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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.2 n.2 Fortaleza set. 2002

 

ARTIGOS

 

O texto freudiano como analisador da cultura: uma resposta aos discursos totalizantes da ciência e da religião

 

 

Daniella Coelho de Oliveira

Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e especialista em Medicina Preventiva-Saúde Coletiva pela Universidade de São Paulo (USP), bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). R. Otávio Correia 241/401, Urca – Rio de Janeiro – RJ, CEP 22291-180. e-mail: daniella.c@terra.com.br

 

 


RESUMO

O presente estudo percorre a obra cultural freudiana, especialmente seus escritos sobre a moral, a religião, o discurso da ciência e a guerra, argumentando sobre sua eficácia como instrumento analisador de acontecimentos culturais postos na modernidade. Nesse sentido, assinala a condição humana descrita pela psicanálise e o antagonismo próprio ao encontro do sujeito com a cultura, reconstituindo a crítica aos ideais de plenitude e bem viver veiculados pela instituição religiosa e atualizados radicalmente via discurso da ciência. Desse modo, argumenta sobre a ascensão do saber científico à forma exclusiva de acesso à verdade e a visão de homem que ele faz emergir quando disponibiliza um arsenal tecnológico e técnico como oferta de poder e satisfação absolutos para o humano. Contra a promessa ingênua de uma felicidade sem tensões que comparece em ditos ideais, o estudo remete ao mal-estar imanente à proposição de sujeito psicanalítica; opta pela análise da guerra como acontecimento cultural que reafirma a força destrutiva da "pulsão de morte" e aponta para o caráter trágico do saber analítico. A reflexão permite acessar uma instigante leitura da cena cultural moderna, concluindo por demonstrar a potência crítica da proposição ética engendrada pela psicanálise e acenando para a pertinência desse aparelho teórico como instrumento analisador de fatos sociais em processo no contemporâneo.

Palavras-chave: psicanálise, cultura, religião, ciência, segregação, moral


ABSTRACT

The present study examines the Freudian cultural work, especially his writings on moral, religion, the discourse on science, and war, arguing about their efficacy as instruments of analysis of the modern cultural events. Along these lines, it signalizes the human condition described in psychoanalysis and the antagonism pertaining to the individual's encounter with culture, reconstituting the criticism to the ideals of plenitude and wellbeing, which are disseminated by the religious institution and radically confirmed through the discourse on science. Thus, it argues about the rise of scientific knowledge as being the exclusive form of access to truth and the vision of man that emerges from this knowledge when it offers him a technological and technical arsenal as the means for him to reach absolute power and satisfaction. Against the naïve promise of a happiness without tensions that these ideals present, the study refers to the uneasiness that is immanent to the psychoanalytic proposition of subject. It chooses to analyze war as a cultural event that reaffirms the destructive force of the "death impulse" and points to the tragic character of analytical knowledge. The reflection allows for an instigating reading of the modern cultural scenario, ending by demonstrating the critical power of the ethical proposition engendered by psychoanalysis and pointing to the pertinence of this theoretical apparatus as an instrument for analyzing the social facts that are in process in the modern world.

Keywords: psychoanalysis, culture, religion, science, segregation, morality


 

 

A invenção psicanalítica não constitui novidade nesse novo século. Ao romper as fronteiras de sua formulação teórico-clínica e imprimir-se na diversidade da produção cultural– da obra de arte à filosofia, da produção literária erudita aos periódicos populares– contribui nas mais diversas áreas do conhecimento humano, transformando-se em objeto privilegiado de análise e crítica desde a modernidade.

Ao render-se à sua curiosidade, ao aventurar-se nas vias do impensado, do imprevisível, do estranho, Freud cria um texto marcado por histórias que cruzaram sua vida, pelo acervo cultural disponível, pela ciência de seu tempo e, curiosamente, constrói uma obra aberta, que se dobra ao acontecimento e refaz-se insistentemente sob essa envergadura.

A flexibilidade do texto psicanalítico já se espelha em seu próprio movimento de criação. Freud dialoga com um interlocutor real ou imaginário, antecipando-se a críticas possíveis, antevendo questões formuladas por cientistas seus contemporâneos; vale-se do recurso à discutibilidade, da construção argumentativa forjada no encontro entre autor e auditório, figuras que por vezes concentra em sua própria pessoa.

E ainda, quando Freud elege a prática clínica como uma das vias mestras de sustentação do texto psicanalítico, alerta para a fragilidade de um saber com pretensões totalizantes. A psicanálise, ao tempo de sua invenção, ensina que sua complexidade antagoniza com o fechamento próprio a todo conhecimento finalizado, exigindo um pensamento crítico sempre renovado.

Mas se o saber analítico está assim imiscuído ao cotidiano, se seus conceitos inspiraram um estilo estético abrindo espaços ao imaginário e a descoberta do inconsciente foi assimilada a inovações nas mais diversas áreas da produção humana; enfim, se seus conceitos transformaram-se muitas vezes em preceitos e foram incorporados até mesmo à banalidade das expressões coloquiais, o que resta à psicanálise; quais os destinos de um saber transgressor que se lançou à discussão da moral e dos sistemas totalitários, que revirou os interditos da palavra deslocando os lugares do normal e do patológico?

