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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.13 n.2 Belo Horizonte dez. 2007

 

ARTIGOS

 

O real na experiência de análise: interpelação e presença do analista

 

The real in the analysis experience: the analyst’s interpellation and presence

 

 

Ana CostaI,* ; Doris RinaldiI,**

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

O texto resulta de uma elaboração de acompanhamentos de análises, tendo como foco a indagação a respeito da presença do analista, no que a mesma implica um encontro do real. Essa questão foi acompanhada, nos casos apresentados, pela via de indagações sobre o silêncio. Ele foi situado a partir de duas proposições: em primeiro lugar, como uma interpelação quanto ao lugar do analista, com o encontro de um mutismo; numa segunda apresentação de caso, o silêncio situou-se do lado da analisanda, com as conseqüências implicadas na circulação da palavra. A referência das duas passagens é a produção do sonho, que se apresenta como o encontro do real, que convoca o trabalho do sujeito do inconsciente. A partir dos fragmentos clínicos, o silêncio pôde ser pensado como proveniente do real, como via de possibilidade para uma nova circulação do discurso, nessa dobradura entre simbólico e real na qual se inscreve uma experiência de análise.

Palavras-chave: Presença do analista, Real, Trauma originário.


ABSTRACT

This text results from the reports of accompanied analysis processes concerning an investigation of the analyst’s presence, in so far as it implies meeting the real. This question was focused in cases presented by means of investigations of silence. It was considered in two perspectives: in the first place, as an interpellation regarding the analyst’s role, a meeting with muteness; in the second case presentation, as coming from the patient, with the consequences implied in the circulation of the word. For reference of the two passages, dream production presents itself as a meeting with the real that incites the work of the subject of the unconscious. With basis on clinical fragments, silence could be thought of as deriving from the real, as the possibility of a new speech circulation, in that folding between the symbolic and the real in which an analysis experience is inserted.

Keywords: Analyst’s presence, The real, Original trauma.


 

 

Este trabalho resulta da elaboração de acompanhamentos de percursos de análise, em que o tema da presença do analista tomou relevância. O tema apresentou-se a nós principalmente pela via da questão do silêncio. Transitamos por ele, tratando-o inicialmente como um índice, que necessitava de um desdobramento. Ele foi situado a partir de duas proposições. Primeiro, em relação ao lugar do analista: o silêncio tomou condições de interpelação, convocando a tramitação pela questão da interdicção, que situa o impossível na operação de trabalho com a linguagem. A partir desse ponto de vista, Lacan desloca o tema da lei e da proibição para operações com o impossível no interior do trabalho analítico. Numa segunda apresentação, o silêncio situou-se do lado do analisando, com as conseqüências implicadas na circulação da palavra. Na mediação das duas passagens, a produção do sonho como esse encontro do real, que convoca o trabalho do sujeito do inconsciente no lugar de uma perda de gozo – perda esta que os silêncios colocavam em ato.

 

Interpelações ao lugar do analista

Quem cala consente. Teria essa expressão popular relação com o tema da presença do analista? Por vezes os percursos de análise trazem essa questão em alguma medida. Tomemos o exemplo de uma analisanda. Num determinado momento de sua análise, ela se sente interpelada – esse é o termo – pela realização de um aborto, interpelação que ela transfere ao lugar da analista. No caso, a gravidez se situava numa condição em que a demanda encontrava sua redução a um ponto de mutismo: ponto de trauma irredutível, condição que, em sua história, posicionava essa gravidez no lugar do impossível. O aborto criou, a posteriori, essa gravidez como um ato fracassado. Desse evento, derivou-se uma construção fantasística que contém um paradoxo: do mutismo do Outro, após a radicalidade do ato que encontra esse ponto do real, ela passou a fazer a relação entre calar e consentir. Estranho paradoxo decorrente da sobreposição de tempos: calar – ausentar-se da decisão, não desejar (acusação ao namorado e ao pai, construídas a posteriori) – e calar como consentir, desejar a gravidez. Ambos os sentidos resultaram da produção de um ato que pudesse ser representante de um ato fracassado.

