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Psicologia Hospitalar

versão On-line ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) v.2 n.2 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Estudo da população fraturada, devido a acidentes de trânsito, internada na Santa Casa de São Paulo

 

 

Orsati, F. T.1,2; Machado, F. S.1,2; Kitayama, M. M. G.1,2; Bruscato, W.L.1,2

 

 


RESUMO

Introdução:Estudando uma população fraturada, percebemos grande incidência de acidentes de trânsito (AT), a segunda maior causa de morte no país, custando R$105 milhões ao governo por ano. Objetivo: Caracterizar a população fraturada em conseqüência de AT e averiguar associação deste com uso de álcool. Metodologia: 67 pacientes fraturados, de ambos os sexos, com idades entre 18 e 92 anos, preencheram a Ficha Sócio-Demográfica e o Protocolo de Avaliação Psicológica, em entrevistas nos leitos, com duração aproximada de 50 minutos. Resultados: 37,3% são vítimas de AT, predominando acidentes de moto (17,9%), sendo a proporção maior de homens em 2:1. Da amostra, 44,8% refere uso atual de álcool. Nesta população que utiliza álcool, 63,3% possuem entre 18 e 32 anos e 35% destes jovens envolveram-se em acidentes. Conclusão: A prevalência de AT na população masculina jovem é correlacionada com a idade, uso atual de álcool e aumento do número de trabalhadores com moto.

Palavras-chave: População fraturada, Acidentes de trânsito, Abuso de álcool.


ABSTRACT

Introduction: Among the fractured population, there is high incidence of traffic accident (TA), the second biggest death cause in the country, which expenses to the government represents R$105 million. Objective: To characterize the fractured population in consequence of TA and to verify the association of TA with alcohol use. Methods: 67 fractured patients, both genders, ages between 18 and 92, fulfilled the Social-Demographic File Card and the Psychological Evaluation Protocol through interviews with 50 minutes length realized at the hospital bed. Results: 37,3% are TA victims, mainly motorcycle accidents (17,9%), with prevalence of male gender of 2:1. In the sample, 44,8% reports current alcohol consumption. Among the population which ingests alcohol, 63,3% are 18 to 32 years old and 35% of these young sample have been involved in accidents. Conclusion: The prevalence of TA among young male population is related to age, current alcohol consumption and the increase of motorcycle-workers.

Keywords: Fractured population, Motor traffic accidents, Alcohol abuse.


 

 

I. INTRODUÇÃO

Os avanços recentes na pesquisa médica, psicológica e fisiológica têm levado a uma nova maneira de pensar sobre o processo saúde-doença, assim como a um novo enfoque sobre o homem como sendo único e indivisível. Esta conceitualização, o modelo biopsicossocial (Engel, 1980), vê a saúde e a doença como o produto de uma combinação de fatores, incluindo características biológicas, aspectos psicológicos e condições sociais, possibilitando melhor conhecimento do ser humano e, assim, a promoção da saúde ao invés do tratamento da doença. A saúde decorre do equilíbrio entre estes três âmbitos e, quando tal equilíbrio não é atingido, a doença acomete o indivíduo como um todo. Neste modelo “o ser humano é visto de uma maneira global e individualizada” (Mello Filho, 1992) e não como partes de um organismo a ser reparado. Desta forma, o espaço em que exercemos nossa profissão na área da saúde é o todo do mundo dos homens. Assim, quando um homem adoece, adoece não só como organismo, mas como pessoa. Não apenas como corpo físico, mas como corpo simbólico.

Essa nova concepção proporcionou a aproximação do psicólogo de outros profissionais da área de saúde e a integração de conhecimentos na interface entre distúrbios orgânicos e manifestações psicológicas, através da priorização de um atendimento integrado e multidisciplinar. Desta forma, a instalação de Serviços de Psicologia no Hospital Geral tem sido reconhecida como importante recurso para provisão de assistência não só ao paciente, mas também às equipes de saúde, proporcionando-lhes um conhecimento interdisciplinar, apoio e facilitação para lidar com os problemas psicológicos em pacientes clínicos e cirúrgicos.

