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Psicologia Hospitalar
versão On-line ISSN 2175-3547
Psicol. hosp. (São Paulo) vol.12 no.1 São Paulo jan. 2014
ARTIGOS ORIGINAIS
Evento traumático, fibromialgia e complicações na saúde: um estudo de caso
Traumatic event, fibromyalgia and health complicationsa: a case study
Mariana Gonçalves d’Afonseca de BrittoI,1; Niraldo de Oliveira SantosI,2; Mara Cristina Souza de LuciaI,3
IInstituto do Câncer do Estado de São Paulo - ICESP
IIDivisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
IIICentro de Estudos em Psicologia da Saúde - CEPSIC
RESUMO
Introdução: O presente artigo discorre sobre um caso clínico de uma paciente com os diagnósticos de fibromialgia e dor crônica, que procurou, voluntariamente, atendimento psicológico em um hospital de referência na cidade de São Paulo, para tratar de seu quadro doloroso e das consequências da história de abuso sexual ocorrido na infância. Objetivo: Assim, buscou-se investigar como um evento de vida traumático e mal elaborado pode implicar numa repetição de situações dolorosas, podendo estar associado à formação de sintomas corporais. Método: Foram realizadas dez entrevistas clínicas de orientação Psicanalítica, que duravam cerca de 50 minutos, durante um período de quatro meses. Resultados: As entrevistas foram um importante veículo para a exposição da angústia e conflitos da paciente, que associou os eventos de abuso sexual durante a infância ao surgimento e manutenção do quadro doloroso (fibromialgia e dor crônica). Além disso, observou-se a maneira como a paciente chegou até a analista, voluntariamente, o que apontou para um transbordamento de conteúdos que a estavam mobilizando naquele momento. Conclusões: Concluiu-se que o histórico de abuso sexual da paciente pôde gerar implicações na saúde e que ela ocupou durante a vida não somente o lugar de "abusada", mas também de "abusadora" de si mesma, nos momentos quando maltratou seu corpo, por meio da repetição de situações onde ela produziu, numa tentativa inconsciente de elaboração, satisfação pulsional. Foi também possível concluir que as entrevistas psicanalíticas, como método de investigação e tratamento psicanalítico, foram capazes de promover uma ressignificação do mundo interno da paciente e consequente mudança na posição subjetiva e na condição de saúde da mesma.
Palavras-chave: Abuso sexual, Dor crônica, Psicanálise , Entrevista clínica, Psicologia da saúde.
ABSTRACT
Introduction: This article discusses a case of a patient with a diagnosis of fibromyalgia and chronic pain, which sought voluntarily psychological care in a referral hospital in the city of São Paulo, to treat their painful symptoms and consequences of history of sexual abuse in childhood. Objective: Thus, we sought to investigate as a traumatic life event and ill prepared can imply a repetition of painful situations, and may be associated with the formation of bodily symptoms. Method: Ten interviews were conducted clinics Psychoanalytic orientation, which lasted about 50 minutes over a period of four months. Results: The interviews were an important vehicle for the exposure of the patient's distress and conflict, which associated the events of sexual abuse during childhood to the emergence and maintenance of the pain (fibromyalgia and chronic pain). Furthermore, it was observed how the patient came to the analyst, voluntarily, which pointed to an overflow of content that were mobilizing at the time. Conclusions: We conclude that a history of sexual abuse of patients could generate implications for health and she held for life not only the place of "abused", but also "abuser" of herself at times when your body manhandled through the repetition of situations where she produced, in an unconscious attempt of elaboration, drive satisfaction. It was also possible to conclude that the psychoanalytic interviews as research method and psychoanalytic treatment were able to promote a redefinition of the internal world of the patient and the consequent change in subject position and the same health condition.
Keywords: Sexual abuse, Chronic pain, Psychoanalysis, Clinical interview, Health psychology.
INTRODUÇÃO
O presente estudo apresenta o relato de um caso clínico, no qual uma paciente com os diagnósticos de fibromialgia e dor crônica, em tratamento médico em um hospital de referência na cidade de São Paulo procurou, voluntariamente, atendimento psicológico em nosso serviço, para tratar de seu quadro doloroso e das consequências da história de abuso sexual ocorrido na infância. Para isso, iniciaremos apresentando dados referentes à fibromialgia e dor crônica; posteriormente, abordaremos o tema do abuso sexual e suas implicações físicas e psicológicas e, por fim, discutiremos a noção de trauma psíquico, sua instalação e repercussões na vida adulta a partir do caso exposto e à luz da teoria psicanalítica.
A fibromialgia, síndrome reumática de etiologia desconhecida, acomete predominantemente mulheres e é caracterizada por dor musculoesquelética difusa e crônica. Outros sintomas frequentemente estão relacionados, como a fadiga, distúrbios do sono, rigidez matinal e distúrbios psicológicos, como a ansiedade e depressão (Wolfe, Smythe, Yunus, Bennett, Bombardier & Goldenberg, 1990).
