de suma importância, pois no mundo antigo resgata um papel fundamental que aparece com a conotação de arte de viver, um dado que na modernidade é perfeitamente equacionado pela categorias de falta e excesso (p. 78). Baseado neste e em outros pares de opostos como saúde e doença, vida e morte, o autor vai constituindo o lugar de ideal do ser, ali onde ele inevitavelmente é um sujeito desejante e inserido em uma cultura, espaço em que os preceitos dietéticos que envolvem a AIDS são de ordem sexual; onde o rechaço e a condenação do humano são de ordens morais e dirigidos à conduta desaconselhada e proibitiva, destacando sua associação com pacientes de orientação homoerótica ou usuários de drogas. A partir da própria descrição e caracterização de categorias de grupos de exposição à contaminação com o HIV, divulgadas pelos boletins epidemiológicos, o autor associa uma série de itens constituintes do saber médico, religioso e filosófico, com a desrazão, com o estranhamento e com um espaço peculiar da loucura.
O texto é muito denso, com muitas referências teóricas que com certeza engrandecem o mundo da pesquisa e contempla a constante busca do saber com um legado. Mas sugere, além do desejo de conhecer, um despertar para uma releitura de obras clássicas, na tentativa de refazer o percurso construído pelo autor.