Restou algo desse momento, ao longo da análise, como a ausência de uma presença. Em diferentes momentos da análise, colocava-se uma pergunta sobre que espécie de ausência interpelou a analisanda. Isto nos levou a dois pontos a serem desenvolvidos: de um lado, a interpelação ligada ao supereu; de outro, a responsabilidade em relação a um silêncio. Ou seja, a idéia de que um silêncio também é um ato de fala, o que nos leva à necessidade de precisar um tema bem antigo, que foi situado como regra de abstinência.

Cabe, aqui, distinguir termos. A interpelação reduz o tempo do sujeito à necessidade de uma resposta instantânea. Ou seja, diz respeito à não operação do tempo de compreender, questão que leva o sujeito à perda da dialética, da escansão e da dúvida, ficando tomado no campo do gozo do Outro. É desse lado que se situam diferentes passagens a ato. Diferencia-se do apelo da demanda, em que o sujeito se posiciona a partir da fantasia construída no lugar da falta do Outro, o que lhe permite a referência à dialética fálica. Vale lembrar aqui as colocações de Lacan (Lacan, (1972) 1985), em seu seminário Mais, ainda..., no qual remete a interpelação ao tema do supereu. Ele diz: “Nada força ninguém a gozar, senão o supereu. O supereu é o imperativo do gozo – Goza!” (Lacan, (1972) 1985, p. 11). A interpelação é esse imperativo do gozo.

Nesse texto, Lacan permite-nos articular com este tema as condições de possibilidade de uma escuta. Ele articula o gozar à voz, o que permite – nessas condições – o estabelecimento de um endereçamento da pulsão invocante. Ele faz um jogo – que é bem conhecido dos lacanianos – possível na língua francesa, entre jouis (goza) e j’ois (eu escuto). É nessa báscula que se situa a questão do interdito: a passagem de uma experiência reduzida a um gozo corporal, para a experiência da fala como enunciação de uma questão. O interdito constituise, nesse sentido, na colocação em ato do impossível: é impossível fazer UM entre corpo e linguagem (o que Lacan também trabalha como o impossível da relação sexual, no encontro/desencontro entre os sexos). Assim, o interdito implica nessa reversão com relação à lei, estabelecendo-nos a todos como seres falantes: o que diz respeito à lei se coloca na inter-dicção, os determinantes pulsionais serão situados, no trabalho analítico, nas leis da linguagem, na produção metafórico-metonímica.

Esse preâmbulo permite situar as bases no que diz respeito ao tema da interpelação. Se, como mencionamos, a escansão, a dúvida, a dialética própria do tempo de compreender não operam, ficando o sujeito suspenso nessa invasão de um Outro absoluto, o limiar de uma passagem a ato imediatamente se coloca. Nesse sentido, o que diz respeito ao ato analítico pode operar convocando os dois impossíveis destacados antes. Valendo-nos desses pressupostos tomaremos uma re-leitura da expressão que situa o interdito no enunciado de uma “regra de abstinência”. Que atualidade teria para nós esse enunciado? Abstinência, a princípio, se situa em relação a dois extremos: abstinência do enlace de corpos – o ato sexual – e abstinência em relação aos atos de fala – abster-se de dizer algo que implique a subjetividade do analista.

Deixemo-nos transitar um pouco pela questão da abstinência, sem tomar inicialmente uma posição. O que ela nos evoca? De imediato traz o tema da alienação à montagem da transferência, responsável pela atualização da montagem fantasmática. Assim, pode-se pensar que a própria enunciação da regra de abstinência já invoca uma cena fantasmática. Isso porque, se enunciamos uma regra, ela já situa o a priori de uma cena, que seria a realização desse fantasma em relação ao qual essa regra incide. No entanto, o que é preciso ressaltar no trabalho analítico é a dimensão que não se situa numa regra, mas na operação com o impossível. Ali se constitui um impossível muito preciso, circunscrito à singularidade de um trabalho de transferência. Assim, precisa-se destacar como princípio que o ordenador do lugar do analista é o impossível, o que situa condições muito precisas no que diz respeito ao desejo do analista. A operação com o desejo do analista reposiciona o impossível, tornando-o jogo de linguagem, enigmas de um dizer a meias, num semi-dizer possível.

