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Psicologia Hospitalar

versão impressa ISSN 1677-7409

Psicol. hosp. (São Paulo) vol.13 no.2 São Paulo ago. 2015

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

 

 

Comportamento suicida: percepções e práticas de cuidado?

 

Suicidal behavior: perceptions and care practices

 

 

Patrícia Ivanca de Espíndola Gonçalves1; Roseane Amorim da Silva2; Lindair Araújo Ferreira3

Universidade de Pernambuco - UFPE

 

 


RESUMO

Este estudo buscou investigar as percepções de profissionais que atuam na emergência do Hospital Regional do Agreste Pernambucano sobre comportamento suicida e a relação destas com as práticas de cuidado. A pesquisa é qualitativa, realizada observação com registro em diário de campo e entrevistas semiestruturadas. A análise dos dados foi baseada na Análise de Conteúdo, na qual participaram nove profissionais de saúde. Observou-se uma relação entre a percepção que os/as profissionais possuem sobre o comportamento suicida e as práticas desempenhadas por eles/as, uma vez que, ao relatarem a compreensão acerca do fenômeno estudado, apresentaram lacunas teóricas/técnicas que fazem com que as práticas de cuidado costumem centrar-se em aspectos biológicos e curativos. O estudo ressalta a importância de ações de educação permanente na unidade hospitalar que contribuam para a compreensão dos fatores relacionados ao comportamento suicida e as práticas de cuidado.

Palavras-chave: Suicídio, Tentativas de Suicídio, Serviço Hospitalar de Emergência, Profissional da Saúde.


ABSTRACT

This study sought investigate the perceptions of professionals that work in the emergency room at the regional hospital Agreste Pernambucano with suicidal behavior, and how their perceptions relate to their care practices. The research is qualitative, and the observations were recorded with a field diary and semistructured interviews. The data analysis was based on content analysis in which nine health professionals participated. What they observed was a relationship between the perceptions of the emergency room professionals on suicidal behavior and the practices that they carried out, the idea being that once their understanding about the phenomenon studied was related to the observing health care professionals, theoretical and technical gaps showed up which explained why the emergency room health care practices typically centered on biological issues and healing. The study highlights the importance of ongoing education of the staff in hospital units in order to contribute to their understanding of factors that are connected to suicidal behavior and care practice.

Keywords: Suicidal, Suicide Attempt, Emergency Hospital Service, Health Professional.

 


 

 

INTRODUÇÃO

AO interesse em conhecer como os/as profissionais de saúde compreendem a temática deste estudo surgiu a partir da experiência proporcionada pelo Programa de Residência Multiprofissional em um Hospital Regional do Agreste Pernambucano, onde foram realizadas observações e intervenções na emergência/urgência atendendo a diversas demandas, dentre elas a usuários/as que apresentavam comportamento suicida.

Suicídio, tentativas de suicídio, “para-suicídio”, processos autodestrutivos crônicos são algumas das definições e variações existentes em relação ao comportamento suicida. O suicídio é considerado como um ato de autoeliminação consciente, voluntária e intencional, o sujeito deve estar lúcido na realização do ato, excluindo-se casos em que a pessoa está confusa escolhendo a morte em vez da vida. As tentativas de suicídio são atos deliberados de autoagressão onde o sujeito não tem certeza da sobrevivência com uma intenção autodestrutiva e uma consciência vaga do risco de morte (Kovács, 1992).

Ainda segundo a autora supracitada, os comportamentos suicidas não se restringem apenas a atos conscientes, a exemplo do “para-suicídio” ou suicídio inconsciente, que são atos que não se expressam de modo explícito e manifesto, mas de forma incompleta, deslocada, simbólica. Já os processos autodestrutivos crônicos são processos lentos provocados por tendência inconsciente, como por exemplo, casos de doenças psicossomáticas e toxicomanias, onde não se observam riscos tanatogênicos imediatos.

Segundo Bertolote (2012), até meados do século XVII o suicídio permaneceu como um tema de interesse teológico, religioso e filosófico, passando também a atrair o interesse médico. Neste contexto, em 1643, o médico inglês Thomas Browne criou a palavra “suicídio” primeiramente em grego (autófonos), que foi traduzida para inglês como “suicide” em 1645, em que distinguia duas formas de suicídio: uma delas heroica e outra patológica.

No século XVIII em diante, o suicídio passou a ser cada vez mais considerado patológico, vinculando este ato às situações de depressão, quase sempre proveniente da presença de humor melancólico, negro no sangue (Minayo, 2005), ocorrendo então, nesse período, conexões entre suicídio e transtornos mentais.