A maneira como cada indivíduo vivencia e enfrenta a doença é algo pessoal em função de características de personalidade, da capacidade de tolerar frustrações, das vantagens e desvantagens advindas da posição de doente, assim como da sua relação com as pessoas e seus projetos de vida. Portanto, a avaliação das condições psicológicas decorrentes da doença e da hospitalização, das condições de estresse e vulnerabilidade, dos traços de personalidade, dos conflitos emocionais e dos mecanismos adaptativos, bem como as experiências prévias, com doenças, médicos e hospitais, precisa ser levada em conta nesse contexto hospitalar (Penna, 1990).

As investigações destes fatores têm tido como resultado, a afirmação de que problemas afetivos influenciam a evolução das enfermidades, quer prolongando-as, quer agravando o quadro clínico do paciente (Botega, 1995; Fortes et al., 1995; Botega & Smaira, 2002).

No âmbito da Ortopedia e da Traumatologia, não foram encontrados estudos específicos que falem das questões psicológicas como possíveis causas ou conseqüências do trauma. Além disto, em grande parte dos casos, o paciente internado numa unidade de trauma, não é um doente. É uma pessoa que gozava de saúde perfeita e, em função de um acidente, vê-se repentinamente hospitalizado. Mas sabe-se que alguns fatores, sejam eles de origem orgânica, como osteoporose, demência, uso de medicamentos, ou de ordem psicológica como transtornos de humor (depressão), alcoolismo, ansiedade, tentativas de suicídio, comportamento repetitivo de exposição ao risco, estilo de vida, estresse, talvez possam ser relacionados como causa do trauma (Botega, 2002).

Estes traumas que advêm de acidentes em geral ou de violências, ambos possuem suas causas denominadas de causas externas. Segundo o Ministério da Saúde, as mortes violentas devidas a causas externas (acidentes e violências) na atualidade representam a segunda maior causa de óbitos no país (15%), inferior somente às doenças do aparelho circulatório (32%). Os acidentes de trânsito (AT) encontram-se na primeira categoria e representam as principais causas de internação no Sistema Único de Saúde (SUS) utilizando-se de aproximadamente 30% da verba destinada pelo Ministério da Saúde às vítimas de causas externas, correspondentes a R$ 105 milhões por ano (Ministério da Saúde, 2003). No Estado de São Paulo, segundo dados da Secretaria da Saúde, dentre as porcentagens de mortes violentas, os acidentes de trânsito correspondem à segunda maior causa (entre 5 e 6 mil casos no ano de 2000, ver (Gráfico 1), sendo os homicídios a maior, com números entre 15 e 16 mil casos também no ano de 2000.

O gráfico em anexo também nos mostra que a mortalidade devido aos acidentes de trânsito diminuiu de 1999 a 2000. Podemos supor que essa redução tenha ocorrido pela implantação do novo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em vigor a partir de janeiro de 1998 (DENATRAN, 2003), que tem como principais objetivos, medidas preventivas para diminuir fatores de risco para acidentes de trânsito e preservação da vida.

Acidentes de trânsito dificilmente ocorrem por fatalidades. O estado dos veículos e das estradas, a negligência de pedestres e condutores são os principais motivos, porém, dentre estes, predominam as falhas humanas. Um coadjuvante comumente associado aos AT é o álcool, substância psicoativa muito utilizada na sociedade atual, com ampla aceitação cultural e de fácil acesso, que provoca além das alterações comportamentais, uma lentificação do pensamento, prejuízo da concentração, do raciocínio, da atenção e do julgamento (Botega, 2002). Segundo Kolb e Wishaw (2002) drogas psicoativas, como o álcool, atuam sobre o humor, o pensamento, ou o comportamento e ainda, podem atuar como toxinas no organismo causando doenças, danos cerebrais e até morte. As alterações provocadas pela ingestão do álcool dependem de outros fatores como a alimentação, a quantidade ingerida, a tolerância à bebida, entre outros, mas independente destas ou de outras características, a permissão legal para a condução de veículos exige um nível plasmático de álcool inferior a 0,06mg% (Botega, 2002).

