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Mental
versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X
Mental v.2 n.3 Barbacena nov. 2004
ARTIGOS
A desconstrução da psicopatologia na pesquisa ação
Deconstructing psychopathology in action research
Ian Parker *; Carmem Silva Martins Leite (tradução)
Manchester Metropolitan University
RESUMO
O presente artigo explora a relação entre teoria e pesquisa a partir das reflexões sobre a desconstrução e a pesquisa ação. Para tanto, aborda a desconstrução em campos disntintos tais como a psicologia, a comunidade e a psicopatologia. Considera que a pesquisa ação contribui com indagações a respeito da mudança social no decorrer de toda pesquisa qualitativa, e aponta como vantagens desta a possibilidade de antecipar um melhor modelo de sociedade.
Palavras-chave: Pesquisa ação, Desconstrução, Comunidade, Psicopatologia, Psicologia.
ABSTRACT
The present paper explores the relationship between theory and research starting from reflections about deconstruction and action research. So it focuses deconstruction on different areas as psychology, community and psychopathology. It considers that action research contributes with inquiries about social change throughout every qualitative research and it shows as advantages of qualitative research the possibility to advance a better society model.
Keywords: Action research, Deconstruction, Community, Psychology, Psychopathology.
Pesquisa ação
A pesquisa ação propõe perguntas de mudança social no programa de toda forma de pesquisa qualitativa.
Toda pesquisa é uma ação que trabalha a favor ou contra o poder. O problema com a maioria das principais correntes psicológicas é que ela deixa as coisas deliberadamente como estão (ela reproduz explicitamente as relações existentes de poder) ou finge que a investigação científica ou interpretação é neutra. Assim, dá apoio tácito àqueles que estão no poder.
A pesquisa qualitativa de todos os tipos abre a possibilidade para trabalhar "prefigurativamente", antecipando uma forma melhor de sociedade num grande processo de luta para tal. As políticas prefigurativas que estão sendo discutidas aqui fluem do argumento feminista de que o pessoal é político. Uma ênfase no aspecto prefigurativo de pesquisa chama a atenção para o modo como estão embutidos em estruturas sociais todos os aspectos de nossa interação cotidiana e mundo de vida interno. O que acontece na esfera pessoal está intimamente conectado com amplos padrões de poder e resistência.
Essa atenção para a ligação entre o pessoal e o político pode explicar tanto o porquê de as perspectivas feministas terem sido tão importantes para a pesquisa ação participatória quanto o porquê de as feministas terem se interessado muito em fazer uma ligação entre a pesquisa ação e a transformação da psicologia. O aspecto político da pesquisa assume, então, importância particular, e os métodos são, assim, projetados para responder perguntas de pesquisa, de modo a permitir resultados políticos positivos para aqueles que participam dessa pesquisa.
Isso significa que uma pesquisa ação radical não é um método como tal. De certa forma, é a transformação da pesquisa em uma prática política prefigurativa. Tal transformação requer que nós compreendamos os meios pelos quais nossa pesquisa sempre foi, desde o início, o menos implicitamente política, e que nós levemos adiante as dimensões éticas e reflexivas de nossa atividade, de forma que as políticas se tornem explícitas a nós mesmos e àqueles com quem trabalhamos, caso de nossos co-pesquisadores.
Assuntos chave em pesquisa ação
Há quatro assuntos que podem facilitar o processo de se transformar as políticas implícitas de pesquisa em algo mais explícito e transformativo.
Primeiro: a base institucional para nosso trabalho sempre é, até certo ponto, um obstáculo, até mesmo quando pudesse também ser algo que é um recurso útil. Para qualquer projeto prefigurativo que nós tenhamos em mente, já existe uma certa forma para nossas interações com pesquisadores potenciais, que é parte de nossa posição na instituição, que tornou a pesquisa possível. Se essa instituição é uma universidade ou outro recinto educacional, uma organização governamental ou não-governamental, ou um instituto de pesquisa particular, aqueles com quem nós queremos trabalhar podem ter razões muito boas para não querer trabalhar conosco. Um modo de conseguir isso é, por exemplo, tentar fazer a universidade mais acessível, mas para tanto ainda se faz necessária uma pergunta sobre o que é exatamente que nós queremos que seja acessível.
