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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. v.4 n.2 Fortaleza set. 2004
ARTIGOS
Segregação, gozo e sintoma*
Angélica Bastos
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia - UFRJ. End.: R. Gustavo Sampaio, 126/402. email: abastosg@terra.com.br
RESUMO
O presente artigo aborda a problemática da segregação envolvida no mal-estar subjetivo e tem por objetivo apontar linhas de trabalho psicanalítico capaz de enfrentá-la. Com base na pesquisa clínica e programas de investigação desenvolvidos numa parceria entre a universidade e uma instituição pública de saúde mental, o interesse do trabalho incide na elaboração de dispositivos clínicos voltados para as psicoses, o autismo e outros quadros contemporâneos distantes daqueles que suscitaram a invenção do dispositivo analítico tradicional. Partindo da distinção colocada na literatura entre a segregação tradicional e a "neo-segregação", sustenta-se a hipótese segundo a qual o gozo, aqui entendido como satisfação pulsional independente do prazer, é um fator de segregação. Busca-se demonstrar como a psicanálise, por sua prática clínica, pode operar contra a segregação e a favor do laço social, contribuindo para as políticas de inclusão na área de saúde e educação. Procura-se mostrar como a perspectiva analítica subverte a concepção que vê no sintoma e no delírio produtos patológicos a serem erradicados. Na atividade clínica destaca-se o trabalho de ancoragem do gozo na palavra, suscetível de tratá-lo e de circunscrever a particularidade do sujeito. Assim, chega-se a uma outra concepção de sintoma, que deve ser construído, segundo um processo de bricolagem.
Palavras-chave: Segregação; gozo; sintoma; psicanálise; psicopatologia
ABSTRACT
This article discusses the problem of segregation involved in the subjective discontent and it is aimed at tracing the psychoanalytical work lines which are able to cope with them. Based on clinical research and on investigation programs developed in a partnership with the university and a public institution of mental health, the interest on the work falls on the elaboration of clinical devices related to psychosis, autism and other contemporary manifestations which are far from those that gave rise to the invention of the traditional analytical device. From the literature distinction between traditional segregation and "neo-segregation", literature draws the hypothesis that jouissance, here understood as an independent pulsional satisfaction of pleasure, is a factor of segregation. We try to show how psychoanalysis, in its clinical practice, can operate against segregation and for the social tie, contributing for the policies of inclusion in the fields of health and education. We try to show how the analytical perspective subverts the conception that sees pathological products to be eradicated both in the symptom and in delirium. The work of anchoring jouissance in the word susceptible to treatment and to circumscribe the particularity of the subject is highlighted in the clinical activity. Thus, another conception of the symptom which should be constructed according to a process of bricolage.
Keywords: segregation; jouissance; symptom; psychoanalysis; psychopathology.
Psicopatologia e Psicanálise
As questões aqui tratadas são relativas ao mal-estar subjetivo e foram suscitadas pela clínica e pela pesquisa em psicanálise. Pretendo traçar para elas linhas de desenvolvimento que contemplam o tema que nosso grupo de trabalho 'PSICOPATOLOGIA E PSICANÁLISE'. Essas questões serão enunciadas em termos de segregação, gozo e sintoma.
A experiência com crianças e também com adolescentes (já que algumas crianças se tornam adolescentes no decorrer do tratamento), da qual emergem as interrogações sobre o caráter segregador do gozo, deve muito às atividades da equipe de estágio na Divisão de Psicologia Aplicada do Instituto de Psicologia da UFRJ. Devemos igualmente à cooperação com o NAICAP (Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica), do Instituto Municipal Philippe Pinel. Para mencionar apenas algumas das ramificações do acordo entre o NAICAP e a linha de pesquisa Teoria da Clínica Psicanalítica de um Programa de Pós-Graduação stricto sensu, o de Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da UFRJ, vale destacar que o Núcleo nos encaminha algumas crianças e suas mães que acorrem a sua Porta de Entrada. Além disso, oferece oportunidade de participação de alguns membros da equipe de pesquisa no trabalho clínico da instituição e realiza conosco seminários de pesquisa e discussões clínicas.
A grande diversidade de quadros clínicos e patologias desses pacientes converge para uma problemática comum aos atendimentos: o sofrimento psíquico que abordamos como gozo é um fator de segregação - isso é uma constatação - mas ele isola sempre da mesma forma? E se trata de formas diferentes de isolamento, com que variações do dispositivo clínico podemos responder?