O álcool é uma droga bem familiar, amplamente consumida, e é denominada droga sedativo-hipnótica, pois, em baixas doses, reduz a ansiedade e em doses médias seda o usuário. Porém, se consumido em altas doses, causa anestesia ou coma e ainda, se consumido em doses muito altas pode causar a morte. Uma característica deste tipo de droga é que elas causam respostas cada vez mais fracas no usuário que consome repetidas doses. Assim, é necessária uma dose cada vez maior para manter o efeito inicial. Essa diminuição da resposta com o passar do tempo é chamada tolerância, e é o que mostra o grau de cronicidade do alcoolismo, pois o indivíduo consome quantidades cada vez maiores para atingir igual sensação de prazer, sentir-se mais relaxado e menos ansioso, sintomas que a falta da bebida – abstinência – traz (Kolb & Wishaw, 2002).

O consumo do álcool está relacionado a comportamentos de risco, nocivos, que são dispendiosos tanto para o indivíduo quanto para a sociedade (Kolb & Wishaw, 2002). São exemplos atividade sexual desprotegida, beber e dirigir, estupro ou abuso de parceiro, além de outras formas de agressão e crime. A literatura refere algumas teorias que tentam explicar essas associações, como a Teoria de Desinibição, descrita por Kolb e Wishaw (2002), segundo a qual o álcool tem um efeito depressor seletivo sobre o córtex, responsável pelo julgamento, e poupa áreas sub-corticais, responsáveis pelos instintos primitivos. Ou seja, ele deprime as inibições aprendidas com base na razão e no julgamento e libera “instintos animais”. Esta teoria, porém, não é amplamente aceita, devido às diferenças nos efeitos que o álcool pode causar no organismo, já que o consumo do mesmo pode, ao contrário da teoria proposta, tornar uma pessoa mais inibida e envergonhada. Outros autores, MacAndrew e Edgerton (citado por Kolb & Whishaw, 2002) sugerem que o comportamento sob efeito do álcool representa a suspensão de regras aplicadas à vida diária, por isso esses comportamentos podem ser distintos para diferentes culturas, grupos e cenários. Esta teoria justifica então, o uso de álcool como facilitador das relações sociais, que vivem permeadas de regras culturais, pois o comportamento durante a intoxicação representa uma suspensão das regras mais conservadoras no que diz respeito a encontros amorosos, por exemplo.

MacDonald et al. (citado por Kolb & Wishaw, 2002), estudiosos da área, referem-se à miopia alcoólica, uma tendência das pessoas que, sob a influência do álcool, respondem a um conjunto restrito de estímulos proeminentes e imediatos, enquanto ignoram estímulos mais remotos e as possíveis conseqüências. Isto explicaria muitos lapsos de julgamento, que levariam a comportamentos de risco, incluindo agressão, estupro e direção perigosa sob efeito do álcool.

Enfim, existem muitas teorias diferentes, mas elas convergem em um ponto: o álcool influencia no julgamento racional humano, fazendo a pessoa tomar atitudes precipitadas que levam a comportamentos de risco, com prejuízos não só para si, como para outros indivíduos a sua volta.

Este assunto faz-se de grande relevância para a saúde pública, devido à alta taxa de mortalidade associada ao uso de álcool (30 mil pessoas em 1998) e, também, pelo valor substancial gasto com hospitalização, tratamento e reabilitação das vítimas de acidentes não fatais, cerca de 270 mil pessoas por ano (Ministério da Saúde, 2001).

 

II. OBJETIVOS

1. Objetivo Geral

Caracterizar o perfil sócio-demográfico dos pacientes polifraturados atendidos na enfermaria do Departamento de Ortopedia e Traumatologia (DOT) da Santa Casa de São Paulo.