Ao longo desse século de produção teórica e prática, o saber analítico percorreu diversos territórios e línguas, formou instituições e rendeu-se a convenções, gerindo práticas de conformidade e adaptação. A psicanálise americana travestida em uma técnica de integração social é o exemplo clássico desse reducionismo, da sujeição de seu discurso e prática a um estilo de viver.

Nossos dias trazem consigo a promessa de uma felicidade sem tensões, da busca insaciável pelo prazer, compondo ideais que descrevem uma subjetividade muito distante da que vemos esboçar-se no texto freudiano. Vivemos um presente em que tudo se oferece como possível ao humano, onde as diferenças são dissolvidas no princípio do consumo e assimiladas a uma proposição ética que agrega a todos sob o signo supostamente inclusivo da globalização, onde o anúncio de uma plenitude desponta em fórmulas ainda mais pretensiosas do que as já consagradas historicamente nas religiões, seitas e máfias. Diante dessa cena, a psicanálise é chamada a posicionar-se criticamente.

Nesse espaço de reflexão, consideramos premente indagar se a psicanálise freudiana, especialmente sua discussão sobre a cultura, dispõe elementos para refletir criticamente sobre a cena moderna, momento que ainda não sabemos precisar o quanto somos sua ruptura ou apenas o fio de sua continuidade. Supomos que esse détour, o retorno ao texto freudiano e ao horizonte de sua formulação possa contribuir à discussão do inédito trazido por dito saber e entendemos que toda questão proposta ao campo psicanalítico contemporâneo se enriqueça se referida a essa memória.

Criada no diálogo com a filosofia, a ciência e a cultura, a psicanálise persegue os seus contornos no arquivo cultural do seu tempo, valendo-se da tragédia e da ciência, de acontecimentos sociais a obras de arte. Espreita o seu objeto consultando a intimidade de seu autor: sua argúcia para apreender teórica e tecnicamente as figurações do mal-estar que então se configuram e os temores e compromissos que marcam sua pertença a essa mesma cena social. E prossegue sua escritura a partir do discurso do analisante, trazendo questões de um sujeito singular e reconstituindo, por essa via, fragmentos íntimos da história.

A obra freudiana percorre os mais diferentes conhecimentos na tentativa de aproximar-se de uma determinada condição humana. Constitui-se como um saber que parte de diferentes registros: o inconsciente de seu preceptor, a clínica, a cultura (Mezan, 1990). É construída no encontro desses eixos analisadores e talvez por isso deixe indicações sobre as condições que o tornaram possível, permitindo inquirir sobre a relação da obra, a figura de seu criador, a cidade em que foi concebida, os episódios que acompanharam sua formulação.

A psicanálise nasceu na Viena da virada do século, cidade da música, da dissimulação das diferenças sociais numa exuberância arquitetônica que projeta a encenação teatral a sonho coletivo. O cenário de produção do saber analítico é essa cidade de ilusões, capital que reúne uma multiplicidade de expressões artísticas, científicas e literárias, lançando muitas das principais tendências culturais dos últimos séculos. É nessa atmosfera cosmopolita onde Freud constitui sua erudição nos domínios da história, da literatura greco-romana e especialmente da literatura clássica, afirmando uma tendência arcaizante típica dos europeus cultos da época.

Viena é a caricatura de uma Europa de contrastes, que vive entre a rigidez de valores morais e a exposição à sensualidade que se revela na sutileza de uma moda que diferencia marcadamente os gêneros ou exibe-se mais secretamente na degradação dos corpos tomados pela sífilis. Esse é o momento em que a freqüentação aos bordéis e a realização das fantasias eróticas com as mulheres públicas mantém a tranqüilidade da instituição familiar; onde o adultério persiste como crime punível por lei, mas não deixa de exibir-se nas contorsões histéricas, espetáculos solitários da luta entre as convenções e o desejo.

Lembramos a viagem do jovem Freud a Paris, quando suas palavras esboçam o espanto diante do contraste entre os valores da tradição e o erotismo mundano (Roudinesco, 1989). Aquele que viria a interrogar uma moral que recusa o sexo ao mesmo tempo em que o incita, surpreende-se diante de um estilo de vida que integra o código mais estrito a um liberalismo próximo ao pansexualismo.

A cena parisiense também nos apresenta a Sarah Bernhardt, que sintetiza em seus personagens as contradições daquele fim de século. Nos palcos, com Hamlet, Fedra ou a Dama das Camélias, os gestos da atriz que conquistou a simpatia da Europa encenam um teatro muito próximo aos espetáculos histéricos assistidos por Freud na Salpetrière.