Do lado do analisando, é outro o a priori que permite a constituição da transferência. Nesse a priori, encontramos duas referências: a construção denominada por Freud de cena primária e, por Lacan, de fantasma originário. É isso que permite que o interlocutor – no caso específico, o analista – seja esperado numa antecipação da cena, estabelecendo, assim, lugares fixos. O fantasma fixa os lugares e as condições de enunciação. É o que faz com que, para além do incômodo, do sofrimento – pelo qual ninguém quer passar –, a fixidez de lugares implique numa repetição. No entanto, é graças a esse a priori que se permite a constituição da transferência, isto é, a constituição de uma suposição de saber. Esse elemento é fundamental para se pensar nesse tema: a referência a um saber. É esse o a priori do lado do analisando.

É certo que, do lado do analista, temos o a priori do saber que orienta o campo da psicanálise. No entanto, é importante considerar o tema da abstinência para além de uma questão simplesmente técnica – na prescrição de supostas regras de uma técnica. Para nós é fundamental a indagação, aqui, a respeito do saber do lado do analista. Desse lado, é preciso colocar uma condição de renúncia a ter o domínio sobre a montagem da cena fantasmática; e, nesse sentido, não estar ali onde o paciente se produziria como objeto de mestria, como objeto de domínio de um saber sobre o gozo.

Num seminário que denominou O saber do psicanalista (Lacan, (1971-72), inédito), Lacan profere uma frase curiosa: “não há o não saber”. O que significa isso? Lacan não situa ali o saber no sentido corriqueiro, como possibilidade de um “vir a saber”, de algo que poderia ser adquirido e desenvolvido. O que o leva a essa afirmação diz respeito a um tema a que ele se dedica desde o início de seu trabalho: a diferenciação entre conhecimento e saber. Por outro lado, é nessa distância que se situa uma borda – e ao mesmo tempo um atrelamento – entre saber e verdade.

Como aproximação, tomemos algumas referências de base, tentando acompanhar os desdobramentos dessa questão na clínica psicanalítica. Freud conduzia as análises a partir de uma iniciação de seus analisandos no saber da psicanálise. É realmente curioso acompanhar esses primórdios (Freud, (1900) 1976). A direção empreendida por Freud dizia respeito à tentativa de circunscrever a interpretação psicanalítica a um domínio do inconsciente. A interpretação resgataria um saber nas trevas, iluminando-o à linguagem da comunicação consciente. Saber as “razões” de seu inconsciente, nesse momento de construção freudiana, seria suficiente para eliminar um conflito entre instâncias. Como já foi insistentemente lembrado em produções subseqüentes, isso não foi suficiente como suporte de trabalho. No entanto, ficou colocada a relação entre a objetivação de um saber e um domínio do corpo e do sintoma.

Lacan deu o nome de “saber” a muitos elementos da clínica. Em primeiro lugar, temos o inconsciente como um “saber” que não se sabe, na busca da produção de um sujeito referido a ele, o que o faz nomear a transferência de “sujeito suposto ao saber”, como a encarnação no analista, por parte do analisando, da possibilidade de sujeição desse saber inconsciente. A escolha da expressão “saber” – e não conhecimento, por exemplo – tem seu princípio sustentado numa dinâmica de alienação. “Saber” implica inicialmente que o que se processa deste lado não é da ordem de um conhecimento controlável pelo eu. Quer dizer, o saber pode apresentar-se exterior ao conhecimento, como não subjetivado, ficando o sujeito submetido. Implica, também, a suposição de que há, em algum lugar, um sujeito que sabe, situado primeiro num Outro, o que posicionaria alguém que se sente dominado pelas formações do inconsciente (sonho, lapso etc.) como submetido, como objetivado nessas mesmas formações. Ou seja: o Outro sabe e o sujeito é objeto desse saber nessas próprias formações do inconsciente.