A mais notável mudança conceitual ocorreu no século XIX com a obra de Durkheim, que propôs que o suicídio era um evento predominantemente sociológico (Bertolote, 2012). Segundo Minayo (2005), foi também no século XIX que o tema suicídio foi perdendo a tutela religiosa em sua definição, a favor de seu reconhecimento como fator social a ser compreendida dentro da dinâmica específica e histórica de cada sociedade.

De acordo com Bertolote (2012), foi apenas entre o fim do século XX e o início do XXI que ocorreu uma consolidação da abordagem do suicídio pela saúde pública, tendo como foco a prevenção. Com isso, no início da década de 90, a partir da preocupação de diversos países em relação ao aumento da mortalidade pelo suicídio e das morbidades devido às tentativas de suicídio, ocorreu a construção de um documento intitulado: “Prevenção do Suicídio: diretrizes para a formulação e implementação de estratégias nacionais”. Neste, foi enfatizada a necessidade de uma colaboração intersetorial, abordagens multidisciplinares e identificação de elementos-chave para aumentar a eficácia de estratégia para a prevenção do ato suicida (Brasil, 2013).

Para que esses elementos-chave propostos ocorram é necessário que as práticas de cuidado realizadas pelos profissionais de saúde sejam compreendidas como atos individuais e coletivos realizados pelos profissionais que envolvem a abordagem clínica do processo saúde-doença, através da conjugação dos diferentes saberes implicados na produção de saúde. Estes elementos se produzem através das relações de uma pessoa que atua junto a outra, num jogo intersubjetivo onde se produzem falas, escutas, interpretações e possibilidades de acolhida (Pires, Ximenes & Napomuceno, 2013).

O atendimento a usuários que tentaram suicídio, muitas vezes, se depara com três questões básicas que afrontam o saber e fazer dos profissionais de saúde. A primeira delas refere-se ao acolhimento de forma inadequada, seja pelo desconhecimento da medicina/psicologia/suicidologia ou por falta de treinamento ou insegurança. A segunda questão refere-se à ambiguidade com que muitos profissionais tratam o tema, sobretudo porque somos mortais e em algum momento pensamos nesta possibilidade. A terceira está relacionada à internação psiquiátrica como única forma de encaminhamento (Cassorla, 1998 apud Estellita-Lins, 2012).

É importante lembrar, também, das pessoas que convivem com o risco ou já perderam alguém por meio do suicídio, que Tavares (2013) chamou de “sobreviventes”. O impacto para essas pessoas é tão significativo que podem apresentar risco futuro de suicídio. Isto chama atenção para a importância de conhecer os processos de ser sobrevivente, o que pode ajudar a compreender o processo de sofrimento antecipatório de uma família que acompanha uma pessoa em sofrimento grave com ameaça de suicídio.

Em um estudo realizado por Azevedo (2012), foi visto que existem diferenças nas percepções dos profissionais de saúde em relação ao comportamento suicida. Na atenção primária a percepção dos profissionais é de que se trata de um usuário de sua responsabilidade, por compreendê-lo no escopo do sofrimento humano. Já na atenção secundária e terciária evidenciaram uma incompreensão frente às pessoas que, acometidas pelo sofrimento psíquico, tentam o suicídio.

Estima-se que para cada desfecho fatal existem mais pessoas que dão entrada em emergência por tentativa de suicídio, o que chama atenção para a importância da prevenção de comportamentos suicidas, bem como acolhimento e encaminhamento adequados para a rede de atenção.

Os profissionais de saúde, quando recebem um/uma usuário/a após tentativa de suicídio por envenenamento, podem entrar em contato com o Centro de Assistência Toxicológica (CEATOX). Este órgão em Pernambuco foi criado em 1992 e atualmente existe uma equipe que atua 24 horas por dia, com atendimento por telefone. A equipe de referência é formada por médicos, biólogos, enfermeiros e acadêmicos, esta instituição dispõe de protocolos específicos, realizando acompanhamento dos usuários pela evolução clínica até a alta médica (SES-PE, 2014).

Vidal e Gontijo (2013) apontam que a maioria dos usuários que tenta suicídio chega à emergência de hospitais antes de ocorrer uma tentativa fatal, possibilitando que os profissionais de saúde identifiquem o potencial do risco e possam intervir para reduzi-lo. Nesses serviços, é importante a equipe estabelecer vínculos com os pacientes de forma a aumentar suas chances de continuidade de tratamento extra-hospitalar, uma vez que, na maioria dos casos, não ocorrem encaminhamentos para a rede de saúde e socioassistencial, ficando o atendimento restrito às questões curativas.

