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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.6 n.1 Fortaleza mar. 2006

 

ARTIGOS

 

A angústia como sinal do desejo do Outro

 

 

Rosane Zétola Lustoza

Professora do Curso de Psicologia da Universidade Estácio de Sá/RJ, Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, Psicóloga pela UFRJ. End.: R. Domingos Ferreira, 81 apt. 101 - Copacabana - Rio de Janeiro/RJ. CEP: 22050-010. E-mail: rosanelustoza@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho visa investigar o sentido da articulação proposta por Jacques Lacan no Seminário X entre a angústia e o desejo do Outro. Para empreender esta análise, o fio condutor utilizado é o conceito de desejo do Outro. Reconhecendo que, ao longo da obra de Lacan, tal conceito recebeu diferentes definições, relativas aos três registros por ele isolados - imaginário, simbólico e real -, pretende-se inicialmente realizar um exposição de cada uma dessas concepções, para só então avançar a hipótese de que a angústia sinaliza a emergência do desejo do Outro, entendido num registro específico, o do real. Proponho ainda que o Outro real se apresente com um caráter paradoxal e inconsistente. A fim de esclarecer este ponto, recorro a uma breve exposição do que seria a inconsistência para a lógica. O objetivo é, fazendo um uso psicanalítico dessa noção lógica, mostrar de que modo o surgimento da inconsistência do Outro faz com que o sujeito perca seu estatuto enquanto entidade simbólica, resvalando para a posição de objeto de gozo e entrando em angústia. A angústia é o afeto que revela a falta de autonomia do sujeito, que se encontra, nesse caso, impedido de responder diante de um Outro cujo querer é enigmático para ele.

Palavras-chave: angústia, sujeito, desejo do Outro, real, inconsistência


ABSTRACT

The aim of this paper is to investigate the meaning of the articulation between anguish and the desire of the Other proposed by Jacques Lacan at the Seminar X. The concept of the desire of the Other was used in order to work on this analysis. Throughout Lacan's work such concept has received different definitions according to the three registers he has isolated - imaginary, symbolic, and real. I first intend to outline a description of each of these concepts and then move on to the understanding of a hypothesis in which the idea of anguish marks the emergency of the desire of the Other understood within a specific register, that of the real. I also suggest that the Other real is presented as an inconsistent and paradoxal character. In order to make this point clear, I am briefly outlining what inconsistency to logic would be. Based on a psychoanalytical use of this logic notion, the aim here is to show how the uprising of the inconsistency of the Other makes the subject lose its status as a symbolic entity, incorporating the position of jouissance object and thus triggering anguish. Anguish is the affection that reveals the lack of the subject's autonomy and that in this case is prevented from responding before the Other whose desire is enigmatic to himself.

Keywords: anguish, subject, desire of the Other, real, inconsistency


 

 

Introdução

A angústia é muitas vezes tratada como uma doença a ser debelada e como um demônio a ser exorcizado por via medicamentosa ou terapêutica. Na contramão dessa corrente, Jacques Lacan concederá à angústia um estatuto diferenciado, considerando-a o único dentre todos os nossos afetos que seria sinal do real. Qual o real em jogo na experiência da angústia? No Seminário X (Lacan, 1962-1963/2004), buscando determinar as condições que tornam possível o surgimento da angústia, Lacan afirmará que esse afeto está ligado ao real por assinalar a emergência do desejo do Outro.

Ao articular claramente a angústia ao desejo do Outro, o psicanalista francês pôs um problema para seus intérpretes, pois, uma vez que o conceito de desejo pode ser apreendido em três registros diferentes - imaginário, simbólico e real -, convém precisar qual desses sentidos está em jogo na emergência da angústia. O presente trabalho visa, partindo de uma investigação acerca do estatuto desse desejo do Outro nos três registros, mostrar que a angústia é sinal do desejo de um Outro real. Conforme será mostrado na seqüência do trabalho, o Outro real apresenta-se como caprichoso, arbitrário, em suma, inconsistente. A fim de melhor caracterizar esse Outro real, serão expostos alguns desenvolvimentos da lógica e das matemáticas sobre a noção de inconsistência. Por último, serão analisadas as mudanças que ocorrem do lado do sujeito, quando este entra em angústia.

 

O desejo do homem é o desejo do Outro

Segundo uma noção corrente, o desejo seria uma espécie de impulso cujo ponto de partida seria o indivíduo, algo que, nascido no interior, se projetaria em direção aos objetos externos. A novidade introduzida pela psicanálise será precisamente a de pensar a relação entre o sujeito e os objetos existentes na realidade como sendo uma relação mediatizada, como uma relação dependente de algo ainda mais fundamental: a saber, da instância do Outro. O desejo necessita do Outro para se constituir enquanto tal, o que exprime a clássica tese lacaniana segundo a qual "o desejo do homem é o desejo do Outro" (Lacan 1962-1963/2004, p. 32).

O que quer dizer o desejo do Outro? Essa noção pode ser entendida basicamente de 3 maneiras diferentes, conforme seja lida de acordo com cada um dos 3 registros isolados por Lacan: imaginário, simbólico, real.

O desejo do outro na dimensão imaginária

No sentido imaginário, dizer que o desejo é desejo do outro alude ao fato de que o sujeito não possui uma identidade, sendo necessário então que ele se ampare em algo situado fora de si mesmo, modelando-se à imagem e semelhança de um pequeno outro. Identificando-se a essa imagem, o sujeito poderá doravante extrair uma certa orientação para sua conduta. O outro servirá como um ponto de apoio, de que o sujeito vai necessitar para saber como deve agir, pensar e sentir. Destituído de identidade, desprovido de uma forma, o sujeito vai se escorar em algo que ele supõe ser mais consistente do que ele, na imagem de um outro que o fascina justamente por aparentar a unidade que lhe falta: "A fascinação é absolutamente essencial para o fenômeno da constituição do eu. É na qualidade de fascinada que a diversidade descoordenada, incoerente, da despedaçagem primitiva adquire sua unidade" (Lacan, 1954-1955/1985, p. 70).