Nesse ambiente heterogêneo crescem as contradições da moral vitoriana, onde a repressão da sexualidade convive com uma explosão discursiva sobre o tema. Em época caracterizada por um suposto puritanismo proliferam relatos científicos que recobrem indizíveis fantasias de literatos sob um estilo narrativo asséptico. Como ilustrou Roudinesco a exemplo das publicações do vienense Krafft-Ebing(op.cit.), as produções científicas dispõem-se a revelar as mais diversas histórias de necrofilia, flagelação, pederastia, claudicação, fetichismo e zoofilia tendo a aprovação dessa controvertida norma.

A psicanálise tem início sob esse panorama, fundando sua reflexão sobre a crítica da moralidade. Às voltas com os efeitos da repressão na gênese das neuroses, dá início às suas considerações sobre a civilização, traduzindo a profunda intimidade que mantém com os fatos de cultura.

Ainda com as histéricas, Freud inicia seus estudos sobre as relações entre o sofrimento psíquico e as condições sociais, descrevendo o padecimento que advém do rigor das leis e elaborando uma análise contundente da coerção típica das instituições totalizantes (Freud, 1895). Desde os artigos iniciais podemos seguir suas observações sobre a intromissão do sexual na vida cotidiana, reflexão que aponta para a ambivalência de uma sociedade que esconde sua sensualidade sob o brilho glamuroso da representação teatral ou na aparente imparcialidade do discurso da ciência.

Entendemos, portanto, que as formações sociais não constituem apenas o cenário da produção psicanalítica, mas é uma importante estrutura na definição desse saber (Mezan, op.cit.). Os fatos culturais, aqui entendidos como obras literárias, acontecimentos sociais ou mitos, misturam-se ao universo significante de Freud, remetendo-lhe questões e compondo insistentemente suas considerações sobre o humano. Na trama que faz emergir um conhecimento novo, na contracena que se estabelece entre autor, objeto e formações culturais, o texto psicanalítico toma forma e, nesse sentido, não é possível sustentar a oposição entre uma psicanálise pura a uma psicanálise aplicada aos fatos sociais.

As referências de Freud à comportamentos e representações coletivas comparecem já nos primeiros escritos; a rede de saberes que envolve essa construção mostra que a recorrência aos mitos, à tragédia, às obras de arte não apenas ilustra as descobertas da clínica e da auto-análise de Freud, mas constituem uma estratégia de afirmação dessas conquistas, a tentativa de encontrar em distintas produções a antecipação de suas descobertas. Desse modo, o preceptor da psicanálise dá suporte às suas teorias sobre a histeria recuperando histórias eclesiásticas sobre a possessão demoníaca (Freud, 1895) e remete-nos a um labirinto de citações cruzando lendas de tribos primitivas a considerações sobre o vínculo social (Freud, 1913).

Interessaría-nos reconstituir o percurso freudiano, restaurar as belíssimas construções desse saber encontrando em Goethe, Sófocles ou Shakespeare o que Freud colheu nas palavras do analisante. Mas nos resumimos a destacar esse movimento da obra e seguirmos sua discussão mais ampla, aproximando-nos da condição humana descrita pela psicanálise, enfatizando as reflexões de Freud sobre a relação do sujeito com a cultura e acompanhando sua crítica à moral, à ciência, à segregação, à religião, suas reflexões sobre a guerra. Entendemos que essa passagem possa dar contorno mais nítido à novidade trazida pela psicanálise e aponte para a complexidade da construção de seu aparelho, contribuindo para a análise de acontecimentos sociais em processo na contemporaneidade.

 

Desejo e promessa: a ilusão religiosa na modernidade

O tema da religião está presente nos mais diversos momentos da produção psicanalítica, denotando a curiosidade de um mestre por uma formação cultural que se impõe à organização social desde tempos remotos. A religião atravessa as mais diversas épocas e culturas, constituindo-se, ainda na cena moderna, em instituição reguladora da moralidade e dos costumes.

A leitura freudiana não se extingue à avaliação das práticas religiosas como uma coerção da vontade, mas interessa-se em desvendar a própria natureza desse vínculo, buscando decifrar a tendência do homem a sucumbir às ilusões de plenitude, às promessas de felicidade eterna. Tais proposições situam-se no âmbito de suas considerações sobre a civilização, a relação do sujeito com a cultura e a própria fundamentação do laço social. Textos como Atos obsessivos e práticas religiosas (1907), Totem e tabu (1913), A moral sexual civilizada e o nervosismo moderno (1908), O futuro de uma ilusão (1927), O mal estar na civilização (1930) mostram a insistência de Freud em abordar a religião como fenômeno que dá suporte a constructos fundamentais às formulações psicanalíticas.

Atos obsessivos e práticas religiosas (op.cit.) é onde Freud faz uma aproximação entre as descobertas da clínica e os cerimoniais religiosos, demonstrando que o que é representado em atos obsessivos e em ditos cerimoniais deriva principalmente das experiências sexuais do sujeito. Nessa leitura, a religião, assim como a neurose obsessiva, baseia-se na supressão de certas pulsões consideradas perigosas para a coletividade.

