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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.3 Fortaleza set. 2010

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Institucionalização de crianças: leituras sobre a produção da exclusão infantil, da instituição de acolhimento e da prática de atendimento

 

 

Ana Lúcia CintraI; Mériti de SouzaII

IPsicóloga. Especialista em Psicologia Clínica pela PUC-SP e pelo Conselho Federal de Psicologia. Mestre do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina. End.: R. Bosque das Aroeiras, 382. Campeche. Florianópolis-SC E-mail: analucia@floripa.com.br
IIProfessora na UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina. Psicóloga. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Pós-Doutorado no CES - Centro de Estudos Sociais - da Universidade de Coimbra. End.: R. Padova, 44, Apto. 106. Córrego Grande. Florianópolis -SC E-mail: meritidesouza@yahoo.com

 

 


RESUMO

O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA é um marco na área de atenção à infância. A partir dele busca-se o afastamento do formato das tradicionais instituições de acolhimento e cuidado de crianças abandonadas ou retiradas do contexto familiar. Entretanto, o movimento de mudança evidencia a existência de um território no qual os problemas são muitos e demandam intervenções complexas, concomitante a um processo contínuo de reflexão sobre o tema. Neste artigo problematizam-se aspectos inerentes à institucionalização de crianças considerando as lógicas de exclusão presentes no Brasil. Entende-se que essas lógicas são configuradas por práticas e discursos produtores tanto da mãe que abandona quanto das instituições que abrigam a criança abandonada. A análise se ancora na leitura histórica e psicossociológica da institucionalização da infância no Brasil e dos atendimentos propostos por essas instituições. Considera-se, ainda, os limites da concepção de um sujeito epistêmico e racional que recobre a leitura do psíquico restrito à ordem da consciência, bem como a representação identitária atrelada a atributos generalizáveis. Nessa perspectiva a qualidade dos cuidados oferecidos no contexto institucional é problematizada a partir do trabalho do educador social. Sugere-se que esse profissional necessita estar atento ao singular da criança institucionalizada, tomando-a como sujeito de direito e de desejo.

Palavras-chave: Criança. Instituição. Abrigo. Educador social. Singularidade.


ABSTRACT

The Child and Adolescent Statute is a landmark in the field of childhood care. From this new legislation onwards the aim is to put aside the format of traditional shelter and care institutions for abandoned children or children taken from the family context. However, the changing movement reveals the existence of a territory with several problems which demand complex interventions, associated to a continuous process of reflection on the subject. This article questions issues related to the institutionalization of children considering the social exclusion logics in force in Brazil. It is understood that these logics are set up by practices and discourses that produce both the mother who abandons her child and the shelter institutions for the abandoned child. The analysis is based on the historical and psychosociological evaluation of institutionalization during childhood in Brazil and the services provided by these institutions. We also consider the limits of the conception of an epistemic and rational subject that recovers the understanding of the psychic restricted to the conscience order, as well as the identitary representation tied to generalisable attributes. Under this perspective the quality of care offered by the institutions is focused and discussed considering the social educator's role. It is suggested that this professional is aware of the institutionalized child singularity, considering her in a subject of rights and desires.

Keywords: Child. Institution. Shelter institution. Social educator. Singularity.


 

 

Introdução

No ano de 1990, a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, inicia-se a construção de novos parâmetros para as instituições que acolhem crianças privadas da convivência familiar. No Brasil, o percurso histórico de instituições como orfanatos, que recebiam crianças responsabilizando-se pelo seu cuidado, é marcado por uma tradição de descuido, desleixo e mesmo de violência em relação à população atendida. (Freitas, 2006; Priore, 2007; Rizzini, 1993;). Essas instituições, hoje intituladas abrigos , compreendem o acolhimento institucional como medida excepcional e de caráter provisório, e no plano formal se destinam a atender a população infantil que se encontra na denominada situação de risco pessoal e social . A partir desse contexto, os abrigos emergem articulados às propostas estipuladas pelo ECA e objetivam suplantar as práticas das tradicionais instituições direcionadas ao acolhimento e cuidado de crianças abandonadas ou expostas aos maus tratos familiares. Também, como decorrência do ECA são criados os Conselhos Tutelares, que têm por função receber e encaminhar demandas relativas à infância e adolescência. São denominados educadores sociais (ou cuidadores) todos aqueles que trabalham no abrigo.

A elaboração do documento Diretrizes das Nações Unidas sobre o Uso e Condições Apropriadas para Cuidados Alternativos com Crianças (MDS, 2006), que deve nortear as ações de atenção à infância em âmbito mundial; o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (MDS, 2007), que dá suporte às ações em nível nacional; o Grupo de Trabalho Nacional Pró Convivência Familiar e Comunitária (Silva & Cabral, 2009) que visa subsidiar a implantação do Plano Nacional, são alguns dos esforços da última década no universo dos cuidados à infância. Por um lado, é pertinente supor que tanta atenção ao tema indica a preocupação da sociedade e do poder público para com a criança. Por outro lado, também é possível entender que essa atenção indica a existência de um território em que os problemas são muitos e as soluções bastante complexas.

