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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. v.8 n.1 Fortaleza mar. 2008
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
O atendimento psicanalítico com pacientes neurológicos
The psychoanalytical treatment with neurological patients
Monah WinogradI; Flávia Sollero-de-CamposII; Claudia DrummondIII
IPsicanalista. Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Assistente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio. End.: R. Prof. Luiz Cantanhede, 130/302, Laranjeiras. Rio de Janeiro, RJ. CEP 22245-040. E-mail: winograd@uol.com.br
IIPsicóloga Clínica. Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio. Professora Assistente do Departamento de Psicologia da PUC-Rio. End.: R. Gilberto Cardoso, 300/501, Leblon. Rio de Janeiro, RJ. CEP 22430-070. E-mail: fsollero@uol.com.br
IIIFonoaudióloga. Mestre em Lingüística pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Professora e Chefe do Serviço de Fonoaudiologia do Instituto de Neurologia Deolindo Couto da Universidade Federal do Rio de Janeiro. End.: R. Jornalista Henrique Cordeiro, 70/2005, bl A, Barra da Tijuca. Rio de Janeiro, RJ. CEP 22631-450. E-mail: claudiadrummond@terra.com.br
RESUMO
A clínica dos pacientes com lesão cerebral centra-se na neurologia e na neuropsicologia. Porém, não se deve reduzir seu atendimento somente aos aspectos relacionados à lesão, pois além dos aspectos das perdas cerebrais, motoras e cognitivas, ela também abrange uma experiência subjetiva transformadora e até traumática. Tais aspectos apresentam-se profundamente interligados. Propomos um atendimento psicanalítico que privilegie a relação do sujeito com sua doença e todas as suas conseqüências, sem negligenciar os aspectos fisiológicos e cognitivos existentes. Neste artigo, objetivamos apresentar as primeiras elaborações a respeito desta clínica, destacando alguns aspectos. De saída, formulamos os objetivos do atendimento psicanalítico de casos neurológicos, sublinhando suas diferenças e suas complementaridades relativamente ao atendimento neuropsicológico. A seguir, evidenciamos as contribuições que a psicanálise pode trazer para a abordagem destes casos no que diz respeito aos aspectos da perda, da falta e da temporalidade. Os fatores importantes e as fases do atendimento também são abordados, com destaque para as questões envolvendo a demanda de atendimento, a irrupção do Real e os lugares do corpo em tais casos. Finalmente, sistematizamos certos conjuntos significativos que podem ser observados no atendimento de tais casos. São eles: as feridas na identidade subjetiva, o problema da re-socialização, a presença de movimentos regressivos e da construção de mitos sobre o adoecimento, a presença da dúvida, as diferentes linguagens, a doença como passagem ao ato e, por fim, os aspectos da vergonha e da culpabilidade.
Palavras-chave: lesão cerebral, psicanálise, subjetividade, fenômenos psíquicos, clínica.
ABSTRACT
The treatment of patients with brain injuries is centered on neurology and neuro-psychology. However, brain injury treatment should not be reduced to aspects related to the lesion; for beyond the aspects of brain, movement and cognitive losses, it also encompasses a transforming and even traumatic subjective experience. These aspects are deeply interconnected. We propose a psychoanalytic treatment that privileges the subject's relation to his/her disease and all of its consequences, one that does not neglect the physiological and cognitive aspects involved. In this article, we present the first elaborations regarding this clinic, highlighting a number of its aspects. From the outset, we conceive the objectives of psychoanalytic treatment of neurological cases, underscoring its differences and complementarities to neuropsychological treatment. We then elaborate the contributions that psychoanalysis can bring to bear upon the approach of such cases regarding aspects of loss, lack, and temporality. We also approach the important factors and phases of treatment, with emphasis on questions involving the demand for treatment, the irruption of the Real, and the body, in such cases. Finally we systematize certain significant patterns that may be observed in the treatment of such cases, among which are: the wounds in subjective identity, the problem of re-socialization, the presence of doubt, the different languages, disease as passage to the act and, finally, the aspects of shame and blame-liability.
Keywords: brain injury, psychoanalysis, subjectivity, psychic phenomenon, clinic.
O atendimento psicanalítico com pacientes neurológicos1
A abordagem psicanalítica de pacientes com lesão cerebral ainda é bastante marginal. A partir de pesquisa em portais de periódicos científicos na web, verificou-se que, do ponto de vista da produção bibliográfica, são apenas dois os grupos internacionalmente expressivos por trabalharem com este tipo de pacientes numa abordagem psicanalítica: o grupo do inglês Mark Solms e o grupo da francesa Hélène Oppenheim-Gluckman. Em suas pesquisas com pacientes lesionados cerebrais, Mark Solms e sua esposa Karen Kaplan-Solms (2004 e 2005) têm realizado diagnóstico neuropsicológico e utilizado a psicanálise como método investigativo e técnica de tratamento. Eles pretendem demonstrar que, não somente tais pacientes apresentam sofrimento subjetivo considerável, em alguns casos, por suas dificuldades de comunicação e expressão, como também podem se beneficiar do atendimento psicanalítico modificado. Além disso, eles procuram esclarecer e relacionar conceitos provenientes da psicanálise e da neuropsicologia, num movimento controverso de composição entre os dois campos que ficou conhecido internacionalmente como Neuro-psicanálise e que ultrapassa os limites da clínica.
Na França, a psicanalista Hélène Oppenheim-Gluckman e seu grupo (1997, 1998, 2000, 2003 e 2006) também se dedicam a atender pacientes que sofreram lesões cerebrais, trazendo o problema da cognição para o centro da pesquisa em psicanálise. Dentre seus trabalhos, também merecem destaque os relatos de sua experiência com pacientes recém-saídos de um coma. Para ela, o traumatismo craniano constitui-se como uma experiência existencial transformadora, tanto para o paciente, quanto para as pessoas que o cercam. A identidade subjetiva, seus aspectos narcísicos e a relação do paciente consigo mesmo e com o mundo modificam-se irremediavelmente, gerando um sofrimento psíquico nem sempre passível de verbalização adequada, até mesmo por conta das lesões sofridas.
Estes dois esforços demonstram que o campo da psicanálise é capaz de oferecer um instrumental bastante adequado para a apreensão da experiência subjetiva de pacientes com doença somática grave ou com deficiência, neste caso, a lesão cerebral e suas conseqüências. Centrada sobre os signos de expressão do psiquismo encontrados tanto no funcionamento normal e cotidiano, quanto nos processos mórbidos, a psicanálise é classicamente definida como: (a) um método de investigação dos processos psíquicos, (b) uma forma de tratamento das afecções psíquicas e (c) o corpo de conhecimentos que sustenta e é enriquecido por (a) e (b). O trabalho com pacientes neurológicos se enquadra perfeitamente nesta definição e se constitui como campo de pesquisa clínica bastante fértil.
No Rio de Janeiro, as autoras deste artigo têm realizado pesquisa envolvendo o atendimento psicanalítico com pacientes neurológicos adultos (AVC, TCE e demências) com apoio da FAPERJ (2005-2007) e do CNPq (2007-atual). A demanda de atendimento tem acontecido, quer espontaneamente, quer por encaminhamento realizado, tanto por profissionais de saúde, quanto pelo Ambulatório de Fonoaudiologia do Instituto de Neurologia Deolindo Couto/ UFRJ. O atendimento tem sido realizado no Serviço de Psicologia Aplicada do Depto. de Psicologia da PUC-Rio. Ao chegarem para atendimento, os pacientes são recebidos pelas psicanalistas e, após algumas entrevistas, encaminhados para avaliação neuropsicológica como forma de complementar a direção da cura. A seguir, apresentamos reflexões teóricas e clínicas a partir dos resultados parciais desta pesquisa, cujo objetivo geral é investigar um modelo psicopatológico para esta clínica em particular.
