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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.27 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2021

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p58-76 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p58-76

 

Desamparo contemporâneo e violência fundamental: uma leitura psicanalítica

 

Contemporary helplessness and fundamental violence: a psychoanalytic reading

 

Desamparo contemporâneo y violencia fundamental: una lectura psicoanalítica

 

 

Érico Bruno Viana Campos*; Débora Regina Sertori**; Ercílio Domingos Turato Junior***

 

 


Resumo

O artigo propõe uma reflexão acerca da violência e do desamparo na Contemporaneidade, por meio do referencial psicanalítico. Parte de considerações sobre a inserção moderna da crítica freudiana sobre a civilização para atestar o desamparo fundamental da condição humana, demandando um trabalho de gestão do laço social. Apresenta os modelos freudianos da estrutura social e de grupos em sua relação com os ideais para discutir sua dinâmica na Contemporaneidade, a partir da falência dos referenciais simbólicos. Caracteriza as condições de enfraquecimento institucional e de mudanças temporais nas relações intersubjetivas para definir um quadro social de deficiência da narratividade e historicidade. Discute os mecanismos subjetivos para lidar com o desamparo e as implicações de violência e negação da diferença. Defende o resgate da condição alteritária por meio da violência fundamental como condição ética para instituição de laços sociais e saída coletivas para a gestão do desamparo.

Palavras-chave: Psicanálise aplicada. Desamparo. Violência. Sociedades. Pós-Modernidade.


Abstract

The paper proposes a reflection about contemporary violence and helplessness by a psychoanalytic perspective. It begins with considerations on the modern insertion of the Freudian civilization critique to attest the fundamental helplessness of the human condition, demanding an effort on the management of the social bond. It presents the Freudian models of social structure and groups in their relation with ideals to discuss their dynamics in the contemporaneity, starting from the decay of symbolic references. The paper characterizes the conditions of institutional weakening and temporal changes in the intersubjective relations to define a social framework of deficiency of narrativity and historicity. It discusses the subjective mechanisms for dealing with helplessness, the implications of violence and denial of difference. It defends the recovery of the alteritary condition through fundamental violence as an ethical condition for the institution of social bonds and collective ways for the management of helplessness.

Keywords: Applied psychoanalysis. Helplessness. Violence. Societies. Postmodernism.


Resumen

El artículo propone una reflexión acerca de la violencia y del desamparo en la contemporaneidad a través del marco psicoanalítico. Parte de consideraciones sobre la inserción moderna de la crítica freudiana sobre la civilización para atestiguar el desamparo fundamental de la condición humana, demandando un trabajo de gestión del lazo social. Presenta los modelos freudianos de la estructura social y de grupos en su relación con los ideales para discutir su dinámica en la contemporaneidad, a partir de la quiebra de los referentes simbólicos. Caracteriza las condiciones de debilitamiento institucional y de cambios temporales en las relaciones intersubjetivas para definir un cuadro social de insuficiencia de la narratividad e historicidad. Discute los mecanismos subjetivos para lidiar con el desamparo y las implicaciones de violencia y negación de la diferencia. Defiende el rescate de la condición de alteridad por medio de la violencia fundamental como condición ética para el establecimiento de lazos sociales y la salida colectiva para la gestión del desamparo.

Palabras clave: Psicoanálisis aplicado. Desamparo. Violencia. Sociedades. Postmodernidad.


1. INTRODUÇÃO

Este ensaio de psicanálise aplicada busca realizar uma reflexão acerca da violência e do desamparo na Contemporaneidade. Partindo da contextualização do projeto civilizatório ocidental moderno e de suas promessas não cumpridas, abordamos como Freud se afasta dos ideais iluministas e cientificistas para pensar o mal-estar com base na categoria do desamparo. Essa concepção será o fundamento da reflexão que propomos sobre a Contemporaneidade, a partir da psicanálise francesa, articulando desamparo e a violência no plano social e no plano do sujeito. O objetivo é defender o resgate da diferença e da alteridade como fundamento do vínculo social.

2. FREUD E A FALÊNCIA DO PROJETO CIVILIZATÓRIO MODERNO

Birman (2005) indica que a leitura freudiana do social é uma crítica da condição da subjetividade moderna, marcada por dois momentos. Inicialmente, Freud (1908/1996)1 acreditava na possibilidade de harmonia entre registros da pulsão e da civilização ou cultura. Diante do amadurecimento crítico da própria teoria, esse discurso aponta para uma dimensão mais trágica, voltando-se para o mal-estar intrínseco ao projeto civilizatório como efeito da impossibilidade de ultrapassagem das tendências destrutivas e mortíferas do homem (Freud, 1929/1996). Assim, conforme se afasta dos ideais iluministas, Freud apresenta uma leitura crítica e sistemática sobre a cultura, na qual a problemática da morte passa a ter um caráter central, pois evidencia que o horror, o parricídio e o trauma estão na origem da ordem civilizada e da Modernidade (Birman, 2005). Isso possibilitou reconhecer a autonomia da força pulsional ante seus representantes, caracterizando a pulsão de morte por sua ação não discursiva; sua dimensão de silêncio (Freud, 1920/1996). Desse modo, uma possibilidade se consolida com a metapsicologia freudiana: a estruturação do conceito de desamparo.

