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Psicologia Hospitalar
versão On-line ISSN 2175-3547
Psicol. hosp. (São Paulo) v.3 n.2 São Paulo ago. 2005
ARTIGOS ORIGINAIS
Corpo e identidade na teoria da ação comunicativa de Habermas
Body and Identity
Omar Ardans 1
Laboratório de Psicologia Sócio-ambiental e Intervenção - Universidade de São Paulo - Brasil
RESUMO
O artigo trata das relações entre corpo e identidade no contexto da teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas que postula a existência de uma intersubjetividade ilesa que estaria sustentando a comunicação intepessoal e interação social. A Teoria da Ação Comunicativa parte de três âmbitos de análise: sociedade, cultura e personalidade. Apresenta o corpo como o grande ausente da Teoria Habermasiana. A reflexão leva a pensar que a Psicanálise deveria propiciar, em termos da Teoria da Sociedade e da Psicologia Social uma reformulação de longo alcance.
Palavras-chave: Corpo, Identidade, Comunicação interpessoal.
ABSTRACT
This article delineates on the relationship between body and identity in the context of the Jürgen Habermas theory of communicative action. This theory postulates the existence of an intersubjectivity that is the basis of interpersonal and social interaction. The Theory of Communicative Action is based on three ambits of analysis: society, culture and personality. It introduces the body as the great absent in the Habermasiana Theory. Reflection leads to the idea that psychology should enhance, in terms of the Theory of Society and of Social Psychology, a long term reformulation.
Keywords: Body, Identity, Interpersonal communication.
"Pois, na realidade, ‘a’ razão não é nem uma
classe, nem um ‘grupo de destinatários’; a razão
não tem nenhum corpo, não pode sofrer, nem
tampouco desperta paixão alguma."
J. Habermas (1982, p. 401)
Este trabalho pretende tratar das relações entre corpo e identidade no contexto da teoria da ação comunicativa (Habermas, 1981) de Jürgen Habermas.
Para aqueles que não estão familiarizados com este autor, devo dizer, rapidamente, que Habermas é um importante filósofo alemão contemporâneo que denomina seu empreendimento Teoria crítica da sociedade, na esteira dos trabalhos que, sob essa denominação ou, às vezes, sob a de Escola de Frankfurt, reúnem nomes como os de Horkheimer, Adorno, Marcuse, Fromm, Löwenthal, entre outros. Mas deve se precisar, imediatamente, que se de um lado Habermas retoma explicitamente os temas e preocupações que embasaram o trabalho de pesquisa do grupo que se reuniu em torno de Horkheimer e o Instituto de pesquisa social, lá pelos anos trinta do século vinte, de outro lado essa retomada é feita a partir de um deslocamento fundamental que apenas podemos enunciar aqui, pois não será possível expor todos os elementos argumentativos que o autor desenvolveu ao longo de cinquenta anos de trabalho teórico, filosófico e sociológico para justificar sua posição.
Este deslocamento diz respeito à consideração habermasiana da história da espécie como auto-reflexão de sujeitos em interação social e se vincula a um pressuposto, caríssimo ao autor, que postula a existência de uma intersubjetividade ilesa que estaria sustentando a comunicação inter-pessoal e a interação social. A junção destes aspectos conformam o eixo ético-ontológico, epistemológico e metodológico da obra de Habermas e que, desdobrada de inúmeras formas na consideração de muitas teorias filosóficas e sociológicas, a torna, segundo seus críticos, irreconhecível como herdeira produtiva e de pleno direito, do pensamento daqueles autores ("os frankfurtianos", como se costuma dizer).
Gostaria, a propósito desta polêmica, de contar uma pequena estória judaica. Conta a lenda que tendo morrido o rabino que liderava uma comunidade, assumiu seu lugar o filho do falecido, também rabino. Com o passar do tempo seus seguidores começaram a achar estranho seu comportamento e questionaram: - "Rabi, o Sr. é tão diferente do seu pai!" "Eu, diferente? – respondeu – imagina! Eu sou idêntico ao meu pai. Ele não imitava ninguém, eu também não." De modo que identidades e diferenças, continuidades e rupturas se inscrevem naquela região do paradoxal. Seguindo aqui a Jorge Luis Borges: "O paradoxo, como se sabe (...) não é uma coisa extravagante; não, é uma verdade que pode parecer inacreditável. " (Borges, 1969) Habermas é e não é ao mesmo tempo um herdeiro daqueles pensadores; ele o é porque recolhe temas e preocupações que seus predecessores tiveram antes dele; mas também não é, entretanto, pois seu ponto de partida e sua argumentação a propósito de autores e teorias tratados também pelos primeiros frankfurtianos, se afastam dos embasamentos teóricos que aqueles deram a suas idéias. Talvez pudesse se expressar assim: Habermas não é um frankfurtiano mas é, no entanto, um teórico crítico da sociedade.