Ao afirmar que o desejo é o desejo do outro, a psicanálise ressalta que, mais do que qualquer objeto positivamente buscado na realidade, o que nos interessa é o objeto enquanto sendo alvo do querer do outro. "Eu quero o que o outro quer" querendo dizer "eu quero porque é o outro quem quer". O que me faz falta é aquilo que falta ao outro.

Todo o problema é que, ao tomar como guia de sua própria ação as ações de seus semelhantes, aquilo que o eu deseja acaba sendo idêntico ao que os outros desejam. A convergência de rotas acabará em colisão, ou seja, desejar o que desejam os outros trará como conseqüência inescapável a agressividade típica do registro imaginário. É o que ilustra Lacan na passagem abaixo, em que compara o eu e o outro a máquinas:

Na medida em que a unidade da primeira máquina estiver pendente da unidade da outra, que a outra lhe fornecer o modelo e a própria forma de sua unidade, aquilo para o que se dirigir a primeira dependerá sempre daquilo para o que se dirigir a outra. Disto vai resultar esta situação de impasse própria à constituição do objeto humano. (...) Isto não quer dizer que uma consciência não possa conceber uma outra consciência, mas sim que um eu, inteiramente pendente da unidade de um outro eu, é estritamente incompatível com ele no plano do desejo. Um objeto temido, desejado, é ele ou eu quem o terá, tem de ser de um ou de outro. E quando é o outro que o tem é porque ele me pertence (Lacan, 1954-1955/1985, p. 71).

O registro imaginário leva então a um impasse insolúvel. Devo destruir meu adversário, pois nossa coexistência é impossível: ou eu ou ele deterá a posse do objeto, jamais os dois simultaneamente. Ao mesmo tempo, não devo destruir meu adversário, pois sem ele não há suporte identificatório possível para mim.

O eixo imaginário é chamado também eixo da semelhança. Não se conclua disso, como poderia fazer crer nossa descrição inicial, que o eu e os diversos outros sejam completamente idênticos, como se o imaginário fosse completamente homogêneo. A semelhança não residiria em uma suposta identidade dos objetos, mas sim no fato de haver uma medida comum permitindo sua comparação. Os juízos de comparação são típicos deste registro: ser o aluno mais inteligente da classe, ser mais bonito do que Fulano, ou tão generoso quanto Sicrano, são todos julgamentos em que o valor do eu só pode ser aquilatado na relação que ele estabelece com os outros. O valor é sempre fálico, na medida em que o falo é aquilo que medimos com o outro. O imaginário comporta então que todos se situem enquanto objetos comparáveis uns com os outros, distribuíveis segundo uma escala. Desse modo, a semelhança no eixo imaginário não significa uma perfeita uniformidade dos objetos (já que tal eixo comporta diferenças de grau), mas apenas que os objetos podem ser colocados numa mesma série.

O desejo do Outro na dimensão simbólica

Uma condição prévia para a comparação é selecionar no objeto uma característica específica a ser examinada (a beleza, a inteligência etc.), desprezando como indiferentes todas as outras propriedades deste objeto. É necessário eleger no objeto um traço a ser avaliado, em detrimento de outros traços possíveis. Faz-se necessário, então, um ponto de vista que permita estipular o quesito a ser avaliado, uma perspectiva que estabelece alguma qualidade como importante, descartando outras. Pois, até mesmo para que o sujeito possa situar-se como mais bonito ou mais feio que alguém, é necessário que este traço significante (beleza) tenha sido colocado em destaque por algum ponto de vista. A possibilidade de fazer comparações exige, portanto, um referencial de avaliação que elege um traço como relevante.

Um traço significante isolado por si só não quer dizer nada; é preciso um segundo significante para que o traço em questão ganhe sentido. Conseqüentemente, o papel do referencial de avaliação não será somente o de selecionar o traço a ser comparado, mas, principalmente, o de fornecer uma interpretação deste traço. Ou seja, são necessárias balizas que permitam dar alguma interpretação a este significante (por exemplo, o padrão global de beleza, o padrão punk etc.), fixando ao significante algum significado.

Tal referencial de avaliação será denominado por Lacan registro simbólico. É ao Outro simbólico que caberá a função de oferecer as coordenadas a partir das quais o imaginário se estruturará. A tal ponto que o imaginário não poderá mais ser considerado um registro autônomo, sua constituição dependendo da existência do lugar do Outro. É preciso um desvio pelo lugar do Outro para que este me devolva uma imagem qualquer. De tal modo que o verdadeiro espelho é o Outro, uma vez que este constitui o ponto de vista a partir do qual posso ver alguma coisa. Evocando o estágio do espelho, Lacan diz que

Se nós nos esforçamos por assumir o conteúdo da experiência da criança e de reconstruir o sentido desse momento, nós diremos que, por esse movimento de mutação da cabeça, que se volta para o adulto convocando seu assentimento, depois retorna na direção da imagem, a criança parece demandar àquele que a porta, e que representa aqui o grande Outro, homologar o valor desta imagem (Lacan, 1962-1963/2004, p. 42).

Temos aqui uma definição preciosa da função do Outro simbólico: a de homologar o valor das imagens. O Outro constituirá então uma perspectiva a partir da qual: um traço será selecionado; a este traço será concedida uma certa interpretação; e então será homologado o valor das imagens.