O desamparo já aparece para o bebê nas primeiras experiências da vida, fruto da incompletude do organismo, da necessidade de realizar trocas com o mundo e da imperiosa dependência e ajuda do outro no atendimento de suas necessidades físicas e psíquicas (Oliveira, Resstel, & Justo, 2014). Daí a importância de a figura materna funcionar como intérprete das demandas, angústias e medos do bebê. Caso isso não se estabeleça, ocorre um estado de desamparo psíquico: o sentimento de ser tomado de angústia, sem encaminhamento resolutivo e sem perspectiva de amparo do outro. Esse estado é tematizado, desde o início das formulações freudianas, como um estado de efração traumática na experiência psíquica de dor, como condição da prematuridade fisiológica do bebê humano (Freud, 1895/1996). Essas experiências primordiais de dependência do outro, da necessidade de proteção contra os perigos internos e externos, são reinvestidas ao longo da vida no funcionamento do aparelho psíquico.

A virada dos anos 20 do século XX traz não só o aspecto da compulsão à repetição própria do traumatismo da pulsão de morte pura, mas também a ampliação na caracterização dos impulsos destrutivos e sádicos na dinâmica do aparelho psíquico, o que implica um masoquismo originário e a necessidade de deflexão da pulsão de morte para o exterior como condição para os processos de constituição narcísica do eu. Isso demanda não somente pensar o lugar do suporte identificatório do objeto materno primário quanto a necessidade de ampliar a própria compreensão dos processos de produção da angústia e suas diferenciações qualitativas ao longo do desenvolvimento da libido e das relações de objeto (Campos, 2014). O texto derradeiro de Freud (1926/1996) sobre a angústia, Inibições, sintomas e ansiedade, traz a marca desses impasses: por um lado, centrando na estruturação da personalidade neurótica e na angústia de castração do complexo edípico, mas, por outro, afirmando diferentes gradações da angústia, com destaque para o luto e a dor psíquica (Campos, 2014). Surge, sobretudo, a ressignificação da angústia automática como uma angústia originária, expressão da pura pulsão de morte e horizonte de todo processo de sinalização defensiva, revelando o desamparo da condição humana (Rocha, 2001).

A dependência intrínseca entre desejo e cultura na mediação e constituição do circuito pulsional coloca a tarefa de superação da condição de desamparo por meio do outro com base em três elementos principais: do próprio corpo, do mundo externo e do relacionamento com os outros homens (Freud, 1929). Assim, o desamparo está ligado à posição de fragilidade estrutural do sujeito, sendo, dessa forma, "condição" originária, criando marcas na subjetividade humana de maneira indelével, mas também uma "situação", em que concretiza a situação de instalação do traumatismo ante o excesso pulsional não simbolizado (Menezes, 2012). No entanto, a questão central acerca do desamparo é de que, para sua proteção e satisfação, o homem depende da civilização, ao mesmo tempo em que essa mesma civilização impõe limites à sua satisfação e ao seu desejo. É a necessidade do outro, a dependência em relação a ele, que estabelece as normas éticas e morais da conduta humana; só assim a ligação pode ocorrer. Esse argumento justifica-se na indicação seminal de Freud (1895) sobre o desamparo inicial dos seres humanos como a fonte primordial de todos os motivos morais, cujo sentido foi resgatado por alguns autores na afirmação de um "complexo do próximo" como fundamento de uma implicação ético-política da psicanálise (Fuks, 2003).

Esse é o panorama que leva à constatação de um mal-estar inerente ao processo civilizatório (Freud, 1929). Nessa perspectiva, haveria sempre um limite às possibilidades de ligação e representação em libido da pulsão de morte, cabendo à cultura fornecer modelos ideais de identificação como meios de sublimação do desejo em vínculo social. Esses elementos estruturantes e representacionais serviriam, então, como moduladores da angústia e do sentimento de culpa (Costa, & Moreira, 2010), trazendo a possibilidade de alento para o desamparo que está no horizonte da condição humana.

3. O DESAMPARO NA CONTEMPORANEIDADE E A PERSPECTIVA LACANIANA

Entre as múltiplas implicações do desamparo contemporâneo, destacamos:

1) o enfraquecimento das grandes instituições e ideais que pautavam a subje-tividade moderna; e

2) a mudança na temporalidade das relações do sujeito com os objetos do mundo.

As grandes instituições sociais modernas passam por radicais transformações na atualidade. Eram instituições consistentes, estruturando nos sujeitos modos de pensar, sentir e agir no mundo. Também eram marcadas pelo resquício de uma ordem patriarcal e tradicional, transmutada no ideal racional e universal próprio do projeto disciplinar. Como afirma Bauman (1998), se, na Modernidade, a liberdade era sacrificada em nome da segurança, na atualidade, a liberdade do indivíduo consiste na busca ilimitada por prazer, o que necessariamente coloca sua segurança em risco. Nesse sentido, o mal-estar contemporâneo se encontra mais na desregulamentação do que no excesso de ordem bem como mais no excesso da liberdade individual do que na escassez da liberdade. Diferentemente do Estado de bem-estar social, minimamente protetor e provedor de serviços que amparavam o cidadão ao longo de sua vida, temos, na atualidade, o Estado neoliberal, centrado na figura do mercado em um movimento de desregulamentação universal, no qual ocorre a prioridade do livre mercado à custa das prioridades sociais. O sofrimento psicológico se estabelece a partir do espectro da ruína do amanhã; emprego nenhum é garantido (Bauman, 1998).