Os abrigos recebem uma população considerada em situação de risco pessoal ou social na medida em que se define que a família, parentes ou outras pessoas responsáveis pela sua guarda, cuidado e proteção, não cumprem essa função. Tais crianças são consideradas oriundas das denominadas famílias desestruturadas, nas quais a mãe e/ou o pai as expõem a situações de descuido, abandono e violência. Assim, temos um contexto social que produz a exclusão e a discriminação de crianças (e de suas famílias) concomitante à produção de discursos e práticas que objetivam proteger e cuidar dessa população excluída. Esse cenário despertou o interesse por problematizar alguns aspectos inerentes à institucionalização de crianças, considerando as lógicas de exclusão presentes no Brasil. A suposição aventada é de que essas lógicas produzem práticas e discursos que instauram tanto a mãe que abandona quanto as instituições que abrigam os abandonados. Ato contínuo, a qualidade dos cuidados oferecidos no contexto institucional é problematizada a partir do educador social, pois, este é o profissional encarregado de oferecer cuidados físicos e afetivos à população institucionalizada.

Acredita-se que a relevância dessas análises encontra-se na possibilidade de problematizar o estereótipo construído acerca da mãe da criança abrigada como irresponsável e detentora de fraco vínculo afetivo para com ela. Essa representação da mãe se estende à criança e estabelece solo a leituras também estereotipadas acerca dessa criança representada como violenta, carente e com dificuldades para a socialização. Espera-se, ainda, que essas análises caminhem no sentido de oferecer subsídios à elaboração de estratégias de intervenção e programas de ação direcionados ao trabalho dos educadores sociais que atuam em abrigos. De forma geral, pretende-se partilhar algumas questões que parecem significativas às autoras para pensar a condição da criança institucionalizada. Com isto não se objetiva esgotar o tema, mas sim mantê-lo vivo para que outros, a partir de saberes e recortes diversos, possam trazer contribuições.

 

O cenário atual no campo da relação família e instituição

No documentário dirigido pela jornalista Ângela Bastos (2006) sobre a institucionalização no Brasil, um dos profissionais entrevistados afirma que as portas de entrada dos abrigos são muito largas, não ocorrendo o mesmo quanto às de saída. Depreende-se daí que em nome do cumprimento do ECA, visando a proteção integral de crianças, elas são retiradas do ambiente familiar (ou das ruas) para que fiquem provisoriamente abrigadas. Entretanto, por dificuldades várias, que vão desde condições de pobreza extrema, afastamento da família, passando pela morosidade dos processos judiciais e a falta de recursos humanos para acompanhamento minucioso dos casos, o abrigamento pode durar anos. Ou seja, cumpre-se uma medida de proteção e fere-se outra. Seria este o melhor caminho?

O levantamento nacional realizado em 2003 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA traçou um perfil dos abrigos para infância e adolescência beneficiados com recursos do Governo Federal, repassados por meio da Rede de Serviços de Ação Continuada do Ministério do Desenvolvimento Social. Dentre outros dados de interesse, o estudo evidencia que 20 mil crianças estão nestas instituições; 86,7% delas têm família; mais de um terço estão abrigadas há um período que varia de dois a cinco anos; 61,3% têm entre sete e quinze anos; do total de crianças abrigadas, 63% são negras. Os motivos mais citados para o abrigamento foram a pobreza (24,2%) e o abandono (18,9%) (IPEA, 2003).

Existe um distanciamento - no tempo e no discurso - entre a realidade dos atuais abrigos para infância e os antigos orfanatos. Entretanto, chama a atenção o fato de crianças chegarem às instituições por razões semelhantes no passado e no presente: o abandono e a pobreza. Com exceção dos casos em que as crianças eram deixadas nas ruas e nas rodas dos expostos , por serem filhos de relações extraconjugais ou o resultado de uma gravidez indesejada sem possibilidades de interrupção, abandono e pobreza compõem um continuum que atravessa a relação estabelecida entre a institucionalização de crianças e as famílias e responsáveis pelas crianças abrigadas. Essa relação se explicita através da produção da pobreza e da exclusão social que compele muitas famílias e responsáveis a abandonarem seus filhos, concomitante à produção de instituições direcionadas ao acolhimento desses filhos abandonados. Ato contínuo, por um lado ocorre a produção de discursos que elogiam o cuidado familiar como necessário para o desenvolvimento saudável. Por outro lado são produzidos discursos que culpam as famílias, de forma específica as mães, pelo abandono de suas crianças, e localizam nesse contexto a emergência de desajustes emocionais e intelectuais em crianças abrigadas. Dessa forma, esse processo histórico marca a condição de exclusão de famílias originárias de extratos pobres e forja os mitos da família desajustada e da criança originária desses agrupamentos como violenta e desqualificada. (Rizzini e Rizzini, 2004).

Estes mitos servem como justificativa para a retirada de filhos de suas famílias, na medida em que o suposto raciocínio lógico aponta a necessidade de protegê-los de seus familiares e de garantir um desenvolvimento cognitivo e emocional saudável. No limite, sobressaiu nesse contexto a elisão do processo de exclusão, possibilitando a retirada de cena das condições sociais e econômicas que interagem e produzem a pobreza e o desemprego familiar que afeta a maioria das famílias abandônicas. Esse processo viabiliza a articulação de discursos que alimentam as causas que estimulam as práticas de abandono infantil, pois o Estado é eximido da responsabilidade para com a produção dessas práticas, sendo sua intervenção alocada na reparação desse contexto. Em outras palavras, o ato de escamotear a exclusão socioeconômica das famílias como relacionada com as práticas de abandono possibilita que seja atribuído ao Estado um papel de benemerência e a institucionalização como possível encaminhamento para esse problema. Na esteira desse processo também ocorre a produção da representação sobre essas famílias como incapazes e irresponsáveis. É importante salientar que em geral a pecha da irresponsabilidade recai sobre a mãe, já que na maioria das situações é ela que permanece com os filhos.