Uma outra maneira de apreendermos a função do Outro simbólico é recorrendo às primeiras formulações lacanianas, em que o Outro é apresentado como prévio ao sujeito. O sujeito ao vir ao mundo já encontra o Outro como uma ordem dada, uma organização que preexiste ao seu nascimento. O Outro constitui uma ordem na medida em que circunscreve uma série de lugares, cabendo aos sujeitos ocupar este espaço no qual está previamente inscrito. Ao preencher tais lugares, os sujeitos assumirão características específicas. Ao Outro caberá então desempenhar um papel fundamental na constituição do sujeito.

Se essas primeiras elaborações lacanianas a respeito do Outro simbólico parecem hoje um tanto exageradas, ao supor um Outro quase completo, devemos contextualizá-las a fim de resgatar seu valor. Pois Lacan está falando para uma platéia de analistas que freqüentemente esqueciam até que ponto a alteridade era importante na constituição do sujeito. Embora a intuição sobre o primado do Outro esteja presente em Freud, convenhamos que não foi explicitamente conceituada por ele, a tal ponto dos pós-freudianos, freqüentemente, negligenciarem essa dimensão em sua teorização. Necessitando sensibilizar os analistas para o assunto, Lacan adotou inicialmente uma postura radical, defendendo com tanta veemência a hegemonia do Outro que este, às vezes, se afigura quase como completo.

Admitindo que o Outro é incompleto, que é um Outro a quem falta alguma coisa, temos agora condições de entender o sentido simbólico da afirmação de que o desejo é o desejo do Outro. Partindo do princípio de que o desejo é uma falta, diremos que o objeto que falta ao sujeito é o desejo do Outro. O desejo do sujeito - ou seja, aquilo que falta ao sujeito - é de suscitar a falta no Outro. Aquilo que falta ao sujeito é que algo falte ao Outro. O que faz falta ao sujeito é que uma falha atravesse o Outro, e para produzir isso o sujeito se oferece como causa do desejo do Outro, como aquele que cava um buraco no Outro e o torna desejante.

É necessário, então, ao sujeito responder à pergunta sobre o que quer o Outro, para poder, a partir, daí constituir-se como desejante. O fantasma, em suas diversas versões, representará a tentativa que o sujeito faz de se situar em relação ao desejo do Outro, uma vez que ele permite ao sujeito conceber-se como aquilo que falta ao Outro. Desse modo, o sujeito pode receber uma direção para a sua vida, já que agora ele sabe o que deve fazer para tentar cativar o desejo do Outro (ser um aluno que trabalha bem, um marido que não trai sua esposa, uma mulher que sai sempre de cabeça erguida, um joão-ninguém que vencerá na vida etc.)

Entretanto, a causa do desejo do Outro não pode ser aquilo que o Outro pede, pois senão teríamos que imaginar que o desejo do Outro poderia de fato ser atendido, ou seja, completamente satisfeito! Quando o sujeito se oferece como aquilo que falta ao Outro, não devemos imaginar que está ao alcance do sujeito satisfazer completamente o desejo do Outro. A satisfação é sempre parcial, deixando escapar um resto, necessário para o relançamento do desejo. O único modo, então, de o sujeito se enganchar ao Outro é tentando coincidir com aquilo que escapa à sua satisfação. Por isso, quando o sujeito se oferece ao Outro, não é para preencher inteiramente a falta no Outro, mas antes para cavar essa falta. O sujeito quer exercer a função daquilo que alimenta a falta no Outro, devendo para isso preservar a insatisfação do Outro. Afinal de contas, a reprodução da falta no Outro é que garante a reprodução da falta no sujeito. O sujeito procura então reavivar a falta no Outro. Essa insatisfação do Outro não é de um objeto qualquer, mas de algo que só o sujeito pode ofertar.

Resumindo: dizer que o desejo é o desejo do Outro significa que o sujeito se oferece, não como aquele que completa totalmente o Outro, pondo fim à sua falta, mas sim como aquele que constantemente suscita a falta no Outro, condição básica para que a própria falta do sujeito se reproduza.

A função do objeto deve, conseqüentemente, ser desdobrada em duas vertentes na psicanálise: há o objeto-meta, que promete satisfazer completamente o desejo (nos exemplos citados, tirar boas notas, só sair com a própria mulher, conseguir uma promoção na empresa e um carro do ano etc.). Mas justamente esse objeto que supostamente satisfaria o desejo não é idêntico ao objeto que o causa: "quanto mais o homem se aproxima, cerne, afaga isso que ele acredita ser o objeto de seu desejo, mais ele se desvia, se extravia dele" (Lacan, 1962-1963/2004, p. 52).

Temos então: o objeto-meta, e o objeto-causa. Como apreender o que seria o objeto a, causa do desejo? Segundo Lacan, ele não é da ordem do observável, não é um dado que pertença à realidade empírica. O objeto a só pode ser apreendido pela via do significante, já que ele é precisamente um resto que resiste à operação de simbolização.

A clínica está repleta de casos que ilustram esta tese. Um deles seria o da bela açougueira, paciente de Freud que, durante a sessão de análise, conta um sonho no qual ela renunciava à aspiração de dar um jantar, supostamente contradizendo a teoria freudiana de que os sonhos realizam desejos. Assistimos aqui a uma manobra em que a histérica visa causar o desejo do Outro, apresentando um sonho que não poderia ser decifrado pelas teses freudianas, e que, portanto, escaparia ao significante. Seguindo a mesma linha de raciocínio, quando estudamos o que nos mantem na investigação não é o saber que efetivamente obtemos, e que podemos acumular; mas, antes de mais nada, aquilo que ainda não sabemos e que permanece irredutível ao esforço intelectual. Do mesmo modo, podemos dizer que uma mulher atrai um homem na medida em que algo nela se apresenta como não adestrável nem domesticável. Em suma, o desejo se dirige para aquilo que aparece como irredutível ao significante.