Ademais, na Contemporaneidade, o vazio existencial e a angústia também são produzidos pela destruição da narrativa que inseria o indivíduo em sua cultura. Tal destruição promove a constituição de um sujeito "a-histórico", que perde o seu ponto de contato com o passado, levando o sujeito a vivenciar a experiência do desamparo:

No quadro da atualidade predominam as modalidades de sociabilidade em que a subjetividade articulada à historicidade humana não é mais valorizada e, consequentemente, as mediações simbólicas e regulações narcísicas vão desaparecendo. O movimento da historicidade humana se constrói num eixo temporal a partir do presente, avaliando o passado e projetando-se no futuro. É essa "narrativa", esse "enredo" dominante, por meio da qual somos inseridos na história, que parece ter sido destruído. O universo simbólico para onde o sujeito se remetia não lhe serve mais de suporte (Menezes, 2005, p. 200).

Em uma perspectiva psicanalítica lacaniana, este fenômeno é ressaltado pelo imperativo superegoico de um dever da busca pelo gozo (Saroldi, 2015). Concebe-se, assim, que, perante a instabilidade do mundo, a flexibilização e alta competitividade do mercado de trabalho, bem como a relativização dos valores produzem um esvaziamento subjetivo cuja reação é sobretudo da ordem do autocentramento individualista (Birman, 2005; 2014).

Do ponto de vista metapsicológico, a psicanálise tende a referir essa crise a uma fragilidade na simbolização, que pode ser nomeada como um "declínio da função paterna e de seus suportes imaginários" (Kehl, 2000; Lustoza, Cardoso, & Calazans, 2014). Essa perspectiva se assenta na caracterização lacaniana da função paterna como condição de entrada na ordem simbólica. Em um primeiro momento, a resolução do complexo de Édipo e assunção da castração é da ordem de uma operação de recalque do significante originário do desejo materno por meio da metáfora do Nome do Pai, ou seja, o pai é da ordem de uma função simbólica, ligado à enunciação da lei (Lacan, 1957-1958/1999). A função paterna, portanto, é aquela que, no registro do simbólico, institui a lei da castração e do desejo, distinguindo-se do suporte real da figura do pai. É nesse sentido que o autor reposiciona o mito do pai da horda primeva para atestar a universalidade do Édipo a partir da estrutura da linguagem. Posteriormente, Lacan (1963/2005) multiplicará as incidências e expressões do Nome do Pai, reposicionando a sua teoria no âmbito do registro do real, com destaque para o "objeto a" como objeto causa do desejo. Isso traz a indicação da insuficiência do Nome do Pai, abrindo a perspectiva para se pensar sua condição de suplência e relativizar sua universalidade (Marcos, & Sales, 2017).

Esse debate sobre o legado lacaniano em torno da função paterna e dos Nomes do Pai encaminha a interpretação sobre a crise dos valores morais e instituições sociais na Contemporaneidade, em seu momento de transição para um novo modelo de subjetividade. Basicamente, a questão é se haveria, de fato, uma crise estrutural na função paterna, que levaria a um vínculo social de caráter narcísico em nível muito primário, colocando como tônica a "perversão do laço social". Nesse sentido, a cultura narcísica contemporânea legitimaria e fomentaria a perversidade, entendida como conduta de transgressão da lei bem como pela submissão e predação do outro (Birman, 2005; Magalhães, & Sussuarana, 2013). Por outro lado, discute-se se o que está em jogo são, antes, novas formas de configuração do mal-estar e do sintoma, em que essa sintomatologia deixaria de responder aos ditames da psicanálise freudiana clássica (o compromisso entre desejo e recalque) para se assentar em outras formações, como a atuação e a inibição, mas que são passíveis de abordagem pelo repertório conceitual e de adequações no manejo técnico (Lustoza, Cardoso, & Calazans, 2014). Nesse sentido, a própria noção de função paterna não perde seu caráter fundante e estrutural na constituição do sujeito (Cabas, 2009). Outra perspectiva se direciona para o caráter positivo da crise do patriarcado em apontar novas formas de agenciamento dos Nomes do Pai e, portanto, de construção de ideais que sirvam à identificação do eu e à inscrição do sujeito, com implicações para ordem social e a família, abrindo a possibilidade de novas formas de subjetivação (Pombo, 2018).

É no contexto desta última posição que os termos do debate migram para uma crise ou a falência dos ideais imaginários parentais contemporâneos, tomados em referência à "imago paterna",ensejando uma busca de novos parâmetros para as insígnias fálicas e a circunscrição do poder. De todo modo, independentemente das diferentes posições neste complexo debate, parece haver um consenso em torno de uma crise sobre os suportes imaginários dessa função, que indica uma regulação pelo gozo e pelo registro do real, em que "há o predomínio do mais de gozar sobre o Nome do Pai. Já não é mais o interdito que prevalece, mas o objeto a que predomina" (Heinemann, & Chatelard, 2012, p. 654).