Segundo: o tipo de conhecimento que nós produzimos pode não ser algo que possamos descobrir. A mensagem, que pretendemos fazer pesquisa, pode não ser uma estrutura útil para nossa atividade. A pesquisa ação radical pode nos levar a repensar que tipo de conhecimento estamos produzindo e se seu aspecto de pesquisa acadêmica é a coisa menos importante. Pode ser o caso de descobrir fatos que serviriam meramente para confirmar o modo como as coisas já eram, ao invés de mudá-los, e também confirmar a autoridade do investigador que conseguiu achá-los. Pode haver boas razões éticas pelas quais a representação fictícia iluminaria as coisas melhor do que aquilo que parecia ser real.
Terceiro: toda descrição que nós produzimos ou que encorajamos nossos co-pesquisadores a produzir está saturada de teoria. O que nós sabemos está sempre estruturado por uma gama de suposições contraditórias diferentes sobre o mundo e sobre o que nós pensamos ser bom para as pessoas. Essas suposições são teoricamente elaboradas. Não são preconceitos equivocados simplesmente - funcionam porque se uniram em cadeias complexas de raciocínio e argumento. O ditado que diz que não há nada tão prático como uma boa teoria necessita ser completado pela afirmação de que não há nada tão teórico como uma boa prática, o que significa que toda teoria está correta. Pesquisa ação é um modo de colocar a teoria para ser testada na prática, fazendo isso de tal modo que aquilo que é estudado sejam os agentes conscientes da pesquisa, ao mesmo tempo que objetos descritos no estudo. Eu lidarei com armações teóricas em mais detalhes noutro momento.
Quarto: não há método que possa ser aplicado em pesquisa ação. A aplicação de um método em pesquisa sempre está carregado de dificuldades, pois pressupõe que você possa fixar o que há de interesse seu, o que exclui a consideração de que pode haver coisas bastante diferentes que são interessantes para aqueles com quem você trabalha. Em vez disso, você sempre reinventa o método no processo de pesquisa (e não só na pesquisa ação), adapta idéias de estudos prévios e os torna úteis para o assunto particular em que está envolvido. E em pesquisa ação você pode nem mesmo saber qual é o assunto real a ser tratado. Se você realmente está levando adiante sua decisão de deixar seus co-pesquisadores determinarem os assuntos que são pertinentes a eles, então o método propriamente dito é algo que emergirá ao longo da pesquisa. Eu retornarei a esse assunto posteriormente.
A desconstrução da psicologia a partir de dentro
Uma ferramenta teórica útil que nós temos usado, em Manchester, durante anos, é a desconstrução. Por que isto? Bem, para começar, a desconstrução é particularmente útil para corroer a psicologia por dentro. Para explicar como isso acontece, é necessário esboçar um "senso de trabalho" de como a desconstrução é realmente aplicada. A desconstrução funciona por meio de um tipo de anti-método que resiste à definição ou prescrição, e que focaliza o modo como um problema é produzido dentro de um texto. A prioridade na desconstrução é conseguir um senso de como um problema é produzido, de forma que é melhor do que querer que isso se defina e indague que isto é o que realmente é.
Um foco crítico da desconstrução, então, é questionar, de modo direcionado e combinado, como certos aspectos de um texto são ativamente problematizados. Aqui, o que é importante sobre o enfoque desconstrutivo, para grosseiramente parafrasear Derrida, é aquele que diz: "as pedras da casa podem ser usadas como armas contra ela". Em outras palavras, com um compromisso bastante crítico com os textos centrais de psicologia, ou com as premissas básicas que difundem a cultura psicológica. A psicologia pode ser efetivamente desconstruída, até mesmo, de dentro, na base de suas próprias condições de explicação.
Porém, há perigos inerentes inseridos em tal enfoque, e é importante que nós estejamos atentos a eles. Um problema que se apresenta a entusiastas da desconstrução é que se tome-a muito seriamente, o que pareceria um estado paradoxal de negócios, considerando o que seja uma desconstrução de enfoque não sério.
O problema que se opõe, no outro extremo, é o de tratar a desconstrução como "um jogo perpétuo". Este pareceria um estado igualmente paradoxal de negócios, dado que aquela desconstrução ainda é parte séria do esclarecimento da tradição filosófica, como o próprio Derrida insiste. Por que esses dois problemas aparentes são tão perigosos? Bem, eles são perigosos - e esta é uma resposta específica para os objetivos e programas de trabalho de psicologia crítica - porque, ao fazê-la, perdemos a visão do que tem direcionado os psicólogos críticos à desconstrução, em primeiro lugar, que é o papel estranhamente poderoso que a psicologia faz na cultura Ocidental.