Vale a pena nos determos mais neste ponto e esclarecer qual seria exatamente a relação entre o significante e o objeto a. O equívoco que devemos evitar cometer aqui é o de assimilar o que escapa ao significante a um em-si, a uma realidade pré-simbólica localizada fora da apreensão do pensamento. Para esclarecer isso melhor, retomemos algumas observações.

Conforme vimos, o Outro constitui um ponto de vista a partir do qual o mundo ganha sentido para o sujeito, uma espécie de sistema de pensamento graças ao qual o sujeito pode compreender a realidade. Contudo, não existe um sistema de pensamento inteiramente acabado, sem lacunas, integralmente coerente. Dentro das coordenadas de avaliação fornecidas pelo Outro, subsistirão pontos de incompreensão. Este incompreensível não deve, entretanto, ser hipostasiado em entidade positiva, pois o encontro com algo ininteligível é sempre relativo a um determinado sistema de pensamento. Não podemos falar de algo em si mesmo ininteligível, pois alguma coisa só pode aparecer como um problema para um certo ponto de vista. Em outras palavras, o pensamento não pode tratar o que constitui problema para ele como se fosse algo separável dele mesmo: um problema é solidário do pensamento que o colocou, formando os dois um par indissociável. Isso que não se pode nem agregar ao sistema atual de pensamento (por consistir num problema que ele não pode solucionar), nem tampouco excluir dele (já que um problema é sempre relativo a um pensamento específico), está em situação de exclusão interna a este pensamento.

O que se apresenta como impasse na simbolização é o que Lacan chama objeto a, resto que colocará em movimento o desejo. O objeto a é, ao mesmo tempo, a areia que emperra o funcionamento azeitado da máquina simbólica, e também o que impele a máquina a se movimentar. O objeto a é simultaneamente o que constitui um obstáculo para o pensamento, e o que aciona o trabalho psíquico de tentar dar conta dele.

O desejo do Outro na dimensão real

O objeto a ocupa uma função muito particular nas diferentes versões do fantasma, a de dar consistência à imagem. No entanto, na medida em que o objeto encontra-se ocultado pela imagem, sua função torna-se desconhecida pelo sujeito. Há apenas uma circunstância em que o objeto passa a exercer uma função nova, momento em que, em vez do nada que suscita a falta no Outro, aparece no lugar do nada "alguma coisa - entendam por isso não importa o quê" (Lacan, 1962-1963/2004, p. 53, grifo do autor). Essa circunstância é a angústia.

Para ter acesso ao novo papel desempenhado pelo a, é preciso correlativamente mobilizarmos uma nova dimensão do desejo do Outro, para-além do simbólico: o desejo do Outro entendido como real. A angústia seria precisamente um afeto que sinaliza a emergência do desejo do Outro entendido como algo real.

Explicamos anteriormente que o Outro simbólico atua como uma espécie de ponto de vista a partir do qual o mundo ganha sentido para o sujeito, o horizonte a partir do qual o sujeito pode compreender a realidade. O Outro oferece uma chave de interpretação, possibilitando que as coisas possam ser avaliadas. Mesmo fornecendo uma leitura global da realidade, a perspectiva constituída pelo Outro não chega a ser totalizadora, uma vez que reconhece elementos ininteligíveis dentro de seu "horizonte da compreensão". Mas, como vimos, essa impossibilidade de totalização era a própria condição para que o desejo pudesse sobreviver, tratando-se por conseguinte de um Outro incompleto, de um Outro a quem falta alguma coisa, em suma, de um Outro desejante (no sentido simbólico).

Afirmar que o Outro oferece uma grade de leitura a partir da qual a realidade ganha sentido implica em admitir que jamais nos encontramos diante de fatos brutos. A realidade tal como existiria anteriormente ao ingresso no simbólico está definitivamente perdida, de tal modo que nosso acesso à realidade é sempre já mediatizado pela instância do Outro. Nosso acesso à experiência nunca pode ser intuitivo, direto, havendo sempre a mediação de um ponto de vista permitindo decifrar os eventos. Ora, afirmar que a realidade sempre resulta de uma interpretação implica em distanciar-se das "coisas mesmas", em situar o Outro dentro da dimensão da ficção simbólica. Por isso, entendemos que era um seguimento natural à obra de Lacan perguntar-se: há algum real da ficção? Em outras palavras, há algum ponto de certeza em relação ao Outro, algum ponto que não seja objeto de interpretação? A resposta não pode ser dada em termos de significantes, mas sim em termos de afetos - do único que não engana, a angústia.

Em que condições o sujeito entra em angústia? Ao contrário do que o senso comum poderia supor, o que angustia não é o encontro com alguma coisa que constitui uma exceção à norma. "Eu vos faria simplesmente observar que é bem possível que se produzam coisas no sentido da anomalia, e que não é isso que nos angustia" (Lacan, 1962-1963/2004, p. 53). Inclusive podemos afirmar, a partir da descoberta freudiana, que a anomalia não só não angustia, como pode mesmo chegar a causar o desejo... Mas, "se subitamente toda norma vem a faltar, quer dizer tanto o que faz a anomalia como o que faz a falta, se de repente isso não falta, é neste momento que começa a angústia" (Lacan, 1962-1963/2004, p. 53). A angústia é suscitada, não quando a norma é violada, mas sim quando a própria norma vem a faltar, quando está ausente a própria regra que permitiria distribuir os objetos em normais ou anômalos. Sabemos pelas formulações anteriores de Lacan que o Outro era o nome dessa instância responsável pela regra. Assim, temos aqui uma pista para começar a apreender a angústia: a angústia ocorre quando o Outro se apresenta como desregrado, quando ele não obedece a qualquer norma concebível ou representável. A conseqüência da falta da regra será que o que antes era claro e distinto torna-se obscuro e confuso; em termos freudianos, unheimlich.