A importância dessas considerações é anunciar uma questão que será retomada nas principais análises sobre essa instituição. Freud não se resume a afirmar que a religião requer o sacrifício de prazeres considerados socialmente nocivos, mas argumenta que a própria invenção dos deuses é fundada na necessidade humana de atribuir-lhes as pulsões traduzidas culturalmente como prejudiciais à civilização.

Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908) é a primeira das longas exposições freudianas sobre o antagonismo entre o desejo humano e as restrições impostas pela cultura, relacionando, como o título indica, a doença nervosa com o cotidiano do homem moderno, mais precisamente, estabelecendo a importância primordial da repressão da vida sexual no adoecimento psíquico. Deparamo-nos, nesse espaço de reflexão, com a temática que persistirá até as últimas produções freudianas: o papel da religião na comunicação, arranjo e controle dos ideais civilizatórios.

O convívio na cultura e a própria exigência de afeto exigem que o sujeito renuncie a uma parte de seu sentimento de onipotência, a suas inclinações agressivas e destrutivas. A religião reafirma os valores culturais consagrando aqueles que se submetem a essa controvertida moral.

Freud potencializa sua crítica quando nos fala da inadequação dos ideais culturais à condição humana: a severidade das normas repercute diretamente sobre a vida social, pois os sacrifícios impostos ao sujeito tem como decorrência o incremento das doenças nervosas no último século. A ordem social, em nome de uma convivência harmônica, exige do sujeito algo que o ultrapassa, ou seja, na leitura psicanalítica o limite que define o humano situa-se muito aquém das exigências da cultura.

É O futuro de uma ilusão (Freud, 1927) que registra a crítica mais aguda ao sistema religioso ao declarar a sua função na civilização: a religião tem como tarefa oferecer uma satisfação substitutiva para as renúncias impostas ao humano pela sua própria estrutura psíquica e pela vida comunitária, ou seja, pretende conciliá-lo com os valores da cultura. Mas esse também é o artigo que define a análise freudiana da gênese do sistema religioso.

O anseio pelos deuses e pelos ídolos acompanha a trilha da humanidade, revelando a tentativa de exorcizar os terrores da natureza, aliviando o homem das privações impostas pelo convívio social e a verdade de seu perecimento. A criatura humana vê-se diante do perigo iminente da perda; a cada gesto seu, depara-se com a fragilidade do seu corpo, com as limitações da sua existência, com a proximidade da morte:

Há os elementos, que parecem escarnecer de qualquer controle humano: a terra, que treme, se escancara e sepulta toda a vida humana e suas obras; a água, que inunda e afoga tudo num torvelinho; as tempestades, que arrastam tudo o que lhes antepõe; as doenças, que só recentemente identificamos como sendo ataques oriundos de outros organismos e, finalmente, o penoso enigma da morte, contra o qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será. É com essas forças que a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa fraqueza e desamparo de que pensávamos ter fugido através do trabalho da civilização (Freud, op.cit., p.27).

A beleza assustadora desse fragmento traduz o desamparo humano diante das forças poderosas da natureza. Se Freud prevê que a cultura tem origem no propósito de proteger o sujeito dos perigos reais e imaginários, conclui que não há possibilidade de atingi-lo por completo, pois resta sempre um vestígio que marca o limite da criação humana. Em outros termos, se a religião é uma das formas que o homem criou para dar maior proteção à sua fragilidade, sobra um excedente que revela seu temor diante da vida, sua condição de ser finito marcado por um corpo que perece e pela verdade de uma morte que não tarda em alcançá-lo. Freud chama atenção para os exageros dessa tentativa civilizatória de suprimir o mal-estar inerente ao humano flagrando a impossibilidade do projeto realizar-se por completo.

Enfatizando, o texto freudiano afirma que a primeira tarefa da religião é aplacar o desamparo e responder os enigmas da existência. Com esse intuito é criada uma cosmogonia que dá sentido à origem, de onde são forjadas técnicas mágicas para dar consistência à doutrina. A densidade crítica do argumento freudiano é apontar os deslizamentos em relação a esse propósito primeiro da instituição religiosa, declarando que ela não se limita a dar explicações sobre as relações do homem com a natureza, mas oferece uma dimensão divina a preceitos engendrados pela cultura. Em síntese, a religião configura-se como uma moral, cuja origem é tributada aos deuses.

Ou ainda, a civilização dispõe de meios que tem a finalidade de conciliar o sujeito com a cultura, seja por seu poder normativo, seja pela compensação; a religião é criada sob tais princípios. O homem começa a humanizar a natureza, entendendo que o universo funciona como sua própria alma; assim o mundo passa a ser ordenado por uma vontade celeste e os mistérios a espelhar o regulamento social. Quando o sobrenatural é traduzido pelos princípios terrenos, quando são criados os deuses e os ídolos, o homem pode sentir-se mais protegido diante do seu desconhecimento, mas à medida em que se apuram as regularidades da natureza, a religião vai perdendo seu poder de decifração do universo e resume-se a um preceito moralizante.

Na análise derradeira de Freud, se as representações religiosas são sustentadas por uma vontade antiga e intensa de diminuir os perigos da vida, responder às injustiças e atenuar o medo da aniquilação, sobrevive, todavia, de sua eficácia como código. A crença religiosa é construída sobre ordenações morais travestidas de um caráter sobre-humano.