Os problemas da institucionalização, principalmente por períodos prolongados, são de conhecimento público: ruptura de laços afetivos; privação do convívio familiar; entraves no desenvolvimento global; impessoalidade nos cuidados; disciplina, controle e punição como premissas educativas (David, 1972; Guirado, 2004; Rizzini e Rizzini, 2004). A estes aspectos acrescenta-se outro: crianças abrigadas vivem uma experiência subjetiva de violência, visto que se veem pressionadas a se desfazer de seu passado para assumirem novas características e atenderem a valores naturalizados como adequados. O passado ocupa o lugar da inadequação, cujo afastamento se faz necessário para que se atinja a adequação, um lugar social de reconhecimento. Neste sentido, é exemplar a reflexão de Jurandir Freire Costa (1986) sobre os ideais identificatórios presentes no cenário nacional e suas relações com práticas de discriminação e com modalidades de constituição subjetiva marcadas pela adesão a esses ideais. Segundo o autor os ideais identificatórios exprimem modelos étnicos, culturais, sexuais, dentre outros, que ganharam hegemonia na rede social em decorrência de contextos de poder, mas que se apresentam como universais e neutros. Assim, a maioria das pessoas encontra-se capturada por esses ideais e busca construir sua representação de eu a partir deles, o que gera extrema violência no processo de constituição subjetiva já que a diversidade de etnias, culturas e sexualidades não corresponde à prescrição posta por esses modelos.

No afã de cumprir a proposição do ECA que retrata a importância de uma convivência familiar, muitas instituições de abrigo investem no projeto de adoção, especialmente nos casos de crianças maiores, negras, grupo de irmãos ou para aquelas que apresentem condições especiais de cuidados. Na maioria das vezes considera-se que qualquer mãe ou pai substitutos configuram alternativas melhores do que a permanência na instituição. Os estudos desenvolvidos por Frassão (2000) junto ao Juizado da Infância e Juventude de Florianópolis em Santa Catarina e o de Ghirardi (2008) realizado em São Paulo, revelam que a devolução de crianças em processo de guarda ou adoção é uma experiência complexa e dolorosa. Ocupar o lugar de mãe ou de pai não é algo que possa ser sustentado apenas por um suposto espírito solidário, o que leva à problematização das premissas e consequências de campanhas que visem estimular as adoções.

Até o momento são incipientes as iniciativas para reintegração de crianças a sua família de origem. Dentre outros fatores que caracterizam uma cultura de institucionalização enraizada em nossa história (Rizzini e Rizzini, 2004), podemos apontar o fato de que um trabalho desta natureza exige investimentos de proporções não modestas. Dessa forma, é necessário investigar os motivos que instauram o processo de abrigamento:

Verifica-se que as instituições de abrigamento têm atuado de modo pouco efetivo na reintegração dos laços familiares quando se constata, a partir do Levantamento Nacional de Abrigos, que mais da metade das crianças e dos adolescentes abrigados viviam nas instituições há mais de dois anos, enquanto 32,9% estavam nos abrigos por um período entre dois e cinco anos, 13,3%, entre seis e dez anos, e 6,4%, por mais de dez anos. [...] Para alcançar este objetivo mais geral [de avaliar a possibilidade de reintegração], é necessário verificar os motivos do abrigamento da criança/adolescente, e os fatos que precederam o mesmo; identificar a história de vida familiar e os aspectos psicossociais e jurídicos que possam dificultar o acolhimento; analisar e avaliar junto à criança/adolescente seus vínculos com a instituição e com a família e observar e avaliar a adaptação da criança e da família após a reintegração. (Brandão, Silva, França, Nogueira e Ghetsi, 2007, p. 5-7).

Pesquisas como de Santos e Weber (2005) procuram compreender as causas que levam as mães a abandonarem seus filhos e Motta (s.n.) desenvolve estudos para implantar um programa de atenção à gravidez indesejada. Por sua vez, a Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB (s.n.) lançou uma cartilha direcionada aos profissionais da saúde com objetivo de que possam acolher - de forma humanizada e consciente - mulheres que pretendam entregar seu filho para adoção. Entretanto, esse cenário pode ser confrontado com a pergunta acerca do abandono ou descaso das famílias e responsáveis para com as crianças abrigadas. Entendemos tratar-se de uma questão complexa e que envolve inúmeros fatores de ordem social, histórica, econômica e emocional. Discutimos acima as relações entre as práticas de abandono e as condições socioeconômicas das famílias que assim procedem, bem como, procuramos apontar a elisão do processo de exclusão ao qual elas se encontram submetidas, o que possibilita que o Estado seja desresponsabilizado perante essas práticas e que as famílias sejam culpabilizadas. Não obstante, faz-se necessário problematizar as implicações no plano subjetivo dessas condições sociais e econômicas e dos discursos que não responsabilizam o Estado pela situação de pobreza e desemprego vivenciada por amplos setores da população. No geral, atribui-se ao Estado papel de benemerência quando elabora políticas públicas e constrói instituições voltadas ao cuidado da infância abandonada, bem como, atribui-se às famílias - e particularmente às mães - o estigma de irresponsáveis e incapazes de cuidar e manter sua prole. A pergunta recai sobre as incidências desse contexto social, econômico e cultural na constituição subjetiva.