Vimos que o Outro simbólico operava como agente da norma na medida em que era incompleto, em que era portador de uma falta. O Outro simbólico era um Outro incompleto, a quem faltava alguma coisa. Esta falta era necessária para que o sujeito, procurando causar uma falta no Outro, pudesse correlativamente situar a sua própria falta. Na angústia, alguma coisa se passa no Outro, de tal modo que a sua falta vem a faltar, provocando correlativamente o não relançamento do desejo do sujeito. Desse modo, o que angustia não é a falta de algo, mas a ausência da falta. O que angustia "é sempre o isso não falta" (Lacan, 1962-1963/2004, p. 67).

A angústia ocorre quando desaparecem as coordenadas simbólicas que possibilitavam ao sujeito situar-se, apreender-se como algo cuja existência pode ser testemunhada por um ponto de vista qualquer. É como se o sujeito estivesse dentro do campo visual do Outro, sem que saiba de que ponto de vista é olhado. O olhar vazio e fixo de um morto ilustra esse Outro irrepresentável: a perspectiva do Outro se opacifica, e essa impossibilidade de representar o Outro será vivida, conseqüentemente, como uma abolição de si mesmo. É como se a estrutura da doação retroativa de sentido operada pelo Outro ficasse momentaneamente interrompida, como se fôssemos objeto de um olhar que não retorna para nós qualquer mensagem, acarretando, por conseguinte, o desaparecimento do sujeito enquanto entidade simbólica.

O problema é que na angústia ocorre uma modificação do papel desempenhado pelo Outro, de tal forma que, enquanto o Outro simbólico seria incompleto, o Outro real seria inconsistente. A inconsistência aparece quando o Outro se apresenta como contraditório, incoerente, paradoxal. Para melhor compreendermos a noção de inconsistência, será útil recorrermos a alguns desenvolvimentos da lógica e da matemática sobre o assunto.

De acordo com a lógica clássica, uma proposição qualquer pode exibir um e apenas um destes dois valores: ou verdadeiro, ou falso. Como a hipótese de um terceiro valor qualquer encontra-se rejeitada, denominou-se tal regra de princípio do terceiro excluído. Qual seria o terceiro valor excluído? A proposição não poderia ser simultaneamente V e F, pois neste caso estaríamos diante de uma contradição. A proposição não poderia ser nem V, nem F, pois neste caso seu valor seria indecidível.

Para que uma teoria dedutiva seja formalmente válida, é preciso que ela seja livre de contradições, isto é, seja coerente. Um sistema coerente seria aquele em que, qualquer que seja a proposição p formulável nos termos da teoria, não se pode demonstrar simultaneamente p e não-p (Rougier, 1955, p. 48). Um sistema sem contradições será chamado um sistema consistente. Inversamente, serão designados inconsistentes os sistemas nos quais está presente a contradição.

Como se sabe, os paradoxos designam em lógica conjuntos de afirmações em que cada uma, considerada isoladamente, não é em si mesma autocontraditória, mas que uma vez colocadas juntas tornam-se incompatíveis (Kubrusly, 2005). Um exemplo simples de paradoxo é o seguinte:

A afirmação abaixo é verdadeira

A afirmação acima é falsa

Cada uma das afirmações, tomadas individualmente, não é contraditória, mas sua junção engendra um paradoxo. Se a primeira é verdadeira, a segunda é falsa, logo a primeira é falsa! Ou seja, a existência de paradoxos acaba trazendo para dentro do sistema a contradição, transformando-o portanto num sistema inconsistente.

Fazendo um uso psicanalítico dessas noções, poderíamos assimilar o Outro real a um sistema inconsistente. Uma vez deparando-se com esse Outro contraditório e caprichoso, o sujeito entraria em angústia. Para ilustrar este ponto, recordemos o caso que representa por excelência uma situação angustiante, o sacrifício de Abraão. Deus prometera a Abraão um filho temporão. Mesmo idosa, sua esposa Sara dá à luz Isaac, 'aquele que ri'. Contudo, o mesmo Deus que salvara Abraão de ter uma existência estéril acabou convocando-o a imolar seu filho querido. Em um livro sobre Kierkegaard, autor que analisou exaustivamente o episódio do sacrifício de Abraão (ainda que à luz da filosofia existencial), Charles Le Blanc comenta que:

Uma coisa é contá-la [a história de Abraão] e dizer: Abraão é o pai da fé; outra coisa bem diferente é atrelar o jumento e fazer a viagem de três dias rumo ao monte Moriá. Porque, durante esse périplo, o viajante é assaltado por dúvidas, repete incessantemente para si mesmo os termos da mensagem do Senhor, experimenta-lhe a verdade. Pergunta-se se enlouqueceu e, quando a sombra da montanha fatídica o recobre, parece congelá-lo até a alma (Le Blanc, 2003, p.72).