Para Bertolote (2012), a primeira tentativa de suicídio é um dos mais importantes fatores preditores para futuros comportamentos suicidas, ainda que possa ecoar décadas entre os eventos, dessa forma, a assistência prestada ao usuário na emergência e encaminhamentos adequados são importantes para a prevenção.

Dessa forma, as emergências compõem um lócus privilegiado para se questionar a assistência prestada aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), no que se refere ao atendimento pautado na integralidade (Estellita-Lins, 2010). É neste espaço que ocorre o primeiro atendimento e acolhimento aos usuários e, muitas vezes, os encaminhamentos para a sua rede de apoio. Pensando nesta complexidade, neste estudo optou-se pelo uso da terminologia “Comportamento Suicida” para designar todos os aspectos que envolvem o ato suicida, tais como: ideação suicida, plano suicida, suicídio e tentativas de suicídio (Bertolote, 2012), pois apenas o termo suicídio não contempla todos os fenômenos que chegam às emergências.

Outra questão existente quando se fala em comportamento suicida é o estigma que as pessoas que apresentam esse comportamento podem sofrer, passam a ser percebidos como pessoas problemáticas, fracas, egoístas, por não pensarem sobre o sofrimento que estão causando aos familiares, entre outras questões. A noção de estigma é abordada por Goffman (2004), a partir dos gregos, estes os definiam como sinais corporais com os quais se buscava evidenciar algo de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava.

Goffman (2004) fala sobre três tipos de estigma. O primeiro refere-se a deformidades físicas; o segundo refere-se às culpas de caráter individuais, percebidas como vontade fraca, como a homossexualidade, o sofrimento psíquico e os comportamentos suicidas; o terceiro refere-se a questões tribais, de raça, que podem ser transmitidos pela linhagem.

Assim, o presente estudo teve como objetivo investigar as percepções dos/das profissionais da emergência/urgência do Hospital Regional Dom Moura– Garanhuns/PE sobre o comportamento suicida de modo geral e, de forma específica, a relação dessas percepções com as práticas de cuidado realizadas pelos/as profissionais. O Hospital Regional Dom Moura, localizado no município de Garanhuns/PE, foi escolhido como local de estudo, uma vez que no ano de 2013 a agosto de 2014 foram notificados 107 casos de violência, destes, 46% refere-se à violência autoprovocada – tentativas de suicídio e suicídios consumados. (Brasil, 2015).

Estes dados revelam a importância de reflexões a serem realizadas sobre o atendimento a estes usuários/as e acompanhantes nesta unidade de saúde a partir dos/as profissionais que atuam na emergência/urgência desta instituição. Logo, pretende-se, com este estudo, contribuir para as estratégias de prevenção e práticas de cuidado realizadas pelos profissionais de saúde acerca do comportamento suicida.

 

MÉTODO

Para desenvolver o presente estudo foi escolhida a pesquisa qualitativa, pois trabalha com um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, correspondendo a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos a variáveis (Minayo, 2009).

Trabalham na Urgência/Emergência do Hospital Regional Dom Mouro – HRDM – Garanhuns/PE cerca de novecentos profissionais de diversas categorias, em sua maioria enfermeiros/as, porém a amostra deste estudo foi formada por nove profissionais, sendo compreendidas cinco categorias: Técnicos/as de Enfermagem, Enfermeiras/os, Médicos/as, Nutricionista e Assistente Social. Pela quantidade de profissionais entrevistados e de profissionais que atuam na emergência/urgência do HRDM optou-se, nesta pesquisa, por identificar os/as participantes através apenas da categoria profissional, uma vez que a utilização também do sexo e idade poderia identificar os entrevistados, não garantindo o anonimato destes.
Para alcançar os objetivos deste estudo foram realizadas quatro etapas descritas a seguir:

1ª etapa: Fase exploratória

A coleta de dados ocorreu após aprovação do projeto no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Pernambuco (Parecer 858.220), de acordo com a resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, e seguiu as recomendações éticas para a realização de pesquisas com seres humanos.