O futuro de uma ilusão (op.cit.) descreve a religião como uma criação humana, um instrumento inventado com a finalidade de amenizar a impotência do sujeito diante dos cataclismas da natureza, do temor da destruição, da desproporção entre desejo e realização. Contudo, é também aqui onde Freud observa que uma multidão de descontentes dá mostras da insuficiência desse consolo. A religião não conseguiu tornar feliz a maioria dos homens, o que assinala as contradições de uma doutrina que pretende harmonizar o sujeito com as restrições da civilização, mas que torna-lhe ainda mais limitada a existência.

Vemos na obra freudiana, a exemplo da instituição religiosa, o fracasso da promessa de uma harmonia estável para o humano. Ao propor-se a dissolver o incômodo que advém do fracasso da tentativa civilizatória, a religião também cede à impossibilidade de adequar o desejo humano à renúncia imposta pela cultura. Nesse sentido, quando a representação religiosa nivela todas as subjetividades sob um modelo único, quando prescreve um caminho para a felicidade com base em restrições comportamentais, torna-se, ela própria, fonte de desprazer.

Em O futuro de uma ilusão (op.cit.), Freud inquire sobre a invenção dos deuses, discute a função social da instituição religiosa e anuncia o seu duplo fracasso: ao tornar-se um sistema moralizante, falha na sua proposta de conciliar o sujeito com as restrições sociais e aguça, ainda mais, o contraste entre o mundo psíquico e os limites impostos à vida civilizada. Aqui, o preceptor da psicanálise endereça um comentário condenatório à diversidade dos sistemas totalizantes que respondem à amplidão do desejo humano com a facilidade da promessa.

Damos destaque à discussão freudiana sobre a evolução das idéias religiosas porque entendemos que esse é um ponto fundamental da discussão psicanalítica sobre a cultura. Além de apontar o caráter ilusório da religião, Freud acentua o poder restritivo das leis quando deslocadas de sua origem humana, retratando a rigidez e a imutabilidade de regulamentações que ao alcançarem o caráter de ordenação divina já não podem traduzir-se como arranjos legais flexíveis. As considerações sobre a religião ultrapassam o âmbito das indagações fundamentais ao corpo conceitual da teoria psicanalítica, situando esse saber entre os pensamentos críticos da modernidade.

Freud nos fala da criação dos ídolos, da invenção de Deus, da necessidade do homem de construir um ideal em que se espelhar, que possa lhe redimir e dar um sentido à sua existência. As formulações sobre a genealogia da religião situam a psicanálise como um saber transgressor, avesso a uma concepção de homem estabelecida em torno das idéias de unidade e totalidade psíquica. A originalidade dessa concepção é, portanto, explicitar o ceticismo diante da proposição de uma salvação, de uma cura para o sujeito – traduzidas como a possibilidade de alcançar uma harmonia estável. A psicanálise marca o seu distanciamento diante dessas formações sociais quando não cessa de apontar para a finitude do humano, quando seu fundamento ético é construído em torno de um compromisso de conduzir o sujeito à verdade singular do seu desejo; assinala incansavelmente as lacunas do humano e define sua oposição a toda ficção de completude.

Assim, a crítica à religião afirma a perspectiva de humano trazida pela psicanálise. Pois se o sujeito freudiano é concebido como uma multiplicidade de instâncias psíquicas em conflito, como pode cumprir-se a promessa de um equilíbrio permanente, como apaziguar a desarmonia inerente à condição humana?

Para Freud, a religião é sedução, convite à imortalidade; é também resposta inocente para um homem submetido à imprevisibilidade do seu desejo.

À medida que percorremos a obra cultural vemos cada vez mais delineado o contorno da perspectiva humana psicanalítica; é essa concepção que está na base da crítica das idéias religiosas e é também o que nos permite perguntar, com seu autor: tendo identificado as doutrinas religiosas como ilusões, somos imediatamente defrontados por outra questão: não poderão ser de natureza semelhante outros predicados culturais de que fazemos alta opinião e pelos quais deixamos nossas vidas serem governadas? (Freud, 1927, p. 47).

 

A sedução da ciência e da ética modernas

O discurso freudiano sobre a cultura é uma lição sobre o conflito imanente à condição humana. E, mais ainda, é a confissão do autor da psicanálise sobre os limites de sua terapêutica.

O mal estar na civilização(1930) é obra que sustenta, com a intensidade do talento literário de Freud, a originalidade da posição subjetiva descrita pela psicanálise. No decorrer das oito seções que compõem o texto, é desenvolvida uma argumentação que culmina com a reafirmação da existência de uma destrutividade autônoma no homem.

Ao coroar suas reflexões com o conceito de pulsão de morte, o autor da psicanálise declara que há um mal-estar inerente à própria constituição do sujeito, premido entre a indiferenciação imposta pela cultura e a transgressão que conforma sua singularidade, denunciando o conflito irremediável que atravessa as relações humanas, a luta íntima entre uma potência conservadora que mantém os grupamentos sociais e a vontade de destruição contrária às unificações da vida civilizada.