Esta passagem foi escolhida, pois tenta transmitir a angústia de Abraão. Pois ao decidir sacrificar o filho, Abraão não está em paz, completamente seguro de que Deus lhe pediu para fazer um bem. Segundo um referencial psicanalítico, a angústia de Abraão traduz o encontro com o desejo do Outro real, de um Deus afetado pela contradição, por querer simultaneamente o bem e o mal a seus filhos. Sobre o caráter angustiante do Deus judaico, Zizek analisa:

Este estranho Deus que exclui a dimensão do Sagrado (...) é simplesmente o sinal insuportável do desejo do Outro, do abismo, do vazio no Outro, que a presença do sagrado vem precisamente ocultar. Os judeus permanecem nesse enigma do desejo do Outro, nesse ponto traumático do puro "Che vuoi?" que provoca uma angústia insuportável, na medida em que não pode ser simbolizado, "domesticado" pelo sacrifício ou pela devoção amorosa (Zizek, 1992, p.113).

Decidir levar o filho até o monte Moriá e ter a coragem de sacrificá-lo é já uma tentativa de apaziguar o enigma do desejo do Outro, de sair da angústia insuportável gerada pelo pedido incoerente de Deus, se seguimos a tese lacaniana segundo a qual "agir é arrancar da angústia sua certeza. Agir é operar uma transferência da angústia" (Lacan, 1962-1963/2004, p. 93).

Gostaria de examinar dois casos, mencionados por Slavoj Zizek em seu livro Subversions du sujet (Zizek, 1999, p. 67), que ilustram de modo exemplar a interpretação aqui defendida, a saber, a de que a angústia testemunha a emergência do Outro inconsistente. O primeiro é um episódio vivido pelo famoso pintor Edward Munch, que em 1893 se apaixona por uma bela jovem, a qual se ligará intensamente a ele. Temeroso de que tal laço perturbasse sua atividade criativa, Munch a abandona. Em uma noite de tempestade, Munch é acordado subitamente por um mensageiro, que lhe diz que a amada estaria agonizando, à beira da morte. Desesperado, o artista sai à procura da moça, encontrando-a deitada em seu quarto, a cama rodeada por velas. Quando ele se aproxima, a moça levanta e desata de rir. Revoltado com a simulação, Munch decide sair imediatamente. Nesse momento, a moça pega um revólver e ameaça se suicidar. Certo de que se tratava de uma farsa, o pintor tenta desviar a arma, no que é surpreendido pelo estampido de um tiro que fere a sua mão. Desse modo, o que parecia ser verídico (a doença da amada) não passava de um embuste, no entanto o que parecia ser uma fraude (a amada sacar o revólver) revelou-se perigosamente mortal. A nosso ver, o caso mostra o angustiante encontro de um sujeito com um Outro contraditório e incoerente: "O que causou (...) um tal mal-estar é a impossibilidade de discernir, atrás da máscara, um sujeito consistente que as houvesse manipulado: atrás das múltiplas camadas de máscara, não há nada, ou, pelo menos, nada senão a matéria informe e viscosa da substância da vida" (Zizek, 1999, p. 67).

O outro exemplo é o de um milionário que, ao contrário da reivindicação habitual, segundo a qual queremos ser amados "pelo que nós somos", declarava só se relacionar com mulheres interessadas no seu dinheiro. Entendemos aqui que o dinheiro atua como um regulador na ligação deste sujeito às mulheres, constituindo um modo de o sujeito controlar o desejo do Outro, mantendo uma "distância ótima" em relação a ele: quanto mais dinheiro ganhar, mais "amado" o milionário será; ao passo que, se ele perder tudo, pode estar certo de que as mulheres partirão imediatamente. O dinheiro desempenha a função de moeda de troca com o Outro, amansando seu desejo, fazendo com que ingresse numa relação de proporcionalidade. Não há surpresas, não há sustos, não há angústia. A estratégia do milionário demonstra a contrario a nossa tese - de que a angústia emergiria como sinal de uma inconsistência do Outro -, pois a maneira mais segura de evitar a angústia é de fato ligar-se a alguém "coerente", que demanda ao sujeito algo que este "sabe" o que é (supostamente).

O angustiante é que o sujeito não possa formular um saber - nem a posteriori - permitindo localizar o que o torna desejável para o Outro. O desejo do Outro real apresenta-se como problemático justamente por não obedecer a uma regra estabelecida, a qual permitiria delimitar quais fatores determinam a aproximação ou afastamento desse Outro em relação ao sujeito. Na ausência de uma tal regra, o sujeito está exposto a uma demanda caprichosa, que não obedece a condições, conseqüentemente ele se encontra impossibilitado de controlar a aparição/desaparição do Outro. Não existindo uma moeda de troca que possa domesticar o desejo do Outro, o sujeito passa a ficar entregue sem mediação a seu insondável querer. "O sujeito experimenta ali exatamente o ponto em que está desamparado enquanto objeto diante do desejo do Outro, encontrando-se, usando uma metáfora, nas mãos de, à mercê do desejo do Outro" (Rabinovich, 2005, p. 94).

A ausência de referenciais simbólicos permitindo ao sujeito se situar é uma condição necessária da angústia, mas não esgota a questão. Pois é ainda preciso lembrar que este Outro desregrado e inconsistente se apresenta como querendo algo do sujeito.

Recorreremos a alguns exemplos de angústia dados no seminário por Lacan. Um deles é o da mãe que, obsedada em cuidar do filho, fica o tempo inteiro limpando a criança, sem deixar que nada falte a ela.

O que há de mais angustiante para a criança é justamente quando a relação sobre a qual ela se institui, da falta que a faz desejo, é perturbada, e ela será perturbada ao máximo quando não há possibilidade de falta, quando a mãe está o tempo inteiro no seu pé, e especialmente limpando seu ânus, modelo da demanda, de uma demanda que não poderia se extinguir (Lacan, 1962-1963/2004, p. 67).