Inicialmente, foram realizadas observações no campo de pesquisa, sendo as informações registradas no Diário de Campo, uma vez que este é um instrumento que possibilita que sejam relatadas as percepções, angústias, questionamentos do pesquisador/a e informações do campo de pesquisa, devendo o/a mesmo/a debruçar-se sobre este instrumento, pois pode construir detalhes que no seu somatório vão congregar os diferentes momentos da pesquisa (Neto, 1994). Este instrumento foi utilizado para o registro de observações sobre as práticas de cuidado dos profissionais de saúde na emergência/urgência e auxiliou na construção do roteiro de entrevistas, segunda etapa deste estudo, dessa forma teve um papel importante como material de coleta de dados junto às entrevistas.

2ª etapa: Realização das entrevistas semiestruturadas

Como técnica para a coleta de dados foi utilizada a Entrevista Semiestruturada, esta combina perguntas abertas e fechadas, em que o/a entrevistador tem a possibilidade de discorrer sobre o tema em questão sem se prender a uma pergunta formulada (Minayo, 2009). Por ser um instrumento que não utiliza apenas perguntas prontas, possibilita um diálogo, reflexão entre pesquisador/a e entrevistada/o a fim de apreender melhor aquilo que está sendo comunicado. Todas as entrevistas foram gravadas, após os/as participantes concordarem e assinarem o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE). 
3ª etapa: Análise dos dados
As entrevistas foram analisadas através da Análise de Conteúdo, no conjunto de suas técnicas foi utilizada a análise por categorias, que funciona por operações de desmembramento do texto em unidades, em categorias. Entre as diferentes possibilidades de categorização e investigação dos temas, a análise temática é eficaz na condição de se aplicar a discursos diretos. A análise temática é transversal, recorta todo o conjunto de discursos através de uma grelha de categorias projetadas sobre os conteúdos, e leva em conta a frequência dos temas extraídos do conjunto dos discursos (Bardin, 1979).

Após a transcrição das entrevistas analisamos os discursos dos/as entrevistados/as e separamos aqueles que apareceram com mais constância e depois foram categorizados. Ao fazer esta análise, foram encontradas duas categorias temáticas: Percepções sobre Comportamento Suicida - nesta categoria foram abordadas questões relativas à compreensão dos/as participantes sobre o tema do estudo. A segunda categoria de análise refere-se às Práticas de Cuidado, que diz respeito ao atendimento e intervenções realizadas aos/as usuários/as que chegam às emergências devido ao comportamento suicida.

4ª etapa: Elaboração da Cartilha

Ao final da coleta e análise dos dados foi elaborada uma Cartilha sobre comportamento suicida para os/as profissionais da emergência, tendo como temáticas abordadas: Conceito de Comportamento Suicida, Abordagem ao/a usuário/a no momento que chega à emergência/urgência e a importância do Encaminhamento para a Rede de Atenção Psicossocial. Estas temáticas foram elencadas a partir da análise das entrevistas e observações registradas no Diário de campo. O objetivo deste material foi realizar uma devolutiva ao local onde a pesquisa ocorreu, e também instrumentalizar os/as profissionais para as práticas de cuidado no que concerne às informações sobre as possibilidades de encaminhamentos e atenção aos/as usuários/as e acompanhantes.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A seguir serão apresentadas as categorias temáticas: Percepção sobre Comportamento Suicida e Práticas de Cuidado.

Percepção sobre Comportamento Suicida

Observamos que existem lacunas na compreensão dos profissionais de saúde investigados sobre o comportamento suicida, e com isso, pode-se inferir que ocorram implicações no acolhimento e assistência prestada às pessoas que chegam ao hospital com essa demanda, conforme observado nos estudos realizados por Estellita-Lins (2012). Vimos que alguns participantes do presente estudo percebem o comportamento suicida baseado na demanda que chega à unidade de saúde, como pode ser observado no relato abaixo, quando foi perguntado aos/as entrevistados/as o que era comportamento suicida para eles/as:

Assim, suicídio é quando tenta tirar a vida, né, há tipos de suicídio de atropelamento, de quando toma remédio, se enforcar, cortar os pulsos, acho que é assim uma prática que você faz contra si mesmo para tirar a vida, acho assim. Já, principalmente por intoxicação exógena, a maioria desses pacientes (...) (Enfermagem).

Ao identificar o comportamento suicida a partir do método utilizado para prática desse comportamento, os/as profissionais deixam de compreender os vários fatores que se fazem presentes e podem não intervir de forma integral, ou seja, as práticas de cuidado terão como foco apenas os fatores de estabilização dos sinais vitais, e procedimentos realizados como lavagem gástrica, acesso venoso, entre outros, sem uma reflexão sobre a motivação para o ato e a importância de encaminhamentos para a rede de atenção à saúde e/ou socioassistencial.