O sujeito freudiano mostra seu deslocamento em relação à natureza quando a morte deixa de ser um além de si mesmo e integra a vida. A psicanálise proclama que no íntimo das subjetividades há uma força que conduz à destruição, um princípio que resiste a toda indiferenciação, pondo em causa a conservação e a homogeneização próprias à ordem da cultura. A proposição da pulsão de morte é marca derradeira da finitude humana.

Já nas primeiras páginas de O mal-estar na civilização (op.cit.), Freud discute o esforço humano contra o sofrimento: se nos vemos ameaçados por um corpo que perece, pela natureza que assusta com seu poder de destruição, por relacionamentos que causam dores tão penosas, como insistir na busca de uma felicidade absoluta?

Com essa indagação Freud introduz a crítica a um dos discursos mais influentes desde a modernidade: o poder de sedução da ciência, da série de invenções que fez aproximar o homem de um Deus de próteses.

A ciência e a tecnologia potencializam o débil organismo, prolongando-o artificialmente, rompendo os limites dos corpos ao conceder-lhes novos olhos, ouvidos e memória. Se Freud reconhece que o progresso técnico tem valor sobre a economia da felicidade, afirma, ainda mais, que uma cota do desconforto do sujeito moderno é devida às mesmas conquistas que radicalizaram sua condição de ser de artifícios.

Nem mesmo a ciência pode realizar a utopia de uma vida plena. O avanço da civilização, a complexificação dos meios de comunicação – próteses de todos os gêneros que permitem ao homem ampliar seus limites, ultrapassando até mesmo a sua imaginação – nenhum desses recursos tecnológicos pode dissolver o mal-estar que advém da impossibilidade de finalizar o desejo humano.

Em princípios do último século, época de encantamento diante das exibições da técnica, Freud desperta para o equívoco de supor que as conquistas da ciência possam trazer a tão sonhada harmonia. Como sujeito do seu tempo, não deixa de maravilhar-se com esses inventos e descobertas, afirmando seus benefícios e possibilidade de tornar mais acessíveis os meios para o prazer: as ferrovias que permitem conhecer cidades distantes, o telefone e o telegrama que aproximam os amigos, a medicina que pode prolongar a vida. Mas não deixa de considerar que esses mesmos aparatos podem trazer consigo uma exuberante ficção de completude.

No artigo que ainda hoje nos causa estranheza por sua atualidade crítica, vemos Freud tributar a esses mesmos avanços um excedente de mal-estar, pois o ideal de progresso cria a imagem de um super homem que teme seu próprio poder de destruição e extermínio: os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle que, com sua ajuda não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e ansiedade. (Freud, op.cit., p.170).

A crítica freudiana à cultura não se encerra na intrigante discussão sobre a ciência, mas concentra-se em eventos sociais para permitir a leitura de uma certa condição subjetiva. O quinto capítulo de O mal estar na civilização (op.cit.) descreve a passagem da análise de um acontecimento cultural à construção de conceitos fundamentais ao corpo teórico da psicanálise, onde podemos encontrar um dos mais expressivos argumentos contra valores da modernidade filosófica e política.

Fazendo a crítica do mandamento religioso Ama teu próximo como a ti mesmo, Freud mostra sua oposição a todo princípio fundado na crença de um homem benevolente, de um ser naturalmente dotado de bondade. Mais do que confrontar-se com todo sistema religioso, denota o distanciamento da psicanálise diante do preceito ético que rege o ocidente até aquele momento.

Partindo de uma observação de si próprio, procurando dar entendimento a tantos conflitos que cercam o cotidiano da vida, Freud recusa a visão de homem criada pela religião, pela ciência e pela proposição ética ainda presente em seus dias e defende a existência de uma potência de destruição inerente ao humano, desfechando o último golpe à ilusão de uma existência harmoniosa e, revelando, sob muitas nuances, a ameaça permanente de desorganização do tecido social.

A temática da segregação, outra das mais importantes contribuições freudianas à crítica cultural comparece par e passo à formalização do conceito de pulsão de morte. O preceptor da psicanálise formula uma equação que relaciona a coesão de certos grupos à hostilidade que os mesmos mantém diante de outras comunidades. Nesse sentido, conflitos entre religiões, raças, nações vizinhas possibilitam que a agressividade seja destinada ao adversário e sustentam a união interna ao grupo. O narcisismo das pequenas diferenças (Freud, 1921) traduz uma canalização do poder destruidor para o outro, o diferente, permitindo explicar a conservação de uma ordem interna àquele grupamento.

Assim, até mesmo a harmonia entre as unidades sociais revela outra face sua complementar: uma agressividade que recai sobre aquele que não vemos como próximo, como semelhante. Fazendo essa análise, Freud aponta o avesso do altruísmo e mostra a impropriedade de uma ética fundada em uma vontade geral. Atrás de uma proposição uniformizadora que se traduz, seja no mandamento de amor ao próximo, seja nos códigos que homogeneizam a todos sob o signo de humanidade, há algo que dissolve a promessa de conciliação do sujeito com a cultura: essa força desagregadora e impositiva da diferença, nomeia pulsão de morte.