Os objetivos iniciais do atendimento psicanalítico de pacientes neurológicos e suas diferenças e complementaridades relativamente à neuropsicologia cognitiva
Um dos objetivos iniciais do atendimento é promover a elaboração psíquica dos efeitos da lesão cerebral e de suas conseqüências para o sujeito, ou seja, permitir a expressão da experiência subjetiva, das relações entre psiquismo, experiência da doença e suas conseqüências motoras, cognitivas e perceptivas. Trata-se, fundamentalmente, de circunscrever como elas se integram na vida fantasmática do sujeito a fim de aumentar-lhe a potência de pensar e de agir.
Oppenheim-Gluckman, Dumond e Fayol (2003) sugerem que sejam observados e descritos os "fenômenos psíquicos" ou os "conjuntos significativos" (Jeammet, 1982) típicos destes pacientes, como por exemplo: (a) risco de perda da identidade subjetiva; (b) perda da consciência de si; (c) tentativas de manutenção da identidade com apoio no passado ou na identidade profissional; (d) construção de "próteses de representação", ou seja, o apoio em elementos exteriores que o sujeito com lesão cerebral constrói para tentar representar o adoecimento e suas conseqüências, na falta de uma representação interna (Oppenheim-Gluckman, 1998); (e) afetos ansiosos ou depressivos dentre outros; (f) mecanismos de defesa; (g) negação da limitação física e cognitiva; (h) aspectos da personalidade anterior; (i) capacidade de insight (capacidade do sujeito de se analisar, interrogar-se, tentar se compreender); (j) dificuldade no trabalho de luto e (l) dificuldade de simbolizar a perda e de se confrontar com a falta.
Estes fenômenos psíquicos são processos subjetivos ancorados nos modos de estar conscientes e inconscientes do sujeito e em suas operações biológicas, cognitivas, perceptivas, sociais, relacionais. Eles estão na convergência entre a estrutura psíquica de cada paciente e a vivência da doença e dos danos cognitivos e perceptivos que ela engendra. Embora específicos, tais fenômenos psíquicos não caracterizam uma estrutura psíquica particular, ou seja, cada paciente utiliza a sua estrutura psíquica na experiência da doença, fazendo uso de sua história e de sua dinâmica específicas.
Para o psicanalista, não se trata, portanto, nem de classificar, buscar causalidades ou mesmo descrever uma personalidade pré-traumática, nem de tentar criar uma nova nosologia psicopatológica que substituiria as classificações existentes. Também não se trata de descrever as incidências psicológicas das lesões cerebrais graves com danos cognitivos, nem de criar uma clínica específica ligada ao fato "dano cognitivo", o que apagaria a história individual e fantasmática de cada um. A pesquisa sobre a abordagem psicanalítica de casos deste tipo se situa fora de qualquer lógica de causalidade de tipo psicossomática e fora de qualquer tentativa de oposição entre psicogênese e organogênese (ainda que haja um fato orgânico bem objetivo). Trata-se, por um lado, de compreender, no quadro de uma relação psicoterapêutica e transferencial, a experiência psíquica que os pacientes neurológicos e os que o cercam atravessam (o que implica, como veremos, um afrouxamento das regras que regulam o setting). De outro lado, trata-se de descrever os modos de organização dos fenômenos psíquicos e dos conjuntos significativos conscientes e inconscientes, intra e intersubjetivos, destes pacientes. Estes fenômenos psíquicos devem ser, simultaneamente, objeto de uma descrição semiológica, de uma interpretação apoiada na teoria psicanalítica e de uma confrontação com os dados médicos e neuropsicológicos. Numa perspectiva prática, acreditamos que a psicanálise permite compreender o sofrimento psíquico destes pacientes e dos que o cercam, guiando um trabalho psicoterapêutico e oferecendo aos que se ocupam destes pacientes um modo de compreensão não exclusivo.
Do ponto de vista teórico e prático, ambas, a psicanálise e a neuropsicologia cognitiva, são extremamente necessárias, pois, em torno de uma mesma clínica, trazem esclarecimentos diferentes e, de certo modo, complementares. A abordagem dos pacientes neurológicos é, necessariamente, multifatorial, embora as diferentes disciplinas concernidas não devam ser confundidas e misturadas. A multidisciplinaridade só é interessante se cada disciplina definir seu campo de ação e de reflexão, bem como seus limites epistemológicos. Além disso, é imprescindível que se estabeleça uma relação de respeito mútuo entre os profissionais de cada campo a partir do entendimento de que não pode haver uma hierarquização dos modelos em jogo (Winograd, Sollero-de-Campo & Landeira-Fernandez, 2006).
No campo psicanalítico, as posições a respeito deste tipo de interlocução não são unificadas, alternando entre uma crítica radical do conceito de homem com o qual as neurociências e as ciências cognitivas trabalham e tentativas de vincular psicanálise e neurociências cognitivas. Seja como for, é preciso sublinhar a diferença metodológica fundamental entre psicanálise e neuropsicologia cognitiva. Esta última se interessa pelos mecanismos objetivos do psiquismo, ao passo que a psicanálise debruça-se sobre o conteúdo e a experiência subjetivos. Tal diferença, embora exata, é insuficiente. A psicanálise, como lembra Lacan (1964/1988), é uma práxis centrada em torno da transferência e da causalidade psíquica inconsciente. Por sua vez, as ciências cognitivas estão situadas ao lado da psicologia experimental e da causalidade científica.
No seminário XI, Lacan (1964/1988) ajuda a diferenciar a causalidade psíquica inconsciente da causalidade científica, lembrando que a primeira é constitutiva da experiência humana e existe qualquer que seja a causalidade (a etiologia) de um sintoma psíquico, comportamental ou de uma doença. Portanto, é ao manter-se no terreno da causalidade psíquica inconsciente, sem bascular para o lado da causalidade científica, que a psicanálise poderá afirmar sua especificidade no campo dos saberes, sejam quais forem os avanços dos conhecimentos biológicos sobre as doenças mentais. As abordagens psicanalítica e neuropsicológica não são comparáveis, pois são totalmente diferentes, do ponto de vista epistemológico. Em torno de um mesmo objeto de reflexão (no caso, a cognição) e no acompanhamento dos pacientes, ambas têm o seu lugar.
Atualmente, as relações entre psicanálise e neuropsicologia cognitiva continuam bastante complicadas. Os lugares respectivos de ambos os saberes não são, com efeito, sempre bem delimitados. Andrieu (2000) e Ehrenberg (2004) destacam existir, nas ciências experimentais, uma redução metodológica interna, necessária para a constituição de qualquer saber, mas que corre o sério risco de deslizar para uma redução explicativa e ideológica, ou seja, para uma explicação generalizada a partir de resultados parciais ou válidos somente em um campo inicial. No estado atual dos conhecimentos, nem a neuropsicologia cognitiva, nem a psicanálise escapam deste risco. De modo que devemos ter sempre em mente o fato de que cada uma delas adota uma metáfora e um modelo em função dos quais descrevem seus resultados. Tal modelo só faz sentido no plano conceitual específico no qual se origina e não se confunde com os modelos e conceitos de outros planos (Winograd, 1998). Por exemplo, a neuropsicologia cognitiva reconhece a importância dos mecanismos inconscientes em vários processos cognitivos (memória, reconhecimento de faces, etc.). Mas, para ela, o adjetivo 'inconsciente' designa exclusivamente o fato de serem mecanismos não-conscientes, ou seja, processos perceptivos ou cognitivos implícitos, complexos ou modulares (Fodor, 1983), não percebidos por causa de limitações temporais e de intensidade (Jeannerod, 1990). Assim, o modelo de inconsciente cognitivo é absolutamente diferente do inconsciente freudiano: não é uma instância psíquica, mas sim, o implícito.