Diante desse percurso que tenta trazer inteligibilidade para a perda dos referenciais modernos na regulação da vida subjetiva em âmbito individual e social (referenciais que vinham das instituições e das narrativas pelas quais o sujeito se constituía), as pessoas passam a vivenciar um estado de esvaziamento e fragmentação subjetiva. Esses estados modulam reações afetivas diferenciadas, com prevalência de qualidades de angústia que remontam à dor psíquica, à intrusão, à fragmentação, enfim, à dimensão traumática do horizonte da pulsão de morte e do real do gozo. É nesse sentido que se configuram os "novos sintomas" supracitados. Na visão de Green (2008), autor da psicanálise francesa que tem um lugar de destaque na clínica dos estados narcísicos e limítrofes, e com proposições sistemáticas para campo do contemporâneo, destacam-se quatro saídas privilegiadas na configuração dos sintomas na atualidade, em resposta às impossibilidades de simbolização:

a) transbordamento pulsional: trata-se de uma carga emocional que o psiquismo não consegue conter e, ou, elaborar, lançando-o para o campo social (para fora), ou para o soma (para dentro);

b) desinvestimento pulsional: está relacionado ao tédio, apatia e vazio, com impossibilidade do sujeito se ligar ou investir em objetos;

c) comportamentos aditivos: são mais aceitos socialmente, compõe-se de adição de estímulos sensoriais, pelas quais o sujeito se tranquiliza, tais como substâncias psicoativas, legais ou ilegais, atividades físicas em ex-cesso, etc.;

d) comportamentos compulsivos: determinados pela cultura a qual estão ligados, tais como: o consumismo exacerbado, a compulsão por alimentos, por malhar, etc.

A segunda consequência para o desamparo contemporâneo é a mudança na temporalidade das relações do sujeito com os objetos do mundo, a qual também está relacionada com a primeira consequência, o enfraquecimento das instituições. Nesse caso, trata-se dos espaços, cenas e tempos que o sujeito vivencia de maneira fugaz e transitória, não permitindo uma real experiência com os objetos do mundo. Nos tempos atuais, torna-se acentuada a experiência da solidão na multidão, ou seja, paradoxalmente, dado o avanço tecnológico constante, ocorre a diminuição das distâncias entre os sujeitos, mas, por outro lado, ocorre o abrandamento dos vínculos e dos relacionamentos. A aceleração do tempo e a amplificação das possibilidades acabam tornando a experiência muito mais imediata e, ao mesmo tempo, muito mais insatisfatória, gerando uma "espacialização da experiência psíquica às expensas da temporalidade", alterando o próprio senso de reflexividade e de relação com o futuro, inerente à categoria de desejo da subjetividade moderna (Birman, 2014).

Isso, somado ao aumento do individualismo e à elevada competitividade no mercado de trabalho, leva a um enfraquecimento do sentimento comunitário e solidário. Nesse contexto, a presença do outro pode suscitar ao sujeito o incômodo ou o terror, e o sujeito vê-se lançado muito mais no âmbito da dor do que do sofrimento, e a própria noção de desamparo como expectativa frustrada em relação ao amparo do outro se transfigura em desalento (Birman, 2014). É importante destacar que Birman (2005; 2014) propõe uma perspectiva bastante singular na articulação da tradição freudo-lacaniana sobre os efeitos do declínio da função e da imago paternas para o laço social contemporâneo. Trata-se não apenas de renovação da concepção de sublimação, para destacar sua dimensão de práxise ação, mas também seu caráter primário de erogenização da pulsão de morte na constituição de laços sociais como forma de superar o desamparo. Nessa perspectiva, o desamparo é condição originária traumatizante, mas também positivante, pois inclui uma intencionalidade à alteridade, uma demanda ao campo do outro que permite transformar dor em sofrimento e daí em desejo. É nesse sentido que o autor propõe a noção de gestão do desamparo no campo social como posição ética fundamental para a crítica do mal-estar na atualidade (Campos, 2013). Contudo, nessa perspectiva, começa se destacar mais propriamente a questão dos laços grupais e da sociabilidade na estruturação do vínculo social mais geral, que é subdimensionado no campo de debate lacaniano e que entendemos ser um aporte necessário ao encaminhamento da questão.

4. DESDOBRAMENTOS NO VÍNCULO SOCIAL E A VIOLÊNCIA FUNDAMENTAL

Freud (1913/1996; 1921/1996) utiliza o mito da horda primeva para fundamentar as origens dos vínculos grupais e sociais. No mito, teria havido um chefe despótico, que fora assassinado de forma violenta, e isso teve como consequência a transformação da horda em uma comunidade de irmãos, dando origem ao totemismo, à religião, à moralidade e à própria organização social como um contrato erigido sobre a renúncia e a culpa quanto ao assassinato do pai. Já no âmbito dos processos grupais, o autor sustenta que o vínculo que une e dá identidade ao grupo é o duplo laço identificatório erótico que promove a ilusão de que o líder ama todos do grupo de modo igual e justo, o que dá uma sensação de coesão e igualdade no âmbito da esfera grupal. O mecanismo metapsicológico envolvido na constituição dos laços grupais se baseia na "identificação" parcial com a figura do líder no lugar de ideal de eu. Essa concepção é derivada da análise da "melancolia" em sua relação com a perda do objeto. Essa perda causa uma autodepreciação, autocrítica e autocensura, como se representasse uma vingança do eu sobre o objeto perdido, introjetando-o por meio da conjunção dos dois destinos pulsionais: inversão no oposto e retorno sobre si mesmo, sintetizado na máxima sobre a sombra do objeto recair sobre o eu (Freud, 1917/1996). Desse modo, o mecanismo de identificação na melancolia demonstra também a cisão do eu, que levará ao desenvolvimento da teoria sobre as instâncias ideais do eu. Essa análise dos destinos da destrutividade na constituição do eu será reforçada pela análise da dinâmica dos grupos, sustentando a caracterização do modelo topográfico e da instância do supereu (Freud, 1923/1996).