Ao trabalhar o trajeto social, histórico econômico da modernidade e suas relações com a elaboração de concepções sobre a infância, Contardo Calligaris aponta que a noção de infância como um estágio da vida que requer proteções especiais é específica desse período histórico. O autor indica o aspecto narcísico inerente a nossa relação com as crianças, destacando que estas representam hoje a realização de nossos sonhos de felicidade. Se não cumprem esta função, podem ser descartáveis, indesejáveis, representantes de nossas irrealizações:

A infância, como mostrou Philippe Ariès (História Social da Criança e da Família), é uma invenção moderna. Este tempo separado da vida adulta, protegido pelo amor parental, miticamente feliz, surgiu em nossa cultura há apenas dois séculos, quando o individualismo triunfou no Ocidente. É neste momento - também lembra Ariès - que a morte cessou de ser vivida como um acidente ao qual sobreviveriam a cadeia das gerações e a ordem social, para se tornar a irremediável e trágica desaparição dos indivíduos. Para quem a morte é o fim de tudo, só as crianças trazem consolo, representando alguma promessa de imortalidade. Do mesmo jeito, naquele momento-chave de nossa cultura, a ideia de felicidade mudou de rumo: aos poucos parou de se alimentar na calma de uma ordem estabelecida ou na visão futura de novas relações sociais, para ser um direito do indivíduo. Direito cujo exercício não é nunca perfeito, e que se torna um dever para os herdeiros: nossas crianças. (Calligaris, 1994, p. 4).

O autor identifica que esta concepção de infância, que nasce há aproximadamente 200 anos, já começou a morrer há quase 50. Mas ela não morre por completo. Conservamos a ideia de infância em que a criança é para nós um espelho: ali nos vemos e projetamos nossos sonhos irrealizados. Mas projetamos essa imagem de forma tal que a distância inexiste, o que nos remete ao modelo do Antigo Regime em que a criança é apenas um adulto em miniatura. Daí a noção de uma colagem, um espelho:

O amor pelas crianças em uma sociedade tradicional é incondicional, embora menos espalhafatoso: elas são amadas como garantias e apostas na reprodução social, como descendentes. Nosso amor narcísico, ao contrário, impõe condições. Pois a criança que, por razões reais, não pudesse corresponder aos nossos devaneios, não é mais nada. (Calligaris, 1994, p. 4).

Supomos que em uma cultura que supervaloriza o sucesso pela equação simbólica ser = ter, a realidade de mães e familiares que se veem impossibilitados de permanecerem com seus filhos (seja qual for o motivo que desencadeia esse processo) deixando-os em instituições, envolve um rol de questões subjetivas atreladas à lógica capitalista da exclusão. Compelidos a vestir a identidade de fracassados, mães e familiares enxergam em sua prole a confirmação desta condição. Ora, quando a criança não pode ser um espelho que mostra a imagem que desejaríamos ver; quando mostra uma imagem "feia" ou dolorosa, o investimento narcísico pode decair, possibilitando que o filho ocupe o lugar de um objeto à deriva. A criança que é deixada em uma instituição pode funcionar como um espelho e, dessa forma, atestar o desvalor daquele que olha.

Pode-se levantar a hipótese de que não há possibilidade para apostas em felicidade nem descendência. Um dos sentidos da filiação é aqui fraturado. Não há como investir nestes filhos, pois o suposto investidor não se vê provido de recursos - narcísicos e econômicos - para tal. O novo corpo é a evidência do fracasso, do sofrimento, do abandono revivido. Motta (2001) revela que algumas mulheres engravidam e entregam seus filhos sucessivamente, havendo aí uma lógica que não é da razão, mas sim do inconsciente. Uma lógica pulsional, da repetição que simultaneamente quer revelar e ocultar, quer ser silêncio e ser voz. Quem quer escutar essas mulheres e suas histórias de vida?

Ao propor o nascimento anônimo - procedimento em que a genitora dá entrada em uma maternidade sem se identificar e após o parto entrega a criança a um órgão governamental - e lamentar que a roda dos expostos tenha desaparecido no Brasil na primeira metade do século XX, Gozzo parece sugerir que devemos silenciar ao invés de escutar estas mulheres que vivenciam situações de abandono dos filhos:

Se se levar em consideração o número de abortos, em especial os clandestinos, o assassinato de bebês e crianças, bem como o de abandono delas, parece risível que em determinado momento a sociedade brasileira tenha aberto mão de um instrumento tão útil, embora paliativo, para salvar vidas. Tome-se em conta, também, que com a mudança de costumes, e a consequente liberdade para se praticar sexo sem compromisso, já desde a adolescência, resulta mais e mais no nascimento de crianças indesejadas. [...] tanto a "Roda" quanto o nascimento anônimo poderiam dar pelo menos uma chance a um recém-nascido de desenvolver-se livremente como ser humano que é, sem que sua vida seja ceifada de forma tão cruel. (Gozzo, 2007, p. 1).