Durante as observações no lócus da pesquisa foi identificado que os/as profissionais, na maioria das vezes, referem-se aos comportamentos suicidas como “tomou remédio”, “tentou se matar”, “quis se matar”, a palavra Suicídio é ocultada das falas, pode-se inferir que este ocultamento pode estar relacionado com a dificuldade dos/as profissionais frente a esta demanda, dessa forma, a troca e/ou ocultamento do termo Suicídio serve para facilitar as intervenções realizadas ou para que ocorra um distanciamento de questões relativas à morte e aos fenômenos relacionados a ela.

Outros profissionais, quando indagados sobre o que é comportamento suicida, o associam a problemas psiquiátricos ou a falta de Deus, essas questões contribuem para estigmatizar as pessoas que apresentam tal comportamento. A seguir pode ser observada a relação que alguns profissionais fazem com o comportamento suicida:

(...) Você quer dizer assim uma pessoa que está sendo levada, né? Pro campo do suicídio (...) é uma pessoa que tá com problemas, problemas psiquiátricos, psicológico assim, sério e que eles precisam de ajuda profissional para não chegarem a atingir o suicídio, porque uma pessoa sã mesmo mentalmente, ele jamais vai cometer um suicídio (Serviço Social).

Todos os tipos de estigmas descritos anteriormente e as falas dos participantes trazem a essência do que os gregos descreviam como marca, aquilo que se torna diferente dos demais é socialmente inaceitável. O fato de atentar contra a própria vida subverte a ordem médica que tem como princípio o de que a vida está acima de tudo e que todos os esforços devem ser empreendidos no sentido de preservá-la. Com o ato suicida é como se o usuário competisse com este princípio e, consequentemente, com o “poder médico”, que rege as práticas de cuidado de todos/as atores/atrizes que circulam pela saúde, tornando o sujeito que apresenta comportamento suicida, muitas vezes, indesejado e maltratado pela equipe (Rigo, 2013).

Ao relacionar o comportamento suicida apenas aos problemas psiquiátricos, a compreensão acerca deste fenômeno e as várias possibilidades de intervenção e encaminhamento destes casos são reduzidas. Uma vez que o comportamento suicida é multifatorial e multideterminado resultante de uma complexa teia de fatores de risco e proteção que interagem sobre eles, dificultando a identificação e precisão de cada um deles (Bertolote, 2012).

A partir da análise foi observado que quando ocorre a associação do comportamento suicida a problemas psiquiátricos, a depressão foi a mais referida pelos profissionais, como pode ser observado na fala a seguir:

(...) no meu ponto de vista começa assim, a pessoa começa a se inibir, se contrair, se fechar mais da sociedade, da família se apartar e não tem acompanhamento e ninguém percebe na família, os amigos, escola e não percebe que a pessoa só vai se excluindo (...) (Medicina).

Esta fala remete também a outra questão, o comportamento suicida não atinge apenas o sujeito que pratica, mas todo o contexto e pessoas que estão próximas.

Algumas famílias são surpreendidas por não terem percebido, compreendido, valorizado a natureza do risco, o que pode representar um processo doloroso, mas necessário, para a elaboração de sentimentos de raiva e culpa que possam surgir. Quando alguém da família conhecia os riscos podem ocorrer, também, sentimentos de impotência e fracasso nos cuidados a seu ente querido além da culpabilização e autoflagelo.

Um dos entrevistados trouxe a educação permanente dos/as profissionais de saúde como algo que tem contribuído para auxiliar na melhoria das práticas de cuidado, como pode ser observado na fala abaixo:

Assim, pra ser sincero o que acontece é os próprios funcionários quando recebem esses usuários já recriminam logo ele, tá entendendo? Pelas atitudes, pelos gestos que esse usuário faz, aí termina sendo recriminado, geralmente é isso que acontece. Já tem diminuído muito isso, porque já teve palestra, algumas capacitações pra justamente tentar mudar o olhar do profissional que recebe esses pacientes assim (Enfermagem).

As ações de educação permanente representam uma importante estratégia para a melhoria da assistência prestada aos usuários, porém, como explicitado na fala, as atividades educativas devem ser pensadas para que ocorra uma reflexão destes profissionais sobre as práticas de cuidado desempenhadas por eles e das demandas que atendem. Estas questões relativas às práticas de cuidado serão abordadas a seguir.

Práticas de Cuidado

Estas questões são refletidas a partir da observação sobre o encaminhamento à rede de apoio dos usuários, informações importantes pós-alta hospitalar, na forma de atendimento a usuários e acompanhantes e subnotificação dos casos de comportamento suicida.