Em 1990, o American College of Rheumatology (ACR) estabeleceu alguns critérios clínicos de diagnóstico da fibromialgia. Por meio de exame por palpação, devem ser identificados, pelo menos, 11 pontos dolorosos dos 18 tender points estabelecidos (Reis & Rabelo, 2010).
Reis e Rabelo (2010) afirmaram que alguns padrões estressores (relações familiares, particularmente negligência e abusos na infância) podem contribuir para a predisposição, etiologia e manutenção das dores crônicas em geral e, em particular, da fibromialgia. Entretanto, apesar de estudos individuais que relacionam abuso emocional, físico e sexual a, especificamente, um diagnóstico da fibromialgia serem intrigantes, revisões em todos eles ainda são inconclusivas (Romans & Cohen, 2008).
A International Association for the Study of Pain Press - IASP definiu dor como sendo um fenômeno multidimensional e de difícil compreensão, mencionada como uma “experiência sensorial e emocional desagradável associada a um dano real ou descrita em tais termos”. A dor passa a ser um problema de saúde pública, a partir do momento que evolui para o estado crônico, gerador de morbidade, absenteísmo ao trabalho e incapacidade temporária ou permanente, gerando elevados custos aos sistemas de saúde (Picavet & Schouten, 2003).
Freud, em 1933, acreditava que os estados afetivos, a exemplo da dor ou a ansiedade, constituiriam uma reprodução de um acontecimento antigo (experiências traumáticas primevas) que significaria uma ameaça de perigo, uma vez que paralisaria a função reguladora do princípio de prazer (Freud, 1933/2006).
Segundo Lima e Pollo, (2005), a definição de abuso ou violência sexual na infância e adolescência, proposta pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (ABRAPIA), é a circunstância em que um adulto ou adolescente mais velho usa a criança ou adolescente para satisfação sexual, incluindo desde a prática de carícias, manipulação de genitália, mama ou ânus, exploração sexual, voyeurismo, pornografia, exibicionismo, até o ato sexual, com ou sem penetração, sendo a violência sempre presumida em menores de 14 anos.
A família em que acontece o abuso sexual intrafamiliar é considerada um sistema fragilizado, na qual o segredo dá a ilusão de unidade e de que a situação está sob controle. Portanto, esse fenômeno provoca impacto negativo sobre as relações familiares e sobre o desenvolvimento físico e psicológico das vítimas, assim como apresenta repercussões sociais e econômicas importantes (Santos, 2007).
Entretanto, cada criança irá vivenciar o abuso sexual de forma diversa. Existem crianças que se tornaram, elas próprias, abusadoras, por se fascinarem com o abuso; já outras temem o abusador mais do que o abuso em si; outras sentem pelo abusador uma profunda afeição; outras conseguem ultrapassar o sofrimento e os receios resultantes da situação de abuso; e por fim, existem crianças que experimentam todas estas dificuldades (Alvarez, 1994).
Wilson (2010) destaca a definição proposta pela Child Abuse Prevention and Treatment Act (CAPTA), que diz que o abuso sexual inclui o uso de persuasão, sedução e outros incentivos para coagir uma criança a ingressar numa conduta sexual explícita ou simulação de ações sexuais. Sendo assim, a excitação provocada no corpo da criança abusada pela efração da excitação derivada do exterior, sem aprovação nem desejo, origina um efeito traumático (Sucar, 2008).
Entretanto, Brandão Junior e Ramos (2010) acreditam que, nos casos de abuso sexual, há implicação de desejo por parte do adulto e também da criança. Na maioria das vezes, de acordo com os autores, observa-se que existe um jogo de sedução onde ambas as partes estão implicadas, o que ratifica o envolvimento destas no ato do abuso. Dessa maneira, sentimentos de culpa são frequentes entre crianças sexualmente abusadas, e se configuram como um dos efeitos emocionais mais graves resultantes da interação abusiva, sobretudo se essa foi incestuosa e durou por um longo período de tempo (Furniss, 1993).
Portanto, a partir do momento em que é proposto o efeito traumático do abuso, ou melhor, no exato momento em que o abuso é nomeado, corre-se o risco de anular o sujeito, pois se coloca antecipadamente um lugar para este (Brandão Junior & Ramos, 2010), ou seja, o lugar de abusado/traumatizado.
É importante deixar claro que, nós que trabalhamos com a teoria psicanalítica, acreditamos que independente do acontecimento externo relatado - nesse caso o abuso sexual - ter ocorrido ou não, o mais importante a ser considerado é a maneira como o sujeito vivenciou esse acontecimento e como significou os significantes que o marcaram, ou seja, como o sentido é atribuído a posteriori, pois é a partir daí que sucederá a instalação do trauma.
O abuso sexual na infância, o seu impacto na formação dos sintomas na vítima e o fato de ele ter realmente existido ou não ocupam, na teoria psicanalítica, importante lugar, que inicialmente era elucidado pela teoria da sedução. Elaborada por Sigmund Freud no início do seu percurso como psicanalista (entre 1895 e 1897), a teoria da sedução defendia que, já na vida adulta, a recordação de cenas reais ou fantasmáticas de sedução entre uma criança e um adulto, seria preditora de psiconeuroses (patologias de ordem sexual, que refletiam acontecimentos adversos marcantes na infância). Entretanto, com o passar do tempo, Freud acabou por aceitar que algumas cenas de sedução poderiam, de fato, não estar relacionadas apenas à realidade externa, mas sim, com o que é feito dos acontecimentos pelo sujeito (Costa, 2007).