Nesse sentido, o tema da presença do analista vai incidir diretamente na articulação entre saber e gozo: nesse saber do gozo (como sentido subjetivo e objetivo). Na subjetivação temos a montagem da cena fantasmática, na objetivação temos o corpo que goza.

Retomemos o exemplo da analisanda na sua interpelação ao quem cala consente, situada, ao longo de sua análise, como a ausência de uma presença. Esta última não se refere a uma presença como apoio, a uma presença permissiva. A singularidade do termo “presença” – nas colocações lacanianas – implica nas condições de inscrição e registro de uma falta que sempre acontece “em presença”. Este caso clínico foi onde se processou a transformação do mutismo – o real inominável e sem palavra – em um ato de silêncio que, paradoxalmente, retorna como possibilidade de ter sido um ato de desejo: o consente da expressão, que a reposiciona em relação a seu desejo de gravidez. Esses termos situam bem as razões de uma análise se fazer em presença, apesar do uso do divã que retira a visão direta,. Ou mais sucintamente: essa é a condição da criação de um testemunho da inscrição de um saber que não se sabe, de um saber como impossível. É isso que nos leva, em última instância, às condições de um saber fazer. Essa inscrição coloca uma temporalidade paradoxal, que faz parte do registro da temporalidade do trauma, trazendo-nos a superposição de dois tempos. Lacan (Lacan, (1964) 1973) a trabalhou suficientemente nas enunciações de sonhos evocados por Freud. Está na enunciação do sonho “ele não sabia que ele estava morto”. Ou mesmo no encontro paradoxal, na tiquê do despertar do sonho que diz “pai, não vês que estou queimando?” São sonhos que também trazem a dimensão da interpelação, constituinte do achatamento dos tempos. Aqui, entra a proposição – já destacada por Lacan – da referência ao tempo do Outro: tempo do gozo objetivado, tempo ainda em trauma. É no trabalho com a escansão que se permite a constituição do insabido, na perda de gozo própria ao sujeito do inconsciente. Trataremos, a seguir, de aprofundar essas relações entre sonho e real.

 

Sonho e real: testemunhos da presença

Destaquemos, aqui, outro fragmento de análise: a analisanda chega à sessão e deita-se, como faz costumeiramente, para desfiar relatos de seu cotidiano, na tentativa de “fugir de seus pensamentos”. Começa dizendo que não tem nada para contar, mas, subitamente, de forma pouco habitual, lembra-se de um sonho – um pesadelo – que teve na noite anterior. Algo se impôs a ela, do qual não pôde fugir. O que a surpreende é que o sonho lhe parece extremamente real. Mesmo após despertar, permaneceu essa sensação, que se acentua à medida que fala dele. Que estranha realidade é essa do sonho que transborda para a vigília, como algo real?

Freud, ao longo de sua obra, deteve-se várias vezes na sensação de realidade provocada pelos sonhos, como o fez na Interpretação dos sonhos e na análise do “Homem dos lobos”. De início supôs que tais sonhos reproduziam, na totalidade ou em parte, acontecimentos de fato ocorridos. Insistia que o sentimento de realidade depois do despertar era justificado, pois alguma coisa ocorreu que foi repetida no sonho. Logo em seguida, contudo, nos diz que, na verdade, a sensação de realidade refere-se a pensamentos oníricos latentes, ou seja, está ligada à realidade psíquica, reino da fantasia. Ainda que, no caso do “Homem dos lobos”, procure estabelecer uma ligação entre a convicção de realidade provocada pelo sonho e a suposta existência factual da cena primária, é nesse mesmo texto que reconhece que as cenas primitivas da infância não são simples lembranças, mas resultam de uma construção no decorrer do trabalho de análise. Sua emergência nos sonhos e a convicção de realidade que provocam fazem do sonho um modo privilegiado de elaboração em análise, em que a realidade psíquica governada pela fantasia mostra seu valor de verdade para o sujeito.