Porém, é notório que os serviços de emergência funcionam frequentemente como substituto das unidades de atenção básica, devido à lógica do pronto-atendimento equivocado, como pode ser observado na fala abaixo, quando perguntado como é o trabalho na emergência:

Na emergência, aqui no Brasil (...), eu vejo que vem muito ambulatório, né, então você fica sobrecarregada com um serviço ambulatorial, o que podia ser feito na atenção básica. Aqui é tudo o contrário, a atenção básica vai às urgências e no pronto-socorro, nas urgências, do hospital regional chega o ambulatório (...). (Medicina)

Os serviços emergenciais no Brasil funcionam com grande afluxo de demanda espontânea, desorganizada e desinformada, culminando na superlotação das unidades, o que pode estar relacionado com as dificuldades de um olhar calcado na integralidade.

Com o intuito de melhorar a assistência aos usuários que apresentam comportamentos suicidas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde (MS) publicaram manuais direcionados aos profissionais de saúde. Um deles é o Manual para médicos clínicos gerais e o Manual de Prevenção do Suicídio: Manual dirigido a profissionais das equipes de Saúde Mental, uma destas publicações tem como objetivo destacar os principais transtornos mentais e outros fatores associados com o suicídio e prover informações referentes à identificação e o manejo de pacientes suicidas que compreende o acolhimento, a escuta empática e a importância de avaliar a rede de apoio do/a usuário/a e encaminhamentos (OMS, 2000; Brasil, 2006).

Observa-se que todos os manuais trazem a articulação da Rede de Apoio como ponto fundamental para o atendimento a usuários que apresentam comportamentos suicidas, porém nos deparamos com redes de saúde mental frágeis e o desconhecimento, de alguns profissionais, sobre os equipamentos de saúde e socioassistencial disponíveis. Segundo Estellita-Lins (2012), a construção de uma rede de atenção aos portadores de sofrimento psíquico que melhore sua qualidade de vida, incluindo o cuidado sem estigmas ou discriminação, é um grande desafio. Trabalhar em rede, com base territorial, pressupõe buscar formas de reconhecer os espaços criados nas comunidades com espaços promocionais de saúde mental, integrando-os a ações específicas de outros programas assistenciais de saúde, organização e movimentos comunitários.

Quando indagado aos profissionais participantes deste estudo se haviam realizado encaminhamentos aos usuários e familiares após o atendimento, quatro dos nove profissionais entrevistados afirmaram que realizaram encaminhamento, sendo o mais frequente o ambulatório de psicologia e psiquiatria, como pode ser verificado na fala: “Olha, quando, quando eles vêm pra cá depois que passa por todo o processo e quando eles saem a gente acompanha, a gente encaminha pra uma psicóloga pra fazer um acompanhamento com uma psicóloga” (Serviço Social).

Apenas um profissional se referiu a outros dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e a Estratégia de Saúde da Família (ESF), como pode ser visto no relato quando indagado a respeito dos encaminhamentos realizados.

Já, mas nem todos a gente encaminha né, a gente.. é tem a  rede, tem se é paciente de CAPS ao menos o PSF né, ou e-mail ou telefonema, não é 100% mas sempre que a gente pode, porque também num num a gente se desloca para o hospital todo, não tem um profissional só na emergência (pausa) fica, se desdobra no hospital todo. (Serviço Social).

Os/as profissionais que disseram não ter feito nenhum encaminhamento após o atendimento relataram: “Não, até porque aqui não existe, né, a alta compartilhada, quando o médico já tem dado alta a gente nem vê o paciente. (Nutrição)”. Quando foi questionado se já tinham visto encaminhamentos de outros profissionais, responderam que na emergência, não. Após a alta, é necessário encaminhamento psiquiátrico, psicológico e de suporte familiar e social. Os serviços de urgência devem estar articulados com os demais serviços existentes em cada município, buscando garantir a atenção integral e prevenir tentativas de suicídio.

Os/as profissionais relataram a falta de acolhimento aos/as usuários/as e acompanhantes e práticas de cuidado que estão mais direcionadas à manutenção da vida e os procedimentos para a estabilização e medicação, como pode ser visto no relato abaixo, onde foi perguntado ao/a profissional como é realizado o atendimento nos casos de comportamento suicida.