Da vasta obra de Habermas, focalizar-se-ão neste trabalho alguns aspectos da Teoria da Ação Comunicativa (Habermas, 1981 – em diante TAC), embora uma obra anterior, Conhecimento e Interesse (Habermas, 1968), também deverá fazer parte de nossas considerações. Convém esclarecer de início que julgamos a TAC como a obra que constela o pensamento de Habermas, sem chegar no entanto a falar de um jovem e um velho Habermas, como se estila fazer com muitos autores. Sua obra guarda uma continuidade e sistematicidade indiscutíveis. Se levarmos em conta, ainda, que faz cinquenta anos, Habermas já se posicionara publicamente contra o nazismo de Heidegger, sua obra também mantém uma coerência política.
A TAC parte da conceituação parsoniana de três grandes âmbitos de análise: sociedade (reprodução social), cultura (transmissão cultural) e personalidade (socialização) em torno do conceito central de sujeito capaz de linguagem e da ação, um sujeito que emerge da intersubjetividade, presente como já dada, no mundo da vida, um sujeito que tem, como telos de sua ação, o dar conta de seus atos. Neste dar conta, linguagem e ação estão intimamente vinculados: a aquisição da linguagem, a possibilidade de ter vivenciado interações isentas de coação – únicas que possuem, segundo Habermas, a potencialidade de levar ao entendimento entre as pessoas – e a reflexividade são as características apontadas como fundamentais para a emergência daquele sujeito. Evidentemente, se a meta a ser alcançada por esse sujeito é o dar conta de seus atos, trata-se, no final, de um sujeito adulto, racional, com um domínio razoável da linguagem que lhe possibilite argumentar e com um razoável autoconhecimento ou, pelo menos, valorizado como importante.
Essa socialização, caracterizada como reflexiva deve permitir ao sujeito ser capaz, na eventualidade de ser questionado a respeito, de defender suas falas e ações em termos do verdadeiro de suas afirmações sobre o mundo objetivo, da veracidade das expressões que dizem respeito a seu mundo íntimo e da legitimidade, em termos de retidão normativa, de suas ações e falas. Neste empreendimento teórico Habermas consegue pôr ao serviço de suas idéias, em termos de psicologia social e de teoria da sociedade, a teoria piagetiana da descentração do mundo junto às idéias de Kohlberg sobre desenvolvimento moral, mas não acontece o mesmo com a psicanálise.
Já em Conhecimento e Interesse, de 1968, Habermas faz um enorme esforço para "ler" a teoria freudiana como um empreendimento de auto-reflexão no qual a repressão é entendida como um mecanismo psicossocial ao serviço da eliminação, da esfera pública, de elementos considerados inaceitáveis, tendo como resultado a privatização desses conteúdos e sua expressão psicopatológica individual.
Neste ponto é possível então afirmar que o grande ausente da teoria habermasiana é, precisamente, o corpo. Na epígrafe que escolhemos para este trabalho Habermas diz claramente: "a" razão não tem corpo. O confronto entre o sujeito de linguagem e ação e o sujeito de desejo torna-se a encruzilhada em que as racionalidades, a postulada por Habermas e a verificada por Freud, deixam definitivamente de ser compatíveis.
De um lado, e ao preço de excluir o corpo, temos um sujeito racional em que as raízes emocionais do pensamento são completamente negadas, de outro, a insistência e persistência das pulsões na consecução de seus objetos-meta tornam a racionalidade suspeita e constantemente questionada no relato "solitário e balbuciante da psicanálise, do qual não se sabe sempre nem quem o enuncia nem a quem se dirige" (Gagnebin, 1994, p. 2). Para a psicanálise, na bela expressão de Elizabeth Roudinesco, "a razão vacila no interior de si mesma". (Roudinesco, 1999, p. 167)
Se levada a sério nos seus próprios termos (o que Habermas deixa de fazer, pois na TAC de 1981 não retoma seus estudos de 1968), a psicanálise deveria propiciar, em termos de teoria da sociedade e de psicologia social, uma reformulação de longo alcance, principalmente pela inclusão, no corpo da teoria da ação comunicativa... do corpo. Pensamos que só por este caminho poder-se-ia chegar a falar em uma razão destranscendentalizada em sua relação com o agir comunicativo (Habermas, 2001). Mas para destranscendentalizar a razão haveria que pesquisar seus vínculos com o escamoteamento da morte em ocidente pois, afinal, uma razão que nega o corpo está negando a morte (desse corpo, dos corpos) e com isso está, paradoxalmente, negando a vida.