Dessas considerações podemos concluir que no sonho referido acima, e na sensação que ele provoca, o que está em jogo é a realidade psíquica.

Tomemos agora o sonho antes referido, apresentado por Freud no início do capítulo sobre “A psicologia dos processos oníricos” no livro Interpretação dos sonhos. Não se trata de um sonho relatado em um processo de análise, mas Freud dá a ele grande valor, nomeando-o como sonho modelo. Trata-se de um pai que adormeceu no quarto contíguo àquele onde o corpo de seu filho morto era velado, em cujo sonho este filho o pega pelo braço e diz: “Pai, não vê que estou queimando?” (Freud, (1900) 1976, p. 543).

Para Freud este sonho é de fácil interpretação, pois o que desperta o pai é o clarão de luz que vem do quarto contíguo, onde as roupas de seu filho começam a se incendiar após a queda de uma vela sobre seu corpo. Em um paralelo com o sonho a que nos referimos anteriormente, em que a realidade do sonho transborda para a vigília, tratar-se-ia, no sonho relatado por Freud, do movimento inverso, de invasão da realidade no sonho, provocando o despertar? Será isso que os aproxima, pelo avesso? No jogo entre sonho e realidade, que excesso seria esse que, como um resto, invade o sonhador?

Nos comentários que Freud tece acerca desse sonho, reafirma sua teoria da realização de desejo, dizendo que o conteúdo do sonho é sobredeterminado pelas relações entre pai e filho. Assinala, entretanto, que há algo de altamente emocional no apelo do filho ao pai – “Pai, não vê?” – do qual nada sabemos. Retomemos, aqui, as relações entre saber e impossível, tratadas anteriormente. É esse impossível de saber, presente na realidade trazida pelo sonho, que chama a atenção de Lacan quando se pergunta sobre o que desperta esse pai. Será a realidade do clarão que lhe invade os olhos ou será a frase do filho que, como uma tocha, aponta para o impossível encontro entre um pai e seu filho morto? Mais além da realidade, o que o sonho evidencia é o real desse encontro faltoso, que só um sonho pode propiciar. Somente o sonho, como diz Lacan, “um rito, um ato sempre repetido, pode comemorar esse encontro imemorável – pois ninguém pode dizer o que seja a morte de um filho – senão o pai enquanto pai – isto é, nenhum ser consciente” (Lacan, (1964) 1973, p. 60). A importância que Freud dá a esse curto sonho no contexto de sua teoria do desejo indica que o sonho não é apenas uma fantasia que preenche uma aspiração. Por trás da falta de representação, há um real traumático que comanda o desejo, que aparece no sonho sob a forma da perda de objeto. É ele que provoca o despertar.

O que essa análise pode ensinar sobre o sonho da analisanda? Relatado em análise, o sonho dela evidencia uma urgência, algo a ser realizado que, similarmente ao sonho analisado por Freud, diz respeito à relação entre pais e filhos. Trata-se de uma missão que ela se atribui: arranjar pais para várias crianças, na tentativa de sanar uma falta, reconstituir um elo que se perdeu. A urgência que aparece no sonho é a mesma que a desperta e a faz chegar mais cedo à sessão, quando o hábito é atrasar-se. É isso que se impõe a ela como o real que transborda do sonho e que mostra sua estranha presença à medida que fala dele. Ao fim do relato, ao ser indagada pela analista sobre o que lhe vem à cabeça a propósito desse sonho, remete-se à situação traumática que a levou à análise – um aborto – tantas vezes repetida, referida neste momento pelo significante abandono. Esse significante surge com insistência quando a falta se transforma em perda, na qual se vê implicada de duas formas: de um lado, algo lhe foi arrancado, o que a coloca na posição de objeto; de outro, a culpa através da qual reconhece a sua responsabilidade no ato de abandono, expressão de sua implicação no aborto, a faz emergir como sujeito. Convocada pelo real do sonho, do qual não pode fugir, Beatriz se apresenta dividida pelo significante, significante da castração, ao contar esse sonho em análise, endereçando-o ao analista.

