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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644
Rev. Mal-Estar Subj. v.9 n.1 Fortaleza mar. 2009
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
Perversão: uma estrutura, uma montagem ou outra coisa?
Perversion: a structure, an assembly or any else?
Maria Tereza PerezI; Caio César Souza Camargo PróchnoII; João Luiz Leitão ParavidiniIII
IPsicóloga do CAPSi (Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência) de Uberlândia. Mestranda em Psicologia Aplicada pela Universidade Federal de Uberlândia. End.: R. Péricles Vieira da Motta, 774, Santa Mônica. Uberlândia, MG. CEP: 38408-220. E-mail: maitepsico@hotmail.com
IIPsicólogo. Bacharel em Filosofia. Professor Associado do Instituto de Psicologia e da Pós-Graduação da Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Pós-Doutor pelo Instituto de Filosofia da Universidade de Leipzig (Alemanha). End.: R. Cruzeiro dos Peixotos, 59, apt. 203, Aparecida. Uberlândia, MG. CEP: 38400-608. E-mail: c.prochno@uol.com.br, caioprochno@terra.com.br
IIIPsicólogo. Psicanalista. Professor Adjunto do Instituto de Psicologia e da Pós-Graduação da Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em Saúde Mental pela Universidade de Campinas. End.: Av. Uirapuru, 934, Cidade Jardim. Uberlândia, MG. CEP: 38412-166. E-mail: paravidini@ufu.br
RESUMO
No presente artigo, a partir de questionamentos oriundos de uma pesquisa sobre a possível clínica da perversão, a diferenciação entre montagens perversas e identidade estrutural se situou como um nó central. Portanto visou-se nesse trabalho fazer um contraponto entre montagem e estrutura perversa através da narrativa produzida de duas vinhetas clínicas e de suas subseqüentes análises. Por estrutura podemos entender um conjunto de um sistema de elementos que obedecem a leis internas de funcionamento de modo que se um dos elementos se mover, a lógica que regula o conjunto também modifica os demais elementos da estrutura. Por outro lado, montagem seria a reunião de partes de modo que possam funcionar e cumprir um fim utilitário. O desdobramento produzido em tais análises levou-nos a caracterizar através da nomeação de funções, as diferentes faces que o Outro assume na perversão, em que a engenharia do fetiche faz sua diferença. Porém, ao percorrer o caminho do estruturalismo na psicanálise, via Lacan, foi possível considerar alguns impasses que se desenharam quando este psicanalista procurou engendrar sujeito e estrutura. Nesse sentido, apesar da diferenciação apontada entre montagens e identidades estruturais, outra coisa toma a cena clínica como sendo o fundamental na clínica das perversões.
Palavras-chave: perversão, estrutura, montagem, outro, sujeito.
ABSTRACT
At this article, since questions from a research about a possible perversion clinic, the distinction between perversion assembly and structural identity took part as a central case. So this work is aimed to make a contrast between perversion assembly and perversion structure through-out the narrative made by two clinic jingles and its subsequent analysis. By structure we can understand a set of a system of elements that adhere to internal laws of operation so that if one of the moving, the logic that governs the collection also modifies the other elements of the structure. By the other side, the assembly would be the joint of parts so they can run and deliver an end utility. The breakdown produced in such analysis led us to characterize through the appointment of tasks, the different sides that the other takes on perversion, where the engineering of the fetish makes the difference. Otherwise, passing by the way of structuralism in psychoanalysis, via Lacan, it was possible to consider some predicaments that have designed this when psychoanalyst seek generate subject and structure. In that sense, despite the distinction drawn between assembly and structural identities, something else takes the clinical stage as the key in the clinic of perversions.
Keywords: perversion, structure, assembly, other, subject.
Na trajetória de execução de uma pesquisa que tem como questão fundamental a possibilidade de uma clínica da perversão, um dos grandes impasses no qual se tropeçou foi o de que se a clínica aí proposta como objeto seria aquela pensada para as montagens perversas, ou a que buscava se interpelar diante do âmbito estrutural da perversão. O termo em questão, desde sua origem, sempre foi envolvido por tonalidade moralista, tendo impressa em si uma marca que os séculos não conseguiram diluir. Seu sentido deriva da palavra latina perversio, do verbo pervertere, cujo registro data de 1444. Significa voltar-se para outro lado, retornar, reverter. Indica também o que está às avessas, o que está fora de ordem, desregrado, contrário ao que se deve ser, defeituoso, vicioso (Lantèri-Laura, 1994). Para tentar apontar o percurso através desse impasse formado diante dos diversos fenômenos da perversão, faz-se necessário, primariamente, circunscrever os conceitos de montagem e de estrutura, para só depois traçarmos alguma consideração pertinente ao conteúdo produzido.