Dessa maneira, a partir de 1920, o trauma passa a ser compreendido como consequência do rompimento do escudo defensivo pelo excesso de excitações que coloca em risco a dominância do princípio de prazer e a estruturação do aparelho psíquico. O excesso de energia livre, não ligada, invade o órgão anímico sem que haja preparação por parte do sujeito para se defender (através da angústia-sinal e da hipercatexia dos sistemas receptivos). O fator susto passa a ser considerado elemento fundamental para o surgimento do trauma (Batista & Kahl, 2006).
Todavia, é somente no a posteriori que o sujeito dará significação aos significantes que o marcaram, de modo que não é solicitado no que enuncia sobre si, sua subjetividade, mas sim a partir do furo no sentido que dá às suas marcas (Brandão Junior & Ramos, 2010).
Desse modo, o trauma inspira a compulsão à repetição, interpretada como a repetição do evento traumático em função de tendências anteriores à instalação do Princípio de Prazer. O que se repete pode ser compreendido como o que não conseguiu entrar na cadeia associativa e não se inscreveu nos sistemas mnêmicos (Batista & Kahl, 2006).
A partir das questões levantadas acima e considerando a complexidade dos aspectos envolvidos nas situações traumáticas associadas ao abuso sexual, o presente estudo teve como objetivo investigar como um evento de vida traumático mal elaborado pode implicar o surgimento de fenômenos dolorosos e complicações na saúde.
MÉTODO
Trata-se de pesquisa clínica utilizando o método psicanalítico de investigação e tratamento.
Laplanche e Pontalis (1998) definem a psicanálise como sendo a disciplina fundada por Freud e que pode ser distinguida em três níveis:
a) Um método de investigação que consiste essencialmente em evidenciar o significado inconsciente das palavras, das ações, das produções imaginárias (sonhos, fantasias, delírios) de um sujeito. O método psicanalítico baseia-se principalmente nas associações livres, ou seja, a expressão indiscriminada dos pensamentos, garantindo a possibilidade da intervenção. A investigação psicanalítica leva à construção de uma hipótese diagnóstica elaborada pelo analista durante as entrevistas iniciais e confirmada durante o tratamento.
b) Um método de tratamento baseado nesta investigação.
c) Um conjunto de teorias psicológicas e psicopatológicas em que são sistematizados os dados introduzidos pelo método psicanalítico de investigação e de tratamento.
Sujeito
Cláudia, 57 anos, católica, amasiada há 20 anos, estudou até a 5ª série do ensino fundamental e atualmente está aposentada. Tem três filhos, dois do sexo feminino e um do sexo masculino. Procedente do interior do estado da Bahia, veio para o estado de São Paulo aos 14 anos de idade. Atualmente, mora com o namorado no interior do estado de São Paulo. Todos os nomes aqui usados são fictícios para a preservação da identidade das pessoas envolvidas.
Dados de Saúde
Em 1995, foram dados os diagnósticos de Fibromialgia e Dor Crônica. Desde então, a paciente faz tratamento e é acompanhada pelo “Grupo da Dor” no Ambulatório da Divisão de Clínica Neurológica do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Durante toda a vida, Cláudia teve várias passagens por médicos, de diversas especialidades e por diferentes motivos. Segue uma sequência temporal do histórico das intercorrências na saúde da paciente.
Atualmente, a paciente faz uso das seguintes medicações: Fluoxetina 20mg, Amitriptilina 25mg, Clorpromazina 2mg/gota, Lactulose 667mg/ml, Omeprazol 20mg e Metadona 10mg.
Procedimento
Em todos os atendimentos, foi utilizado um consultório do Ambulatório da Divisão de Clínica Urológica do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Como instrumentos de avaliação foram utilizadas entrevistas clínicas individuais com base na teoria Psicanalítica. A intervenção psicoterápica foi fundamentada na Teoria Psicanalítica e os atendimentos tiveram duração de quatro meses, sendo realizadas dez sessões com cerca de 50 minutos cada. A paciente nunca faltou aos atendimentos.
RELATO DO CASO
Cláudia procurou o Ambulatório da Clínica Urológica do Hospital das Clínicas - FMUSP, porque precisava muito falar com alguma psicóloga sobre algo que tinha acontecido recentemente e que a fez reviver momentos dolorosos vividos em outra época de sua vida.
A paciente referiu os diagnósticos de Fibromialgia e Dor Crônica. Há 16 anos frequenta o grupo da dor que acontece no Ambulatório da Clínica Neurológica do mesmo hospital. Durante um tempo, fez acompanhamento psicológico neste ambulatório, e afirmou que há 10 anos parou de ir aos atendimentos, pois não queria que a psicóloga descobrisse o que, até o momento, era seu maior segredo. Como a psicóloga tinha deixado o serviço à disposição, ela voltou ao Hospital, procurando algum profissional da psicologia que pudesse ajudá-la.