Por fim, cabe lembrar que a gravidez ocupa o corpo apenas da mulher, figura socialmente exposta quando não há desejo ou recursos para permanecer com o bebê. Com que frequência é problematizada a situação do pai que abandonou um filho? Em um país em que o índice da violência contra a mulher se destaca no contexto mundial e o aborto é crime, cabe pensar se aquela que se vê grávida dispõe de escolhas ou de falta de escolhas.

Este é um território espinhoso. Quanto e como considerar os genitores? Quanto e como considerar os interesses da criança? Quais seriam, afinal, tais interesses? Em que medida, ao desconsiderar os genitores e a lógica da exclusão neles encarnada, tratamos do assunto pensando a criança como uma promessa de futuro cujo passado será apagado com o tempo? Não corremos o risco de alimentar representações identitárias elaboradas acerca de pais abandônicos e de crianças abandonadas, conforme postuladas pela rede social que produz essa situação? Como encaminhar os cuidados das crianças que estão nas instituições, relevando suas histórias de vida e visando o menor prejuízo possível à sua constituição subjetiva?

Longe de ser uma alternativa viável, a institucionalização ainda integra, de maneira expressiva, nossa realidade calcada na exclusão e na manutenção de estereótipos acerca de modelos familiares e afetivos. Assim, consideramos importante que além de ações e políticas públicas que busquem evitar o acolhimento institucional, sejam pensadas intervenções que promovam mudanças na qualidade das relações de cuidados a estas crianças quando a institucionalização se mostrar inevitável. Tais intervenções, embora não excluam as propostas de reintegração das crianças em suas famílias de origem, devem ocorrer de maneira complementar a elas.

 

O chão necessário, mas insuficiente das leis

O Brasil tem participado de um amplo processo internacional que envolve a construção do documento Diretrizes das Nações Unidas sobre o Uso e Condições Apropriadas para Cuidados Alternativos com Crianças (MDS, 2006), que tem como objetivo orientar os estados membros da Organização das Nações Unidas - ONU em relação ao atendimento a crianças que se encontram sem o cuidado dos pais, considerando-se os seguintes aspectos: a) apoio e fortalecimento da família e preservação dos vínculos familiares; b) medidas adequadas para a prestação de cuidados; c) prestação de cuidados alternativos a crianças sem cuidados parentais; d) prestação de cuidados a crianças fora de seu país de residência habitual e/ou em situações de emergência (catástrofes naturais, guerras, dentre outras).

Neste cenário o Brasil apresentou ao Comitê dos Direitos da Criança da ONU, o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Como fundamentação à necessidade de uma mudança de postura nesta área de atendimento, no caso a desconstrução de uma prática assistencialista, são centrais as concepções apresentadas neste documento sobre a condição de crianças (e adolescentes) como sujeitos de direitos e seres em desenvolvimento:

[...] o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária incorpora, na sua plenitude, a "doutrina da proteção integral", que constitui a base da Convenção sobre os Direitos da Criança e do Estatuto da Criança e do Adolescente. De acordo com essa doutrina jurídica, a criança e o adolescente são considerados "sujeitos de direitos". A palavra "sujeito" traduz a concepção da criança e do adolescente como indivíduos autônomos e íntegros, dotados de personalidade e vontade próprias que, na sua relação com o adulto, não podem ser tratados como seres passivos, subalternos ou meros "objetos", devendo participar das decisões que lhes dizem respeito, sendo ouvidos e considerados em conformidade com suas capacidades e grau de desenvolvimento. [...] Proteger a criança e o adolescente, propiciar-lhes as condições para o seu pleno desenvolvimento, no seio de uma família e de uma comunidade, ou prestar-lhes cuidados alternativos temporários, quando afastados do convívio com a família de origem, são, antes de tudo e na sua essência, para além de meros atos de generosidade, beneficência, caridade ou piedade, o cumprimento de deveres para com a criança e o adolescente e o exercício da responsabilidade da família, da sociedade e do Estado. [...] O desenvolvimento da criança e, mais tarde, do adolescente, caracteriza-se por intrincados processos biológicos, psicoafetivos, cognitivos e sociais que exigem do ambiente que os cerca, do ponto de vista material e humano, uma série de condições, respostas e contrapartidas para realizar-se a contento. (MDS, 2007, p. 26).

Com uma proposta ampla, que visa um investimento em políticas públicas, com destaque à família como núcleo da sociedade e como locus ideal para o crescimento e desenvolvimento da criança e do adolescente, o documento também versa sobre a questão daqueles que não vivem com seus familiares, propondo o Reordenamento dos Programas de Acolhimento Institucional, que prevê: alterações no atual sistema de financiamento; qualificação dos profissionais que trabalham nos programas; novos critérios de avaliação destes programas; ampliação do trabalho com as famílias; prevenção do abandono; adequação dos espaços físicos; atendimento mais personalizado; articulação das entidades de programas de abrigo com a rede de serviços, considerando todo o Sistema de Garantias de Direitos - SGD.

Um documento como este, cuja análise minuciosa foge aos objetivos deste estudo, é tão bem-vindo quanto indispensável para se construir um chão àqueles que atuam nesta área. Trata-se, além de uma questão legal, dos primeiros passos de um longo caminho rumo a uma mudança de paradigma. Entretanto, é preciso especial cuidado na implementação desta proposta por parte dos operadores sociais, para evitar que ela ocupe o lugar de um manual a ser seguido, cujos sentidos mais complexos escapam àqueles que o utilizam . Além disso, é importante lembrar que, por ficarmos tão atentos ao sujeito de direitos - base da cidadania - podemos esquecer que ele não representa a singularidade de cada humano.