Partimos da premissa de que o tratamento não tem como direção erradicar o gozo, mas encontrar uma maneira de tratá-lo, de circunscrevê-lo. Os produtos psicopatológicos como o delírio e o sintoma se prestam a esse trabalho, à medida que lhe dão lastro na palavra. Na clínica com crianças, o trabalho de construção do sintoma é crucial, pois a criança é freqüentemente encaminhada pelos pais ou pela escola. No primeiro caso, é o sintoma deles, corresponde a algo que não funciona seja na fantasia materna, seja no casal parental (Lacan, 2001). No segundo, que não deixa de se mesclar ao primeiro em proporções sempre variáveis, ela presentifica algo impossível de suportar pelo corpo social. Assim, o trabalho em torno do sintoma equivale à própria produção do sujeito em sua singularidade.
Psicanálise e pesquisa na universidade
Um grande desafio para a psicanálise em termos de ensino e pesquisa na universidade consiste a meu ver em aprender algo sobre a psicanálise e algo a partir da psicanálise, conforme Freud (1919/1976b) definiu suas expectativas em relação à presença dela nessas instituições. Ao eleger a pesquisa empreendida num Programa de Pós-Graduação como terreno de reflexão, espero contemplar o que se aprende na clínica psicanalítica, sem reduzir o ensino teórico ao aprendizado sobre a psicanálise e a prática clínica da pesquisa ao aprendizado a partir da psicanálise, pois sabemos que a primeira modalidade de aprendizado não é exclusiva das aulas teóricas, assim como a segunda não está garantida pela prática.
Ao abordar o ensino da psicanálise na universidade, Freud afirmou que sua inclusão no currículo universitário seria sem dúvida olhada com satisfação por todo psicanalista, mas julgou que essa inclusão não era necessária. No que concerne ao aprendizado teórico, a formação do psicanalista - e para alguns ainda se faz assim - compreenderia o estudo da literatura especializada, acompanhado do debate nos encontros científicos das sociedades psicanalíticas e no contato pessoal com os membros mais experientes.
A experiência que ele valoriza não é a acadêmica, é a experiência clínica, experiência do inconsciente. Freud acreditava que o ensino só poderia ser ministrado de maneira dogmática e crítica, por meio de aulas teóricas que deixariam uma margem muito restrita para a "experiência e para demonstrações práticas". Aqui, vale frisar que ele admitia uma margem, ainda que muito restrita, para a experiência. Ele pensava, como nós hoje pensamos, que o ensino na universidade se fazia acompanhar da pesquisa, ao invés de veicular um saber estabelecido a ser transmitido aos alunos que, então, o assimilariam com vistas à reprodução e aplicação técnica.
Para fins de pesquisa, propunha Freud que os professores de psicanálise tivessem acesso a um departamento hospitalar ambulatorial ou enfermaria. Apesar dessa concepção de Universidade, esta não foi privilegiada por Freud do ponto de vista da extensão da psicanálise e menos ainda no que concerne à formação do psicanalista.
Com os cursos de Psicologia, o movimento de inscrição da psicanálise nas universidades tomou um rumo e um impulso que não pode ser antecipado por Freud. Disciplinas teóricas de Psicanálise e Psicopatologia foram integradas aos currículos, convênios com hospitais para fins de pesquisa e estágio (como previra Freud para os cursos de Medicina) foram estabelecidos, assim como estágios clínicos nos Serviços ou Divisões de Psicologia Aplicada. Atualmente, mesmo o clínico com considerável experiência, quando se defronta com alguma singularidade estranha, com novas formas de sofrimento, com impasses em sua prática, freqüentemente se endereça à universidade, ora movido pela busca de aprofundamento e sistematização (seria o caso de discutir essa demanda em outra oportunidade), ora imbuído da convicção de que não basta aprender o saber depositado, mas produzir a cada caso um saber, e também despojar-se do saber que já está assentado, ser capaz de reformulá-lo e suspendê-lo. Essa tem sido uma das vias pelas quais, na universidade, aprendemos algo a partir da psicanálise.
A situação é, em certo sentido, bem favorável à investigação, por congregar grande número de professores e estudantes com suas pesquisas, teses e dissertações, multiplicando os casos e promovendo a extensão da clínica. Trabalhamos hoje em contato com serviços que funcionam segundo orientação psicanalítica e que tiveram que elaborar diretrizes para o tratamento institucional. Assim, foram criados e adotados novos dispositivos, capazes de responder aos quadros que ficavam excluídos do dispositivo tradicional, vale dizer, que não se mostravam afeitos ao laço analítico, como, por exemplo, o autismo e a psicose na infância. Em todos os casos, trata-se de encontrar uma maneira de tratar o gozo, ancorando-o na palavra.