Por estrutura podemos entender o conjunto de um sistema de elementos que obedecem a leis internas de funcionamento de modo que se um dos elementos se mover, a lógica que regula o conjunto também modifica os demais elementos da estrutura. Para que isso possa haver então, segundo Badiou (1994) é necessária certa multiplicidade inconsistente, pressupondo a condição para a estruturação. Também se faz surgir uma regra que dará consistência ao sistema e, por fim há de se ter um fundamento para essa regra, ou seja, uma metaestrutura. O estruturalismo em psicanálise foi introduzido por Lacan, que já no final dos anos 40 consegue desenvolver sua teoria para além das influências geneticistas, apontando o estádio do espelho como uma matriz originária de futuras identificações. François Dosse, afirma:
A partir de 1949, Lacan já pertence ao paradigma estruturalista, antes mesmo de se referir especificamente a Saussure, pois o estádio do espelho escapa à historicidade, dá-se como estrutura primeira, irreversível, que não pode funcionar de outro modo senão por suas leis próprias. Não existe, portanto, possibilidade de passar de uma estrutura a outra, mas tão-somente de tal para tal gestão da estrutura (Dosse, 1993 p. 120).
Passando pelas construções de Lèvi-Strauss e Saussure, Lacan desenvolve o estruturalismo e subverte a lógica deste linguista em questão, que considerava significante e significado como indissociáveis, como duas faces da mesma moeda. Essa relação é retomada por Lacan em A Instância da Letra no Inconsciente, publicado em Escritos (1998), a fim de minorar o significado em proveito do significante numa torção. Nesse texto afirma-se que o significado não existe senão enquanto produção metafórica dos significantes. Nesse sentido, o passo radical do desdobramento lacaniano aponta um significante como aquilo que representa o sujeito para outro significante. Esta fórmula traduz a experiência intersubjetiva como o lugar onde o desejo se faz reconhecer, sendo assim o ponto hegemônico do exercício intelectual lacaniano nesse momento. Também foi o que permitiu Lacan, de algum modo, retornar a Freud sem o peso dos termos cientificistas e biologicistas presentes em algumas articulações freudianas (Safatle, 2003).
Enquanto a linguística estrutural exclui o sujeito para assegurar seu lugar de ciência positivista, Lacan o apreende precisamente como falta em relação ao significante, como estranho em relação a ele e tendo então de se haver com o Outro em si. Como atesta Miller:
[...] Lacan é estruturalista, mas um estruturalista radical, pois se ocupa da conjunção entre a estrutura e o sujeito, enquanto a própria questão não existe para os estruturalistas, fica reduzida, é zero. Lacan, ao contrário, tentou elaborar qual é o estatuto do sujeito compatível com a idéia de estrutura (Miller, 2002, p.24).
Em sua obra, a tentativa é sempre de considerar a estrutura, sem desconsiderar o sujeito, então tomado como a fenda para o inusitado. Isso nos mostra que Lacan não foi um estruturalista clássico. Tem-se o significante mestre (S1) que impele a cadeia (S2) ao movimento, o sujeito dividido pela linguagem ($) e a criação lacaniana do conceito de objeto a, como aquilo que escapa em relação ao enunciado. Estes são os elementos centrais da álgebra lacaniana, que possibilitaram pensar o simbólico - linguagem, cultura, banho de significantes - como ordem determinante de uma estruturação psíquica geradora de indicações de significação do desejo no sujeito falante. Em outras palavras o desejo é a regra de articulação interna que possibilita a passagem de um significante a outro, mas também é exatamente aquilo que escapa a essa articulação e por isso a garante.
Lembrando que estrutura em psicanálise se dá a partir do Complexo de Édipo, seus elementos e mecanismos (castração, angústias e identificações ao significante fálico), diante da difícil tarefa de subjetivação do sexo biológico, são consideradas três formações psíquicas estruturais, a saber, Neurose, Psicose e Perversão. Dessa forma, se o diagnóstico estrutural permite delimitar uma estrutura perversa, precisamos apontar, então, os elementos que serviriam como moduladores para pensar essa lógica de funcionamento. Como ponto de partida, pode-se considerar que a perversão constitui um trabalho psíquico específico empenhado na produção de um espaço particular que garante um paradoxo: o fetiche, véu que indica a possibilidade da presença do falo. O paradoxo reside justamente no fato de que, ao tentar dissimular a castração, o fetichismo, coisificado ou não, denuncia a presença da Lei. Esta é, por sua vez, a regra da estrutura fetichista e o motivo pelo qual ele, o fetiche, obtém consistência.
Um dos primeiros momentos em que Lacan fala da perversão sexual pode ser encontrado no Seminário sobre A Relação de Objeto (1995), onde se discute o fetichismo. O desdobramento de tal teorização encontrá-lo-emos em As Formações do Inconsciente (1999), quando Lacan retoma e explica como se dá a lógica da castração. Ele cria um esquema para marcar a diferenciação entre o Nome-do-Pai e o pai real, dizendo ser o primeiro, aquele que pode ocasionalmente faltar e o segundo, não dá a impressão de ter muita necessidade de estar presente para não faltar. Aqui o autor define claramente que a metáfora paterna consiste em algo bem diferente das palavras reais em torno do sujeito. Por outro lado, no esquema em L há uma transformação da primeira tríade em outra que passa a conter quatro pontos: a, a' e A e S. Aí tudo que se realiza no sujeito (S) depende do que se coloca de significantes em A (lugar do significante). O sujeito não tem significado, depende do que acontece no jogo edípico. Mas, mesmo estando "morto" nesse jogo, ele participa com o que tem, a saber, com sua estrutura imaginária eu-outro (a a'). A partida em questão faz com que o sujeito se descubra dependente de três pólos: Ideal do Eu, Supereu e realidade. Então, ocorre que, na dialética intersubjetiva, há três imagens selecionadas que assumem o papel de guias. Algo que surge para ser homólogo ao triângulo mãe-pai-filho, mais ainda, para se confundir com ele. Nesse sentido, a relação do eu com as imagens especulares (dada pelo banho em um bom número dessas imagens primitivas) já fornece a base para um triângulo imaginário. Nesse triângulo imaginário o falo é o terceiro na relação mãe-filho e efeito da metáfora paterna. O falo situa-se como objeto fundamental com o qual o sujeito se identifica e ele só pode projetar a diferença sexual se for guardada a dimensão necessária do Pai. Se isto não ocorre, o falo vem a ser imediatamente o atributo da mãe, que não pode ser constatada castrada pela criança. A mãe fálica é a imagem sustentada no mecanismo descrito abaixo.