Quando trabalhamos apenas com o sujeito de direitos, lidamos com uma interseção que acopla determinada concepção de constituição psíquica a específica construção da lei formal. Por um lado, a concepção do sujeito epistêmico e racional recobre a leitura do psíquico restrito à ordem da consciência, bem como a representação identitária atrelada a atributos generalizáveis. Por outro lado, o direito calcado no sujeito da consciência e da razão constrói a lei e a moral como um a priori que corresponderia à demanda desse sujeito universal. Entretanto, nessa perspectiva ocorre a primazia do universal e o abandono do singular, haja vista que o psiquismo se constitui no bojo da consciência e da representação identitária agregada a atributos generalizáveis, porém ele também se constitui da apropriação que cada um realiza a partir da tradição histórica na qual se encontra inserido. Dessa forma, o singular configurado pelo desejo explicita uma demanda de cada um que não encontra ressonância no sujeito de direitos, ainda que o envolva e seja por ele envolvida. Em outras palavras, trabalhar apenas com o sujeito de direitos pode implicar restringir a atuação profissional à escuta de um conjunto discursivo que define e faz prescrições às formas de cuidados junto a crianças em situação de risco. Nesse contexto a intervenção pode reiterar a identidade da exclusão e os processos que a produzem. Laclau evidencia a relação entre identidade, poder e exclusão,

pois se uma identidade consegue se afirmar é apenas por meio da repressão daquilo que a ameaça. Derrida mostrou como a constituição de uma identidade está sempre baseada no ato de excluir algo e de estabelecer uma violenta hierarquia entre os dois pólos resultantes - homem/mulher etc. Aquilo que é peculiar ao segundo termo é assim reduzido - em oposição à essencialidade do primeiro - à função de um acidente. Ocorre a mesma coisa com a relação negro/branco, na qual branco é, obviamente, "ser humano". "Mulher" e "negro" são, assim, "marcas" (isto é, termos marcados) em contraste com os termos não marcados "homem" e "branco". (Laclau, 1990, p. 33).

Ao tentar garantir direitos e proteção à vida ao humano salientamos, por um lado, que esses aspectos configuram aspirações legítimas e necessárias e, por outro lado, lembramos a falácia de conceber o humano apenas como sujeito da consciência e da razão e desconsiderar a dimensão afetiva e inconsciente que também o constitui. Dessa forma, podemos adotar estratégias de intervenção que restringem a atenção e o cuidado ao humano na medida em que utilizam teorias sobre a constituição subjetiva calcadas no sujeito da ciência positivista. Conforme sabemos essas concepções sobre o humano redundam em leituras que tendem a privilegiar os aspectos conscientes e fixos da subjetividade, possibilitando sua redução a configurações identitárias. Entendemos que a referência identitária configura o psiquismo no sentido de que as pessoas sentem e representam o eu como um continuum que mantém uma linearidade e estabilidade no espaço e no tempo. Entretanto, essa referência opera como uma ficção que tanto responde às injunções do modo de subjetivar moderno quanto viabiliza a ação das pessoas no mundo. (Costa, 1986).

Consoante a esse processo, crianças que vivem em instituições encontram-se submetidas a identidades estereotipadas que remetem a sua condição de exclusão: abandonada, vítima, originária de um ambiente familiar desestruturado. O ato de reiterar essas referências identitárias produz leituras sobre essas crianças que sustentam a produção de intervenções direcionadas ao apagamento dessas referências. Podemos supor que subjaz a essas leituras e modalidades de intervenção a concepção de que os portadores dessas marcas identitárias necessitam ser reeducados e reestruturados no plano subjetivo e cognoscente para que - como semente do futuro - tragam bons frutos à sociedade. Dessa forma, com um olho no passado e outro no futuro, perde-se a noção do que acontece com o sujeito singular submerso nas leituras universais e estereotipadas das identidades definidas a priori. Ainda, essa perspectiva de intervenção aposta na possibilidade de remover as marcas pulsionais e históricas que constituem cada sujeito e no lugar destas enxertar novas, consideradas mais adequadas ao interesse hegemônico social. Neste processo trabalha-se com as identidades e não com identificações, o que revela a utilização de concepções sobre o psiquismo que compreendem a subjetividade como subsumida a consciência. Temos a contradição de um trabalho operado em nome do sujeito de direitos que, no entanto, restringe o efeito de subjetivação ao neutralizar o sujeito de desejo.

O paradoxo presente na concepção sobre o sujeito de direitos é que ela demanda a definição da identidade de crianças em situação de risco ou abandono com vistas a lhes garantir direitos. Entretanto, é necessário que também possamos oferecer-lhes oportunidades para que possam ressignificar experiências e sentidos que levem ao descolamento desta identidade. O sujeito de direitos traz - teoricamente - garantias, mas ao assumir a exclusividade do universal pode deixar de lado aquilo que é singular e, acreditamos que o humano precisa deste lugar universal e de direitos, mas sabe que suas condições de existência não se resumem a ele. Nessa perspectiva a possibilidade de outros lugares implica a desconstrução de um discurso universal, no sentido da sua articulação com o singular e da elaboração de discursos e práticas que sustentem essa articulação. A identidade fica, assim, sob rasura : serve para dar suporte à configuração subjetiva e à organização da política de direitos, porém, ela não recobre a subjetividade e não cauciona essa política. Ao ultrapassar a fixidez e os limites do universal calcados nos referenciais identitários e nas estratégias de intervenção pautadas pela política de direitos, abre-se espaço à compreensão do subjetivo atravessado pela razão e pelo pathos, pelo universal e pelo singular. Essa compreensão pode ensejar leituras que engendrem conexões entre o sujeito da consciência tributário dos direitos e o sujeito do desejo aberto às novas experiências e configurações subjetivas.