Alguns pontos sobre gozo
Satisfação pulsional independente do prazer, o gozo assume concepções distintas ao longo do ensino de Lacan. Os pressupostos teóricos do que chamamos gozo do Um não se encontram na fase inicial desse ensino, que não vou escandir, mas delimitar com as seguintes proposições.
(1) As relações entre significante e gozo são múltiplas; dentre elas interessa-nos afirmar que esses dois termos não são antinômicos, pois o significante induz o gozo ao incidir sobre o corpo. Na linguagem o falante não está exilado do gozo, nem seu corpo é um deserto de gozo. Não nos restringimos, portanto, à concepção segundo a qual o significante implica anulação do gozo, a carência do primeiro se traduzindo, conforme as psicoses apontaram, como excesso do segundo (Lacan, 1998). Tampouco refutamos isso, pois há significante cujo funcionamento obedece a esse princípio: nas psicoses a ausência de significante paterno tem como contrapartida o retorno do gozo no Outro, como na paranóia, ou o retorno sob a forma de irrupção no corpo, como na esquizofrenia.
Também não nos limitamos a aglutinar o que é da ordem do gozo unicamente no objeto que recupera o gozo perdido, pois o gozo pode não estar todo condensado aí. Há sim uma função do objeto: ele extrai do corpo o excedente de gozo, operação sem a qual o corpo fica sujeito a uma série de perturbações observadas na esquizofrenia e no autismo que manifestam o transbordamento do excedente pulsional. O objeto aglutina não só o gozo que o significante falhou em excluir, mas aquele intrínseco a sua incidência.
(2) A relação entre, de um lado, o ser e o sujeito como falta a ser, e, de outro, o Outro como lugar da linguagem, campo no qual o sujeito se constitui e terreno onde o sentido se produz, não é suficiente para abordar o gozo. É preciso admitir que há Um (Lacan, n.d.), isto é, que há significante aquém do Outro e independente de sua existência, o que implica que a linguagem não depende do Outro prévio, de um sítio pré-organizado, para que o significante venha suscitar o gozo no corpo. O gozo pode prescindir do outro significante, o segundo, que viria da alteridade propriamente dita. Por conseguinte, falar em gozo do Um é admitir um comprometimento do Outro, seja sob a forma de uma decadência do Outro simbólico, sede dos ideais paternos, seja sob a forma mais extrema de um rechaço do Outro, tal como se observa no autismo.
O Outro não sendo uma categoria unívoca, seria difícil sintetizar uma fórmula do gozo do Um válida para todas as configurações clínicas. Porém, pode-se afirmar que o gozo do Um resulta em isolamento, é avesso ao laço social, seja porque o programa da civilização o repele como ameaça, seja porque aquele que dele usufrui se retrai do laço social. A partir dessas considerações, impõe-se o problema da segregação, com a qual a psicanálise sempre se defrontou (Freud, 1929/1976d), mas que assume formas renovadas e cada vez mais radicais.
A segregação por exclusão
A diferença é pivô da exclusão e o narcisismo, paixão do Um, agrupa em torno do mesmo, excluindo a diferença do Outro (Recalcati, 2002). Para as psicoses, o autismo, a debilidade mental, tentou-se muitas vezes reformar o Outro social e o Outro familiar, para que eles assimilassem a diferença. Tentou-se também reconstruí-los nas instituições destinadas ao tratamento desses casos, de modo a erigir uma alteridade alternativa e compatível com eles. (Lacadée, 1993)
Nem sempre esses movimentos tiveram êxito em mitigar a segregação, cujas formas históricas precisam ser reconhecidas. A partir do século XIX a dialética do Mesmo e do Outro (Foucault, 1978) funciona de modo disjuntivo, segregando a diferença do Outro, da qual a loucura é um caso eminente. No Renascimento, O Elogio da Loucura de Erasmo, "ainda a identificava ao comportamento humano normal" (Lacan, 1981, p.25). Para Pascal o louco é aquele que não compartilha a loucura de todo mundo. Mas a loucura de Nietzsche, Artaud e Van Gogh, conforme lemos em Foucault, não é mais a do Renascimento, como a de Erasmo ou de Tasso (Le Tasse, 1996), que tanto inspirou Freud. A loucura do século XIX começa onde o Mesmo encontra seu limite, de modo que, não há obra onde há loucura e não há loucura na obra (Foucault, idem). Uma começa onde a outra acaba, pois os loucos estão alienados na forma moderna da doença, à qual se acrescentou o complemento mental.