Da mesma maneira, as duas disciplinas não se referem às mesmas imagens de sujeito. A grosso modo, pode-se afirmar que, embora as neurociências cognitivas considerem as dimensões da afetividade, das emoções, da intencionalidade (Damásio, 2004), o sujeito que ela define é o do conhecimento, do pensamento e do juízo. Para a neuropsicologia, a atividade ligada às funções superiores (memória, linguagem) funda um sujeito racional, unificado, adaptado ao meio e idealmente inequívoco. É bem verdade que as neurociências contemporâneas têm conseguido romper com a redução do sujeito ao sujeito consciente, com a visão estática e behaviorista e com a idéia de um cérebro "caixa-preta" que estoca as informações tais quais fornecidas pelo mundo. Também é certo que o sujeito é, agora, considerado como um ser em perpétua evolução na interação com o meio. Porém, diversamente da psicanálise, o modelo proposto é, antes de tudo, adaptativo: quando a adaptação falha, sobrevêm os sintomas patológicos. Indispensáveis para elaborar um raciocínio, programar e antecipar, os processos emocionais descritos pela neurociência têm, assim, um valor cognitivo e adaptativo, diferindo do modelo dos afetos e do desejo proposto pela psicanálise (Damásio, 2004 e Edelman, 1995).
Em Freud, por sua vez, não se pode encontrar uma definição explícita de sujeito. Diz-se que a obra freudiana introduz uma ruptura epistemológica importante na medida em que dá um lugar central para o pulsional e para o inconsciente como instância psíquica. Neste campo, o sujeito é desejante, inscrito na ordem da linguagem e na ordem simbólica. Lugar de conflitos psíquicos, ele apresenta um equilíbrio instável e jamais adquirido, pois está estruturalmente dividido. Tal divisão está presente em todo o campo psicanalítico: na estrutura pluri-sistêmica do psiquismo (Freud, 1900/1996a e 1923/1996b), na noção de "clivagem do eu" (Freud, 1940/1996c), no conflito entre princípio do prazer e princípio da realidade (Freud, 1911/1996d), nos dualismos pulsionais (Freud, 1905/1996e, 1914/1996f e 1920/1996g). O conflito psíquico intervém também nos processos cognitivos através, entre outros de mecanismos como a negação (Freud, 1940/1996c), a denegação (Freud, 1925/1996h), a Bejahung (Freud, 1925/1996h) e a foraclusão/expulsão (Lacan, 1964/1988). Não há primado da razão e do pensamento. O pulsional, o princípio do prazer, o Isso são primeiros, ao passo que o princípio de realidade e, portanto, a adaptação à realidade, são posteriores. Ou seja, de saída, o sujeito é irracional, tomado pelo princípio de prazer. Ele se constitui na relação intersubjetiva com o outro, graças a mecanismos identificatórios e introjetivos. Noutras palavras, por causa da primazia do inconsciente, há um desconhecimento estrutural do sujeito jamais ultrapassado: o sujeito é, não somente dividido, como principalmente alienado. Daí não haver normalidade possível: o homem produz sintomas permanentemente (lapsos, atos falhos, sintomas neuróticos, sonhos etc.).
Por outro lado, é bem verdade que os sintomas são soluções de compromisso e, como tais, podem ser pensados como modos de adaptação do sujeito (de desejo, clivado, conflituoso) ao seu meio, ou seja, como tentativas de encontrar um equilíbrio possível, mesmo que frágil, apesar de sua alienação. Noutras palavras, princípio do prazer e princípio de realidade devem reger, juntos, o psiquismo, ainda que o primeiro seja anterior e defina o sujeito como irracional etc. (Freud, 1911/1996d). Neste caso, a noção de adaptação pode ser pensada como a busca de algum equilíbrio, sempre singular, porque é relativo à interação entre um sujeito em particular e um meio sempre contextual, e não por referência a uma noção totalizante de normalidade suposta e independente das singularidades.
Proveniente do latim adaptare (ad: à e aptare: ajustar), o conceito de adaptação refere-se ao ajustamento estrutural e funcional de um organismo que vive, dura e se reproduz às características do meio ambiente no qual ele se situa. O conceito pode ser aplicado tanto às zonas ou atividades localizadas (como o sistema respiratório ou os dispositivos de camuflagem de certas espécies animais e vegetais), quanto a um organismo ou a um conjunto de organismos tomados em sua totalidade.
A concepção pós-darwinista de evolução, desenvolvida a partir do século XX, utiliza a metáfora do "bricolage" (Jacob, 1971) para explicar o processo evolutivo. Não mais recorre ao ponto de vista adaptacionista original, que considera que a seleção natural atuaria para a manutenção de um comportamento, de uma espécie, de um mecanismo, a partir de sua contribuição para a sobrevivência. A reprodução e a sobrevivência permanecem constrangimentos fundamentais, porém agora são analisadas, não do ponto de vista de uma lógica prescritiva, mas proscritiva. Nesse sentido, não existiria um guia rígido para o processo de seleção das espécies e de adaptação: "o que não é proibido, é permitido" (Varela, Thompson & Rosch 1991, p. 195-200). O processo evolutivo e, portanto, de adaptação dos organismos, "muda da seleção ótima para a viabilidade" (idem, pág.196). Nesta definição, a adaptação está referida ao equilíbrio do indivíduo, e não a certa concepção totalizante de normalidade.
Vê-se que, embora o conceito de adaptação seja estranho ao campo psicanalítico, ele pode estimular elaborações interessantes se não obnubilar a problematização de uma noção de normalidade que, esta sim, deve ser posta em questão quando se opera por referência à teoria e à clinica psicanalíticas. Assim, acreditamos que, apesar de diferenças fundamentais, o diálogo entre os campos em cena pode ser estimulante, tanto para evitar o reducionismo teórico e clínico, quanto para permitir uma melhor abordagem da complexidade dos processos psíquicos e da clínica dos pacientes em questão.
Possíveis contribuições da psicanálise para a clínica de pacientes neurológicos
As pesquisas em psicanálise são necessárias para que se avance na compreensão da clínica dos pacientes neurológicos. Tais pesquisas se apóiam principalmente em estudos de caso de tipo "caso único". Poder-se-ia condenar a psicanálise por utilizar um modo de observação naturalista e por ser essencialmente descritiva. Contudo, este gênero de abordagem, além de permitir uma descrição qualitativa bem próxima da clínica e evitar classificações esquemáticas demais, é necessário para constituir uma clínica pouco desenvolvida até o presente. Além da história pessoal e fantasmática única para cada um, é possível, a partir destes estudos de caso, descrever fenômenos psíquicos que ultrapassam a singularidade de cada caso é o que pretendemos ao pesquisar os conjuntos significativos. Com isso, pretende-se tornar estes estudos mais generalizáveis, multiplicando o número de casos estudados e destacando configurações similares para além das similitudes e diferenças aparentes.
Vale lembrar que, no caso dos pacientes neurológicos, o objeto da pesquisa em psicanálise não é o comportamento, a cognição ou a ação, como são para a neuropsicologia cognitiva, mas, sim, o que faz um "acontecimento psíquico" (Fedida, 1992). O objetivo é estudar e compreender os "acontecimentos psíquicos" numa situação de doença somática grave, inicialmente aguda e depois crônica, com danos aos processos de pensamento. Dito de outro modo, se a neuropsicologia cognitiva descreve os mecanismos da cognição e suas ligações com as estruturas cerebrais, a psicanálise se debruça sobre o papel da cognição para a economia psíquica do sujeito e sobre a inscrição do dano cognitivo na história pessoal inconsciente e nos significantes fundamentais.