 

Considerações sobre a educação e o educador social

Tanto as concepções de infância como as de educação - construídas simultaneamente - estão atreladas a condições históricas e discursos políticos que se modificam no tempo. Esta seria uma das razões que tornaria impossível a obtenção de um modelo de educação universal supostamente "adequado" a todos os tempos. No cenário atual, a educação de crianças ganha nuances peculiares, dentre as quais se destaca uma desistência do adulto em ocupar seu lugar de educador:

...] é fácil perceber que a educação sempre carregou em si uma certa impossibilidade. Só que de uns tempos pra cá há uma forma de lidar com essa impossibilidade que no lugar de permitir-nos fazer com ela coisas interessantes - fazer outras coisas apenas diferentes das que vínhamos fazendo e portanto evitarmos a massificação do gozo - atenta, em e por princípio, contra a própria educação. Ou seja, nos conduz a um impasse no processo de subjetivação inerente à educação.

É precisamente perante essa impossibilidade que o homem moderno oscila entre reduplicar com insistência a aposta educativa ou renunciar ao ato. (Lajonquière, 1999, p.26-27).

A reduplicação e a renúncia relacionam-se, dentre outros aspectos, à aposta em um sujeito da consciência e da razão. Entretanto, ao criar a psicanálise Freud afirma a existência de um eu cindido, em que cada um de nós não é senhor de si nem em sua própria casa. A ideia de um inconsciente que se expressa de forma inesperada, trazendo à tona aquilo que foi reprimido, faz cair por terra toda e qualquer possibilidade de um sujeito sob controle de si. (Freud, 1895/1981a; 1915/1981b; 1915-1917/1981c). A vida psíquica comportaria sempre conteúdos ocultos que se entrelaçam às experiências concretas. Assim, o eu tanto em seu processo de constituição como de existência, encontra-se sempre em movimento e afeta e é afetado pelo contexto. Nessa perspectiva, é possível pensar na constituição subjetiva, conforme se apresenta no cenário contemporâneo, como constituída por uma representação identitária que é permanência e transformação. Uma identidade não idêntica, uma identidade-identificações.

É através dos processos de identificação, que a criança pode ter o adulto como uma referência, mas também como limite às suas demandas pulsionais. Abandonar esta tarefa ou praticá-la de maneira extremada, de forma a impedir a manifestação daquilo que é singular a cada sujeito, consiste no fracasso da educação.

No caso da institucionalização de crianças observa-se a manutenção de uma referência identitária forjada a partir da exclusão e na qual opera a compreensão de um sujeito subsumido à consciência e à razão. Modificar esta compreensão implica, dentre outros fatores, em se considerar a contribuição da psicanálise com relação ao inconsciente. A existência de um outro que se oferece como lugar de escuta e realiza investimentos que vão além de interesses funcionalistas é indispensável para que crianças que estão em instituições tenham chance de ressignificar suas experiências, evitando assim intervenções que visem simplesmente esconder, apagar a imagem da miséria humana, que tende a ser tomada como inerente aos excluídos pela ordem social.

Neste sentido, importa no trabalho com essa população e com aqueles afeitos ao seu atendimento não os resultados atrelados a mudanças de comportamentos e adequação a normas sociais. Interessa a produção de efeitos de subjetivação que considerem a singularidade dessas pessoas. Por singularidade, entende-se a maneira como cada sujeito significa e pode ressignificar sua existência, num movimento constante que inclui aspectos da realidade subjetiva e objetiva, o que implica uma concepção de sujeito que extrapole o privilégio à consciência e leve em conta as dimensões históricas, sociais e pulsionais. Nesta ótica, os processos de subjetivação e dessubjetivação envolvem a trama dos aspectos relativos ao singular e ao coletivo, e o reconhecimento do outro como o inexorável da constituição psíquica e social, já que se relaciona com a exterioridade da tradição social e a interioridade da vida psíquica.

Nas instituições de abrigo para crianças o outro exteriorizado da cultura e da sociedade localiza-se - especialmente - na figura do educador social. Dessa forma, ainda que não se possa falar sobre um sujeito autônomo, visto que o sujeito é sempre sujeitado a um outro, acreditamos que as relações de cuidados devem considerar o que Peixoto Junior, retomando Nietzche, denominou como o processo de "tornar-se o que se é":

Tendo em conta as diferentes articulações entre sujeição, subjetivação e singularidade [...], "tornar-se o que se é", como queria Nietzche, não é um processo simples ou contínuo. Trata-se de uma árdua prática de liberdade (Foucault, 1984/1994) que implica em repetições, riscos, coerções e vacilações, no horizonte da constituição de um ser que, enquanto efeito inexorável da alteridade, traz como sua marca fundamental uma singularidade pré-individual. Singularidade esta que é, antes de qualquer coisa, fruto de uma luta constante contra as práticas coercitivas de assujeitamento às mais diversas dimensões de identidade. (Peixoto, 2004, p. 36-37).

