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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. v.5 n.1 Fortaleza mar. 2005
RESENHAS DE FILMES
Henrique Figueiredo Carneiro
Professor Titular do Mestrado em Psicologia da Universidadde de Fortaleza. henrique@unifor.br
Giuseppe Tornatore
Cinema Paradiso
Cinema Paradiso. 1989 Mara Films - Les Films Ariane - Cristal di Film - TFI Films Production. Brasil. Versátil. Home Vídeo. color, 121 min.
O processo de trabalho do luto, a insistência na fixidez objetal da melancolia e a dinamização da posição do sujeito na nostalgia podem ser acompanhados em suas distintas nuances na obra de arte que Giuseppe Tornatore nos brinda em Cinema Paradiso. Obra prima destas que a gente vê pouco durante a existência, Cinema Paradiso conjuga beleza estética, enredo e um verdadeiro tratado sobre a realidade psíquica da posição do sujeito na inefável constatação do vazio deixado por um objeto amado. Um filme que mergulha no mundo da fantasia para tentar colocar algo sobre o espaço vazio deflagrado pela angustia, mostrando, sobretudo, que é possível e necessário retomar o processo de investimento objetal como algo de grande valor na vida pulsional do sujeito.
A história nostálgica recente do cinema na ótica do Diretor é posta em cena mediante as lembranças de Salvatore di Vitto, desencadeadas pela notícia da morte do grande amigo Alfredo, que durante sua infância ocupou funções importantes, entre elas a de pai. O filme abre as cortinas da memória de Salvatore encarnado na figura do menino Totó, quando se vê coroinha na igreja da matriz de uma cidadezinha no interior da Itália. Nesta cena, faz sua aparição junto a Totó, o padre Adelfio, pároco que mostra através de sua angústia que momentos como estes ficam marcados prazerosamente na memória nostálgica do sujeito.
A partir deste momento podemos organizar uma forma de operacionalizar os pontos mais significativos do filme, concernente ao processo de trabalho de luto de Salvatore, tomando o fim do filme como início desta resenha.
O que vemos no final? Um Salvatore que se entrega às lagrimas ao fazer uma conjunção entre sua infância e sua adolescência. Belas e talentosas atrizes ao lado de grandes astros do cinema áureo holliwoodiano, desses também que não ouvimos mais falar na história recente do cinema, desfilam em cenas ininterruptas como colagens de recortes de quadros retirados de uma fita de 35mm, familiar aos que transitaram nas cabines de projeções de filmes dos cinemas hoje chamados de obsoletos por sua grandiosidade arquitetônica e custos de manutenção elevados.
Nestas lembranças nostálgicas, lançadas sobre as grandes produções dos anos 40 e 50, não cabem mais no mundo de Salvatore as censuras do Padre Adelfio que durante sua infância se colocava a ditar os cortes das primeiras cenas de beijo lançadas pela 7ª arte. Nesse sentido, Adelfio encarna a literalidade do distribuidor de limites como alguém que ocupa uma função similar ao Pai da horda primeva, na medida que detinha em sua mirada a efusiva imagem de todas as mulheres postas em cena com seus decotes provocantes e suas bocas sensuais, beijando homens com quem contracenam. Toda a possível concupiscência da carne fica filtrada nos olhos do padre que em nome da boa moral religiosa resguarda seu rebanho de fiéis do pecado do desejo.
Neste exercício ritualístico, Salvatore vai pouco a pouco dedicando lugar às lembranças que não ousava tocar e que dormiam recobertas com a posição que ocupava como um cineasta bem sucedido vivendo distante da mãe, dos amigos e de sua cidade, cumprindo um mandato de Alfredo, o projecionista que lhe permitiu e proibiu aceder aos encantos e ao desamparo do sujeito contextualizado na miséria do social. Alfredo, desejando tirá-lo da inoperância de uma cidade pacata e sem perspectivas de futuro para um jovem, o faz jurar que partiria para a Roma sem olhar para trás. Para sustentar este pacto lhe diz que caso regresse as portas de sua casa estariam fechadas.
Salvatore que não desfrutou da presença de um pai senão pelo desespero de uma mãe que o espanca por haver propiciado a destruição da única foto do casal, encontra em Alfredo a personificação de um ídolo que o salva da fúria materna, em cenas como a da reposição do dinheiro que gastou com a entrada de cinema quando se destinava a compra de leite. Ao mesmo tempo um pai a quem Totó submete a maior angustia em uma negociação entre o saber que lhe propiciaria ilicitamente em um exame de qualificação escolar e o acesso proibido à cabine do Cinema Paradiso. É este um cruzamento curioso por engendrar duas posições de ignorância. Se por um lado Alfredo mal sabia ler, por outro, Totó estava causado para saber sobre os segredos da projeção, incluindo aí uma gama de possibilidades advindas com o fato de assistir vários filmes que o colocavam diante dos mistérios da vida.