Logo no início de sua fala, Cláudia relatou uma história de abuso sexual ocorrido na infância, dos 6 aos 12 anos de idade. Segundo ela, nunca tinha falado com ninguém sobre isso até o mês anterior, momento em que o ex-marido, nu, tentou agarrá-la. Cláudia afirmou que todo o sofrimento e sentimentos ligados ao ocorrido na infância voltaram com mais força, fazendo com que ela procurasse, voluntariamente, ajuda psicológica. Aqui cabe pontuar algo interessante sobre a “escolha” da paciente por ter procurado, mesmo que de maneira inconsciente, uma psicóloga justamente na clínica de urologia, especialidade, muitas vezes, ligada à figura do órgão sexual masculino.
Assim que nasceu, Cláudia foi para a casa da madrinha, pois seus irmãos mais velhos estavam com sarampo. Ela foi criada pela madrinha até os cinco anos de idade e afirmou que aqueles foram os melhores anos de sua vida. “Ainda lembro do colinho e do cheiro do cabelo dela; por que ela foi embora e não me levou junto?” (sic). Quando a madrinha foi se mudar para o sul do país, Cláudia teve que voltar para a casa dos pais e começar a viver o que, segundo ela, foram os piores dias de sua vida. “Aquilo não era casa, era um inferno; fui jogada num inferno” (sic).
Na casa viviam ela, os pais, 16 irmãos (oito mulheres e oito homens) e algumas pessoas, a maioria homens que trabalhavam para seu pai, que de vez em quando dormiam lá. Um desses trabalhadores, que era namorado de uma das irmãs, abusou sexualmente da paciente durante anos e depois se casou com outra irmã sua. “Era meio confuso, não entendia porque ele namorava uma irmã e depois meu pai fez ele se casar com outra” (sic). Era uma pessoa de total confiança de seus pais, fator que contribuiu para Cláudia nunca ter se sentido segura em contar o que lhe acontecia.
Enquanto relatava a história dos abusos, Cláudia chorava muito, demonstrando muito nojo e repulsa. Ele colocava o pênis dele na minha boca. “Ai que nojo meu Deus, era horrível” (sic). Os episódios dos abusos sempre ocorriam à noite; o cunhado entrava no quarto, procurava ela na cama e ela, com medo de que ele fizesse o mesmo com as outras irmãs, cobria a irmã mais nova e “deixava” (sic) que ele “topasse” (sic) nela. “Eu deixava ele fazer comigo, para ele não fazer isso com as outras” (sic).
À medida que o tempo foi passando, a paciente foi encontrando maneiras de tentar ficar longe do abusador. Cláudia contou que teve a menarca aos nove anos de idade e quando seus seios começaram a crescer, sentia muita dor, “Ali o mundo acabou pra mim” (sic). Aos 13 anos de idade, fez uma tentativa de suicídio, com um revólver que ela não sabia que estava sem munição, com a intenção de que “aquilo tudo acabasse” (sic). Ela foi se dando conta de que se ela não desse um basta naquilo, ele teria conseguido ir além; então, por medo que isso acontecesse, teve sua primeira relação sexual, aos 14 anos de idade, com o homem que tornou seu marido anos depois. “Tinha medo dele ter uma transa séria comigo, por isso, me entreguei a outra pessoa” (sic). Relatou que na primeira relação sexual, sentiu muita dor, teve febre e infecção urinária no dia seguinte.
Cláudia saiu de casa aos 14 anos de idade e foi morar em São Paulo, com alguns conhecidos da família. Desde que foi embora, passou mais de 20 anos sem contato com os irmãos que continuaram morando na cidade onde nasceu. O pouco contato que foi retomado sempre foi conflituoso.
A paciente sempre teve dificuldade para se relacionar com homens durante toda sua vida. Casou-se com o primeiro namorado, teve três filhos e separou-se dele há mais de 20 anos. O companheiro era muito “frio, seco” (sic) e as relações sexuais eram “horríveis”, (sic) acompanhadas de dor e nenhum carinho, “não tinha beijo, nada, era feito bicho” (sic). Aos 20 anos de idade, fez outra tentativa de suicídio, quando ingeriu grande quantidade de um medicamento. Passou por consulta psiquiátrica na época, e começou atendimento psicológico. Referiu melhora depois de começar os atendimentos com a psicóloga, que, segundo a paciente, é sua amiga até hoje.
Após separar do primeiro companheiro, mantiveram uma relação amigável e “digna de orgulho dos filhos” (sic). Mas essa relação está, atualmente, abalada, pois ele apareceu nu, em sua frente, no apartamento do filho deles, tentou agarrá-la e propôs que eles “relembrassem os velhos tempos” (sic). Esses “velhos tempos” parecem ter soado à paciente como voltar ao tempo em que foi abusada na infância e a fez relembrar de quando era criança e acreditar que estava indefesa. Como já foi dito, esse foi o fato recente que a fez procurar ajuda psicológica no hospital e deu início aos atendimentos com a analista atual.