Para enfrentar este desafio teórico e psicossocial ao mesmo tempo (pois são nossos corpos e os corpos dos outros que estão sendo negados) haveria que deixar de dar as costas ao pensamento de Espinosa. Mas como Habermas faria isso se ele qualifica a Espinosa como "delirante"? (Habermas, 1981, II, p. 494) O filósofo brasileiro Cristiano de Novaes Rezende, numa comunicação pessoal em que estávamos, como em tantas outras oportunidades, conversando sobre Espinosa, me disse que para Espinosa nós só sabemos do corpo na medida em que (e pelo modo como) ele é afetado. Pois bem, é justamente nessa encruzilhada que a "afetabilidade" do corpo institui, cuja expressão última é a morte, que poderia, com propriedade, surgir a resposta para esse vazio que representa a ausência do corpo na TAC.
A reprodução social, a transmissão cultural e a socialização poderiam, então, continuar a ser entendidas no horizonte da reflexividade (isto é indiscutível) e de uma racionalidade, mas reflexividade e racionalidade que tem suas raízes emocionais no corpo e sua finitude.
Para terminar esta comunicação gostaríamos de citar Elias Canetti, embora não tenhamos registros de que Habermas tenha se ocupado com este autor. Na célebre entrevista que Canetti concedeu a Theodor Adorno, afirma:
"Creio que a ameaça de um animal que se alimenta de outros animais empurra estes últimos para a fuga. Um leão que sai à caça e se faz reconhecer pelos rugidos provoca a fuga dos outros animais. Parece-me que isso constitui o germe do mando tal como se desenvolveu mais tarde e que entre nós se converteu em uma instituição importante. Originalmente a ordem é uma ordem de fuga. Empurra quem está ameaçado para longe do perigo. Isso é muito importante porque esse modelo foi utilizado em nossa sociedade. São distribuídas ordens talvez sem que os homens se dêem conta de que com elas recebem uma ameaça de morte. Mas sempre que se distribui uma ordem, por trás existe essa ameaça. E através da execução das condenações à morte, dado que a maior parte das sociedades se acostumou a ela, restitui-se ao mundo sua pavorosidade. É uma advertência: se você ou vocês não fizerem o que se lhes pede, então acontecerá precisamente o que está se desenvolvendo diante de vocês nessa execução." (Canetti e Adorno, 1962, p. 132, grifo meu).
REFERÊNCIAS
Borges, J. L. (1969) "Palestra inédita 07/10/69". in: Folha de S. Paulo, 15/06/03, Caderno Mais. [ Links ]
Canetti, E., Adorno, T. (1962) "Diálogo sobre as massas, o medo e a morte". Trad. Otacílio Nunes Jr. in: Novos Estudos Cebrap, 21, julho 1988, p. 116-132. [ Links ]
Gagnebin, J. M. (1994) História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva. [ Links ]
Habermas, J. (2002) Agir comunicativo e razão destranscendentalizada.(L. Aragão,trad) Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. [ Links ]
Habermas, J. (1994) "Réplica a objeciones" in: Habermas (1984) Teoria da ação comunicativa: complementos y estudios previos.(2ª ed., M. J. Redondo,trad.) Madrid: Teorema, 2ª ed.,p. 399-478 [ Links ]
Habermas, J. (1987) Teoria de la acción comunicativa. M. J. Redondo, trad.). Madrid: Taurus. [ Links ]
Habermas, J. (1987) Conhecimento e interesse.(J. Heck, trad.). Rio de Janeiro: Guanabara. [ Links ]
Roudinesco, E. (2000) Por que a psicanálise?(V. Ribeiro, trad). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ]
1 Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP, coordenador adjunto do laboratório de Psicologia Sócio-ambiental e Intervenção da USP; Membro do conselho Diretor e vice-presidente (regional São Paulo) da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) gestão de 1997-2003 - Brasil.