Tal abordagem, sem pesquisas etiológicas ou de causalidade, permite manter um espaço específico para a experiência subjetiva de um ponto de vista teórico e prático, não importa qual seja a etiologia biológica da doença. Trata-se de ultrapassar um debate maniqueísta e simplista que opõe organicidade e espírito. De um lado, não se podem negar as relações entre os mecanismos cerebrais, os processos biológicos e os processos psíquicos. De outro, as teorias neurobiológicas não dão conta do aspecto subjetivo da vida psíquica: é aqui que a psicanálise pode e deve ocupar seu lugar. Vejamos dois exemplos breves.
1) Da perda à falta
Assim como um TCE ou um AVC provocam perdas motoras, cognitivas, perceptivas e limitações da autonomia, eles também afetam as referências maiores do sujeito, sua relação existencial com o mundo, com os objetos de seu desejo e seus ideais conscientes e inconscientes, trazendo a castração à superfície. Ou seja, esquematicamente, pode-se afirmar que a psicanálise opera com a falta, ao passo que a neuropsicologia cognitiva preocupa-se com as perdas. São abordagens diversas, mas em certa medida complementares do ponto de vista da clínica. A falta, na teoria psicanalítica, é inerente à condição do sujeito humano, é simbólica e se refere à castração em torno da qual o psiquismo humano se organiza e re-organiza permanentemente. Por sua vez, a perda refere-se à perda de um objeto na realidade (deficiência, perda de um ente querido etc.). No caso dos pacientes neurológicos (mas não só), a perda gerada pela doença confronta o sujeito com a falta de maneira brutal e de elaboração difícil e lenta.
Situado no nível do sujeito desejante, o atendimento psicanalítico destes pacientes tem como um de seus objetivos oferecer recursos e acompanhar o sujeito na passagem da percepção da perda somática e cognitiva à confrontação com a falta, entre outros, relativamente ao objeto de seu desejo e seu ideal. A neuropsicologia, por seu turno, situa-se no nível consciente e social, no nível da perda cognitiva e de suas conseqüências relativamente à autonomia, à adaptação à vida social e cotidiana. Seu trabalho é, então, o de reeducar, re-habilitar, re-integrar, re-adaptar, minimizando as perdas tanto quanto possível.
2) Diferentes temporalidades
Mais lentos que as pessoas normais, os pacientes neurológicos fazem pensar ser sua lentidão não somente um elemento quantitativo, mas, sim, o reflexo de um outro modo de ser e de pensar. Por exemplo, no caso de seqüelas motoras de afecções neurológicas, a sensação do corpo próprio ou de partes do corpo pode vacilar a partir, entre outros, da lentidão de seus movimentos. A imagem inconsciente do corpo sofre assim um golpe, uma desorganização. No caso de problemas cognitivos, quando esta lentidão reflete dificuldades na integração, no tratamento cognitivo das mensagens vindas da realidade exterior e na elaboração de respostas face a esta realidade, pode haver um sentimento de defasagem entre o paciente e os que o rodeiam. Tal experiência provoca transformações nas referências familiares e habituais do paciente e dos que o cercam. Ela é tão perturbadora, quanto dificilmente transmissível. Daí o sentimento apresentado por muitos pacientes de estar num "outro mundo", de não falar mais a mesma língua que os demais, ou mesmo, de culpa por não conseguirem se comunicar. Assim, verifica-se que os danos cognitivos evidenciam de modo quase experimental níveis e espaços de temporalidade diferentes, apreendidos pelo psicanalista e relativos ao psiquismo, à imagem inconsciente do corpo (Dolto, 1984). São diferentes da temporalidade apreendida pela neuropsicologia, embora imbricada no seu funcionamento do esquema corporal (Schilder, 1981).
Os fatores e as fases do atendimento: a demanda, o Real, o corpo
Geralmente, o encontro entre psicanalista e paciente se faz no quadro de uma cura psicanalítica ou de uma psicoterapia de tipo psicanalítico. Com os pacientes neurológicos, o quadro do encontro e o lugar do psicanalista apresentam especificidades. Vejamos algumas delas.
Em um atendimento psicanalítico usual, o paciente endereça uma demanda ao analista (demanda de cura de um sintoma, de mudança, de se entender melhor etc.). Com os pacientes neurológicos, a primeira demanda raramente vem do próprio paciente: alguém próximo ou um de seus cuidadores (neurologista, fonoaudiólogo, fisioterapeuta etc.) freqüentemente toma a iniciativa. Por várias razões, é importante acolher a demanda feita deste modo e receber o paciente. Por vezes, as dificuldades cognitivas entravam a capacidade do sujeito de se deslocar e de marcar encontros, revelando uma dependência extrema e problemática ao outro por conta de sua deficiência. Outras vezes, a experiência psíquica do adoecimento neurológico é tão esmagadora que o sujeito não é capaz de fazer o movimento de demandar cuidados, quaisquer que sejam. Seja como for, as primeiras entrevistas são uma ocasião, tanto para o paciente falar de sua experiência subjetiva e porventura apreendê-la, quanto para o psicanalista aprofundar a primeira questão que emerge: de quem é a demanda e quais os caminhos que levaram ao seu endereçamento ao analista?
Desde o início e mesmo antes, quando são os cuidadores que demandam o atendimento para um paciente, é necessário atentar para o trajeto da demanda e para sua origem, a fim de melhor compreendê-la. Por causa da doença, também o conjunto do sistema familiar encontra-se em sofrimento: família e paciente às vezes formam um só bloco. A autonomia relativa, física e psíquica de todos é posta em xeque. Assim, não é raro que algumas entrevistas aconteçam na presença de quem agendou o atendimento ou mesmo de outros membros da família, se necessário.
Além disso, quando os cuidadores encaminham um paciente para a psicoterapia, é enriquecedor, se possível, antes de recebê-lo, discutir o encaminhamento para melhor entender a natureza do sintoma que motivou o encaminhamento. Pode ocorrer tratar-se de uma tradução do sofrimento dos cuidadores aterrados pela violência da doença. Outras vezes, o encaminhamento revela modos de funcionamento e disfunções institucionais: limitações econômicas, sobrecarga de trabalho, carga psíquica insuportável pela grande quantidade de pacientes com patologias graves etc. Nestes casos, cabe observar se o sujeito será capaz de se apropriar desta demanda de atendimento ou não.
Assim, muitas vezes, os encontros iniciais com o psicanalista ocorrem num quadro no qual o contrato inicial e principal foi feito entre o paciente e o médico ou entre o paciente e uma instituição. Tais condições impõem certo número de limites iniciais, como por exemplo, o trabalho começar mais como encontros psicoterapêuticos do que propriamente como uma cura guiada pela interpretação da transferência. Noutras palavras, por vezes o trabalho configura-se inicialmente como o que Winnicott (1974) chamou de "momentos de comunicação e de experiência mútua entre paciente e analista". No caso do atendimento em clínicas psicológicas de universidades, nas quais há, quer uma não-integração entre os departamentos de psicologia e de medicina, quer a inexistência de um departamento de medicina, o aspecto destacado acima aparece bastante diferenciado. O fato de o atendimento ocorrer fora de um contexto hospitalar facilita e acelera o estabelecimento de uma transferência mais direta com o psicanalista. A relação com o médico e com os outros cuidadores pode ser, assim, circunscrita e destacada da relação com o analista, a qual encontra-se um pouco mais preservada.