(...) a sociedade mesmo, nós mesmo ali naquela urgência, naquele tumulto né, que o médico está mais pra fazer é o procedimento lavagem gástrica, enfim, medicação, monitorizar, a gente não tá totalmente acostumado e preparado pra receber um paciente desse, geralmente a gente já recebe naquela morte eminente ali, a gente vai reanimar, fazer lavagem e já vai esquecendo quando passa aquela adrenalina, a gente já esqueceu de tudo (...) (Medicina).

Para Neto (2013), muitas vezes, tenta-se de apagar, escamotear, esconder o comportamento suicida e uma das formas para fazer isso é, geralmente, utilizar o biologicismo. Apesar de muitas vezes os profissionais de saúde recorrerem à questão biopsicossocial, é necessário olhar para os diversos aspectos constituintes do psiquismo, para as diversas esferas da vida dos indivíduos, porém, cotidianamente, não costuma ser isso o que nós produzimos ou reproduzimos (Neto, 2013). Fato que pode ser visto neste estudo, quando os/as profissionais relataram sobre suas práticas de cuidado focaram mais nos aspectos biológicos e curativos, porém, quando se referiam às práticas dos demais profissionais que estavam de plantão com eles, apontaram a falta de acolhimento, falta de informações sobre a motivação para o comportamento suicida e de uma escuta ativa, e os preconceitos foram citados como fatores que dificultavam a assistência prestada aos/as usuários/as.

Chama atenção também o relato do profissional de medicina citado acima que afirma não estar preparado para receber essas demandas ao mesmo tempo em que leva à reflexão que o fato de ter consciência da falta de preparo é o que deveria motivar os profissionais das diversas áreas de saúde na busca do conhecimento e dos modos de intervenção.

Dois dos profissionais entrevistados citaram o Centro de Assistência Toxicológica como um apoio importante no atendimento a usuários com intoxicação exógena, autoprovocada ou não, como pode ser observado na fala a seguir:

Uma coisa assim que é importante é que a gente sempre tem o apoio do telefone 0800, que você pede suporte pra o paciente com intoxicação que é o CEATOX, e geralmente é paciente que fez uso de chumbinho, aqueles venenos que eles botam pra matar mato em sítio, né (...) (Medicina).

Como dificuldades para realizar o atendimento a usuários que apresentam comportamento suicida os/as profissionais elencaram também o preenchimento inadequado do prontuário, como pode ser visto na fala quando perguntado sobre dificuldade no atendimento:

Primeiro lugar o prontuário que não existe escrito especificamente em relação tanto a dieta, não existe especificamente que dieta para o paciente depois que ele tirar a sonda e também um relatório específico falando do motivo que aquilo aconteceu, não existe nada, só tem lá que o paciente tomou e pronto, nada mais (Nutrição).

A questão levantada remete também à dificuldade de diálogo entre os/as profissionais que circulam pela emergência, seja pela quantidade de atendimentos que ocorrem neste espaço ou pela ausência de um trabalho articulado entre as diversas categorias profissionais de forma interdisciplinar. Durante observação em campo percebeu-se maior proximidade entre a equipe de enfermagem e de medicina, porém, apesar desta aproximação, não ocorre uma troca e/ou busca de uma assistência conjunta, caindo nos especialismos e fragmentação do cuidado realizado.

Outra dificuldade apontada refere-se à ausência do profissional de psicologia na equipe da emergência, como pode ser visto nas falas abaixo quando indagado aos/as profissionais sobre as dificuldades no atendimento:

(...) é muito precário, eu acho que esses pacientes precisam ser bem mais atendidos, porque eles chegam primeiro na emergência, que é o local onde eles recebem o primeiro momento, então quando ele chega nesse momento ele vai ser atendido por quem? Pelo clínico, ele não tem um psicólogo lá pra atender, então era importante que o psicólogo estivesse lá pra dar o apoio naquele momento e também para a família que chega num momento de desespero e esse profissional não tem (...) (Serviço Social).

Apesar de compreender a importância do profissional de psicologia na emergência e especialmente nos casos de comportamento suicida, os/as profissionais atribuíram apenas a este profissional o acolhimento e busca de informações com os acompanhantes e/ou familiares. É importante salientar que não cabe apenas ao/a psicólogo/a, estas ações podem e devem ser realizadas por todas as categorias profissionais.