O fetiche só pode ser forjado diante de um funcionamento muito particular do aparelho psíquico, como Freud nos descreve em sua obra. Ele indica alguns mecanismos, dentre os quais, a recusa, e discorre sobre a clivagem do ego como processo que se encontra na gênese desta recusa. No Vocabulário de Psicanálise encontra-se a seguinte definição para a clivagem do ego:
Expressão usada por Freud para designar o fenômeno muito particular (...) da coexistência, no seio do ego de duas atitudes psíquicas para com a realidade exterior quando esta contraria uma exigência pulsional. Uma leva em conta a realidade, a outra nega a realidade em causa e coloca em seu lugar uma produção do desejo. Estas duas atitudes persistem lado a lado sem se influenciarem reciprocamente (Laplanche & Pontalis, 2000, p. 65).
O termo clivagem, ao longo da obra freudiana, não deixa em alguns momentos de designar o fato de o aparelho psíquico ser separado em instâncias ou sistemas. Porém, quando Freud lança mão do termo nesse sentido, não faz deste um utensílio conceitual. Sua grande constatação põe em evidência um processo intra-sistêmico novo em relação ao padrão do recalque e do retorno do mesmo. Nesse sentido, três artigos principais delimitam a noção de clivagem: O Fetichismo (1927/1976a), A divisão do Ego no Processo de Defesa (1938/1927b) e Esboço de Psicanálise (1938/1927c).
Em Esboço de Psicanálise, Freud descreve a mente, seu funcionamento e suas instâncias. Ao caracterizar o Ego, diz que o mesmo tem sob seu comando o movimento voluntário, devido à conexão estabelecida entre percepção sensorial e ação muscular. O ego tem a tarefa da autopreservação, devendo gerenciar as ocorrências externas com as exigências pulsionais, memorizando experiências, adaptando-se e agindo em seu próprio benefício para evitar o desprazer.
Portanto, os estados patológicos parecem apontar para um afrouxamento dessa relação entre ego e realidade. Nos casos de psicose e fetichismo esta observação se evidencia. Freud vai dizer que na psicose parecem ocorrer duas atitudes psíquicas, em vez de uma só. Uma delas normal, levando em conta a realidade, e a outra alinhada às pulsões, desligando o ego do real. As duas coexistem lado a lado, mas o desligamento da realidade alcança êxito completo quando a segunda parte torna-se mais forte. Já no fetichismo, não parece haver uma divisão nesse nível, mas uma conciliação formada com a ajuda do deslocamento, onde o comportamento expressa simultaneamente duas premissas contrárias. No fetichismo então, o desligamento do ego em relação à realidade, nunca alcança êxito completo.
Ao analisar alguns casos de fetichismo, Freud percebeu que o significado e o propósito do fetiche eram os mesmos: ser um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que a criança acreditou outrora. Ocorre é que o menino, ao ver a imagem do órgão genital feminino, recusa a percepção real de que a mulher não tem pênis. Isso porque o reconhecimento de tal imagem sustenta o perigo - imaginário - de sua própria castração. A recusa se situa como conseqüência de uma parte de seu narcisismo, que se ergue em revolta contra a diferenciação dos sexos. Na situação em questão, a percepção desagradável não é apagada. Pelo contrário, ela continua lá, e uma ação para rejeitá-la faz-se necessária. Freud usa o termo repressão para o mecanismo que age sobre o afeto e sugere o termo Verleugnung para o processo que ocorre com a idéia. O fetiche se institui numa cena traumática. Freud vai descrever esse processo de formação da seguinte maneira:
Antes, parece que, quando o fetiche é instituído, ocorre certo processo que faz lembrar a interrupção da memória na amnésia traumática. Como neste último caso, o interesse do indivíduo se interrompe no meio a meio do caminho por assim dizer; é como se a última impressão antes da estranha e traumática fosse retida como fetiche. (...) peças de roupas interior, que tão freqüentemente são escolhidas como fetiche, cristalizam o momento de se despir, o último momento em que a mulher podia ser encarada como fálica (Freud, 1927/1976a, p.182).