Na análise freudiana, é a experiência da guerra o que conclui por dissolver uma das mais poderosas ilusões que ainda persiste na modernidade: a crença no homem como uma criatura benevolente para com o seu próximo.

Reflexões para os tempos de guerra e morte(1915) é escrito no início da primeira guerra mundial e discute o constrangimento que vem diante das atrocidades cometidas em nome de uma bandeira política, da transformação da moralidade e da ética dos povos diante do inimigo, da limitação das leis de bom convívio ao interior de um país ou de uma aliança de nações.

A introdução do artigo narra a mobilidade do sujeito entre as mais diversas fronteiras, podendo desfrutar de diferentes paisagens, línguas e artes, circulando em paz como estrangeiro; expressa a fruição de uma civilização perturbada vez ou outra por divergências que mostram serem as lutas inevitáveis. A proposição freudiana para dar entendimento a tal condição social é o primitivismo que persiste mesmo no homem civilizado: a guerra surpreende a todos pelo seu grau de selvageria e barbarismo, despedaça a ilusão de uma civilidade própria ao sujeito e demonstra o fracasso da imposição de um plano moral muito rígido para o humano. O texto possibilita, portanto, delimitar a natureza humana concebida pela psicanálise – natureza esta constituída por pulsões de natureza elementar, semelhantes em todos os homens e que visam à satisfação de certas necessidades primevas (Freud, op.cit., p.317). Como decorrência de tal pressuposto, a relação do sujeito com a cultura implica a renúncia à satisfação pulsional, a mutação de impulsos egoístas em outros de caráter altruísta e social concretizada nas exigências de amor e em demandas civilizatórias que operam por via da educação e do meio social mais amplo.

Freud conclui, pois, que toda compulsão interna é originalmente fruto da pressão do ambiente imediato e da história cultural dos antepassados, mas ressalta que a civilização pode adestrar o sujeito, fazer com que se comporte dentro de seus padrões, o que não significa que tenha havido um enobrecimento das pulsões, mas uma mera adaptação à norma.

Com esses comentários entendemos que o psicanalista desloca a idéia de desilusão trazida pela guerra para uma reflexão de maior alcance: a guerra não faz com que o sujeito decaia em sua moralidade, mas revela a mente primitiva que desde sempre portou. Freud desnuda os sentimentos mais ambivalentes que o homem nutre em relação ao seu próximo e aponta para a intimidade entre o civilizado e o primitivo: as práticas violentas conclamadas pela guerra evidenciam um sujeito dividido entre o amor e o ódio, denotando a inclinação humana à agressividade e ao assassinato, à percepção do estranho como inimigo.

Por que a guerra?(Freud, 1933) é carta escrita por Freud em resposta à perplexidade de Einstein diante das atrocidades cometidas na guerra e à sua pergunta sobre como a psicanálise poderia colaborar para defender a humanidade de tal ameaça. O iminente cientista surpreende-se diante do entusiasmo humano pela destruição, concebendo como explicação para esse acontecimento um desejo de ódio presente no humano e inquirindo sobre a possibilidade de um controle na evolução ao ponto de suprimi-lo.

Freud inicia sua argumentação mostrando a relação de continuidade que há entre a violência e o direito: a lei surge como tentativa do grupo opor-se ao barbarismo do líder e mantém-se muitas vezes fazendo uso da mesma violência que a motivou. Desse modo, o que aparece à primeira vista como antítese– direito X violência– é nada mais do que o prolongamento entre as duas instâncias. Em suas palavras, a lei originalmente era força bruta (Freud, 1933, p.251).

Diante dessa reflexão, o criador da psicanálise defronta-se com o antagonismo entre a proposição de um regimento jurídico para todos e a luta de poderes que propriamente constitui as bases da cultura. Pois como afirmar que as leis são fundadas em um princípio de justiça, que sua finalidade é tornar todos os homens unidos sob uma ordem comum quando a comunidade se organiza a partir de forças desiguais e antagônicas? Como promover uma lei para todos quando a diferença se apresenta nas relações entre pais e filhos, conquistadores e conquistados; quando é estabelecida por quem, ao título de manter o seu direito, subtrai o de seu vizinho? (Freud, op.cit.)

Com essas questões Freud dá mostras de como o desequilíbrio dos poderes e a barbárie estão presentes na própria constituição do estatuto civilizatório e o quanto o preceito igualitarista está distante de sua concretude na realidade social. Assim, demonstra sua concordância com Einstein sobre a suposição de uma força desagregadora presente no humano, afirma que sob as nobres motivações de natureza idealista está um desejo desorganizador da cultura e finalmente declara ilusória uma autêntica harmonia ao nível social, sinalizando a impossibilidade de eliminar uma força corruptiva que é imanente ao sujeito.