Freud recomenda que tomemos tudo o que o analisando diz a propósito do sonho, além do seu estrito relato – comentários, julgamentos, sentimentos – como fazendo parte do conteúdo latente do sonho, devendo ser, portanto, incluído na interpretação. No sonho analisado, em que também se trata de uma realização de desejo, os comentários sobre a estranheza da sensação provocada por ele são, nesse sentido, partes do sonho. É essa sensação que faz retornar o trauma, na sua insistência repetitiva, ouvida naquilo que o sonho, ao mesmo tempo em que recobriu, desvelou. A multiplicação numérica do objeto nos sonhos – neste aparecem várias crianças – indica, como também nos lembra Freud, a “repetição temporal de um ato” (Freud, 1976, p. 398), através da qual a realidade do inconsciente se atualiza atravessada pelo real. Guardadas algumas diferenças, esse sonho nos faz lembrar a 3ª fase da fantasia de espancamento apresentada por Freud no texto “Bate-se em uma criança” (Freud (1919) 1976), no qual se trata do sujeito como indeterminado, ponto real em torno do qual se expande o inconsciente. No Seminário 11, diz Lacan: “... essa posição primária do inconsciente que se articula como constituído pela indeterminação do sujeito – é isto que a transferência nos dá acesso, de maneira enigmática” (1973, p. 124).

Se a transferência é a atualização da realidade do inconsciente, ela é essencialmente resistente, como indica a experiência relatada, ao evidenciar o movimento pulsátil do inconsciente, que mal se abre, se apressa em se fechar. Na sessão seguinte à que descrevemos, a analisanda se fechou em um silêncio interrompido apenas pela frase – estou introspectiva, estou fugindo de meus pensamentos. Nas sessões subseqüentes, ela teve sucessivas faltas.

A interrupção das associações do analisando e a falta às sessões são índices de resistência, já dizia Freud. Quando o analisando se cala, é provável que a interrupção de seu discurso se deva a algum pensamento relacionado ao analista. A noção de “presença do analista”, introduzida por Lacan para pensar esta questão, como já situado anteriormente, nos parece bastante oportuna, justamente quando ele enfatiza que se trata de “um fenômeno infinitamente mais puro” (Lacan, (1953-54) 1975, p. 52) do que as simples referências à presença física do analista ou ao imaginário que o cerca, ou mesmo a transferência para a sua pessoa de arquétipos infantis. Há algo de misterioso e enigmático nessa presença, que é da ordem do real. A presença do analista não pode ser separada do conceito de inconsciente – é ela própria uma manifestação do inconsciente, em sua pulsação temporal, pulsação mais radical do que a inserção do significante que a motiva (Lacan, (1964) 1973, p. 121). Lacan chama a atenção nesse momento para o real, enquanto presença de uma ausência, aquilo que, fora da representação, causa o movimento do sujeito, provocando uma inflexão no discurso. A resistência, nesse sentido, longe de ser coerente com a idéia de que o inconsciente se resume ao recalcado, apresentase de forma mais radical, como proveniente do real.

Ao ser relatado em análise, o sonho tem um endereço certo: o analista. Um encontro ao qual somos chamados, encontro faltoso com um real que sempre escapa. O inconsciente é o evasivo, e é nas repetições que tentamos cercá-lo. O sonho tem aí um papel fundamental, pois como um rito, um ato sempre repetido, é no seu texto que podemos seguir o caminho do sujeito em seu movimento de abertura e fechamento. Não cabe, portanto, ao analista interpretar o sonho, porque o inconsciente já procedeu por interpretação – o relato do sonho já é uma interpretação. A intervenção do analista deve partir disso.