Esse texto de 1927 marca, na obra freudiana, a entrada derradeira dos estudos das perversões, pois apresenta o fetichismo como balizador das observações acerca do polimorfismo das manifestações perversas. Nesse sentido, a perversão ganha estatuto de estrutura, posto que aparece como um modo de solução específico do desejo. Já na introdução do texto, Freud diz que é inútil dar mais detalhes ou pormenores dos casos clínicos de fetichismo, sendo que este se apresenta como uma espécie de modelo geral por seus elementos invariantes, sustentando-se, portanto, como uma estrutura. "Via de regra, o fetiche aparece na análise como uma descoberta subsidiária" (Freud, 1927/1976a, p.179).
Ao perceber a realidade de que sua mãe não tem um pênis, a criança a abandona e volta-se para o pai. Por isso, como já foi dito, a dimensão do Pai estrutural deve ser guardada para que a criança se organize na diferenciação dos sexos: o homem tem falo, a mulher não. Porém, Lacan vai dizer que esse tipo de identificação da criança na posição fálica só se realizaria em momentos da história do sujeito que não foram ordenados pelo simbólico, como as passagens ao ato. Mas, em se tratando de passagem ao ato, não é possível definir uma estrutura, pois estes traços estão presentes também em outras estruturas (neuróticas) e em suas montagens relacionais possíveis. Aqui se abre campo para a definição de montagem perversa.
Por montagem podemos entender a reunião de partes de modo que possam funcionar e cumprir um fim utilitário. Considerando que a perversão é efeito do laço do sujeito com o Outro, onde o primeiro torna-se instrumento para o segundo (Calligaris, 1986), é possível dizer que a perversão cria uma encenação especifica para obter gozo, podendo ser uma situação não diretamente sexual, mas de vínculos sociais. No fantasma perverso parecem existir dois lugares frente ao Outro que demanda: o de objeto, que se tornou instrumento ao apropriar-se do lugar do pai e o lugar de saber sobre o domínio do gozo do Outro, suposto ao pai. Portanto, o perverso se apresenta na transferência, ou no registro da cumplicidade, ou no desafio. Ocorre, ainda segundo Calligaris, que a montagem perversa se dá numa circunstância relacional entre dois ou mais sujeitos, não necessariamente com estruturas perversas. Sujeitos em conjunto no mesmo fantasma, numa tentativa de chegar a um modo específico de gozo.
Aulagnier (2003) aponta o laço social como definidor dos mecanismos específicos da perversão, sendo impossível, então, defini-la apenas no campo sexual, o que se constituiria como um enfoque de cunho moralizante. Isso nos permite dizer que a perversão não representa uma falha no desenvolvimento. Não é o negativo da neurose, como se houvesse aí um jogo de pulsões primitivas e não elaboradas. O objeto parcial no fantasma apresenta-se como uma regra absolutamente universal. Sabemos que o neurótico não o mostra escancaradamente, mas sua vida sexual se dá porque existe voz, olhar, esperma... (Calligaris, 1986). Nesse sentido, qualquer estrutura pode ser regida através de uma solução perversa, numa montagem coletiva. Basta o mínimo de instrumentalização dos sujeitos e a conseqüente redução de possibilidade simbólica oriunda daí, para que uma relação perversa se instale. Uma passagem ao ato que convoca a lógica de identificação do sujeito ao falo, na medida em que estes emprestam seus corpos (nomes) para o gozo de um outro. Ainda que na grande parte das vezes que falamos de perversão, isso nos remeta à figura do perverso sexual, produzindo uma relação de gozo particular, não é possível negar que tal situação pode se dar num contexto social. De tal sorte que o conceito de fetiche vai ser ampliado para além da coisificação (sapatos, lingerie...) abarcando todos os cargos e bastões possíveis do poder.
Peixoto (1999), numa análise social, vai dizer que existem, portanto, formas ocultas de perversão onde o véu que recobre o falo transformado em fetiche pode adquirir forma de massa ou de grupo. Exemplificando, os grupos nazistas e a própria política atual são suficientes para comprovar como, por diversas vezes, os sujeitos acreditam que suas verdades e as do outro só podem se revelar de forma mais plena através de esquemas perversos. Nestes casos essa parece ser uma saída para a neurose individual, uma tentativa de resposta à incompletude do simbólico. Assim, perversão se constituiria num grupo através da posição do desejo neurótico, em função da qual o fetiche se dá como o fruto da captura do desejo de um neurótico Outrificado. Nas condições em que este funcionamento passa a se expandir num grupo e acaba por se confundir então com o próprio grupo, o que fica instaurado é um terrível deserto intersubjetivo onde só goza o aparato, que não é encarnado por nenhum sujeito. "Todos se submetem, todos se anulam e todos gozam!" (Idem, p. 274).
Mas, enfim, após as circunscrições conceituais necessárias ao retomarmos a discussão central desse texto, esta passará pelas seguintes indagações: é possível isolar, de fato a estrutura perversa? Posto que fenomenologicamente isso parece impossível. O que há, então, de similaridades e de diferenças entre montagem e estrutura? Quais as possibilidades desenhadas a partir daí para o entendimento dessas organizações psíquicas? Quais facetas o Outro pode assumir em cada configuração? Para tentar caminhar após o tropeço nessa pedra fundamental, lançamos mão de duas vinhetas clínicas na tentativa de mapear o que se passa.