Sabemos que idealmente não deveriam existir crianças que vivenciem a experiência do abandono e cresçam sem o amparo de adultos que lhes propiciem cuidados e afetos, bem como, o acolhimento institucional deveria consistir em recurso extremo e eventual. Entretanto a realidade indica que outras propostas precisam ser construídas, seja para minimizar o abandono e a institucionalização, seja para repensar os cuidados na instituição.

Nesta perspectiva, acreditamos que intervenções de reflexão e formação, que implicam a oferta de um espaço de escuta aos educadores sociais que trabalham em instituições de abrigo, consistem em ações indispensáveis para mudanças nas representações atreladas à atual cultura da institucionalização. Dentre estas, destacam-se as concepções sobre a criança abandonada e sobre a família de origem como irresponsável, incapaz e negligente. Entrelaçado ao trabalho com educadores encontra-se a necessidade de construção de recursos para que as crianças que estão nas instituições possam ser escutadas e respeitadas em sua singularidade. Um trabalho desta natureza exige visão de processo e demanda articulada ao tempo necessário para que ele possa ocorrer, com falhas, avanços e recuos. Requer um afastamento das lógicas funcionalistas e universais, sendo relevante a leitura interdisciplinar que utiliza contribuições advindas de diversas áreas do conhecimento. Acreditamos que intervenções desta natureza tornam possíveis efeitos de subjetivação a partir da produção por parte dos envolvidos de novos olhares sobre si, sobre o outro e sobre o contexto em que se inserem. (Souza, 2006). Essas intervenções podem produzir ações que estimulem a transformação de uma realidade até então tida como inevitável e marcada por referências identitárias que estigmatizam as crianças abrigadas e suas famílias.

Podemos localizar experiências relatadas por Falk (2004), que falam sobre abrigos como o Instituto Lóczy, fundado em 1946 por Emmi Pikler, na Hungria, para atendimento de crianças pequenas. Também no Brasil já foram dados os primeiros passos nesta direção. As propostas e experiências apresentadas por Rizzini (2006) com relação ao acolhimento de crianças e adolescentes; as ações desenvolvidas pelo Projeto MEMBIRA (2007) junto a crianças e adolescentes abrigados; a pesquisa e a intervenção com vistas à reintegração familiar relatadas por Brandão (2007); constituem iniciativas que merecem ser conhecidas por aqueles que se interessam pelo tema. Por fim, cabe ressaltar a importância de novas pesquisas que tenham por objetivo conhecer a realidade da infância - em especial desta infância excluída - em contextos regionais específicos. Só assim é possível pensar e construir práticas de intervenção que façam sentido aos sujeitos nelas envolvidos.

 

Notas

1. Sabemos que existem outras modalidades e denominações para o acolhimento institucional, mas aqui iremos nos ocupar apenas dos abrigos e em especial ao acolhimento de crianças. Abrigo Institucional para pequenos grupos/Atendimento Institucional Integral, Casa Lar e Casa de Passagem são as modalidades que constituem "programas de abrigo" previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (Moroso, 2006). Para conhecer em detalhes cada um dos programas ver Silva & Cabral (2009, p. 159-184).

2. O termo "situação de risco" faz referência à situação de crianças e adolescentes com seus direitos ameaçados ou violados; integra a legislação e a literatura sobre atenção à infância e adolescência, e por esta razão é aqui utilizado. Entretanto, cabe ressaltar que a expressão precisa ser problematizada, visto que muitas vezes associa-se "situação de risco" a crianças e adolescentes que oferecem perigo à comunidade. Ainda, ao configurar uma "situação de risco" esta se localiza apenas nas camadas empobrecidas da população, permitindo associações indevidas entre condições sociais desfavoráveis e a incapacidade (voluntária) para cuidar dos filhos.

3. A ONU considera criança a pessoa de até 18 anos; o ECA define a idade de 12 anos completos como limite.

4. "O nome da roda provém do dispositivo no qual se colocavam os bebês que se queriam abandonar. Sua forma cilíndrica, dividida ao meio por uma divisória, era fixada no muro ou na janela da instituição. No tabuleiro inferior e em sua abertura externa, o expositor depositava a criancinha enjeitada. A seguir, ele girava a roda e a criança já estava do outro lado do muro. Puxava-se uma cordinha com uma sineta, para avisar a vigilante ou rodeira que um bebê acabava de ser abandonado e o expositor furtivamente retirava-se do local, sem ser identificado". (Marcilio, 2006, p.57).

5. Cabe registrar que um dos esforços do Grupo de Trabalho Nacional Pró Convivência Familiar e Comunitária, que conta com a participação de profissionais de várias áreas, consiste em apresentar caminhos para uma adequada implementação do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária.

6. Baseando-se nas ideias de Jacques Derrida, Stuart Hall afirma que: "A identidade é um desses conceitos que operam 'sob rasura', no intervalo entre a inversão e a emergência: uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave não podem ser pensadas". (Hall, 2000, p. 14).

 

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Recebido em 13 de fevereiro de 2010
Aceito em 08 de março de 2010
Revisado em 02 de julho de 2010

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