Hoje se diz “realizada como mulher” (sic) e mantém uma relação estável que já dura quase 20 anos. O atual companheiro é referido como alguém que a entende, a respeita e a conquistou por ter “demorado a investir” (sic) em seu corpo.
Dois anos antes do início dos atendimentos psicológicos com a atual analista, o cunhado (abusador) da paciente cometeu suicídio, por meio de ingestão de veneno. Ela contou esse fato com muita raiva e culpa por não ter conseguido falar a tempo, para a família, o que sofreu. Acredita que poderia ter evitado que outras crianças passassem pelo que ela conta ter passado e ele poderia ter pagado, em vida, pelo que fez. “Não deveria ter morrido, a morte foi pouco” (sic).
Durante todo o primeiro atendimento da análise atual, a fala de Cláudia foi marcada pelo medo da noite, pela dificuldade para dormir e por uma culpa que sempre a acompanhou na vida. Quando perguntada, explicou que o medo era de, ao dormir, não conseguir se defender, como acontecia quando era criança. A culpa era pelos abusos terem acontecido, culpa por não ter contado o que aconteceu antes que o cunhado cometesse suicídio e, por fim, a culpa por ser mulher.
Ainda nesse primeiro atendimento, Cláudia falou da mágoa e da raiva que sentia dos pais, mais da mãe até do que do pai, por ter a certeza de que eles sabiam o que lhe acontecia e nunca a terem protegido.
Cláudia chegou para os atendimentos seguintes (2° e 3°) com melhor aparência física, mais bem cuidada, com os cabelos arrumados e melhor vestida, porém ainda com um semblante carregado e expressando angústia. Tinha dormido melhor e o medo da noite havia diminuído, porém ainda era muito forte.
Contou que a relação com sua mãe nunca foi boa. Sempre acreditou que, pelo fato de não ter sido criada por ela, a mesma não a amava. A partir daí, ela apontou o fato de a mãe não ter lhe protegido na infância e mais uma certeza de que se fosse homem ou tivesse continuado a morar com a madrinha, nunca teria sofrido o que sofreu. Na época desses atendimentos a mãe de Cláudia estava doente e a paciente acreditava que a mãe “fingia doença pra ter carinho” (sic). Apesar disso, sempre foi a filha que mais ajudou financeiramente a mãe.
Cláudia mencionou muito rapidamente as dores que sentia nas costas. Disse já ter se acostumado com elas. Não mencionou nada sobre a fibromialgia. Ao final do atendimento, afirmou que estava “amando” (sic) ir aos atendimentos e sentia-se como se estivesse recebendo o colo que sempre quis ter: “Parece que foi Deus que colocou você no meu caminho” (sic).
No atendimento seguinte, Cláudia chegou bem abatida, na companhia da filha mais velha, Marcela, e da neta. Pediu para entrar na sala com as duas, e a analista pensou, por algum momento, que ela poderia ter contado à filha o que contava nos atendimentos. Mas não. “Minha mãe morreu!”(sic).Assim ela começou o atendimento. Chorou muito, estava muito triste com a perda da mãe. Segundo Cláudia, sua mãe estava sendo cuidada por ela, em sua casa, aqui em São Paulo. Disse que nunca quis ver a mãe morrendo e ela morreu, justamente, em seus braços. Apesar de toda relação conflituosa com a mãe, aquela semana (da morte da mãe) havia sido atípica: “Foram dias muito felizes, ela estava muito serena, calma, paciente” (sic). Cláudia relatou que em dois momentos, a mãe a abraçou como quem queria dizer alguma coisa, mas não disse nada, só a abraçou. Cláudia disse que aqueles abraços eram tudo que ela sempre quis: ser acolhida, protegida e reconhecida como a filha que ainda cuidava da mãe. Lamentou o fato de não ter conseguido falar à mãe o que lhe aconteceu na infância e, agora, a vontade de contar ao pai estava mais forte.
Após a morte da mãe, a paciente passou alguns atendimentos falando menos sobre os abusos e mais da falta que estava sentindo dela. Trouxe a dúvida de ser filha biológica da mãe. Sempre teve essa dúvida. Nesse momento da análise, Cláudia passa a expressar outro olhar sobre a postura da mãe; algo como uma compreensão da maneira como a mãe agiu com ela, quando criança: “Talvez eu entenderia, se eu não for filha dela, eu entenderia; nossa, ela amava demais pai, acho que foi a única coisa que mãe amou” (sic). Entretanto, relembrou o tempo que trabalhava muito na fazenda dos pais; era trabalho físico pesado. Ela relacionou essa época como possível fator responsável pelas doenças físicas que possui. “Eu fui a única que carregou peso e trabalhou na enxada que nem jegue.” (...) “Acho que foi isso tudo que acarretou as doenças que eu tive” (sic).
No atendimento posterior, Cláudia apresentou uma mudança na maneira como costumava falar (com muita mágoa e tristeza) dos eventos dolorosos acontecidos na infância; naquele momento, falou de maneira mais tranquila e serena sobre aquilo tudo.