A proibição de Alfredo que fez com que Salvatore não retornasse à sua cidade natal cessa com sua morte e depois de 20 anos regressa. Não há uma fixidez objetal melancólica, pois toda sua vida indica que foi capaz de reinvestir pulsionalmente em outros objetos. Cumpria muito mais um mandato similar a uma lei paterna que uma impossibilidade de desgarre do objeto. Se seu sintoma amoroso era a inconstância com as mulheres, como ressalta sua mãe, consegue por outro lado êxito profissional, poder de transitar na vida entre várias instancias, restringindo-se apenas a respeitar o pedido de Alfredo.
Neste retorno atualiza suas lembranças e as coloca cada uma em um lugar devido, em um processo doloroso, porém digna de uma retificação subjetiva. Passeiam por sua memória figuras significativas que jogaram na sua infância e adolescência um papel fundamental. O padre, o proprietário do Cinema Paradiso, a esposa de Alfredo, a figura alegórica que se dizia dono da praça, e outras tantas que marcaram sua vida, durante o tempo que permaneceu em sua cidade. Entretanto, todos eram desenterrados e dados um destino como se tratara de uma exumação exitosa de cadáveres vivos. Um basta a qualquer referência melancólica. Não havia em nenhum desses objetos algo que sombreasse seu destino a ponto de impedir sua caminhada.
Nesta direção, Cinema Paradiso, mostra a dor neurótica de reviver-se um passado marcado pelas travessuras de uma infância, pelos amores da adolescência e pelo laço familiar que exige de cada um a urgência de um corte para que se possa assumir os destinos próprios do desamparo da existência. E isso é nostalgia. Um sentimento que cada um pode reviver e se deixar invadir pelas lágrimas, sempre que uma cena comparecer como recordação, desde que o trabalho de luto tenha se realizado. Não há nostalgia sem trabalho de luto, assim como não há luto sem a vivencia de uma fase de melancolização. Este é um dado interessante que podemos construir a partir de Freud que em 1915 nos brinda com o texto Luto e Melancolia um tratado sobre as relações de objeto que o sujeito sustenta e todas as conseqüências dos processos de perda inerentes à sua existência
No fundo, em Freud como em Cinema Paradiso, trata-se de um texto sobre a morte e o amor. Principalmente porque para o sujeito falar nostalgicamente de um objeto perdido, implica em que já haja conseguido investir em outro objeto, ou pelo menos que esteja em direção à outra posição que libere do eu toda a escuridão consignada antes à luz que o objeto lançava sobre ele. Essa condição aviva o que Freud nos diz sobre os perigos que o eu enfrenta sempre que a ele é subtraída uma condição de investimento. O que fazer com esta condição de desamparo? O sujeito pode perguntar-se. Não vale nessa perspectiva a presença de nenhuma droga como condição da realização do trabalho de luto. A prótese medicamentosa que atrofia a dor é a mesma que causa a ampliação do processo de melancolização inerente à perda do investimento objetal do sujeito. Esse objeto não é digno de ser amado, pois como dissemos, trata-se de uma prótese.
A nostalgia exige que o percurso que o sujeito faz ou que fez diante da perda sofrida, passe por um processo de reinvestimento amoroso em algo ou alguém. E fica difícil amar uma droga nesta condição, pois, o que esta faz é a supressão de mais intensidade sobre o mal-estar experimentado nas situações de perdas. A droga não pode ser amada, pelo simples fato de que não pode amar.
Cinema Paradiso percorre plasticamente toda esta gama de conceitos psicanalíticos sem perder a beleza de uma história bem escrita e bem representada. Recomendável para todos que sustentam uma escuta analítica, principalmente nos dias de hoje onde a queixa difusa da tristeza e da apatia leva, quase sempre, ao diagnóstico da depressão não identificada. Fato que nos leva a pensar sobre o lugar do estado de melancolização, do processo de luto e, finalmente, o lugar que o sujeito pode reservar às boas lembranças típicas da nostalgia, como faz Salvatore no final do filme.
Recebido em 15 de novembro de 2004
Aceito em 07 de dezembro de 2004
Revisado em 20 de fevereiro de 2005