2. Objetivos Específicos

- Caracterizar a população fraturada em conseqüência do envolvimento em acidentes de trânsito.

- Averiguar a associação deste acidente de trânsito com o uso de álcool.

 

III. MÉTODO

1. Sujeitos

Pacientes adultos, de ambos os sexos, maiores de dezoito anos, hospitalizados nos segundo e quarto andares do DOT, com o diagnóstico de polifratura.

2. Instrumentos

Foram utilizados como instrumentos de pesquisa:

- Ficha Sócio-Demográfica elaborada pelos pesquisadores com esta finalidade (Anexo 1).

- Protocolo de Avaliação Psicológica elaborada pelos pesquisadores com esta finalidade (Anexo 2).

3. Procedimento

Foram realizadas, por uma dupla de estagiários, entrevistas no leito dos pacientes no DOT, entre os dias 22 de abril e 29 de maio de 2003. As entrevistas tiveram a finalidade de preenchimento da ficha Sócio-Demográfica e do Protocolo de Avaliação Psicológica e levaram entre 30 e 50 minutos.

4. Análise

Os dados obtidos foram codificados e inseridos no banco de dados criado no SPSS for Windows, Versão 6.0 (Norusis, 1993). Em seguida foi feita uma análise exploratória para averiguação das medidas de tendência central, dispersão e forma. Análises univariadas exploraram as variáveis sócio-demográficas em relação às variáveis psicológicas e o cálculo do coeficiente de correlação foi estabelecido entre algumas delas. Foi arbitrado, para todos os testes, o nível de significância em p£ 0,001.

 

IV. RESULTADOS

A amostra consistiu em 67 pacientes com diagnóstico de fratura internados nas enfermarias do Grupo do Trauma do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Santa Casa de São Paulo. Setenta e dois pacientes foram abordados, porém apenas 68 preencheram os critérios de inclusão, sendo que um deles se recusou a participar do estudo, três não possuíam diagnóstico de fratura e um outro apresentava no momento da entrevista um quadro de confusão mental.

Os 67 pacientes participantes da amostra tinham idade média de 45,3 anos (DP=21,9). Para a amostra masculina, a média era de 36,3 anos (DP=16,2) e para a feminina, 59,5 (DP=22,5). Quarenta e um pacientes (61,2%) eram do sexo masculino e 26 (38,8%) do sexo feminino. Para a amostra total, a idade mínima era de 18 anos e a máxima de 90 anos, produzindo, portanto, uma extensão de 72 anos. A mediana era de 39 anos e 25% dos pacientes têm mais de 65 anos. Para a população feminina, a mediana esteve em 69 anos, já na masculina a mediana foi para 30 anos.

Com relação aos demais dados sócio-demográficos coletados com os pacientes (ver Tabela 1), temos que, quanto à raça, 48 pacientes (71,6%) eram brancos, 11 (16,4%) eram pardos, 7 (10,4%) negros e 1 (1,5%) amarelo.

Tabela 1: Variáveis sócio-demográficas da amostra de pacientes (N=67)

VARIÁVEIS

N (%)

Raça

Branca = 48 (71,6%)

Parda = 11 (16,4%)

Negra = 7 (10,4%)

Amarela = 1 (1,5%)

Naturalidade

Cidade de São Paulo = 17 (25,4%)

Interior do Estado de São Paulo = 14 (20,9%)

Outro Estado do Brasil = 29 (43,3%)

Outro País = 7 (10,4%)

Estado civil

Solteiro = 31 (46,3%)

Casado = 23 (34,3%)

Separado/Divorciado = 7 (10,4%)

Viúvo = 6 (9%)

Escolaridade

Média de anos = 6,8

Chegou ao curso superior = 5 (7,5%)

Situação ocupacional

Executa alguma atividade = 37 (55,2%)

Não trabalha = 27 (40,3%)