No oitavo atendimento, Cláudia chegou “revoltada” (sic). Contou que havia sido tocada por um homem no metrô, quando estava indo para o atendimento psicológico. Ela reagiu perguntando se o homem não tinha mãe ou filha, e fez com que ele parasse. Esse acontecimento a fez falar novamente do nojo de ser mulher, que para ela era igual a ser “um bicho, um lixo” (sic). Nesse momento a paciente se questionou e questionou a analista se aquilo tudo nunca iria passar, pois sempre lembrava as coisas ruins que tinham acontecido. A analista perguntou se, já que aquilo tudo era tão ruim, por que ela estava sempre lembrando? “Não sei”, respondeu a paciente. “Se não tivesse acontecido isso, eu era mais feliz, não tinha medo (...) medo da solidão, não sei me defender” (sic). - “Mas parece que você se defendeu do homem que mexeu com você no metrô, não foi?” - perguntou a analista. A paciente respondeu: “É, mas aí fico com medo de sair de casa” (sic).
Nesse mesmo atendimento, Cláudia falou um pouco da relação com os filhos. Sempre teve boa relação com a mais velha (Marcela) e com o filho (Felipe); falou com muito carinho dos dois. Já com a filha do meio (Elisa), teve alguns conflitos, “ela sempre deu trabalho” (sic). Engravidou muito cedo e queria que Cláudia cuidasse do neto, fato que não ocorreu, pois a paciente disse que a responsabilidade era da filha. Ao final do atendimento a paciente falou, novamente, de como estava se sentindo ao ir para os atendimentos psicológicos: “foi bom ter falado com você e com meu filho, eu me soltei um pouco” (sic).
No atendimento seguinte, Cláudia chegou mancando e falou que estava sentindo muitas dores na perna. O médico, que a acompanhava há muitos anos, não mudou em nada o esquema de medicamentos e disse que ela já tomava muito remédio e que não tinha mais o que fazer. “O que mais você quer?” - perguntou o médico. Ela falou das dores no corpo, fato que aconteceu pouquíssimas vezes. A analista perguntou se ela conseguia fazer alguma relação entre as doenças atuais e as dores que sentia com o os abusos sofridos na infância, relatados por ela. “Mágoa. Uma pessoa que vive com mágoa não traz coisa boa para a carne” (sic) - respondeu ela.
Cláudia chegou para o décimo atendimento andando sem mancar. E sua primeira fala foi: “Meu pai morreu” (sic). O pai havia morrido de enfisema pulmonar, há mais ou menos 20 dias, na cidade onde morava. A paciente se queixou, pois não conseguiu falar com o pai a tempo sobre sua infância: “Sinto um vazio, não consigo dormir” (sic) - disse ela. Em seguida contou que havia sonhado com o pai, logo depois da morte dele: “Sonhei com meu pai e minha avó... no sonho ele dizia: eu confiei tanto naquele infeliz!” (...) “e minha avó dizia: eu nunca tinha confiado nele” (sic) - afirmou que o infeliz era o cunhado abusador.
E continuou um diálogo com a analista: P: “Me sinto sozinha, saudade da infância” (sic). A: “Saudade da infância?” P: “É, do tempo em que ele era saudável, brincava com a gente.” (...) “Acabou tudo” (sic). A: “E agora que acabou tudo, e você não conseguiu falar a ele o que você queria, como vai ser?” P: “Sei lá, não sei como vai ser... fica o grito sem sair a voz” (...) “vergonha de se aproximar da família” (...) “medo, vergonha, culpa... bicho, a gente se sente feito bicho” (sic).
Em seguida, Cláudia seguiu com uma série de questionamentos: “será que sou culpada por ser mulher, porque era menina? Será que sou culpada mesmo?” (sic).
“Você está me dizendo que não podia gritar, pois tinha medo que ele sufocasse sua boca, que era criança e ainda sim, você acha que é culpada? Por quê?” - perguntou a analista. “Eu não sei” (sic) - respondeu a paciente. A analista encerrou o atendimento.
Quando a analista estava marcando o próximo retorno, a paciente se levantou, continuou falando que estava sendo difícil a morte do pai e mostrou algo no braço. “Ó, fiz em homenagem a eles” (sic) - e mostrou as iniciais dos nomes do pai e da mãe, tatuados no braço esquerdo -“Ele ia adorar ver essa homenagem, minha mãe já não sei, acho que ela não ia gostar” (sic).
Cláudia continuou o tratamento quinzenalmente e assiduamente. Somente faltou uma vez e, quando precisava faltar, ligava antes, remarcando o atendimento. Ela seguiu com progressos no tratamento, produzindo associações e elaborações, sempre no intuito de querer entender o porquê de tudo que lhe tinha acontecido na infância e qual o seu lugar como sujeito naquela história.
DISCUSSÃO
A partir dos atendimentos relatados acima e da revisão de literatura, tornou-se possível discutir alguns pontos a respeito do caso, como por exemplo, qual a relação entre o mecanismo de culpa e a busca pela punição - adoecimento - que se apresenta em forma de dor no corpo, adoecimento e formação de sintomas físicos e psíquicos? Se a experiência ocorrida na infância que, a posteriori, se tornou traumática, foi uma experiência desagradável e de dor, por que retorna à consciência e se repete, compulsivamente?