Além disso, para apreender os efeitos subjetivos de um acidente cerebral grave por trauma ou causas fisiológicas e suas conseqüências, também é necessário investigar os modos de sua inscrição, tanto no corpo do paciente, quanto em seu percurso médico. Tais aspectos expressam, de um lado, a realidade da doença, e de outro, a irrupção do Real que dela deriva. Utilizamos o termo 'Real' em referência aos trabalhos de Jacques Lacan (1964/1988). Empregado como substantivo pelo psicanalista francês a partir de 1953, o conceito lacaniano de Real designa a realidade psíquica, o desejo inconsciente e seus fantasmas conexos, mas também um "resto", uma realidade imanente à representação, impossível de simbolizar e inacessível a qualquer pensamento subjetivo (Roudinesco & Plon, 1997). Daí suas definições mais famosas, dentre as quais se destacam as que o caracterizam como o impossível de ser apreendido, o que escapa ao simbólico e permanece irrepresentável. De modo que "Real" e "realidade" são diversos, mesmo se a realidade da doença induzir a um confronto com o Real. Por realidade da doença, devemos entender os diversos sintomas corporais e cognitivos causados pela doença e suas conseqüências em todos os níveis: corporal, vida cotidiana e social, econômico, médico e médico-social, hospitalização, exames complementares etc.
Qualquer interpretação de qualquer tipo de caso deve levar ambos em conta e permitir que o discurso do paciente deslize de um para o outro no mesmo movimento que se observa e se estimula entre a perda e a falta. Então, se a perda pode ser articulada à realidade da doença, a falta articula-se com o Real. Uma das dificuldades do trabalho com tais pacientes consiste justamente na explicitação do Real e da falta em tais casos e nos movimentos contra-transferenciais detonados a partir do encontro com esta mesma falta. Além disso, importa diferenciar realidade dos fatos (no caso, da doença) e realidade psíquica. Tal diferenciação ajuda o sujeito a não ficar totalmente prisioneiro da doença ao permitir a compreensão de como a doença se integra em sua história consciente e inconsciente. Evidentemente, tal abordagem não tem uma visada explicativa linear e nem poderia, uma vez que a psicanálise opera construindo sentidos em movimentos de costura, ou seja, nas idas e vindas da significação.
É igualmente preciso ser sensível à violência intrínseca produzida pela doença e pela deficiência. Quase invariavelmente, o efeito de violência produzido sobre o doente e sobre os que o cercam (família, cuidadores) cria uma situação-limite. Esta violência, em certa medida exterior ao sujeito, põe em questão suas capacidades de integração psíquica, seu sentimento de identidade e de pertença, seus processos de subjetivação. Ela também faz vacilar a identidade subjetiva e profissional, trazendo à tona sentimentos muito fortes para todos os envolvidos, tais como: fascínio, horror, piedade, culpa, medo, sentimento de impotência, furores sanandi etc. O psicanalista não está imune a isso e, portanto, deve estar atento aos seus movimentos contra-transferenciais e refletir constantemente sobre seu ideal profissional, sobre suas relações com os médicos e sobre os desejos conscientes e inconscientes que o levam a se ocupar de pacientes com doenças somáticas graves.
Vale sublinhar que a relação entre psicanalista e paciente não tem, nestes casos, autonomia real relativamente aos outros cuidadores, pois pode haver uma transferência do paciente com a instituição, com o próprio psicanalista, com a fonoaudióloga, com os médicos, enfim, com os cuidadores em geral. Assim, além e por conta da irrupção do Real do corpo e da doença, a pregnância inevitável da referência à medicina marca profundamente a relação transferencial. Não se trata de combater tal pregnância, mas de relativizá-la e de circunscrevê-la para que o sujeito não se torne seu prisioneiro, ou seja, para que ele possa problematizar e assumir a direção de seus tratamentos.
Por outro lado, o Real e a realidade da doença confrontam pacientes e psicanalistas com muitas temporalidades, o que complica o trabalho psicoterápico. Numa cura psicanalítica usual, a temporalidade é, em princípio, a do quadro das sessões e a do inconsciente. Com os pacientes neurológicos, há pelo menos 5 temporalidades (Oppenheim-Gluckman, 2006): (1) a da doença; (2) a que é induzida pelos problemas neuropsicológicos; (3) a das curas e cuidados; (4) a dos encontros entre paciente e psicanalista e (5) a do inconsciente. Toda a dificuldade consiste em preservar a temporalidade da sessão e do inconsciente relativamente às outras temporalidades.
O confronto com o corpo do paciente também faz parte do Real e da realidade da doença para o paciente, para o psicanalista e para os cuidadores. No caso de lesão cerebral, há o confronto com um corpo em sofrimento visível e com o questionamento que o doente faz ao outro sobre os efeitos produzidos por este corpo. Assim, a doença corre o risco de ocupar todo o espaço, o que pode reduzir a diversidade das imagens possíveis do paciente neurológico e sua ambigüidade necessária para permitir uma relação intersubjetiva evolutiva e não cristalizada. De fato, é a muitos corpos que o paciente e o analista são confrontados (Oppenheim-Gluckman, 2006):
(a) o corpo, com todas as suas deformações, suas limitações (inclusive relativamente aos atos elementares da vida cotidiana, como comer, se lavar etc.);
(b) O Real do corpo;
(c) o corpo imaginário no qual intervêm todas as representações e teorias conscientes e inconscientes de cada um;
(d) o corpo para a medicina e suas teorias e representações frequentemente ligadas ao funcionamento celular e a um cérebro que funciona como uma rede de tratamento da informação e
(e) o corpo do sofrimento e o corpo do desejo do paciente.
Um dos desafios do atendimento psicanalítico com pacientes neurológicos está em fazer o vai-e-vem entre estes diversos corpos, desprendendo-se de um imaginário pregnante demais ou de uma invasão sem escapatória da realidade pelo Real do corpo.
Poder-se-ia pensar que os pacientes neurológicos são pouco acessíveis ao trabalho psicoterápico. Embora raros, os trabalhos que derivam de psicoterapias centradas sobre os processos inconscientes e os conflitos psíquicos do paciente demonstram o contrário (Oppenheim-Gluckman, 1997, 1998, 2003 e 2006 e Solms & Kaplan-Solms, 2004 e 2005). Evidentemente, quem escolhe esta orientação insiste na necessidade de adaptação do setting e dos modelos (Lewis, 1986 e 1991) em função de 4 fatores a serem levados em consideração: (1) os problemas neurológicos e cognitivos; (2) seu impacto psicológico; (3) os fatores psicológicos independentes de (1) e (4) no contexto social.
Além destes fatores, este tipo de atendimento permite a identificação de 3 fases ou momentos gerais (Oppenheim-Gluckman, 2006). Embora organizados esquematicamente abaixo, estes três momentos são, em verdade, fases do atendimento que não necessariamente sucedem umas às outras. Elas surgem de modo simultâneo e o par analista-paciente desliza de uma a outra ao longo do tratamento e mesmo numa única sessão:
I. A primeira fase, precoce, envolve a reestruturação psíquica inicial. O atendimento deve ajudar o sujeito a sair da experiência subjetiva da doença, ou seja, a perceber que ela não é um episódio fixo e insuperável. Noutras palavras, estabelecer novos horizontes para si. O atendimento permite o estabelecimento de certa liberdade psíquica para o sujeito, circulada pela linguagem. Aqui, o psicanalista tem uma função de "passador" na medida em que permite atravessar a doença e atingir uma relação mais autêntica possível consigo mesmo e com o outro.