A psicanálise trabalha na direção oposta à da segregação, pois conjugando inicialmente a psicose e o delírio, para em seguida conceder à obra de arte uma função ordenadora na loucura, entrelaça as invenções ou criações à estrutura do sujeito, sem, no entanto identificar na primeira o reflexo do segundo.
Encarado como produto psicopatológico e manifestação a ser eliminada, por obra de Freud (1911/1969) o delírio passa a ser considerado como uma tentativa de cura, um artefato inventado para costurar as relações do sujeito com a realidade. Nesse sentido, o delírio se divorcia não só de sua versão psiquiátrica, mas também da concepção médica do sintoma.
Entre o delírio de Aimée (Lacan, 1987), que passa ao ato numa tentativa de assassinato, e o de Schreber, que vira escrita a reivindicar o reconhecimento científico dos médicos, há sem dúvida uma grande distância. Sabemos que há delírios e delírios e que nem toda produção delirante é bem sucedida em assinalar junto ao Outro um lugar suportável para o sujeito e restabelecer seus elos com a realidade remodelada de forma autocrática (Freud, 1924/1976c). Enquanto remendo, ele refaz a trama rompida, eventualmente promove a estabilização, podendo funcionar como metáfora e suplência, ou seja, com uma função positiva.
Schreber não é poeta, lembra Lacan, mas produz sua metáfora delirante. A escrita de Joyce é literatura, mesmo se ele não consegue inscrevê-la no laço social do discurso (Miller, 1999b). Em ambos os casos o gozo encontra ancoragem na palavra, seja na articulação significante que dá lugar à significação delirante, seja simplesmente na letra. No caso da paranóia, o gozo é solidário de um saber que o localiza nas figuras nefastas do Outro - o perseguidor, o sedutor e o traidor que querem o mal do sujeito - evidenciando que o saber é um meio de gozo (Miller, 1999a, p. 173), mas de um gozo que quanto mais cifrado estiver, menos invasivo e avassalador será.
De modo paralelo ao delírio, o sintoma, elemento psicopatológico por excelência, sofre uma série de deslocamentos conceituais na clínica que vai da psiquiatria a Freud e depois a Lacan. Para o primeiro, o sintoma não se confunde com a doença, pois ela é a capacidade de formar sintomas, que são, por sua vez, manifestações do inconsciente. Vem ao primeiro plano o caráter de compromisso, simultaneamente defesa e satisfação pulsional substitutiva. A fórmula "o sintoma é a vida sexual do neurótico" já lhe dá um valor positivo, e mesmo prático. Se a doença é um conceito prático e o sentido do sintoma comporta um 'para quê' (Freud, 1917/1976a) tem primazia o funcionamento, o uso que se faz dele, seja sob a forma dos benefícios ou ganhos com a doença, seja sob a forma do sofrimento que, passando pela queixa, dá lugar ao endereçamento a alguém supostamente capaz de minorá-lo.
O sintoma, enquanto modo de obter satisfação pulsional, tem um valor de uso; enquanto portador de uma mensagem adquire valor de troca. O sintoma pode ser encarado como uma invenção, uma solução, à medida que circunscreve a particularidade do sujeito e lhe confere uma maneira própria de obter satisfação pulsional. Passando pela troca, pode lograr um valor de uso, que propicia ao sujeito um saber virar-se com o sintoma (savoir y faire), saber haver-se com o sintoma e seu gozo. (Miller, 2000).
O sintoma na infância ou a infância com problemas tem vocação para a segregação, pois realiza uma ordem de alteridade que é repelida e não dispõe de condições ou recursos para combater a exclusão de que é objeto. No caso do autismo e da psicose na infância, o mutismo em que a criança fica enclausurada, os distúrbios de linguagem e fenômenos como as estereotipias são a marca da diferença passível de discriminação. Trata-se ainda da segregação descrita por Michel Foucault (1978) a propósito da loucura, que afasta aquilo que constitui diferença em relação à norma universalizante. Contra ela, políticas públicas de integração na área da Educação revelaram-se incapazes de assegurar um lugar para a criança, que pode transpor os muros da escola, sem, no entanto, encontrar condições de convivência e inserção no laço social. Isso indica que não basta reformar o Outro social para que a criança encontre seu lugar.