A primeira diz respeito a um sujeito ao qual chamaremos de Antenor, que chegou a um serviço especializado em saúde mental aos 14 anos, encaminhado pela escola, com relatórios trazendo como principais queixas, a agitação, a hiperatividade e a heteroagressividade. Já na avaliação inicial, a mãe diz não estar agüentando mais os comportamentos do filho que, segundo ela, "faz tudo de errado". Também disse que estava a ponto de enlouquecer, pois Antenor desmonta e monta tudo que lhe é possível, para ver como funcionam as coisas. O garoto já apresentava problemas de comportamento quando cursava a segunda série primária. Desde os sete anos passou por vários médicos, obtendo diversos diagnósticos. A mãe ainda relata que a agitação o acompanha desde bebê. Ele chorava muito, não brincava... "Só batia as panelas e tampas que eu punha no berço dele".
A constituição familiar enquadra Antenor, sua irmã mais velha, o pai e a mãe. Esta última, em vários atendimentos, verbaliza sua infelicidade conjugal. Não se separa por não poder trabalhar pra se sustentar e não pode trabalhar por ter que ficar por conta do filho com "problemas". O pai é totalmente ausente, se retira da situação, diz não ter paciência com as atitudes do filho e defende que o destino do mesmo é a prisão. A irmã mais velha acaba fazendo eco com o discurso materno e tratando Antenor como um incapaz. Na escola Antenor não obedece aos limites, é inquieto. Não consegue fazer as provas e chora muito, ficando completamente desestruturado em situações onde se vê só, tendo que se sustentar sem "apoio" de ninguém (pois os deveres, trabalhos e obrigações escolares são, de certa forma, pagos pela mãe para que outros o façam ou, muitas vezes, feitos por ela mesma). No que se concerne à cognição, o jovem tem uma memória invejável (decora datas de aniversário, telefones, RG's, CPF's e quase que todos os nomes de rua da lista telefônica), consegue aprender, mas não consegue aplicar o que aprende, nem em tarefas, nem em provas.
Antenor num determinado momento - por volta dos 15 anos - intensifica seus atos e passa a destruir até mesmo as coisas dos outros (vizinhos). Ele começa então a produzir cenas que assumem uma função em sua dinâmica psíquica, onde o outro é capturado e atua em conjunto para a produção de um gozo específico. Cenas que engendram o outro numa posição de horror, de paralisia e de um gozo extático. Tomando emprestado o termo extático que Ceccarelli & Couto (2004) rebuscam em Lacan, é possível entender como se monta uma cena perversa.
Extático se origina do grego, ékstasis, propondo uma sensação de encanto, enlevo. Atualmente a tradução para português passa a conter algo da ordem da angústia. Posto em êxtase, absorto, enlevado (Aurélio, 2004). Trata-se de um estado provocado em um sujeito quando este se vê frente a certa experiência real, ou seja, experiência de verdade tão insuportável que mantém este sujeito paralisado, fascinado diante de um ponto nodal de encontro com a alteridade. Nas montagens perversas do caso em questão o sujeito orquestra passagens-ao-ato, onde o expectador é capturado como olhar-fetiche.
Na instituição, Antenor desenvolve uma atração específica por aquilo que lhe é, de certa forma, ou por algum momento, proibido. A cozinha, lugar onde é combinada a não circulação de pacientes, torna-se o objeto de seu desejo. As oficinas de culinária, ocorrendo justamente quando a cozinha é liberada para a circulação, é a atividade que Antenor mais gosta, aquela em que mais deseja estar. Porém, é justamente onde grande parte das cenas acontecem. Produções em atos como, ligar o gás do fogão e deixá-lo vazando em silêncio, trazer questionamentos que irritam ou paralisam o outro (como por exemplo, o que acontece se jogar álcool no fogo?), molhar colegas com água ou tinta. É evidente que essas cenas não se reproduziam apenas no local de tratamento. Na vizinhança, Antenor destelhava as casas e mantinha o hábito de soltar um pit bull. O cachorro era extremamente bravo e, segundo relatos da mãe, "chegava a espumar para Antenor, mas não o mordia!". É importante salientar que todas essas montagens culminavam numa descarga de excitação e num gozo nítido que era esboçado com reações do adolescente, como risos e o esfregar das mãos.
Baseando-se no que Freud teoriza sobre a perversão - de que toda organização neurótica conserva traços da sexualidade polimorfo-perversa - é possível vislumbrar a formação de parcerias perversas, onde o outro se deixa capturar como objeto fetiche no que se concerne à função do olhar. O olhar permeado de horror denuncia aquilo que o perverso busca, a saber, na falta que aparece no Outro, a sua cura momentânea.
O adolescente em questão repete, no contexto institucional, cenas onde o outro se vê desconcertado, arrebatado e, assim, faz eco para a obtenção de seu gozo. Ele traz questionamentos, para os quais ele sabe as respostas, mas que têm por objetivo deixar o interlocutor absorto, como, por exemplo, pergunta um dia para uma colega muito tímida: "fulana, o que é prostíbulo?" Ou durante uma oficina terapêutica pergunta a todos: "o que é cópula?".