II. A segunda fase refere-se à reconstrução do mundo interno do sujeito. O atendimento deve permitir o reconhecimento pelo paciente de uma continuidade psíquica profunda, apesar da fragilização da identidade aqui a psicoterapia tem uma função de "continente". Ao analista cabe auxiliar o sujeito a dar novos sentidos à relação com os objetos exteriores e a ser capaz de uma dialética entre a representação de si e a representação do objeto.
III. Enfim, a terceira fase do atendimento envolve a atualização e o confronto com questões pessoais e existenciais que a doença desvelou ou fez ressurgir sem as margens de manobra psíquicas e sociais anteriores. Sabemos que toda doença somática grave é um momento de crise que põe à prova a relação do sujeito consigo próprio, com os outros, com as escolhas de vida, com a inscrição na história familiar. Aqui, o analista opera classicamente e o atendimento não difere das psicanálises ordinárias.
Todos estes trabalhos descritos brevemente anteriormente se dão de modo mais ou menos simultâneo, de acordo com os momentos e a evolução de cada caso. O analista, apoiado em suas referências teóricas e em sua prática clínica, ocupa muitos lugares ao mesmo tempo. De um lado, ele permite um trabalho ao nível consciente, um trabalho sobre a experiência subjetiva do paciente de um ponto de vista fenomenológico, relativo às relações paciente-ambiente. Por outro lado e simultaneamente, a possibilidade de um trabalho psicanalítico, ainda que pontualmente, é aberta em todos os momentos. Por trabalho psicanalítico, devemos entender os momentos nos quais, durante as sessões, o sujeito se depara com seus conflitos psíquicos inconscientes, a interpretação e a elaboração subseqüente que podem se dar, ainda que minimamente.
Os conjuntos significativos
A clínica psicanalítica com pacientes neurológicos situa-se no ponto de convergência entre: (a) as lesões cerebrais e sua tradução neuropsicológica, (b) a história familiar e pessoal consciente e inconsciente que assumiu toda a sua agudeza no momento da doença, (c) a ressonância dos problemas cognitivos e perceptivos sobre a vivência do paciente e sobre sua economia psíquica e (d) os efeitos da violência da doença que engendram um sofrimento pessoal e familiar extremo. Todos estes aspectos participam a seu modo dos conjuntos significativos identificados inicialmente (cf. supra, pág. 2). A combinação de tais conjuntos intra-subjetivos entre si permite que se operem novos recortes, nos quais a ênfase pode recair sobre a relação do paciente com o seu entorno (família, cuidadores, enfim, meio social), ou seja, sobre o paciente em situação. Assim, podemos identificar novos conjuntos que abrangem os primeiros (mais elementares), relançando-os a partir de uma perspectiva intersubjetiva.
1) Feridas na identidade subjetiva
Nos casos de lesão cerebral grave, verifica-se um golpe na identidade subjetiva e as conseqüentes tentativas de lutar contra isso. Sabemos ser a noção de identidade bastante complexa. O termo designa inicialmente o estado do que não muda (Houaiss, 2001), do que fica sempre igual. De modo ainda mais geral, 'identidade' refere-se à consciência da persistência da própria personalidade e ao conjunto de características e circunstâncias que distinguem uma pessoa ou uma coisa e graças às quais é possível individualizá-la (Houaiss, op.cit.). Noutras palavras, a identidade de um indivíduo é definida como o fato de ele poder ser reconhecido sem confusões graças aos elementos individualizantes. Identidade supõe, então, individualidade, especificidade, permanência de características específicas. Ela é, ao mesmo tempo, biológica e corporal, psicossocial e subjetiva, de modo que suas definições concernem a muitas disciplinas: biologia, psicologia, sociologia, antropologia, etnologia.
Nos pacientes neurológicos verifica-se vários tipos de feridas na identidade:
a) Na sensação de identidade e de existência sustentadas pela imagem do corpo (Dolto, 1984) e pelo esquema corporal (Schilder, 1981) pode-se pensar num abalo do narcisismo primordial para o qual a imagem inconsciente do corpo seria o suporte.
b) Na imagem de si e no sentimento de identidade social a partir, por exemplo, da perda dos lugares e papéis profissionais e familiares o que ocasiona o deslizamento entre muitas posições subjetivas: assumir a identidade de deficiente? O que fazer com os traços visíveis da deficiência? São marcas de pertencimento a um grupo ou são também testemunhas da experiência subjetiva do acidente e de suas seqüelas? Não se trata, para o paciente, de "aceitar sua deficiência", "resignar-se", mas de confrontar-se com ela sem perder a confiança em si mesmo e nos outros.
c) Na consciência de si expressa pelo sentimento de perda de uma parte de si mesmo, de estranheza, de estar num sonho que integra a realidade exterior (Luria, 1999) de um lado, isto pode ser interpretado como o não-reconhecimento de si ao nível imaginário e especular por conta das modificações do corpo e do psiquismo. Freqüentemente confundido com a depressão, os problemas na consciência de si reduzem a capacidade do sujeito de se projetar no futuro e de ter iniciativa, como é descrito nas síndromes frontais.
d) Na relação às referências centrais, tais como objetos de desejo, ideais conscientes e inconscientes, funções sociais e simbólicas.
O fato de que os problemas cognitivos atinjam o sujeito em sua sensação de identidade e de existência traz à tona o problema da ligação entre cognição e ego e cognição e self. A clínica com os pacientes neurológicos mostra que a cognição tem uma função de apoio interno para o sujeito, permitindo integrar psiquicamente as representações de si e do mundo próprias a cada um. A presença de problemas cognitivos coloca o sujeito numa situação de dependência física, social e cotidiana, mas também psíquica, pois lhe falta a possibilidade de se apoiar sobre suas próprias percepções e sobre as representações de si mesmo e da realidade que o cerca. Eles utilizam as palavras das pessoas próximas como "próteses representacionais" (Oppenheim-Gluckman, 2006), ou seja, elementos exteriores que servem de apoio para as tentativas de representação do adoecimento e de suas conseqüências, da biografia do sujeito, do mundo que o cerca, das palavras que não lhe ocorrem, como no caso de certas afasias. Para estes pacientes, o outro não representa somente uma ajuda ou uma suplência para a realização de tarefas cognitivas. O outro tem uma função de sustentação, de apoio, de suporte, como a "mãe suficientemente boa" de Winnicott (1951/1978). Tal função, inevitável devido à situação criada pelos prejuízos cognitivos, pode ser intrinsecamente geradora de mecanismos de alienação ou, em termos winnicottianos, falsos selfs (1974/1988).
Estes golpes nas sensações de identidade e de existência vividos pelo sujeito com lesão cerebral se dão também pela dificuldade experimentada por eles no estabelecimento de relações intersubjetivas fundamentais para a sensação de si envolvendo o compartilhamento possível de experiências. Por exemplo, em casos de afasia, a experiência de vínculo interpessoal e intersubjetivo através de uma significação compartilhada se torna muito difícil, bem como o jogo de linguagem transmissível e comum.
2) A re-socialização
Trabalhos de neuropsicologia como os de Damásio (1995) formulam a hipótese de que lesões no córtex pré-frontal poderiam engendrar dificuldades de se conduzir de acordo com as regras sociais e de se adaptar a elas. Um dos primeiros objetivos do trabalho neuropsicológico seria, então, melhorar a adaptação social (Prigatano, 1992). Porém, sabemos que a socialização não se restringe à integração na vida social através de comportamentos adaptados, respeito às regras numa sociedade dada ou ter uma atividade dita social. A socialização diz respeito, em primeiro lugar, ao sentimento de pertença a uma comunidade humana graças à qualidade e à dinâmica das relações intersubjetivas que se pode estabelecer, aos projetos comuns e graças também à inscrição simbólica nesta comunidade (inscrição numa genealogia, numa cultura, numa sociedade etc.).