Seria possível identificar nessa demanda da mãe - que se manifesta como uma exigência constante, não dialetizável, insensível ao "sim" ou "não" do outro e exprimindo-se de modo intransigente - precisamente o que a psicanálise define como sendo uma exigência de gozo. A criança aqui se vê tomada como objeto do gozo materno. Mais adiante, comentando a angústia do pesadelo, Lacan menciona explicitamente o termo gozo do Outro: "A angústia do pesadelo é experimentada, para falar propriamente, como aquela do gozo do Outro. O incubo ou sucubo, este ser que pesa com todo seu peso opaco de gozo estranho sobre vosso peito, que vos esmaga sob seu gozo" (Lacan, 1962-1963/2004, p. 76).

Contudo, seria um equívoco assimilarmos prontamente o desejo do Outro (no sentido real) ao gozo do Outro. Sobretudo porque há satisfações no Outro que não são angustiantes, que nós podemos perfeitamente 'compreender', já que aparecem articuladas às finalidades cotidianas, àquilo que a maioria busca com sendo um Bem. Em termos freudianos, satisfações submetidas à regulação do princípio do prazer, do que constitui a felicidade para a maioria. A angústia surgirá apenas quando emergir uma satisfação no Outro que contraria qualquer razoabilidade, excluindo toda 'compreensão'. O gozo do Outro só constituirá problema na medida em que entrar em contradição com o saber que o sujeito supõe ao Outro, levando o sujeito a interrogar: 'O que o Outro quer?' Portanto, o desejo do Outro será o gozo do Outro colocado em posição de enigma. O próprio Lacan esclarece: "a primeira coisa que aparece (....) no pesadelo vivido é que esse ser que pesa por seu gozo é também um ser questionador, e mesmo, que se manifesta nessa dimensão desenvolvida da questão que se chama o enigma" (Lacan, 1962-1963/2004, p. 76).

Esse desejo do Outro real, que aparece como uma exigência insensata, incondicional, que não respeita qualquer regra, corresponde exatamente ao conceito freudiano de pulsão. A pulsão seria uma pressão constante justamente por ser uma demanda "inegociável", que não entra em uma dialética com o Outro. A equivalência entre o desejo do Outro real e a pulsão é proposta por Zizek na passagem a seguir: "o desejo estruturado pela fantasia é uma defesa contra o desejo do Outro, contra esse desejo "puro" e transfantasístico (isto é, a pulsão de morte em sua forma pura)" (Zizek, 1992, p. 116). Uma vez que a fantasia é uma interpretação do desejo do Outro, ela já é uma tentativa de evitar o angustiante encontro com o desejo do Outro para-além da fantasia, a exigência pulsional.

Essa satisfação além do princípio do prazer não pode ser simbolizada, sua presença no campo do Outro podendo ser detectada apenas pelos buracos e falhas na consistência desse campo. Falta um significante para designar esse gozo, por isso o único significante possível para ele é o significante da falta de significante, o matema S de A barrado. Este é o "matema que escreve a inconsistência do Outro, isto é, que indica uma contradição irredutível de, a um só tempo, afirmar a falta de um significante e negar essa falta ao escrever como significante exatamente esse significante que falta" (Freire, 1996, p. 30).

 

A angústia revela a falta de autonomia do sujeito

Correlativamente à emergência do desejo do Outro como real, o que aconteceria do lado sujeito? A angústia "nos faz aparecer como objeto, ao revelar a não-autonomia do sujeito" (Lacan, 1962-1963/2004, p. 60). A citação fornece duas indicações importantes: na angústia, o sujeito passa a ocupar a posição de objeto; e a posição de objeto equivale à ausência de autonomia. Poderíamos fazer o raciocínio inverso, afirmando que a posição de sujeito equivale à presença de autonomia? Não, uma vez que sujeito do inconsciente não sabe o que faz, o sentido de suas ações sendo a posteriori decidido pela sua inscrição no campo do Outro. De qualquer modo, não resta menos verdade que a posição de sujeito e a posição de objeto sejam diferentes. Para melhor situar a diferença, procederemos a um esclarecimento dos conceitos em jogo.

A psicanálise mostra como o sujeito, no momento em que age, desconhece o sentido da sua ação, sendo o valor de seus atos conhecido apenas posteriormente, através de suas conseqüências, de sua inscrição no campo do Outro. Na relação do sujeito ao Outro, o saber vem sempre depois, na posteridade, portanto tarde demais. Contudo, apesar de não deter inicialmente o sentido das suas ações, o sujeito do inconsciente define-se justamente pela possibilidade de se responsabilizar por algo que não fez; ou melhor, por alguma coisa que só retroativamente saberá que fez. O sujeito pode ser assimilado a uma instância capaz de responder pelo que "terá feito".

O que está em ação aqui é um mecanismo de suposição retroativa de saber em que, embora só tomando conhecimento do sentido das suas ações a posteriori, o sujeito atribui a si mesmo a posse desse saber no passado. Acaso a frase clássica que se escuta nos consultórios, "Eu não devia ter feito isso", não exprime com perfeição como um saber que vem sempre tarde demais pode ser transferido para o momento precedente, como se estivesse anteriormente disponível para o sujeito? Assegurando para si mesmo a posse de um saber, ainda que tal saber passe a existir só-depois, o sujeito encontra um meio de se responsabilizar. Evidentemente, não estamos falando de um saber qualquer, mas de um saber acerca do desejo do Outro. Embora de fato adquirido pelo sujeito apenas na posteridade, tal saber já se encontrava de direito inscrito no Outro.