Ao pensar em errar entre uma análise não muito séria ou uma análise séria demais, nós arriscamos a perder a distinção entre a força colonizadora da psicologia, por um lado, e a gama variada de ações sociais e políticas que a ameaça saturar, por outro lado. Ao cometer tais erros, estaríamos perdendo a visão da diferença entre o raciocínio psicológico embutido na cultura psicológica e outros tipos de atividade política-moral. Quer dizer, o emprego tático específico da desconstrução dentro da psicologia pôde muito facilmente ser transformado num fetiche que estrutura as percepções pessoais com relação ao mundo. Ou, de maneira diferente: preso a tais problemas, os prováveis desconstrutores arriscam a perder um senso de perspectiva na diferença entre o psicológico e o político, e na maneira como o psicológico tem tentado, de alguns modos, colonizar e reformular o que está na base dos problemas políticos, dos problemas de poder, do controle social e das regras.
Nesse ponto, faz-se importante, para complementar a noção de uma cultura psicológica, um conceito ligeiramente mais forte do que o de "complexo psíquico". O complexo psíquico é um termo central para a psicologia crítica. Refere-se àquela rede complexa de teorias e práticas acadêmicas e à psicologia profissional, que vêm para informar nossas noções mais básicas e cotidianas de ego, mente, desvio e normalidade.
Funcionando desse modo, o complexo psíquico opera como uma rede de especulações sobre o comportamento e os estados mentais dos indivíduos, e abrange uma gama de tentativas para regular o modo como as pessoas pensam e se comportam. Uma vez que nós sejamos capazes de adquirir um senso da amplitude e do poder da influência da psicologia na cultura Ocidental - cuja noção do complexo psíquico certamente facilita - então nós começamos a ver a importância de não só aplicar criticamente a desconstrução na psicologia, mas também sem ela.
Desconstruindo a 'comunidade'
A desconstrução faz algo diferente no âmbito da cultura popular, que é possível fazer nos confins do mundo estritamente acadêmico. Deixe-nos dizer que o que a desconstrução pode fazer fora da disciplina acadêmica de psicologia, no âmbito da cultura contemporânea, é complementar ao trabalho teórico de desconstrução dentro da psicologia. O que a desconstrução pode fazer na cultura popular pode ser feito claramente na psicologia - embora pareça particularmente eficaz para aplicar esse modo de crítica ao domínio mais geral da cultura psicológica - e isso é disponibilizar qualidades atribuídas a indivíduos, padrões normativos fixos de comportamento, e "psicologias" distintas. A desconstrução considera toda função como operadora em termos de uma polaridade que privilegia a ordem sobre a deficiência, e requer aquela função repleta de deficiência para se trabalhar.
Essa suspeita de enfoques sistêmicos (particularmente, de enfoques que poderiam validar sistemas que são vistos como saudáveis) tem conseqüências para o modo que nós pensamos em comunidades na pesquisa ação. Se o problema principal em psicologia parece ser seu foco metodológico no indivíduo, então pareceria que uma troca de foco para a comunidade resolveria o problema. Mas não o faz, porque todos as velhas suposições de psicologia individual podem muito facilmente ser elevadas a um nível e adaptadas para definir o que é uma comunidade e como o psicólogo pensa que ela deveria ser trabalhada. Isso significa que a "psicologia de comunidade" americana, que emergiu como um complemento para a psicologia corrente, não é realmente uma alternativa de tudo. O trabalho etnográfico nessa estrutura torna-se parte do problema, em lugar de parte da solução. O problema é quadruplicado.
Há, freqüentemente, uma imagem normalizada do que uma comunidade é ou deveria ser. Psicólogos comunitários idealizam o que pensam que a comunidade é, a partir daquela que eles estão observando e trabalhando. Porque pensam que sabem quem realmente representa a comunidade a partir daqueles que escutam (certas pessoas estão alegres em falar com eles), mantêm a exclusão e a opressão daqueles que não fazem o mesmo.
Com freqüência, existe uma imagem patológica daqueles que não se ajustam. O psicólogo comunitário pensa que pode descobrir o que está impedindo a comunidade de trabalhar tranqüilamente. Porque fazem alianças com certos representantes da comunidade, eles se tornam parte de uma organização que colocará na linha aqueles que se recusaram a concordar com a ego-imagem da comunidade dominante.
Adota-se uma listagem de "cidadãos bons". Os psicólogos comunitários não só têm uma visão do que é uma comunidade boa, mas também uma visão correspondente do que é um cidadão bom, que contribui para a comunidade. Porque o psicólogo é tão entusiasmado em envolver todo o mundo na comunidade dele, que eles tentam inserir todo mundo em uma participação ativa, de forma que aqueles que se recusam, são tratados como desmancha-prazeres ou pior.