O modelo clássico de grupos estabelecido por (Freud, 1921) baseia-se na concepção de que os grupos se constituem pelo duplo vínculo libidinal assentado na identificação vertical com um objeto no lugar de pai. Desse modo, serão "os impulsos eróticos inibidos em seus objetivos que constituem o laço permanente entre as pessoas no grupo, assim, o indivíduo abandona seu ideal de eu e o substitui pelo ideal de eu do grupo". Contudo a consistente estabilidade da identidade grupal e da ilusão de amor no âmbito do grupo depende também da projeção dos impulsos destrutivos para grupos próximos, semelhantes e rivais, que possam servir de suporte identificatório para o que precisa ser negado dentro do grupo. Essa é a hipótese do chamado "narcisismo das pequenas diferenças"(Freud, 1921) como fenômeno característico da dinâmica de grupos. Esse terceiro elemento do modelo inaugural da psicanálise é bastante inovador, pois traz para o primeiro plano a questão do destino privilegiado da pulsão de morte no campo social e mostra a dimensão sadomasoquista em jogo na relação com os ideais e o supereu. Essa noção é retomada e aprofundada na discussão sobre o mal-estar na cultura (Freud, 1929), a partir da ideia da projeção da pulsão de morte como necessária à constituição do eu e do vínculo objetal. Curiosamente, contudo, esse aspecto em particular da teorização freudiana raramente ganha destaque nas considerações contemporâneas sobre os processos grupais, com exceção de algumas apresentações de caráter mais sistemático e historiográfico dessa concepção, como Reino e Endo (2011).

Na literatura psicanalítica, é mais comum encontrar variações da tese sobre o declínio, já trabalhada acima, ou indicação de uma modificação na regulação do desejo por meio das instâncias ideais. Nesse sentido, Amaral (1997) caracteriza o processo de identificação narcísica das massas pela perspectiva da melancolia, na relação com o ideal do eu e a renúncia do objeto. A autora hipotetiza, com base nas contribuições de Laplanche e da teoria crítica da sociedade, que as massas teriam problemas na própria constituição da esfera ideal, devido à insuficiência no duplo processo tradutivo-repressivo, o qual impediria uma identificação com o objeto total, havendo, portanto, uma identificação apenas fragmentária. Em vistas disso, além do favorecimento da projeção do eu ideal das massas na figura onipotente do líder, a insuficiência na constituição do eu originário faria com que o supereu não se inscrevesse no registro da Lei, ficando fora, portanto, do registro do desejo propriamente estruturado no âmbito de uma relação de objeto fálico-genital marcada pela castração e abandono do objeto originário. A adesão cega à lei do líder nas massas teria sua gênese na projeção do ideal do eu em uma figura todo-poderosa, baseando-se em um modelo de relações de objetos parciais (sádico-orais), na qual não haveria simbolização verdadeira, mas equações simbólicas.

Nota-se, nesse tipo de encaminhamento, também a marca da teoria das relações de objeto, que foi por onde uma teoria de grupos em psicanálise pôde efetivamente se desenvolver, fortemente embasada na referência dos grupos como fundamento para pensar a dinâmica das instituições (Baremblitt,1986). Nessa perspectiva, a dinâmica de grupos é pensada fundamentalmente a partir de operadores próprios da posição esquizoparanoide, com destaque para as dinâmicas da identificação projetiva na produção de emergentes grupais que expressam seus supostos básicos. Além dos aspectos regressivos das resistências à tarefa e da parte psicótica da mente grupal, é importante destacar a dinâmica entre o instituído e o instituinte. Essa noção parte tanto da instituição como da ordem de uma organização de regras simbólicas encarnadas em grupos e pessoas que naturalmente tende a acomodar e significar as experiências com base em suas regras explícitas e implícitas de funcionamento, de forma tal que as instituições, como os grupos que a sustentam, são necessariamente refratárias à alteridade e, portanto, narcísicas em sua manutenção do instituído. Nesse sentido, é preciso mobilizar a dimensão instituinte na transferência grupal, como forma de ensejar transformações e inovações.

Nesse contexto, é importante resgatar o narcisismo das pequenas diferenças como expressão da resistência do instituído, mas também como modo de diferenciação pela estigmatização, não raro pela expressão de formas discriminatórias de violência. Com a fragmentação da identificação aos ideais paternos, a distância entre o eu e o ideal diminui, e, assim, qualquer ideia que se apresente como mais sedutora, como mais compatível com os imperativos do gozo, pode servir como essa instância ideal. Dessa relação entre o eu e o ideal, Freud já havia descrito dois fenômenos possíveis: a oposição entre melancolia e mania, bem como a fascinação e a servidão em relação ao objeto de amor. Ambos podem ser condições para fenômenos de extrema violência. Se a ideia que foi alçada ao lugar de ideal for de perseguição a outros grupos, de caráter extremista ou totalitário, a cegueira do amor pode levar a catástrofes em âmbito social (Rocha, 2014).