Concluindo, a retomada de textos fundamentais da obra cultural freudiana poderia fazer-nos supor que a psicanálise conduz a uma visão pessimista do sujeito no mundo. Mas logo percebemos que ao admitir que não há possibilidade de realização plena para o sujeito, o saber analítico descreve o humano como aquele que não cessa de buscar a ampliação do seu campo de representação; ou seja, sua estratégia é afirmar que o sujeito se coloca, irremediavelmente, diante de seu desamparo fundamental e que justamente por isso há que submeter-se a um permanente trabalho de simbolização (Birman,1984). De outro modo, a psicanálise freudiana não concebe o sujeito como sendo centrado no eu, mas o caracteriza como um choque de instâncias psíquicas em conflito, sendo tal configuração desarmônica o que o lança ao movimento de criar um equilíbrio dinâmico que realiza através da aquisição de instrumentos de simbolização. É, pois, a finitude o que impulsiona a uma ligação artificiosa e singular no mundo, é o que nos permite criar projetos, buscar conhecimentos e o prazer, mesmo que episódico e fugidio. Encontrar Freud discursando sobre os acontecimentos sociais é perder de vista uma concepção do humano pautada na esperança de um futuro de plenitude, seu pensamento remete ao paradoxo da condição humana e podemos descrevê-lo não como pessimista, mas como trágico (Birman, op.cit.).

Nesse sentido, O mal estar na civilização(1930) é ilustrativo de uma diversidade de métodos de que o sujeito lança mão para desfrutar de uma felicidade fugaz: a narcose que provoca sensações prazerosas ao alterar a química do corpo; a sublimação que desvia a energia pulsional para fontes de trabalho psíquico e intelectual; o encontro amoroso que é a própria revelação de Eros; a contemplação e o exercício artístico, formas de fruição através da fantasia. Reconhecemos que Freud não tem um interesse meramente descritivo ao arrolar alguns recursos para se obter, temporariamente, a satisfação, mas quer defender roteiros diversos e particulares para esse caminho.

Iniciamos um percurso através de textos fundamentais da obra cultural freudiana e nos encontraríamos impossibilitados de vislumbrar movimentos de resistência a tão radical descrição da realidade humana se não pudéssemos apreender a complexidade dessa proposição. Ao colocar a busca dos ídolos como um ideal que esconde a impossibilidade de uma vida plena; ao reafirmar, frente à sedução do discurso da ciência, um sujeito aberto ao infinito de seu desejo; e ao descrever, diante da experiência de uma guerra de proporções mundiais, a potência desorganizadora que habita o humano, Freud recusa as arregimentações niveladoras das subjetividades e constitui uma ética fundada nas marcações singulares do desejo.

O leitor que se expõe ao texto freudiano, especialmente à sua produção que se segue à formulação do conceito de pulsão de morte, depara-se, portanto, com o paradoxo da condição humana descrita pela psicanálise; aprende que o sujeito se cria no embate com a cultura, mas padece por estar indissoluvelmente ligado ao tecido social. É desse encontro que o sujeito marca a sua diferença simbólica e pode compor um território para a sua fruição e é também esse o evento tradutor da impossibilidade de alcançar a satisfação absoluta e duradoura.

Ao dispor sobre os fundamentos do laço social em Totem e tabu (Freud, 1913); ao perguntar com Einstein o porquê da guerra (Freud, 1933) ou discutir a genealogia da religião, o preceptor da psicanálise não apenas inscreve na sua produção teórica os ecos de formulações nos campos da etnologia e da filosofia política, a repercussão de acontecimentos dramáticos como a segunda guerra ou a recorrência do cristianismo nos inícios do século 20. Ele nos oferece a leitura de uma condição humana eminentemente trágica, onde a marca do desejo perde-se na impossibilidade da promessa.

Freud declara que a psicanálise não pode dar fim ao desamparo, oferecer ao sujeito do inconsciente o conforto daquele que anseia pela harmonia consigo mesmo e com o próximo. Adotar a posição daquele que promete é situar-se no horizonte dos ídolos, das filosofias totalizantes e das mais elementares pregações políticas.

A psicanálise deve sustentar sua posição de denúncia diante de todo projeto fundado em ideais fictícios de conciliação. Distante da representação religiosa, que impõe-se igualmente a toda coletividade como meio para a felicidade além da vida, e do discurso da ciência, que se oferece como ficção exuberante de plenitude para humano ainda na brevidade do presente, o autor da psicanálise acena para a disponibilidade do sujeito ao jogo de escolha e adaptação conforme as marcações da sua singularidade, ratificando a crítica a todas as formações sociais que pretendem homogeneizar as subjetividades.

Freud afia o instrumento psicanalítico nas malhas de uma ética da singularidade.

 

Referências

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Freud, S. (1930). O mal estar da civilização (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

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Roudinesco, E. (1989). História da psicanálise na França: a batalha dos cem anos (1885-1939). Vol. I. Rio de Janeiro, Zahar.

 

 

Recebido em 29 de julho de 2002
Aceito em 22 de agosto de 2002
Revisado em 25 de agosto de 2002

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