Estuda = 3 (4,5%)

Renda mensal familiar

Até 2 salários mínimos = 8 (11,9%)

Mais de 2 a 4 salários mínimos = 25 (37,3%)

Mais de 4 a 6 salários mínimos = 12 (17,9%)

Mais de 10 salários mínimos = 7 (10,4%)

Diagnóstico

Fratura membro inferior = 43 (64,1%)

Fratura membro superior = 14 (20,9%)

Fratura coluna cervical = 4 (6%)

Fratura cintura escapular = 1 (1,5%)

Mais de uma fratura = 5 (7,5%)

Causa da fratura

Acidente de trânsito = 25 (37,3%)

Queda da própria altura = 19 (28,4%)

Queda = 9 (13,4%)

Situação de lazer = 5 (7,5%)

Acidente de trabalho = 4 (6%)

Violência = 4 (6%)

Para a variável naturalidade, 17 pacientes (25,4%) eram naturais da cidade de São Paulo e outros 14 (20,9%) eram do interior do Estado de São Paulo. Trinta e seis (53,7%) eram naturais de fora do Estado de São Paulo, sendo 29 pacientes (43,3%) de outro Estado do Brasil (com predominância do Estado de Pernambuco, 8 pacientes, porcentagem de 11,9% do total da amostra), e 7 pacientes naturais de outros países (10,4%).

Em relação ao estado civil, 31 (46,3%) eram solteiros, 23 pacientes eram casados (22,4%) ou tinham uma relação estável (11,9%), 6 eram viúvos (9%) e 7 eram separados ou divorciados (10,4%).

A média de anos de escolaridade da amostra era de 6,8 anos e 5 pacientes (7,5%) chegaram ao curso superior. No que diz respeito à situação ocupacional, 27 pacientes (40,3%) não trabalhavam, por desemprego, aposentadoria ou por nunca terem exercido uma profissão. Trinta e sete (55,2%) desempenhavam algum tipo de atividade profissional, ainda que doméstica e 3 pacientes (4,5%) ainda estudavam.

Considerando a renda mensal familiar (Gráfico 2), 11,9% da amostra, 8 pacientes, ganham até 2 salários mínimos, 37,2% (25 pacientes) referem ter como renda mais de 2 a 4 salários mínimos, 17,9% (12 indivíduos) ganham mais de 4 a 6 salários, 10,4% (7 pacientes) têm como renda mais de 10 salários e outros 15 pacientes (22,4%), não souberam informar.

Com relação ao diagnóstico da fratura, o de maior incidência foi a fratura no membro inferior para 43 pacientes (64,1%), em seguida aparece membro superior com 14 pacientes (20,9%), coluna para 4 pacientes (6%), cintura escapular para 1 paciente (1,5%) e mais de uma (polifratura) para 5 pacientes.

Como causa da fratura 19 pacientes (28,4%) referiram queda da própria altura. Para 9 pacientes, (13,4% do total), o motivo deveu-se a quedas em geral, para outros 5 pacientes (7,5%) a fratura ocorreu em situação de lazer e para 4 (6%), foi decorrente de acidente de trabalho. Violência, condutas agressivas ou ferimento por arma de fogo, foi responsável por 6% (4 pacientes, sendo apenas uma mulher). Tais dados podem ser melhor visualizados na Tabela 1.

 

 

Dentre os indivíduos fraturados, 37,3% são vítimas de acidentes de trânsito (AT). A categoria acidentes de trânsito, em nossa pesquisa abrangeu: atropelamentos (14,9%), acidentes de moto (17,9%) e acidentes automobilísticos (4,5%). Dentro desta população, a predominância é do gênero masculino (N = 41) com 46,4% dos casos, enquanto na população feminina (N = 26) a porcentagem é de 23%. Tais dados apontam para um maior envolvimento da população masculina em AT, em uma proporção de aproximadamente 2:1 (ver Tabela 2).