Para Sebastiani (2013), a abordagem a usuários/as por tentativa de suicídio, no Centro de Terapia Intensiva (CTI), deve levar em conta, em aspectos gerais, a obtenção de dados relativos ao histórico familiar e pessoal do usuário/a, atribuição esta que pode ser feita por qualquer membro da equipe, porém é importante ressaltar que a busca por estas informações é importante para o trabalho que o/a psicólogo/a irá realizar, uma vez que a intervenção psicológica o mais breve possível torna-se parte integrante do tratamento. Durante o tempo que o/a usuário/a permanece no hospital, o/a profissional de psicologia pode, dentre as várias intervenções, detectar focos conflitivos que levaram o sujeito à tentativa de suicídio e na sensibilização do usuário/a e de seus familiares/acompanhantes para a continuidade do acompanhamento psicológico pós-alta.

Tendo em vista a importância de intervenções realizadas com familiares/acompanhantes, os/as profissionais relataram dificuldades na assistência prestada a eles e ao/a usuário/a, como pode ser observado a seguir, quando o profissional relatou dificuldades na abordagem ao/a usuário/a:

Alguns casos sim, porque tem casos que tem uma dimensão maior, porque assim, às vezes, o paciente, a pessoa sente que ele tá no momento frágil e tal, já tem outros pacientes que você que ele tipo quer, tipo esse, quer procurar o suicídio assim a gente tem dificuldade (...). (Enfermagem).

O atendimento aos familiares/acompanhantes e usuários que tentaram suicídio na emergência é, muitas vezes, tumultuado, uma vez que há uma grande demanda e os profissionais tendem a focar nos cuidados primários e suporte dos sinais vitais. Buriola et al. (2011) observaram que os enfermeiros desvinculam os familiares do cuidado, colocando-os em segundo plano ou mesmo não se importando com seus medos e preocupações. Os enfermeiros relataram que existem muitos motivos para que isto ocorra: sentimento de despreparo para este tipo de abordagem, sobrecarga de trabalho e ausência de protocolos que orientem os familiares com relação a encaminhamentos. Fato que corrobora os dados encontrados no presente estudo, não apenas com a equipe de enfermagem, mas todas as categorias participantes demonstraram dificuldades no atendimento a usuários que apresentam comportamento suicida.

Estas dificuldades podem estar relacionadas ao fato de que dos nove entrevistados, apenas dois relataram ter lido algo sobre comportamento suicida, bem como a maioria deles/as não havia visto na graduação e/ou cursos subsequentes a temática abordada. Fato que pode estar relacionado à compreensão dos/as profissionais participantes no que tange ao Comportamento Suicida, explicando-o através daquilo que o “senso comum” considera deste ato sem uma reflexão acerca da multicausalidade e o associando a problemas psiquiátricos, na maioria dos casos. Esta lacuna na compreensão e intervenção do comportamento suicida resvala em práticas de cuidado calcadas apenas nos aspectos biológicos e na manutenção da vida, pois a estabilização de sinais vitais pode ser passível de observação e de fácil verificação, uma vez que a compreensão do fenômeno a partir de um olhar integral escapa destes profissionais, seja pelo despreparo técnico e/ou teórico em lidar com usuários com esta demanda ou dificuldade com questões relativas à morte e com o estigma em relação ao usuário suicida.

 

CONCLUSÃO

Percebe-se no estudo que existem lacunas na compreensão dos profissionais sobre o comportamento suicida, e observou-se também que as práticas de cuidado realizadas pelos mesmos estão relacionadas a estas lacunas na compreensão dos diversos fatores que podem estar presentes no comportamento suicida.  Algo muito presente nos discursos dos profissionais é o estigma em relação àqueles/as que apresentam esse tipo de comportamento, e isto repercute no modo como o usuário/a é acolhido e cuidado na instituição de saúde. O que revela a importância de ações de educação permanente na instituição hospitalar, tendo como foco a melhoria da assistência prestada aos/as usuários/as através de atividades que levem estes profissionais a refletirem sobre suas práticas de cuidado e compreensão das demandas que chegam à unidade. Com o intuito de colaborar com estas atividades e realizar uma devolutiva da pesquisa à instituição participante, foi confeccionada uma cartilha direcionada aos profissionais da emergência, tendo como foco conceitos importantes acerca do comportamento suicida, abordagem ao/a usuário/a e encaminhamentos.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: patricia_ivanca@yahoo.com.br

 

 

1Residente do Programa de Residência Multiprofissional de Interiorização da Atenção à saúde - HRDM/UFPE-CAV. Graduação em Psicologia pela Universidade de Pernambuco, Brasil.
2Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia - UFPE. Mestre em Psicologia pela UFPE. Graduação em Psicologia pela Universidade de Pernambuco Professora Substituta da UFPE.
3Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco. Psicóloga pela Universidade Católica de Pernambuco. Professora da Universidade de Pernambuco, Brasil.

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