Contra as escolas e as turmas especiais, a política de inclusão procura remediar essa situação, proporcionando mais que a penetração na instituição escolar, isto é, promovendo um espaço social comum a todas as crianças, compatível com tratamento e atenção especializados. A política de inclusão na área de Saúde Mental parece seguir um trajeto equivalente, guardadas as peculiaridades e objetivos de uma e outra.
No entanto, para aquele que flutua entre um discurso e outro ou aquele que está fora do discurso - como na debilidade mental, psicoses e autismo - há um trabalho mais fundamental de se produzir como falante e fazer o gozo passar de um estado de reclusão a alguma forma de articulação e endereçamento. Sem este trabalho, as reformas e retificações do Outro social não rendem tanto, porque cada um tem seu Outro.
A "neo-segregação"
O sintoma analítico não se confunde com o sintoma "socializado", com a etiqueta tomada de empréstimo ao discurso dominante com a qual o sujeito se faz representar, como no caso do anoréxico, do portador da síndrome do pânico, do débil com dificuldades de aprendizagem e outros suscetíveis de valerem-se deste tipo de identificação, que na atualidade não é privilégio dos adultos e adolescentes. Não empregamos o termo "socializado" numa referência direta às manifestações coletivas e fenômenos grupais que expressam o mal-estar na cultura. O sintoma "socializado" se nutre dos diagnósticos médicos e psiquiátricos tais como eles se difundem socialmente: TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), síndrome do pânico, distúrbio do déficit de atenção e hiperatividade, etc. Uma criança de 6 anos diz: "sou um hiperativo", com muito pouco a agregar a isso, além do silêncio.
O sintoma socializado se apóia mais ou menos indiretamente no discurso da ciência, disseminando os efeitos universalizantes deste último, efeitos avessos à subjetivação e ao particular. Trata-se, portanto, de recorrer ao dispositivo analítico para passar do sintoma socializado ao analítico, ou ainda, de produzir novos para ligar o gozo à palavra e, quando possível, situá-lo num discurso.
O sintoma socializado envolve uma espécie de exílio interno ao espaço inclusivo. Esse isolamento interno chamado de "neo-segregação" (Recalcati, 2002), já não segue o modelo da segregação tradicional. Nela se enquadram aqueles entregues ao gozo solitário, narcísico, (gozo do Um), reunidos de forma homogênea sob uma identificação como, por exemplo, anoréxicos, jogadores compulsivos, alcoólicos, etc. Um caso na atualidade brasileira é o jogador dos bingos, capaz de perder seus rendimentos em poucas horas, ficando muitas vezes incapacitado de voltar para casa, errando por aí com os bolsos vazios. Não estão reunidos num grupo, mas participam de uma identificação social e sofrem isolados, dispersos, mergulhados no anonimato, compartilhando o empuxo à perda que se sustenta no fascínio do dinheiro ganho sem perda, graças à sorte. Com eles, o tratamento está sujeito a percalços, ao sabor da política que abre e fecha as casas de jogo, mas acima de tudo, à mercê do gozo solitário: o recente fechamento dos bingos não refreia a compulsão. Uma paciente, ao contrário, mergulha na bebida quando não pode jogar, mas diz: "hoje não, porque era dia de vir aqui".
Caberia então uma pergunta: trata-se efetivamente de duas formas alternativas de segregação? Colocar a questão em termos de gozo conduz à suposição do gozo do Um, em menores ou maiores doses, na base de outras formas de segregação, pois o gozo, o desperdício de gozo é refratário aos enlaces, às ligações; ele é auto-segregação. Como, então, proceder com as tão diversas ilhas de gozo?
Para o jogador compulsivo o dispositivo standard ainda se presta a facultar-lhe a via da fala e a extraí-lo do gozo do Um, à medida que ele se endereça a alguém. Mas essa forma de tratamento não se aplica a todos, nem todos estão a ponto de encontrar no analista uma parceria. No caso do autista, verifica-se o rechaço das figuras de alteridade que a criança só suporta com a condição de dominá-las integralmente. Para esses casos, inventou-se a prática entre vários, que dispersa saber e gozo do lado da alteridade, para que estes possam passar para o lado do sujeito (De Halleux, 1999). Para os anoréxicos, Recalcati (2002) propõe o grupo mono-sintomático, com o qual se efetua a transição do anonimato da identificação regida pelo ideal do corpo magro, gozo narcísico da imagem, para o grupo e para a fala dirigida ao Outro.