Neste segundo fragmento de caso que trouxemos, ao levar esse sonho para análise, rompendo um circuito de repetições do mesmo, em que atrasos e faltas eram constantes, a analisanda se viu atingida por uma certa premência – die Not des Lebens (Lacan, (1959-60) 1988, p. 61-62) – a pressão, a urgência da vida, que evidencia o fracasso do princípio de realidade, mostrando sua precariedade. Ela sabe que se trata de um sonho, mas é o real que a desperta que traz para análise. Por que ela se cala nas sessões seguintes? Retornamos, aqui, ao tema do silêncio já trabalhado no caso anterior, mas de uma outra perspectiva, em que ele é situado no lugar do sujeito.

A hipótese que levantamos é que o relato desse sonho comemora o encontro com o analista, encontro faltoso em que este se apresenta como testemunha de uma perda, “perda seca”, onde nada há mais a puxar, senão aguardar o movimento de pulsação do sujeito na retomada da palavra. O significante abandono se presentifica em ato na relação transferencial, nas faltas às sessões. No seu retorno, após um pequeno período de interrupção, a analisanda referese à profunda tristeza em que esteve mergulhada, que a retirou do convívio social, dando notícias do início de um trabalho de luto, que ressignifica sua mudez e suas faltas. Como ela diz, é preciso saber perder. Com isso recomeça um trabalho de contorno simbólico da perda, anunciado por sua fala.

Ao analista resta sustentar, pelo desejo, essa estranha presença – presença do analista – presença ausente, testemunha irredutível de uma perda, como diz Lacan. O trabalho que se realiza em análise é trabalho do sujeito que emerge na fala do analisando, nas sucessivas vezes em que revisita o momento traumático que o funda como sujeito. É nesse caminho que ele pode tratar o real pelo simbólico ou, melhor dizendo, reinventar o real.

A experiência analítica, contudo, também convoca o analista ao trabalho, quando, diante do real da clínica, do indizível, do silêncio do analisando, faz de seu próprio silêncio uma abertura de espaço para que o sujeito possa retomar a palavra. O silêncio do analista, se de um lado é indicativo do real – “alguma coisa em relação à qual o sujeito se choca” (Lacan, (1953) 2005, p. 45) –, de outro, não é simplesmente mudez, mas silêncio fértil, que porta a palavra falada. A partir dos fragmentos clínicos, podemos pensar também o silêncio como proveniente do real, como via de possibilidade para uma nova circulação do discurso, nessa dobradura entre simbólico e real na qual se inscreve uma experiência de análise. Ao retomá-las num escrito, tornando-as públicas, aqueles que passaram por essas experiências dão testemunho pela segunda vez, agora não mais da posição de analistas, mas de sujeitos, da tentativa de escrever o real que elas comportam. É diante desse real que temos o compromisso ético de não recuar, o que nos levou a buscar no escrito uma forma de desenhar a sua borda.

 

Referências

Freud, S. (1976). A interpretação dos sonhos (1900). Obras psicológicas completas. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Lacan, J. (1975). Seminário 1. Os escritos técnicos de Freud (1953-54). Rio de Janeiro: Zahar.        [ Links ]

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Lacan, J. (2005). O simbólico, o imaginário e o real (1953). In: Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Zahar.        [ Links ]

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Lacan, J. O desejo e sua interpretação (1958-59). (inédito).        [ Links ]

Lacan, J. O saber do psicanalista (1971-72). (inédito).        [ Links ]

 

 

Texto recebido em setembro/2007.
Aprovado para publicação em dezembro/2007.

 

 

*Doutora em Psicologia Clínica (PUC SP), pós-doutorado na Université de Paris XIII (França), professora visitante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: ammcosta@terra.com.br
**Doutora em Antropologia Social (UFRJ), professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise do IP/UERJ. E-mail: doris@uerj.br ; doris_rinaldi@yahoo.com.br

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