Note-se que, para evitar a angústia, não é necessário (nem possível) o sujeito saber o que o Outro quer, mas apenas supor que o Outro sabe o que quer. A suposição de que o Outro sabe o que quer implica a suposição de que o sujeito pode também saber o que quer, ou seja, a unidade hipotética de um funciona como "garantia" da unidade do outro. É esse quadro que se inverte na angústia: o mecanismo de atribuição de unidade ao Outro entra em pane, pois as intenções do Outro se mostram incompatíveis entre si, a síntese dessas intenções em um querer unificado aparecendo como impossível. Não podendo presumir que o Outro constitui uma unidade, que ele sabe o que quer, o sujeito se vê impedido de responder. O mecanismo de suposição de saber ao Outro encontra-se pontualmente colocado em suspenso, conseqüentemente não haverá possibilidade de o sujeito vir a responsabilizar-se por um saber qualquer. A transferência é posta em xeque, o Outro aparecendo como inconsistente, como uma ausência de unidade, como acéfalo: ele não sabe o que quer, logo não sei quem sou.

Estamos agora em condições de diferenciar de modo mais claro, a posição de sujeito e a de objeto. Embora o sujeito não possa ser caracterizado como uma instância autônoma, a possibilidade de se responsabilizar pela interpretação do Outro está aberta para ele. Já a posição de objeto elimina a possibilidade de responder por uma interpretação qualquer, atestando por isso mesmo uma destituição subjetiva.

Sob a pressão dessa exigência incondicional proveniente do Outro, o sujeito é transladado para a posição de objeto. Este objeto é nada mais nada menos que seu próprio corpo: "É seu próprio corpo, o que lhe é mais próximo e, simultaneamente, o mais distante, porque é seu corpo unicamente pelo ângulo do que é para as "intenções" do Outro" (Rabinovich 2005, p. 94). Por que Rabinovich nos diz que o nosso corpo é ao mesmo tempo próximo e distante de nós? Num certo sentido, o corpo próprio está próximo de nós por ser o corpo enquanto é sede das nossas experiências. Num segundo sentido, o corpo próprio está distante de nós porque seu usufruto não é controlado por nós, na medida em que o Outro pode se apoderar dele a seu bel-prazer. O Outro pode gozar de nosso corpo, sem que saibamos localizar exatamente sob qual ângulo esta satisfação é pensável. O sinal de angústia se dá diante de um Outro que consome o sujeito como objeto de seu gozo, não restando ao último qualquer recurso capaz de domar o Outro, de torná-lo dócil a um dispositivo em que se pudesse capturar seu desejo através do significante. O que alarma então na angústia é o aspecto intransigente da demanda do Outro, o fato de eu não poder controlar suas idas e vindas significando que estou diante de um Outro caprichoso e arbitrário.

Quando dizemos que o Outro goza do sujeito, ou que o sujeito goza do Outro, o equívoco que devemos evitar é achar que há nesse ponto uma comunicação, como se um pudesse saber do gozo do Outro. Importa aqui precisarmos que não há comunicação entre os gozos, "o gozo não circula de um corpo para o outro" (Rabinovich, 2005, p. 84), o que significa que não é dado ao sujeito ter acesso ao que seria a satisfação efetiva do Outro, nem ao Outro ter acesso à satisfação efetiva do sujeito. Desse modo, o gozo do Outro é da ordem de uma suposição. Zizek chega a denominar de sujeito-suposto-gozar. esse Outro como "suporte de um gozo ilimitado, insuportável, traumatizante" (Zizek, 1991, p. 148). O autor ilustra com a clássica análise freudiana do obsessivo que, atribuindo a uma mulher de má-reputação um gozo transbordante e auto-destrutivo, tentará a seguir salvá-la desse 'mal'. O que deve ser enfatizado aqui é o caráter hipotético da satisfação atribuída à mulher em questão, já que não é possível termos um acesso direto à satisfação do Outro. O gozo do Outro não é algo objetivo, cuja existência independe do sujeito. A satisfação do Outro só é pensável como um limite em relação à própria perspectiva sob a qual o sujeito se abriga; considerada fora de qualquer ponto de vista, 'em-si' mesma, ela não é nada.

É necessário esclarecer que a expressão gozo do Outro pode ser entendida sob duas formas. Como adjunto adnominal, é o Outro quem goza do sujeito. Como complemento nominal, o Outro se torna objeto de gozo do sujeito. Embora até agora tenhamos centrado nossa análise no primeiro sentido da expressão, a validade do que dissemos pode ser estendida para o segundo. O sujeito pode também tomar o Outro como alvo de uma exigência cega e não dialetizável, a ponto de se surpreender com uma satisfação que não respeita qualquer lei formulável. Nesse momento, o sujeito aparece como um estrangeiro para si mesmo: "Essa alteridade que me escapa e me escandaliza é de uma estranha proximidade de mim mesmo. (....) Uma estranheza inteiramente íntima - Unheimlichkeit, dizia Freud -, que nos surpreende em certos atos que não reconhecemos... mas que são nossos" (Julien, 1996, p. 52). Um exemplo trabalhado por Phillipe Julien é o dos sujeitos que, agindo em nome do Bem, acabam se deparando com a sua própria "maldade", para logo em seguida evitar reconhecê-la: é que "não posso reconhecer esse gozo: desconhecimento oportuno, que desde sempre nos sustenta na inquisição, na cruzada, na militância, no amor desvairado, para denunciar, em nome da boa causa, essa recusa do Outro a querer este bem que quero para ele" (Julien, 1996, p. 47). Em resumo, o sujeito pode tornar-se um estrangeiro para si mesmo, ao deparar-se com seu próprio gozo - gozo até então desconhecido para ele.

 

Referências

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Recebido em 08 de março de 2005
Aceito em 15 de março de 2005
Revisado em 14 de novembro de 2005

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