Essas cenas atuadas repetidas vezes por Antenor mantinham-se no lugar de uma defesa contra a queda na psicose, estrutura que só em outro momento de seu acompanhamento pôde ser constatada. Foi possível perceber que a montagem perversa cedia lugar, quando diminuída a freqüência de atuações, ao delírio, nesse sujeito. Um desdobramento feito por Lacan sobre a teorização do fetiche no texto A Direção da Cura, publicado nos Escritos (1998), aponta que tal elemento, ao proteger o sujeito da angústia frente à castração, pode ser aproximado do objeto transicional winnicottiano no que ele não responde a nenhum caráter imperioso necessário, situando-se para além da demanda de satisfação. Isso permitirá a Lacan elaborar, em 1960, um enunciado que não toca apenas à sexualidade perversa, mas também à questão da perversão social. Ele sustenta que a perversão acrescenta aí uma recuperação do falo, que só pareceria original se esse não interessasse ao Outro enquanto tal de maneira muito particular. Somente tal fórmula do fantasma permite evidenciar que o sujeito, aqui, se faz o instrumento do gozo do Outro (Peixoto, 1999). Assim, é possível sustentar que na montagem perversa o outro se vê capturado no gozo extático porque foi dividido pela atuação, foi-lhe subtraído algo, mas ao mesmo tempo se situa no lugar de alguém que garante a construção coletiva do fetiche, do olhar-fetiche. A função da montagem perversa parece apontar para uma garantia de gozo e, no caso em questão, para a proteção diante da emergência da angústia da fragmentação de si. Um psicótico e um neurótico fora da montagem, não conhecem a alquimia do fetiche. É preciso que haja um garantidor para que esse elemento seja construído. Entre as diversas faces que o Outro pode assumir na perversão, essa seria então a do Outro-Garante-dor.
Em outra vinheta baseada no trabalho clínico de Marie-Laure Susini (2006) em hospital especializado para doentes perigosos, esta autora narra um trabalho onde foi possível agrupá-los, encontrando a estrutura comum daquilo que os une. Entre Gilles de Rais; Jack, o estripador e os assassinos lá atendidos, para além das variantes de cada caso, foi possível determinar uma identidade de estrutura sob a alcunha de "autor de crime perverso". A autora deixa claro ser sujeitos não psicóticos e que perícias e diagnósticos havia, ainda assim, lhes subtraído a responsabilidade penal.
Susini nos diz que, se há um criminoso aí é porque o encontro com o Outro, e mais especificamente, com o Outro sexual, a isso o força. Nesses casos há um modo particular de relação com o mundo pautado pela lógica da repetição, onde o ato criminoso perverso é o elemento fundamental de uma potencial série. Num certo sentido há uma cena montada, um espetáculo pensado em intenção do público, também com o intuito de dividir o Outro. É possível dizer que um ato perverso não pode ser pensado sem um espectador, porém, capturar o Outro no lugar de objeto, dividi-lo para a garantia do gozo, pode até ser um acréscimo, mas não é a finalidade do crime perverso! Sigamos adiante com um exemplo clínico para continuarmos, só depois, as análises.
Dentre os casos atendidos por Susini (2006), a figura de um incendiário serial se empresta ao exemplo do que acontece, via de regra, nos crimes perversos. Num sentido geral, a mulher é o interlocutor secreto, o parceiro verdadeiro, ao qual se dirigem muitos autores de crimes perversos. No caso do piromaníaco de Pigalle, seu caso comove a atenção de maneira particular, justamente por traçar uma relação a priori, muito específica e diferente com a mulher.
O contexto do caso desenha-se numa região de Paris onde a noite tem cores violentamente sexuais. Néons, rostos maquiados, músicas típicas, vestimentas sensuais, ofertas de corpos para todos os fins e os chamados hotéis para solteiros, dos quais o Pigalle é um exemplar. O incendiário anda por lá. E numa dessas noites recebe uma convocação desconcertante: "Vem, querido!" Uma das prostitutas da rua lhe chama. Ele passa por ela sem comoção aparente, dá entrada no hotel e lá se hospeda. Algumas horas depois de sua entrada, sai, entrega a chave na recepção e, atrás dele, vem a fumaça. O fogo consome o hotel.
Ocorre é que nas investigações o recepcionista indica um forte suspeito. Relata a entrada no hotel de um homem que o olhou fixamente, não teve pressa, não escondeu o rosto e fez questão de lhe mostrar documentos. O investigador chega a duvidar que este fosse o culpado, pois "ninguém seria tão imbecil". Levou as informações para a investigação rotineira, mas sem muito crédito com a improvável hipótese. No entanto constatou que o nome - Firmin - inscrito na recepção do hotel estava fichado: preso por cinco vezes como autor de incêndios voluntários. Pediu a ficha policial: Firmin, contador, 35 anos. O roteiro era sempre o mesmo, os incêndios ocorriam a noite, pelos lados da área de Pigalle, num desses hotéis aonde vão os clientes das prostitutas dos bairros. O repertório da polícia também trazia outras detenções mais antigas, delitos da juventude, desvios de dinheiro nas empresas onde trabalhou de contador.