A bricolagem do sintoma
O termo é retirado do francês, bricoler, bricolage, e designa uma atividade construtiva de caráter artesanal e privado. O bricoleur é aquele que, ao invés de recorrer ao serviço especializado de terceiros para instalar, construir ou consertar algo em sua casa, engaja-se no trabalho sem possuir formação técnica ou profissional. Essa versão contemporânea e mais corrente do bricoleur encontra-se, pelo menos na França, codificada e uniformizada pelo comércio que oferece nas lojas de departamento um setor destinado à bricolagem, onde se compra o material necessário para colocar papel de parede, armar uma estante pré-fabricada, etc.
Uma versão mais antiga data de um momento onde não há o material e as ferramentas prêt-à-porter, produzidos em série, de modo que o bricoleur recorre a restos, partes de objetos, cacarecos, coisas sem utilidade que são aproveitadas, recicladas num novo objeto, onde cada peça adquire um novo uso. Esse bricoleur mais artesanal, anterior ao comércio e indústria da bricolagem, foi descrito por Lévi-Strauss (1976) e contraposto ao engenheiro. A oposição tinha uma função ilustrativa na comparação entre, de um lado, a ciência do concreto, o pensamento mítico e mágico que elabora seus sistemas com o que está disponível na natureza, e de outro, a ciência contemporânea que constrói objetos de conhecimento e, à medida que informa conceitualmente a técnica, produz artefatos tecnológicos projetados pelo engenheiro.
Há uma boa diferença entre a construção baseada no universal da ciência que culmina na produção em série de objetos e aquela erigida com base na contingência e na singularidade da história que dispersou objetos e reuniu seus restos heteróclitos no arsenal com o qual conta o bricoleur.
O sintoma também é uma questão de invenção. Também é fabricado com elementos da cultura, mas com seus fragmentos heterogêneos, numa montagem particular, que traz a marca do sujeito. Nessa acepção do termo sintoma, não estamos limitados à estrutura clínica da neurose. Ele não é necessariamente uma formação do inconsciente recalcado, mas uma formação do falante que ata, ou mais, articula a pulsão ao significante e à imagem, poder-se-ia dizer, amarrando os registros do real do simbólico e do imaginário. É uma bricolagem com assinatura que dá forma à formula da contingência: que isso cesse de não se escrever, ou seja, que dá um tratamento ao real do gozo .
Nessa direção, assistimos a relatos de fragmentos clínicos como o de um psicótico que faz tranças com os fios deixados em sua casa por seu perseguidor. Esse material, destinado a amarrá-lo, é integrado a uma atividade lúdica que envolve outras pessoas. Ele também compra um telefone sem fio para dificultar o transporte das vozes, efetuando pequenas bricolagens (Cf. IRMA, 1999).
Um menino encaminhado pela psicóloga da escola configura um caso socialmente identificável como fracasso escolar ou dificuldades de aprendizado. Acometido de uma doença grave nos seus primeiros anos de vida, recupera a saúde, e em seguida passa por situações de abandono por parte do Outro parental. Na escola não aprende. Com o decorrer dos anos, a diferença de idade entre ele e seus colegas de turma aumenta, alcançando vários anos de defasagem. Ao iniciar o tratamento, recusa-se a escrever. Debilidade mental? A entrada na puberdade num ambiente de crianças menores causa desconforto na escola que freqüenta. Queixam-se de seus interesses libidinais e ele é transferido para uma escola especial, onde se encontra. Hoje faz poesia e espera com elas conquistar as garotas.
Nessa acepção do sintoma, mais que o reconhecimento social e estético para a obra de arte, destacamos o uso que o sujeito faz dela, isto é, a abertura para os enlaces com a alteridade e o tratamento do gozo que ela envolve. Ressaltamos antes a função que a forma, com prioridade para a invenção singular que extrai o sujeito do gozo solitário, vale dizer, da segregação.
Referências
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Recebido em 24 de junho de 2004
Aceito em 12 de junho de 2004
Revisado em 10 de agosto de 2004
* Artigo elaborado a partir de trabalho para apresentação no X Simpósio da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia) em 2004. No grupo de trabalho Psicopatologia e Psicanálise, em torno do tema O ensino e a pesquisa em psicopatologia e psicanálise: perspectivas e desafios