Cabe destacar que, nessas dinâmicas da atualidade, é a própria relação entre eu e ideal que sofre transformações em seu regime de simbolização, passando de uma mediação propriamente simbólica (ou seja, em que a relação com o objeto é da ordem do sentido, metaforizada e mediada pela realização futura) para uma relação marcada pelo registro do imaginário. Isto é, essa relação permanece em sua dimensão estética e imediata, encarnada na concretude do corpo e na espacialidade. Dessa forma, aquilo que se encontra no âmbito das saídas sintomáticas das psicopatologias contemporâneas também se apresenta como forma privilegiada de expressão e modulação nos grupos: a passagem ao registro da ação e do gozo, em uma compulsão repetitiva de caráter aditivo, marcada pela predação do outro em uma lógica de consumo.

A partir da falência dos ideais patriarcais e das instituições simbólicas, o sujeito contemporâneo se vê desamparado. Nesse desamparo, ele parte em busca de ligações com ideais encontrados em grupos mais ou menos efêmeros. É possível haver, então, um paralelo entre os fenômenos descritos por Freud e a situação atual, quase um século depois. Assim, tanto a acefalia das massas quanto os fenômenos de submissão/fascinação perante determinados ideais continuam válidos atualmente, contudo mais exacerbados e dramáticos. Do mesmo modo, diante de pessoas ou ideias que sejam opostas ou contraditórias àquele ideal, parte-se para um caminho de violência.

Partindo da noção de Aulagnier (1979) sobre a violência da interpretação, em que a palavra recalcada está intrinsecamente ligada à violência e à dor, Marin (2002; 2006) se dispõe a analisar o que denomina paradoxo do cenário contemporâneo: na busca pela paz, há, ao mesmo tempo, o aumento de índices sobre a violência bem como uma tendência em negar qualquer afeto ligado a ela. Para tanto, a autora retoma o paralelo estabelecido na literatura entre violência e pulsão. Mais do que a ideia de que a pulsão seja o limite entre o psíquico e o somático, a autora propõe o movimento pulsional em quatro momentos, que conduziriam do geral ao singular. Primeiramente, como "princípio" que rege a todos os seres viventes; depois, como "força" que impele a ação; como algo da ordem do corpo somático que "brota" no sujeito; e, por fim, como algo que aparece para o sujeito como um "imperativo pessoal". Desse modo, compreende a pulsão como a dobradura não exatamente entre o psíquico e o somático, mas entre o social e o biológico. Assim, endossa a posição freudiana de que seja necessária a renúncia de parte da satisfação pulsional para que possamos nos inscrever na cultura.

Do ponto de vista psicanalítico, a concepção geral de violência remete ao ímpeto da força pulsional para além das possibilidades de contenção e elaboração psíquica. Desse modo, é mais ampla do que seus derivados mais comuns, a agressividade, a destrutividade e o par sadismo-masoquismo, que já indicam um encaminhamento dessa força no plano do sentido e da intencionalidade. A violência, assim, seria da ordem de uma irrepresentabilidade traumática própria à pulsão e, portanto, "amoral". Nesse sentido estritamente metapsicológico, pode ser assimilada a uma perspectiva naturalizante e reificante ao tema. O risco dessa redução faz com que alguns autores da literatura atual prefiram incluir a violência no âmbito do deslocamento irracional do sentido e não apenas no do traumatismo intensivo (Costa, 1984), como forma de trabalhar suas implicações morais e socioculturais, ou seja, em sua dimensão de necessidade de regulação do mal-estar intrínseco aos vínculos sociais (Birman, 2014). Essa indicação vem no sentido de tentar sair de um lugar-comum na discussão psicanalítica que toma a violência em termos muito genéricos e estritamente metafísicos, ora servindo para adjetivar o próprio processo civilizatório, ora servindo de sinônimo do ímpeto das exigências pulsionais.

O problema é que, na Contemporaneidade, existe uma tendência para negar a própria violência, o que está diretamente associado ao aumento das irrupções violentas no social. O imaginário social narcísico levaria à negação de quaisquer manifestações associadas ao desprazer e sofrimento. Do mesmo modo, as regulações sociais mais pautadas na estética do que na ética ensejariam exigências pulsionais cada vez maiores que acabam por expor o sujeito a um excesso de excitação que o deixa em desamparo. O ato violento surge como saída para a expressão de sua singularidade e possibilidade de eliminação e aniquilamento do outro. Outra possibilidade é o apagamento de toda a diferença por identificações massificantes ou pela busca fetichista de bens de consumo; ou ainda, o completo desinvestimento depressivo, como recusa ao conluio performático contemporâneo. Birman (2005) chama isso de cenário propício à implosão e à explosão da violência no campo social, corolário da negação da alteridade. É possível ainda notar como estão em jogo no plano coletivo e grupal de produção do sofrimento o mesmo naipe das defesas descritas por Green (2008) nas chamadas psicopatologias contemporâneas.

Uma forma de resistência a esse movimento de fragmentação dos vínculos pode ser encontrada em instituintes grupais. Nesse sentido, cabe gerir o desamparo por meio do resgate do laço solidário e comunitário, na forma do exercício do que Kehl (2000) denominou "função fraterna". A função fraterna é o complemento horizontal da função paterna vertical no esquema clássico da dinâmica de grupos. A ruptura do equilíbrio tênue do jogo sadomasoquista de projeções narcísicas intergrupais depende do germinar de possibilidades de gestão de novos ideais grupais como emergentes eróticos. Essa seria a esperança para a neoformação de laços sociais libidinais na atualidade, em caráter de sublimação (Campos, 2013). Isso, contudo, depende de uma relação não defensiva e narcísica com a alteridade, a qual passa, paradoxalmente, pelo resgate da violência.