Para os pacientes neurológicos que, por conta de seus problemas cognitivos graves correm o risco permanente de perda da sua identidade subjetiva e têm muita dificuldade de estabelecer vínculos com os outros e com o mundo que os cerca , o aspecto da socialização é fundamental. Segundo a teoria psicanalítica, sabemos que não há no sujeito humano primazia da razão e do pensamento, que o pulsional e o princípio do prazer são primeiros, sendo segundos o princípio de realidade e a adaptação à mesma. Daí a adaptação ao outro, ao grupo e às normas terem de ser construídas com o apoio de representações conscientes e inconscientes que o sujeito faz de si mesmo e de sua pertença a um grupo. A norma permite, assim, criar certa identidade de pensamento e de representações conscientes entre os membros do grupo, identidade que favoriza as trocas num quadro comum mínimo. A adaptação à vida social, às suas regras, ou seja, a sociabilidade, supõem a atualização contínua, tanto da consciência das semelhanças que nos unem aos outros homens apesar das diferenças, quanto da consciência de uma reciprocidade possível e necessária. A norma social e comportamental é, portanto, um conteúdo do pensamento que demanda um esforço contínuo e permanente.
Muitos pacientes neurológicos apresentam dificuldades em pensar e representar a norma social e comportamental devido ao dano cognitivo que provoca feridas em sua sensação de identidade e de existência. Além disso, a reciprocidade social frequentemente não é possível por conta da dependência extrema relativamente ao outro. Nestas condições, os pacientes não conseguem se reconhecer como sujeitos na sociedade, pois não são mais reconhecidos como atores nos processos de trocas sociais, sendo a sua substituição pelos outros esperada e até mesmo desejada. Eles são enquadrados, ajudados, mas não considerados como atores sociais.
Assim, para os pacientes neurológicos, a socialização, ou mais exatamente, a possibilidade de se pensar como ser social passa por dois elementos básicos a serem considerados no atendimento psicanalítico:
1) o estabelecimento de novas referências identitárias e o sentimento de segurança e de continuidade psíquica que permitem se pensar na relação com o outro e
2) a construção de espaços nos quais o paciente possa ser ator para si mesmo e para os outros, e onde esteja numa relação de troca social recíproca (e não assimétrica), apesar de suas deficiências.
Quando ocorre em um serviço de psicologia aplicada em universidades, o atendimento a estes pacientes pode ter, de saída, um caráter de re-inserção social. É evidente a importância da convivência com outros tipos de pacientes na sala de espera, bem como com os alunos e com os funcionários que circulam no campus. As trocas estabelecidas no ambiente universitário, entre outros, em função da distância do contexto hospitalar, permitem que o sujeito estabeleça relações recíprocas e simétricas, noutros termos, que ele re-experimente a posição de ator social.
3) Regressão e construção de mitos: o confronto com a morte e com a dependência extrema
A doença neurológica presentifica a própria morte e a dos outros também. De uma só vez, atualiza-se o risco da perda de um ente querido e a confrontação com o impensável e o irrepresentável da própria morte. Nestas condições, reaparecem moções pulsionais ainda sem representação e sem elaboração psíquica, favorizando a passagem ao ato. Em outras palavras, como se não bastasse a própria doença AVC, traumatismo ou degeneração, pouco importa os danos cognitivos que atingem o pensamento intensificam o impensável da morte e a violência que resulta daí.
Além disso, como sublinha P. Aulagnier (1975), ser confrontado com uma experiência e uma realidade para as quais o sujeito ainda não tem possibilidade de resposta cria uma relação com o mundo que comporta forçosamente um excesso. Gerador de angústia, o não-sentido deste excesso é frequentemente circunscrito pela produção de mitos sobre o acidente que causou o traumatismo ou sobre as origens da doença. É comum os pacientes construírem explicações fantasiosas para as causas de seu traumatismo em um esforço visível de representação do Real que irrompeu repentinamente, transformando a vida de modo inexorável.
Também é comum a ocorrência de comportamentos regressivos cujas características dependerão das fixações de cada um, intensificadas e atualizadas pela situação de extrema dependência. Classicamente, a regressão é definida como o retorno em sentido inverso desde um ponto já atingido até um ponto situado antes, tanto em termos do percurso de um processo psíquico, quanto no sentido do desenvolvimento (Laplanche & Pontalis, 1986). Geralmente, a regressão está referida a formas anteriores de pensamento, relações de objeto e estruturação do comportamento. Prejuízos cognitivos favorecem movimentos regressivos na medida em que enfraquecem a estrutura do eu. Assim, moções pulsionais primitivas e egoístas, mais ou menos agressivas, podem ganhar expressão e merecem elaboração.
Além disso, a experiência traumática da lesão cerebral, por vezes, atualiza experiências traumáticas anteriores dificilmente transmissíveis, engendrando um sentimento de solidão extremada, da impossibilidade de se relacionar com o outro e de se fazer entender, bem como reações de tipo persecutório e afetos depressivos. A criação de mitos em torno das causas do acidente ou da doença é o signo do impasse da transmissão possível e, ao mesmo tempo, uma tentativa de transmissão. Com efeito, o mito é uma tentativa de sair do não-sentido e de transmitir uma experiência extrema com uma linguagem e uma ideologia supostamente aceitas por todos.
4) A dúvida
Constante nas relações com os outros e na relação consigo mesmo, no caso de doenças neurológicas a dúvida pode se apresentar e se exprimir inicialmente como: (a) dúvida do doente e dos que o cercam sobre o dizer do médico, o diagnóstico, a terapêutica e o prognóstico e (b) dúvida dos cuidadores em geral (médicos, fisioterapeutas, neurologistas, psicanalistas, fonoaudiólogos etc.) sobre a legitimidade e o alcance de seu saber. A dúvida também pode nascer da ruptura dos processos de reconhecimento recíproco devido, tanto às marcas que transformam ou deformam o corpo, tornando-o irreconhecível, quanto aos modos de ser de cada um face à doença.
Nos casos específicos de danos cognitivos, a dúvida apresenta especificidades. Com efeito, estes danos provocam o esgarçamento da ilusão necessária para o funcionamento da comunidade humana, ilusão que permite o confronto com o desejo e a denegação da realidade, sem resvalar num delírio.
5) Outras linguagens
Em muitos casos de afasia posterior à lesão neurológica, observa-se a perda do sentido da metáfora e a dificuldade de compreender os atos indiretos da linguagem ou o contexto da enunciação, comprometendo tanto a própria enunciação, quanto a apreensão da enunciação do outro. Além disso, freqüentemente acontece de o paciente exprimir, ao mesmo tempo, uma proposição e seu contrário ou o antônimo do que pretendia dizer (ex. sair ao invés de entrar, abaixo ao invés de acima) sem que se possa afirmar tratar-se definitivamente de ato falho. Pois, verifica-se que, por efeito da lesão, eles já não podem se valer nem da polissemia da linguagem e nem do meio-dizer. Essas situações favorecem o risco de "destruição da linguagem" (Fedida, 1992), não apenas no sentido cognitivo, mas, sobretudo, no sentido simbólico. Além disso, o próprio sujeito e os outros já não acreditam na verdade de sua palavra: não se pode contar com o seu dito, seja porque não se consegue compreender a sua fala (afasia de Broca, por exemplo), seja por que o que foi dito surgiu no lugar de outra coisa, ou ainda por que o paciente não compreende o que lhe é dito. Assim, verifica-se que os danos cognitivos acentuam o mal-entendido inerente a todo diálogo.