Tabela 2:Porcentagem da relação causa do acidente e gênero da amostra (N=67).

TIPOS DE AT

População Total

População Masculina

População Feminina

Atropelamento

14,9%

17,1%

11,5%

Acidentes de Moto

17,9%

22%

11,5%

Acidentes Automobilísticos

4,5%

7,3%

0

Total de Acidentes de Trânsito (AT) 

37,3%

46,4%

23%

Observando o Gráfico 3 percebemos que dentre as causas de AT, os acidentes de moto são os que têm maior incidência na população masculina com 22% dos casos, já na população feminina acidente de moto e atropelamento têm a mesma incidência, 11,5%. Quanto a acidentes de carro não observamos nenhum caso entre as mulheres e 4,5% dos casos entre os homens.

Observando os dados levantados, 44,8% da amostra (30 pacientes) referem uso atual de álcool, sendo que dentre a população envolvida em acidentes de trânsito este número chega a 50%. Avaliando as amostras divididas por gênero, 61% dos pacientes do sexo masculino (25 dos 41 homens), referiram uso atual de álcool, porém desta população apenas 7,3% relacionam a influência do álcool com o acidente. Na amostra feminina de 19,2% (5 das 26 mulheres) que referem uso atual de álcool, nenhuma correlaciona influência deste uso no acidente (ver Tabela 3 e Gráfico 4).

Tabela 3: Relação das porcentagens entre uso atual de álcool e influência deste uso no acidente com gênero (N=67).

 

População Total

População Masculina

População Feminina

Uso atual de álcool

44,8%

61%

19,2%

Referem influência de álcool no acidente

4,5%

7,3%

0

Cruzando as variáveis idade e uso de álcool, percebemos que 28% dos jovens (19 pacientes) com idades variando entre 18 e 32 anos, de ambos os sexos, relatam uso atual de álcool, no entanto, com idades acima de 32 anos apenas 16% da amostra refere este uso. Observando a população que utiliza álcool atualmente, dos 30 pacientes, 63,3% (19 pacientes) encontra-se na faixa de 18 a 32 anos, ou seja, mais da metade dos pacientes internados com fraturas que referem uso de álcool, são jovens. Avaliando a amostra jovem encontramos um índice de 35% (24 pacientes) desta população envolvida em acidentes, sendo que este índice diminui para 29% (20 indivíduos) em pacientes com mais de 32 anos.

 

V. DISCUSSÃO

A porcentagem da população masculina envolvida em AT é de 82,9% (N=41), sendo consideravelmente superior à feminina, com apenas 38,5% (N=26) dos casos. Essa prevalência da população masculina nos chama muito a atenção, principalmente por correlacionar-se com outras variáveis, como incidência em jovens, uso atual de álcool e aumento do numero de trabalhadores com moto.

O envolvimento de jovens em AT é grande, chegando a 35,8% das vítimas de acidentes de trânsito; por isso achamos necessário um aprofundamento teórico e entendimento das questões relacionadas à adolescência, para uma maior elucidação desta fase e sua relação com o acidente de trânsito.

A adolescência é uma fase de transição na qual ocorrem mudanças significativas tanto no aspecto biológico com as diferentes transformações corporais, quanto nos aspectos cognitivos com a aquisição gradual de uma nova identidade que vai se relacionar com as áreas sexual, profissional e ideológica. É uma espécie de ritual de passagem determinada culturalmente para a entrada no mundo adulto (Bee, 1996).

O jovem de hoje, para obter sucesso no mercado de trabalho e na sua profissão, precisa dedicar muito tempo à sua formação e especialização, por estar inserido em uma sociedade na qual os desenvolvimentos tecnológicos e científicos ocorrem constantemente e de forma muito veloz. Essas culturas mais desenvolvidas vão exigir mais dos novos profissionais, fazendo com que essa preparação se estenda até o início da vida adulta. Como conseqüência, o jovem só se torna independente por volta dos 25 a 30 anos. Houve então uma certa defasagem deste período de transição, pois, de acordo com ele, o jovem se torna adulto quando é capaz de se reproduzir biologicamente e ser um produtor social podendo constituir sua família e isso tem ocorrido cada vez mais tarde. Considerando estes aspectos, podemos nos referir a conceitos recentes que têm sido muito utilizados na sociedade atual por essa conjectura econômica e social: a adolescência protelada e adolescência prolongada.