O investigador saiu para detê-lo. Procurou por entre as ruas de perto do hotel com uma foto. Algumas prostitutas o reconheceram e o descreveram como um cliente maluco que pagava champanhe para todas, distribuía dinheiro e ficava extremamente irritado se recusassem seus presentes. O inspetor foi também ao endereço de Firmin, onde se surpreendeu novamente com a reação dos pais. A mãe atendeu a porta e, ao identificar o policial, respondeu: "ele fez besteiras de novo!". O pai diz que nunca o entendeu. Relata que o filho, ainda jovem, roubou o patrão que confiava nele, para gastar o dinheiro com putas, e termina sua fala alertando "agora os incêndios. Vai acabar matando alguém!". A mãe associa o comportamento do filho ao episódio de tifo que teve aos seis anos. "Ele ficou como carvão, morto, e por milagre ressuscitou". Ao ir embora, sem o êxito de encontrar Firmin, o investigador tem outra surpresa ao voltar para o distrito policial: o meliante o esperava lá. Confessou o crime. Alguns anos mais tarde, foi internado no hospital psiquiátrico onde Susini o encontrou e o atendeu.
Após muito tempo de acompanhamento a autora pôde reconstruir a cena que se passou dentro do quarto, antes do incêndio. Uma cena que é sempre da ordem do ritual sexual, da fabricação secreta do gozo íntimo. Com a narrativa, onde Firmin, de alguma forma, mantinha o espetáculo, foi possível saber que, antes de botar fogo em tudo, ele espalhou revistas pornográficas sobre a cama e produziu excrementos ofertados à solicitação sexual, "vem querido?", na emergência da pulsão. Ele também ficou na cena quando o fogo consumia o hotel. Esteve na esquina olhando a excitação das pessoas, mas ninguém o viu e ele pôde, mais uma vez, ir. Firmin também consegue dizer que, para seu grande pesar, não conseguiu matar tanto quanto seria desejado. Não por crueldade, mas por refinamento estético da cena: "É mais bonito, se há mortos, gente se jogando pela janela" (Susini, 2006, p. 69).
O ato criminoso perverso, o drama perverso, como no teatro, comporta quatro atos principais. O crime, em si, é o primeiro e situa-se na ordem da transgressão e do segredo. A fabricação do fetiche, sobre o qual o perverso detém as engrenagens, é realizada no espaço íntimo e solitário do encontro com o Outro sexual. É uma resposta particular, diferentemente da montagem perversa, onde a fabricação do fetiche é da ordem da solidariedade. Com Firmin não há ninguém solidário... Nem mesmo para denunciá-lo. Essa posição de nulo, insuportável, traz consigo a ordem do segundo ato: a auto-denúncia, mesmo que não seja tão direta. O autor do crime perverso vai até a delegacia, deixa indícios, se manifesta como testemunha, não pára enquanto não o prendem. Seja como for, assim, somente assim, ele parece sair do anonimato. O julgamento, o contato com o público, que por sua vez encarna a vítima, marca a presença do autor perverso, sendo este seu terceiro passo. É o acréscimo da peça, onde ele captura o público, o divide, faz-se instrumento do gozo do Outro como também, faz deste, o cúmplice. Aí, bem aí, vê-se a montagem. Não parece haver nada, nesse ato do teatro, que marque diferença com a montagem forjada por outras estruturas. Mas o quarto e último ato mostra a finalidade de toda a encenação.
Acontece que o drama ocorrido diante de nós não é outro senão a própria vida do autor, escrita e representada por ele. A lógica da repetição marca o ritmo de um íntimo ordenamento que sustenta o drama do início ao fim, onde a condenação orienta seu desfecho. Na repetição perversa há uma revelação: a da complexa construção humana diante do sexual, suas contradições e complementos.
No caso da transgressão aqui, parece haver a fantasia da execução, da condenação e, de alguma forma, do sacrifício. A alquimia do fetiche, a transformação de um objeto ordinário em objeto fálico, custa o preço de uma vida. Forjá-lo continuamente, por anos, é considerado, pelo perverso, uma maldição, mas de certa forma, parece ser o que lhe dá uma possibilidade de saída. Como diz Clauvrel:
Se esse olhar da mãe tem tal importância para o perverso, é porque esse olhar é igualmente aquele que soube ver algo além da ilusão que seu próprio filho lhe propôs; é porque é também aquele que tem uma referência ao lado do pai, aquele que, portanto, não está inteiramente perdido, aquele através do qual se encontra uma relação com a lei, aquele que interessa seduzir porque está suficientemente ancorado numa base familiar e social para que o desafio de se desligar dele, de pervertê-lo (...) conserve todo o seu valor (Clauvrel, 1990, p.129).
Então a cortina se fecha, o espetáculo chega ao fim. Há a condenação, em muitas vezes com o corpo dividido no real. Não como o autor teria desejado, sob o olhar do próprio pai, mas sob o olhar de um juiz, um procurador, ou qualquer outro. Alguém que encarne a função reservada ao Outro nesses casos, a de um Outro-Pai, o terceiro termo paterno no triângulo e, no fim, o único capaz de libertar o perverso do seu lugar fusionado ao falo imaginário. A situação aqui é paradoxal, na perversão, emblema de um gozo feroz, há também a vítima de um obscuro dever. Ao reivindicar uma liberdade sem corte está, ao mesmo tempo, sendo fadado a uma lei de ferro. É refém da força pulsional, mas se mantém cativo da sede de ser punido, onde ainda encontra o Outro. Assim, a recidiva, ou a repetição, explica-se pela imposição pulsional, porém não só por ela. "É também resposta ao imperativo que comanda a voltar, inscrever-se numa lei que se confunde com Código Penal e pena capital". (Susini, 2006, p. 230). Nas perversões temos como identidade estrutural a busca da redenção em que o sujeito visa livrar-se do peso solitário de ser uma fábrica de fetiches e tenta, ao menos uma vez, fabricar o pai, o Outro-Pai.