É aqui que se destaca a tese que Marin (2002; 2005) vai fundamentar no movimento da psicopatologia fundamental (Berlinck, 2000) e na proposição de Bergeret (1996) de uma "violência fundamental". Trata-se da retomada não somente da positividade do sofrimento, como meio de elaboração do desejo, mas da própria vitalidade da pulsão. No jogo entre violência pulsional e exigência civilizatória na constituição subjetiva tanto individual quanto social, "assumir" os afetos violentos seria uma maneira de reconhecer o outro no processo de alteridade e, portanto, transformar a relação entre "nós" e "eles" (na qual não há reconhecimento da diferença) em uma relação entre "nós" e "vocês", na qual há interlocução possível. Assumir a violência como constitutiva das relações humanas não significa justificá-la, mas sim que há a necessidade de responsabilizar-se por esses encontros com a diferença e pelos restos de violência que deles resultam. Ou seja, como destaca Saroldi (2015), se a ambivalência pulsional se aprofunda e retorna ao próprio sujeito, há um resto que temos de lidar: a loucura e as diversas formas de violência genérica presentes na destrutividade, no crime, na submissão, etc.

Se o desamparo é resultado do transbordamento das moções pulsionais e da incapacidade do eu em administrá-lo, as funções recalcantes falham, e o outro se torna empecilho à satisfação, precisando ser aniquilado. Sobre essas falhas, Marin (2006) argumenta que, se é no pacto edípico que o sujeito se vê diante da necessidade de adiar ou renunciar a plena satisfação pulsional para garantir proteção, reconhecimento e um lugar na comunidade social, na sociedade contemporânea (a partir do imperativo de gozar cada vez mais), o que fica comprometido são os próprios pactos sociais. Assim, por essa via, retomamos a hipótese de que a subjetividade contemporânea está regida mais pelo princípio de organização do eu ideal e não pela mediação do ideal de eu.

Resgatando a discussão contemporânea do declínio da função paterna, Marin (2002) retoma do pensamento freudiano a ideia de que a fundação da civilização acontece não somente em torno do assassinato do pai tirânico, mas também do pacto entre os irmãos sobre o crime. Nesse sentido, sua proposição vem se somar a Kehl (2000), que vê na instauração de laços solidários e fraternos a possibilidade de gestão do desamparo e instituição de novos ideais.

Com base nisso, na Contemporaneidade, podemos questionar se a figura do pai tirânico não seria representada justamente pela suposta possibilidade de controle de qualquer sofrimento, a partir da oferta ilimitada de consumo e o acesso igualmente ilimitado ao poder. Da mesma forma, a comunidade fraterna perderia seu pacto social com a ideia de que o irmão privilegiado necessitaria ser eliminado, sendo que os critérios para isso seriam os mais subjetivos: "Desde o portador de um objeto de fetiche [. . .], até aquele que, pela sua estética (ou posição social), compromete o ideal de perfeição, ou até mesmo o fracasso dos ideais democráticos modernos" (Marin, 2006). Assim, é necessário assumir a orfandade para que se criem as leis de reciprocidade, de respeito às diferenças e de reconhecimento do semelhante. Entretanto esse processo seria dificultado em uma sociedade na qual a promessa primordial é de que não haja a falta e em que tudo seja consumível. O preço a ser pago por essa falsa promessa, contudo, é alto e inclui a violência: desde a submissão ao poder pela demanda de amor até a segregação e exclusão de estrangeiros, no sentido freudiano de estranho (Unheimlich).

Outro aspecto particular da atualidade é o fato de a mídia banalizar imagens e discursos acerca da violência e da morte, tornando-a uma forma de "violência branca" (Marin, 2006) ou, como Birman (2014) resgata de Arendt, de "banalização do mal". O espetáculo por ela produzido teria como função não apenas possibilitar algum tipo de regulador pulsional, mas também de mobilizar a negação como retorno do recalcado e como uma tentativa de negar a percepção das representações de violência e destrutividade. Essa assertiva vem no sentido do que apontamos sobre a indicação de Costa (1984), sobre a perda de especificidade e força do conceito de violência nas discussões contemporâneas. Assim, a partir dessa aparente ambiguidade de exposição e negação da violência, os sujeitos ficariam poupados do enfrentamento da própria condição de desamparo que os faria encarar a violência fundamental e as relações alteritárias. Ao sinal de qualquer possibilidade de rompimento com esse desconforto, há uma negação do sujeito, que entende, então, o "estrangeiro" como ameaça, isso porque ele representa o que deveria ter sido recalcado.

"A relação com o outro seria, portanto, o impasse e ao mesmo tempo a solução para a problemática da violência." É neste sentido que a escuta psicanalítica serviria para dar continência, representação e tolerância a esses restos que sobram da dimensão alteritária, bem como ensejar a produção de espaços mentais e sociais para a instituição de simbolizações e vínculos. "É nesse sentido também que a psicanálise pode endossar não somente uma tomada de posição ética, mas também política em relação aos grupos e às instituições."