A adolescência protelada é um prolongamento desta fase por influência da cultura e esta difere da adolescência prolongada que seria definida como uma fixação nos estados libidinais do ego adolescente (Blos, 1998). Apesar da adolescência não ter um curso natural, nem etapas definidas e previsíveis, estas variações podem ser consideradas como uma forma de desenvolvimento anormal, pois em ambas não há um avanço neste processo, que deveria ser transitório, demonstrando uma grande resistência para com a pressão regressiva de voltar à fase infantil e também com a finalização desta fase, em direção à progressão, à maior maturação e à independência.

Este adolescente ainda age sob o domínio da fantasia e do pensamento mágico, que não foram substituídos pelo princípio da realidade. Há ainda a tendência para a formação de grupos, egocentrismo, supervalorização do eu que envolve grandes expectativas com relação a si, onipotência e um sentimento marcante de invulnerabilidade. Todos estes fatores associados podem relacionar-se com os comportamentos de risco no quais estes indivíduos se envolvem, sem levar em consideração as conseqüências que estes podem trazer (Rapapport et al., 1982).

Um outro fator que pode ser abordado a partir dos achados é a questão dos acidentes automobilísticos. Segundo a ABRACICLO – entidade que representa o setor de motos e Scoters - em 2000 foram vendidas 574.149 motocicletas, e desde então, juntamente com o aumento de vendas houve um acréscimo no número de acidentes. Neste mesmo ano, de um total de 196.787 atendimentos pelo resgate do corpo de bombeiros, 22.509 foram decorrentes de acidentes automobilísticos (Jornal Estado de São Paulo, 2001).

Analisando separadamente as causas dos acidentes de trânsito e comparando sua incidência na população geral, observamos uma diferença entre os dados. Segundo dados do DENATRAN (2001) o maior número de vítimas não fatais em AT na cidade de São Paulo se dá pelo envolvimento em acidentes automobilísticos com 33,9% dos casos entre condutores e passageiros, e para vítimas em acidentes de moto essa porcentagem decresce passando para 32,4%. Já os achados na Santa Casa de São Paulo mostram uma predominância dos acidentes de moto como principal causa de fraturas e internações no DOT, correspondendo a 17,9% da amostra, e os acidentes automobilísticos aparecem em terceiro lugar com 4,5% dos casos.

Observando a variável renda mensal, notamos que 37,3% (25 indivíduos) da amostra possui uma renda entre mais de 2 e 4 salários mínimos e apenas 10,4% da população (N=7) possui renda mensal maior de 10 salários mínimos. Correlacionando as variáveis renda mensal e causa do acidente, podemos supor que a população atendida na Santa Casa de São Paulo não tem um poder aquisitivo que permita a compra de um automóvel. Podemos ainda conjecturar que motoristas ou mesmo passageiros de automóveis, depois de algum acidente de trânsito são internados em hospitais particulares, por possuírem mais recursos financeiros e até mesmo Planos de Previdência Privada. Possivelmente é por esse motivo que os achados na Santa Casa não corroboram os dados obtidos com a amostra total da população brasileira, sendo uma amostra que retrata somente uma parcela desta população.

De acordo com a bibliografia encontrada, o número de motoqueiros em 2002 correspondia a uma taxa de 9,3% do total de veículos na cidade de São Paulo. Uma pesquisa feita pela Universidade de São Paulo (Terraz, 2003) encontrou uma média de 4,2 internações de motoqueiros por dia em hospitais que atendem pelo SUS, o que nos remete novamente ao custo destes pacientes ao sistema de saúde. Outro dado encontrado nesta pesquisa corrobora nossos achados: o de que 90% dos motoqueiros internados têm idades entre 20 e 29 anos.