O primeiro ponto que chama atenção é o modo como a paciente chegou até a analista. Voluntariamente, Cláudia procurou ajuda psicológica para falar de fenômenos dolorosos, que não se resolviam com medicamentos, o que aponta para um transbordamento de conteúdos que a estavam mobilizando naquele momento. A paciente chegou até a sala da psicologia, no ambulatório da Clínica Urológica, demandando falar. Falar sobre algo que elegera o maior segredo de sua vida: os abusos sexuais que sofrera na infância. Explicando-se sobre a procura por ajuda - que parecia emergente, tamanha era sua expressão facial de angústia e tristeza - ela disse que, em virtude de um acontecimento recente, que a fez reviver as cenas dos abusos, ela precisava muito falar com uma psicóloga.
Esse transbordamento se fez notório no momento em que, já no primeiro atendimento, Cláudia relatou, detalhadamente, as cenas dos abusos sexuais sofridos na infância. A partir desse momento, no qual a paciente contou seu segredo mais íntimo e motivo de tanto sofrimento durante toda a vida, a transferência parecia ter sido iniciada. Acreditamos que isso pode ter sido possível, pois o sofrimento e o questionamento são necessários para haver uma demanda de análise, que é uma demanda de ajuda, de alívio, mas é, sobretudo, uma demanda - pergunta - dirigida ao analista em função de um saber suposto ao inconsciente. Dessa maneira, a transferência, já no começo da relação (analista - analisando), nasce da confiança outorgada pelo analisando e do sofrimento que motiva sua palavra. É onde o sujeito põe em jogo os impasses de sua existência, para que lhe sejam reveladas suas razões (Silvestre & Silvestre, 1993). Uma vez que a transferência estava presente, a paciente tratou cuidadosamente dessa relação: nunca atrasou ou faltou aos atendimentos, assim como esteve sempre disponível à análise.
Outro ponto que consideramos importante discutir é a relação entre a paciente e seu corpo. Corpo este marcado pelos maus tratos e abusos sexuais sofridos na infância, relatados pela mesma. Esses fenômenos dolorosos podem ter causado implicações físicas e psíquicas na vida adulta de Cláudia e nos dá subsídio para alguns questionamentos, como por exemplo, por que essa experiência na infância se tornou traumática? Toda criança que relata ter sofrido abuso sexual na infância irá produzir um trauma advindo desse acontecimento de dor? Freud acreditava que não. O que torna a experiência traumática não é o acontecimento em si, e sim, como, no a posteriori, o sujeito dará sentido aos eventos externos, ou seja, como vai se dar a simbolização das lembranças das cenas primárias. Todavia, como nem tudo é absorvido pelo significante, resta um real não simbolizado em torno do qual vem se construir um sintoma (André, 1998).
Cláudia relatou que durante a infância, além dos abusos sofridos, foi uma criança que trabalhou “pesado” na fazenda de seus pais. “Eu fui a única que carregou peso e trabalhou na enxada que nem jegue” (sic). E em determinado momento da análise, faz uma relação entre os trabalhos na infância com as dores e doenças atuais sentidas no corpo. “Acho que foi isso tudo que acarretou as doenças que eu tive” (sic).
Muitos autores relacionam história de abuso sexual e maus-tratos na infância aos diagnósticos de fibromialgia e dor crônica. Reis e Rabelo (2010) apontam para o fato de que padrões estressores, como relações familiares, particularmente negligência e abusos na infância, podem contribuir para a predisposição, etiologia e manutenção das dores crônica em geral e, em particular, da fibromialgia. Freud, em 1933, acreditava que os estados afetivos, a exemplo da dor ou a ansiedade, constituiriam uma reprodução de um acontecimento antigo (experiências traumáticas primevas) que significaria uma ameaça de perigo, uma vez que paralisaria a função reguladora do princípio de prazer (Freud, 1933/2006).
Wilson (2010) afirma que, quando comparados, adultos que sofreram abuso sexual na infância relataram mais sintomas e visitas a médicos do que aqueles que não sofreram. Cláudia relatou um histórico de passagens por médicos e inúmeras cirurgias, ao longo da vida, que nos remete ao que foi dito pelo autor anteriormente citado. Analisando esse histórico, tentou-se entender como Cláudia tem lidado com o seu corpo. Um corpo que tem sido maltratado e desinvestido ao longo da vida, o que nos faz pensar que a paciente ocupou, em muitos momentos, lugar de “abusadora” de si mesma, que marcou esse corpo com dor, em uma busca inconsciente de satisfação pulsional: “Uma pessoa que vive com mágoa, não traz coisa boa para a carne” (sic). Esta fala de Cláudia resume e marca o que acabamos de pontuar.
Aqui, concordamos com Fernandes, (2006) quando a autora diz que de veículo ou meio da satisfação pulsional, o corpo passa a ser, cada vez mais, veículo ou meio de expressão da dor e do sofrimento. Neste sentido, o tratamento desta paciente teve como fator fundamental o convite à fala como investimento pulsional em outro objeto que não a dor no corpo. Ou seja, foi pautado na tentativa de trazer para o discurso da paciente o que vinha sendo marcado no corpo.