Por outro lado, por mais paradoxal que pareça, o sujeito com lesão cerebral é tomado e toma os outros numa palavra sem complexidade e sem ambigüidade. Por causa da perda de sentido da metáfora, a palavra pronunciada pelo paciente ou a que vem do outro é percebida sem polissemia, portadora de um sentido único. A passagem de uma linguagem privada ou íntima para um jogo de linguagem transmissível e comum se torna muito difícil. Uma dúvida dupla aparece aqui: a do interlocutor, que não pode fazer operar os processos de identificação e de empatia com o paciente, e a do paciente, que se pergunta se pode confiar em seu corpo, em seu pensamento e no jogo de linguagem comum.
Além disso, verifica-se a importância fundamental da consideração de aspectos não-verbais da linguagem, a prosódia, a expressão facial e corporal, o toque e os gestos se tornam tão ou mais significantes do que as palavras mal pronunciadas ou mal compreendidas. Com isso, cada paciente desenvolve toda uma forma própria de exercício da linguagem na qual os aspectos não-verbais se tornam mais significativos do que as palavras. Ao analista, eventualmente, cabe abrir mão da apreensão dos detalhes da fala, concentrando-se no conjunto do discurso verbal e não-verbal: a letra perde o lugar de protagonista.
6) A doença como passagem ao ato ou ato de origem
Associado à rememoração, à repetição, à elaboração, o termo 'passagem ao ato' designa a maneira como um sujeito traduz processos psíquicos inconscientes em atos impulsivos mais ou menos violentos: auto ou hetero-agressão, delito, suicídio. Trata-se de um agir inconsciente, de um ato não simbolizável pelo qual o sujeito se lança numa situação de ruptura integral e de alienação (Lacan, 1962/2005). Alguns casos de traumatismo craniano freqüentemente ocorrem a partir de passagens ao ato (do paciente ou de um outro) em sua origem. Por outro lado, em casos de acidente vascular cerebral, é a doença que pode fazer a função de passagem ao ato.
Seja como for, em todos os casos, o paciente é confrontado com um ato traumático, com uma efração do Real que arrisca fechar toda busca de sentido, caso o sujeito não se reconheça neste ato que ele busca anular. Neste sentido, o trabalho do psicanalista deve se dar na direção da implicação do sujeito relativamente ao que lhe aconteceu, permitindo a elaboração dos processos psíquicos inconscientes atuados direta ou indiretamente no adoecimento.
7) Vergonha e culpabilidade
Depois de uma lesão cerebral a história pessoal e familiar do paciente é re-mobilizada, assim como as questões existenciais concernentes a suas escolhas de vida, seus ideais conscientes e inconscientes, as relações autênticas (ou não) que ele teve até o momento. Por trás da questão "por que eu?", muito comum nestes casos, os pacientes se questionam também sobre o modo como cada um se comportou, sobre sua história pessoal e familiar. Eles se esforçam em sair do absurdo e do não-sentido, explicando a doença por esta história, por outros traumatismos ou acontecimentos significativos anteriores duplicados pela doença ou acidente atuais reconstrução necessária para integrar o acidente ou a doença numa história pessoal e familiar. Tal trabalho psíquico não significa que a doença se deva necessariamente a causas psicológicas inconscientes. No caso dos traumatismos cranianos decorrentes de acidentes, as razões inconscientes são mais complexas, pois certos casos expressam claramente uma passagem ao ato.
Sentimentos de culpa sobrevêm frequentemente e permitem dar um sentido à doença ou ao acidente (muitos pacientes têm o sentimento de estarem sendo punidos); sentimento reforçado pela realidade do acidente quando houve risco de morte de terceiros. Relativa ao Supereu, a culpa se constrói em torno da idéia de uma transgressão dos interditos e da doença como punição.
A vergonha, por sua vez, é um conceito pouco utilizado em psicanálise. Nas deficiências físicas, ela vem sendo abordada numa ótica psicossocial, como estando ligada ao olhar do outro sobre o indivíduo marcado por uma diferença relativamente ao grupo social (Erving Goffman, 1975). Para O. Mannoni (1973), a vergonha surge quando há "ruptura da identificação ao nível do Eu". A perda do estatuto social ou familiar por causa da lesão cerebral pode ser um fator de vergonha na medida em que o sujeito não pode mais encontrar em seu meio e em sua relação ao outro o que sustenta o seu Eu ideal. Mas, a vergonha sobrevém também quando se descobrem facetas de sua personalidade ou da do outro que fazem vacilar a idéia que ele faz de si mesmo e dos outros. Qual lugar o paciente pode ocupar, o que ele é para o outro, quando ele é portador de seqüelas? Como o outro o percebe? Como ele mesmo se percebe e como fazer uma diferença entre os modos de ser que lhe são próprios e aqueles que surgiram como conseqüência da lesão cerebral? A vergonha surge por conta do mal-entendido inevitável e da dificuldade de se situar face a estas questões. Ela pode surgir também quando há risco de uma desintegração identitária pela irrupção do Real do corpo, o que atinge o sujeito em sua condição de humano.
Esquematicamente, os mecanismos da vergonha, encontrados nos pacientes com lesão cerebral, são: vergonha da marca visível da doença, do Real do corpo, do risco de perda possível do sentimento de identidade humana.
Considerações finais
Os conjuntos significativos apresentados neste artigo foram destacados a partir de pesquisas teóricas e da prática clínica com pacientes que sofrem de lesões cerebrais. O tema é bastante novo e difícil, quer do ponto de vista epistemológico, quer em seus aspectos clínicos. Sabemos que pacientes com lesões cerebrais, de etiologia vascular ou por traumatismo, apresentam vários déficits cognitivos, tais como transtornos de memória, da linguagem, de orientação espaço-temporal, além de transtornos variados de comportamento, tais como impulsividade, agressividade, passividade, ou lentidão. A perspectiva psicanalítica no atendimento desses pacientes abre um acesso possível e fundamental à sua experiência subjetiva ao permitir abordar a lesão cerebral como acontecimento psíquico na história singular, real e fantasmática, de cada sujeito. Em outras palavras, privilegiar o entendimento da experiência subjetiva das conseqüências da doença significa incluir o impacto dos déficits cognitivos na economia psíquica do sujeito, observando como os processos psíquicos conscientes e inconscientes se reorganizam a partir da lesão cerebral.
A partir desta perspectiva, verificamos que a teoria e a clínica psicanalíticas se apresentam, portanto, como abordagens singulares desse tipo de pacientes e, possivelmente também dos que sofrem de outras afecções neurológicas, tais como as demências. Assim, nossa proposta envolve, mais radicalmente, trazer a cognição para o cerne da metapsicologia e repensar seu lugar e sua importância para o pensamento psicanalítico. Algumas questões emergem da clínica e se apresentam como pistas a serem seguidas, tais como: qual a importância dos processos cognitivos para a constituição e funcionamento do ego? Em que medida danos à cognição interferem nos processos secundários?
Mais profundamente, acreditamos que, nessa nova proposta, é possível, não somente a delimitação de um campo próprio à psicanálise, como a construção de uma delicada ponte com a neurologia e a neuropsicologia. Ponte na qual, ao invés da imposição de modelos epistemológicos e conceituais, trata-se de formular novas questões e aprofundá-las dentro dos limites de cada disciplina. Assim, se as neurociências confrontam a psicanálise com a materialidade neural do pensamento, por sua vez, à psicanálise cabe apontar para e dar ouvidos a singularidade das experiências destes corpos falantes.
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Recebido em 14 de novembro de 2006
Aceito em 31 de julho de 2007
Revisado em 17 de setembro de 2007
Notas
1. Este trabalho expressa parte dos resultados de pesquisa realizada com apoio da FAPERJ (2005-2007) e do CNPq (2007-atual) através do Edital de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas 50/2006.