Estes índices decorrem do novo ramo de atividade que vem crescendo nos últimos anos. Os chamados moto-boys apareceram com a intenção de otimizar e agilizar o processo de entregas e de comunicação que eram exercidas pelo conhecidos boys. Essa substituição ocorreu devido às condições de trânsito na cidade de São Paulo, com seus grandes congestionamentos nas principais vias e nos mais variados horários. Essa nova profissão tem como requisito único, possuir o meio de transporte e, em alguns locais, este é fornecido, o que contribui muito para que jovens inexperientes se aventurem pelas vias da cidade sem preparo adequado. Podemos nos referir também aos comportamentos de risco associados como a pilotagem arriscada e a falta de equipamentos básicos de segurança. Esses acidentes costumam ocorrer no horário de trabalho e grande parte destes moto-boys não possui vínculos empregatícios (free lancer). Segundo Koizumi (citado por Osório, 2001), as motos passaram de objetos de lazer para instrumentos de trabalho; sendo assim, os acidentes não são apenas acidentes de trânsito, mas também acidentes de trabalho.

Dessa forma, grandes questões envolvem este tipo de acidente: a moto como instrumento de trabalho e uma possível incapacidade de retornar à profissão, a falta de subsídios financeiros por parte da instituição para a qual prestava serviços, a falta de recursos financeiros para a família que dependia deste trabalho. Estes fatores tornam-se centrais durante a hospitalização, e podem interferir e atrapalhar no processo de cura e reabilitação que vão depender muito do estado mental do indivíduo hospitalizado, dando relevância à atuação psicológica.

Outro achado importante que podemos relacionar também com o comportamento de risco típico do adolescente que crê na sua invulnerabilidade é a ocorrência de outras internações. Muitos dos fraturados por AT têm no seu histórico outras fraturas decorrentes de outros acidentes. Após a recuperação, eles voltam à atividade. Muitos deles, da mesma forma que praticavam antes. Outros, sem nem mesmo terem efetivado a recuperação, ao sair do hospital, voltam para casa de moto.

Pudemos ainda verificar uma grande disparidade entre o número de usuários atuais de álcool e os indivíduos que relatam uso de álcool como influenciando no acidente (7,3% da amostra). Essa porcentagem demonstra a dificuldade da realização de pesquisas nessa área, principalmente no que tange à metodologia utilizada. Por meio de questionários, mesmo que possuindo perguntas fechadas, devemos considerar o viés da resposta do indivíduo, estando esta influenciada por medos, inseguranças, e possíveis implicações legais que a utilização do álcool relacionada ao trânsito pode acarretar. Por isso programas de prevenção ao consumo de álcool antes de dirigir, devem ser mais popularizados e discutidos. Essa conscientização deve fazer parte da educação escolar no Brasil que tem um dos piores índices do mundo em morte por acidentes de trânsito.

 

VI. CONCLUSÃO

Após a realização da pesquisa e análise dos resultados, concluímos haver uma relação entre o consumo de álcool e o envolvimento com acidentes de trânsito como causa de fraturas. Observamos ainda o maior envolvimento de jovens e a prevalência do sexo masculino. Portanto, diante deste quadro, levantamos a relevância da atuação psicológica no Hospital Geral, especialmente no tratamento de indivíduos acidentados no trânsito, pela influência do uso de álcool e por atingir uma população jovem que pode se beneficiar de um trabalho preventivo.

 

REFERÊNCIAS

Bee, H. (1996). A criança em desenvolvimento. Porto Alegre: Artmed.        [ Links ]

Botega, N. J. (Org.). (1995). Serviços de saúde mental no Hospital Geral. São Paulo: Papirus.        [ Links ]

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1 Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo
2 Universidade Presbiteriana Mackenzie

 

 

ANEXO





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