Algumas consequências do tratamento analítico foram consideradas importantes e puderam ser observadas com a paciente ainda em análise, a exemplo do sonho que Cláudia produziu logo após a morte do pai (onde o pai dizia que tinha confiado no “infeliz” que abusou dela). O sonho é da sonhadora e, portanto, pode apontar uma ressignificação do lugar do pai no sofrimento da paciente. É como se o “pai” (pai imaginário representado no sonho) assumisse o engano de ter confiado no abusador, reconhecendo o erro e, a partir disso, Cláudia o tenha perdoado.
Até antes da morte da mãe, Cláudia trazia na fala muita mágoa, raiva e uma vontade imensa de conversar com os pais sobre a percepção que tinha da sua infância. Ela acreditava que, falando com eles, conseguiria “viver mais feliz” (sic). Como eles morreram e, consequentemente, a possibilidade de resolver seus conflitos no mundo externo (por meio da conversa que tanto programou ter com eles) passou a não existir mais, a saída - escolha - pela ressignificação do mundo interno parece ter sido a mais viável. Essa saída, inclusive, é a proposta pela psicanálise, que sugere que ressignificando o mundo interno, o paciente tem a possibilidade de mudar de posição subjetiva, o que no caso de Cláudia é sair da posição de “abusada”.
Apesar de ainda falar dessa posição de “abusada”, no decorrer dos atendimentos, em alguns momentos, Cláudia apontou para uma mudança nesta posição. Como exemplo, podemos citar a forma como ela se colocou perante a filha, que grávida, queria que a mãe criasse o neto. A paciente disse não. Um não que pode ser interpretado como um limite dado por ela a mais uma situação em que ela poderia ser abusada. Outro momento, já em análise, que consideramos importante ressaltar é quando Cláudia, ao responder ao homem no metrô que lhe tocou, conseguiu se defender, colocando limite no desejo do outro, preservando o dela.
Após a morte do pai, Cláudia apareceu para o atendimento apresentando outra postura, diferente da que vinha assumindo nos atendimentos anteriores. “Acabou tudo” (sic) - foi uma das falas dela. Ainda cheia de questionamentos, se perguntava por que tinha passado por toda aquela experiência na infância, mas já não culpava os pais. Não falava deles com mágoa e, inclusive, falava deles com muito afeto.
Ao final do último atendimento, Cláudia mostrou à analista a tatuagem que havia feito. Segundo Mieli (2002), a constituição do landmark (manipulação voluntária no corpo), neste caso a tatuagem,implica, de modo mais ou menos atenuado, a dor física. Representando um ritual de passagem, a dor é considerada ingrediente implícito para a aquisição de um novo estado; ela se constitui como prova que rubrica uma transição. Em geral, a dor produzida pelo landmark se faz signo de um corte na carne que metaforiza um corte simbólico; signo de uma perda necessária para a fixação do traço. O que não impede, evidentemente, que o landmark seja sede de gozo.
Fica-nos, então, a questão dos efeitos desta “inscrição” na carne que a paciente fez. A partir daquele momento, as iniciais do nome do pai e do nome da mãe estavam ali marcadas para sempre, no mesmo corpo maltratado, como um ponto de inscrição simbólico nomeado por ela mesma, em que ela provocou a dor, para manter consigo, quem ela amava.
CONCLUSÃO
Buscou-se, neste trabalho, investigar como um evento de vida traumático, mal elaborado, pode implicar uma repetição de situações dolorosas. Neste sentido, foi observado que Cláudia apresentou diversas complicações na saúde (dor crônica e fibromialgia) que foram associadas pela paciente com a experiência dolorosa (o abuso sexual) ocorrida na infância que, no caso desta paciente, se tornou traumática.
Cláudia ocupou durante a vida não somente o lugar de “abusada”, mas também de “abusadora” de si mesma quando, em muitos momentos, maltratou seu corpo, por meio da repetição de situações onde ela buscou, inconscientemente, satisfação pulsional.
Foi possível constatar alguns efeitos gerados pelo tratamento psicanalítico, como por exemplo, os momentos em que a paciente conseguiu dar limite às situações de abuso e a maneira como passou a falar dos pais, de forma compreensiva e não mais em tom acusador, sem culpá-los pelo que lhe aconteceu na infância. Acreditamos que esses efeitos contribuíram para uma ressignificação do mundo interno da paciente e, consequentemente, uma mudança na posição subjetiva da mesma.
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Endereço para correspondência
E-mail: mbritto.psicologia@yahoo.com.br
1Psicóloga do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP). Especialista em Psicologia Hospitalar - Hospital Geral pela Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP (DIP-ICHC-FMUSP).
2Psicanalista. Psicólogo Diretor Técnico da DIP-ICHC-FMUSP. Professor e Coordenador de Cursos de Especialização do Centro de Estudos em Psicologia da Saúde (CEPSIC).
3Psicanalista. Diretora da Divisão de Psicologia do ICHC-FMUSP. Presidente do CEPSIC.