São necessários fundamentalmente dois procedimentos para a construção de uma estrutura: articulação interna representada pela metonímia, ou seja, pelo desejo e, uma fundamentação externa, metáfora ou, como queiram, função do sujeito. Sabemos que a perversão é uma das versões do Pai, assim como a neurose e a psicose, uma das conseqüências diante da relação com a linguagem ou, com o Outro. Nesse sentido podemos pensar que nas montagens ocorre uma forma de captura do Outro-Garante-Dor que é da ordem intersubjetiva. Mesmo forjado aí um "fetiche", ele não passa de um sonho de encontro com uma saída possível para os sofrimentos neuróticos e/ou psicóticos, os quais todos na cena sustentam ansiar.
O que caracteriza a estrutura é justamente a não manifestação da dimensão intersubjetiva. No fantasma perverso o "significante puro se sustenta sem a relação intersubjetiva, esvaziado de seu sujeito" (Lacan, 1998, p.120). Assim, o deslocamento metonímico é o objeto e coincide com o ponto onde pode haver um sujeito, mas ainda não há. A transgressão seriada, tanto nos assassinos seriais como em formas ocultas de perversões sociais, é a insistência dessa possibilidade - de haver sujeito - lá onde só há objeto-escravo marcado em seu desejo por uma mulher. Na estrutura perversa é preciso atravessar um portal, um encontro com o Outro-Pai, evocação última da Lei punitiva que poderá barrar o imperativo de gozo total e inaugurar, possivelmente, algo metafórico, intersubjetivo, espaço de sentido e de pére-version.
De certa forma, esse texto tentou mapear as diversas faces que podem ser reservadas para o Outro nas manifestações perversas. A montagem ou a estrutura são os balizadores de uma questão que ordena grande polêmica. Segundo Peixoto (1999), desde 1966 já ficara claro que a delimitação da noção de estrutura não ajudava muito na clínica das chamadas perversões sexuais. As críticas à noção de estrutura ou à desconsideração dela são as mais variadas. Como foi explicitado nesse artigo, algumas diferenças foram desenhadas, muitas semelhanças encontradas, e saber quais os desdobramentos disso na clínica, fica como tema para um próximo escrito... Evidentemente, marcar a posição da perversão no âmbito social é um desafio para se situar a psicanálise num campo em que ela não pode mais negar se quiser manter uma posição ética e engajada para contribuir com o futuro da humanidade.
Para concluir momentaneamente sobre a tentativa de marcar uma diferença entre estrutura e montagem que dê subsídios para pensar a clínica, mesmo que haja especificidades nas intervenções diante dessas duas manifestações, uma coisa foi possível sustentar mais firmemente: a resposta concencida a um colega de trabalho, enquanto conversávamos sobre um paciente, ao que tudo indicava, psicótico com soluções perversas atuadas em montagens. Para o questionamento de como tratá-lo, psicótico ou perverso, nosso entendimento ergue uma só posição: tratamo-lo como sujeito, pois de tudo que se discutiu aqui, não se trata nem de montagem, nem de estrutura, mas de Outra Coisa!
Considerando os funcionamentos psíquicos das duas situações aqui ilustradas está posto que o fetiche se comporta como uma resposta edípica à castração. Nesse sentido, muito mais atrelado à ordem do recalque do que se supõe à primeira vista. O modelo forjado por Freud, baseado nas fantasias histéricas, emprestou balizadores conceituais para a definição, tanto das neuroses, como das psicoses e perversões, tendo a castração como eixo determinante das diferenças estruturais. Porém, o que chama a atenção é o que se denomina sob a alcunha de estrutura perversa.
Uma ordenação que parece não caber neste modelo. Em "Bate-se em uma criança", na terceira formulação da fantasia, Freud dá indícios de um outro modelo de fantasiar diferente do fantasiar histérico. Trata-se de uma imagem fixa, com personagens indeterminados e singularidades apagadas. A polissemia está retirada. Esse modo de fantasiar que consegue um discurso imagético pressupondo a ausência de ambiguidade - pois, anula-a num trabalho contínuo - fundamenta uma organização na qual a báscula do recalque parece inexistente. Todos esses elementos se aproximam da descrição do modo de organização do "perverso". Mas, então, trata-se mesmo de Outra Coisa? Qual Outra Coisa será, ainda é resposta a ser construída numa pesquisa que se encontra em trânsito. Porém, a afirmação de que esse incômodo se presentificou é o que, por ora, foi possível.
Referências
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Recebido em 14 de fevereiro de 2008
Aceito em 31 de julho de 2008
Revisado em 2 de setembro de 2008