Apoiados na discussão precedente, propomos que se resgate a violência fundamental, que caracteriza o encontro com a alteridade, como forma de restabelecer os vínculos e o pacto social. Na busca da autonomia é necessário o reconhecimento do outro como tal, das relações de dependência que se estabelecem entre as pessoas e mesmo a noção de submissão ao desejo do outro. A partir daí, podemos fazer um interessante resgate das noções de cidadania e de "educação" dos afetos. Ao tomar o sentido da fala e da ação como modos privilegiados de encontro com o outro (nos quais é possível entrar em contato com o mal-estar e seus esforços em negá-lo), o psicanalista permite ao sujeito expressar-se para, assim, encontrar meios sociais sustentáveis de vinculação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apoiando-se na leitura psicanalítica sobre a atualidade, buscamos discutir, neste ensaio, algumas acepções sobre a violência em âmbito social e grupal, bem como a partir da singularidade do sujeito. Para isso, procuramos aporte na articulação teórica metapsicológica, da tradição freudo-lacaniana e em autores contemporâneos. Nesse sentido, apontamos que, na atualidade, passa a imperar uma falha na capacidade humana de se relacionar e se organizar em sociedade, o que demonstra que as promessas de felicidade da civilização moderna malograram. Trata-se de uma falha na constituição de uma das principais obras de sustentabilidade coletiva e pessoal, ou seja, ocorre uma fragilização e uma desconstrução dos vínculos que permitem a ligação do sujeito com um objeto. Esse fenômeno é ampliado com o esquecimento do passado e suas narrativas, a pressa do presente, a incerteza e desencanto do futuro, que marcam as relações e vivências espaço/temporais do sujeito. Soma-se a esse fenômeno o enfraquecimento das instituições bem como dos vínculos e relações entre pessoas, elevando-se a vulnerabilidade e vazio existencial que nos lança na experiência do desamparo, campo fértil para violência em suas múltiplas faces.

Rompendo com os ideais iluministas da Modernidade, a psicanálise propõe-se a olhar para determinados fenômenos a partir da lógica do inconsciente e da formação do sujeito, o que não se desliga, de forma alguma, do âmbito social e mesmo psíquico. Nesse sentido, buscamos uma compreensão do que seriam os desdobramentos da psicologia de grupos de Freud na atualidade, especialmente no tocante à temática da violência e aos mecanismos do eu e suas instâncias ideais envolvidas nos processos de identificação. A partir dessa perspectiva, defende-se a categoria da pulsão como privilegiada para analisar o fenômeno da violência na Contemporaneidade como força somática sujeita às vicissitudes do processo civilizatório sobre o ser humano. É a força pulsional que impele à satisfação narcisista na destruição do outro, força da qual o sujeito não pode furtar-se. Já a violência fundamental envolve reconhecer o assassinato do pai e assumir a própria orfandade, que também caracteriza os encontros humanos. É também "violência fundamental" a "função paterna" que representa o corte na sensação onipotente de plenitude da relação mãe/bebê bem como a "função fraterna" que pode instituir um novo ideal. Assim, a noção de violência pode ser recuperada e ressignificada para dar conta desse encontro da pulsão com o outro, como característica fundamental desse sujeito constituído pela cultura.

Assim, o enfoque recai sobre o déficit no reconhecimento alteritário como principal fator na constituição do cenário da violência contemporânea, ou seja, a questão atual da violência envolve essencialmente um problema no reconhecimento da diferença. Aqui se encontra o sujeito que oscila entre os polos narcísicos e alteritários, entre o amor de si e o amor do outro, expressando-se na tensão entre o eu ideal e o ideal de eu que o caracteriza no âmbito dos fenômenos identitários. É justamente nesse ponto em que incide a discussão psicanalítica sobre os grupos. Se a violência, na Contemporaneidade, está na falta de reconhecimento do outro, é nessa relação entre o indivíduo e os grupos dos quais faz parte que podem ser traçados novos caminhos para a condição humana de desamparo. Nesse sentido, em nossa sociedade contemporânea, torna-se fundamental o surgimento e o fortalecimento de grupos que não neguem seus afetos violentos, mas sim promovam, por meio de suas palavras e ações, a vazão das pulsões articuladas aos ideais de valorização das diferenças, a busca de igualdade de direitos e a instituição de novas formas de regular o desejo.

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Texto recebido em 11 de outubro de 2018 e aprovado para publicação em 17 de fevereiro de 2020.

 

 

* Doutor e mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP); bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq - Nível 2; docente do Departamento de Psicologia – Faculdade de Ciências de Bauru – Universidade Estadual Paulista (Unesp).
** Mestranda no Programa de Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem da Unesp (Bauru); discente do Curso de Graduação em Psicologia na Faculdade de Ciências de Bauru – Unesp. E-mail: debora.r.sertori@gmail.com.
***Mestrando no programa de Pós-Graduação do Desenvolvimento e Aprendizagem pela Unesp; discente do Curso de Graduação em Psicologia na Faculdade de Ciências de Bauru – Unesp. E-mail: e.turato@uol.com.br. Endereço: Departamento de Psicologia – Unesp Bauru. Avenida Engenheiro Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01 - Vargem Limpa, Bauru-SP, Brasil. CEP: 17033-360. Telefone: (14) 31036-087.

 

 

1 A primeira data indica o ano de publicação da obra, e a segunda, a edição consultada pelo autor, a qual somente será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data de publicação original.

 

 

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