Há um controle freqüente da comunidade para mantê-la branda, suave. O psicólogo comunitário trabalha de acordo com um programa, que é externo a seu grupo alvo. Por causa de uma agência governamental, de uma agência corporal ou de um grupo de pesquisa ter a comunidade como seu objeto de estudo, uma "relação colonial" é estabelecida com a comunidade; é feito o recrutamento na comunidade daqueles que estão dispostos a vender todo seu estoque.
A "psicologia comunitária", então, liga os dois termos - comunidade e psicologia - de modo que a representação de comunidade para a psicologia - comunidade como algo que pode ser conceitualizado e estudado por psicólogos em suas próprias condições - usa a imagem de psicologia da comunidade para entender os indivíduos que a constituem. Muitos psicólogos comunitários bem-intencionados cometem exatamente esse erro, num movimento estranho que trai todas as coisas boas que eles esperam realizar em determinada comunidade. Alguns deles não o fazem, mas quando deixam de fazê-lo, têm que abandonar as imagens dominantes de psicologia e comunidade e achar substituto melhor.
Assim, a tarefa de desconstrução radical em pesquisa ação é mostrar como uma comunidade fabrica imagens de si mesma, de tal modo que, para esconder conflitos internos e mostrar como esses conflitos podem conduzir ao não-desvendamento das histórias, fazem parecer que tudo está em ordem. Até certo ponto, está nessa luz o que deveríamos buscar como guia para documentar a invenção e a decomposição de comunidades.
Paranóia da desconstrução
Um exemplo notável de pesquisa ação efetiva em relação à psiquiatria na Itália, nos anos 70, causa perguntas importantes para a pesquisa ação. Em Trieste, o velho hospital mental San Giovanni foi fechado e substituído por centros de saúde mental, como parte do movimento de massa Psichiatria Democratica.
Tais eventos inspiraram a publicação na Inglaterra da Asylum, revista para a psiquiatria democrática (www.asylumonline.net) e o aparecimento de uma nova onda de movimentos de resistência de saúde mental, durante os anos 90, ao redor do Hearing Voices Network (HVN), grupos de pessoas que experimentam o que os psiquiatras chamam de "alucinações audíveis".
Essa rede não era baseada em nenhuma instituição acadêmica, e o relatório informativo da HVN e a revista Asylum sempre incluíram ficção e poesia, mas as ligações com as universidades se tornaram um recurso para desenvolver metodologias novas e modos novos de pensar sobre o que era a teoria. Uma conferência realizada na Manchester Metropolitan University, em 1995, por exemplo, reuniu usuários de serviços psiquiátricos, psiquiatras, psicólogos clínicos, xamãs e espiritualistas para apresentar e discutir teorias sobre o fenômeno de ouvir vozes. Tal evento exigiu um repensar sobre qual deveria ser o papel da análise do discurso e de como as idéias psicanalíticas poderiam ser adaptadas e utilizadas como uma forma de pesquisa de ação terapêutica.
Uma das lições desse movimento, o qual faz pesquisa como parte de sua ação política contra a prática abusiva e humilhante de psiquiatria e psicologia, é aquele velho paradigma de noções psicológicas quantitativas de "hipóteses testáveis" e "grupos controlados", que não funcionará no mundo real. O movimento está se transformando tão rápido, aprendendo a partir de sua própria experiência, que apenas alguns dos métodos qualitativos mais novos são de qualquer modo pertinentes. Um desenvolvimento, desde então, foi a formação de uma "rede paranóia", no ano passado. Duas disciplinas, psicologia e psiquiatria, têm tentado manter, durante o último século, um firme aperto de mão no conhecimento. Juntos com seus vários dependentes, decidiram seu lugar no centro dessa teia densa de teorias e práticas, que nós viemos chamar de "complexo psíquico". O paradoxo é que, enquanto estes, no complexo psíquico, observam e regulam o pensamento e o comportamento, são parte do mesmo empreendimento, de modo que as pessoas sentem que estão sendo assistidas. Ao mesmo tempo, os profissionais sentem medo e suspeita sobre o que as pessoas que são "anormalmente" paranóicas poderiam fazer em seguida.
Assim, o que poderíamos todos nós, que nos sentimos paranóicos por uma boa razão em algum momento de nossas vidas - alguns de nós que estão tentando livrar-se do complexo psíquico - fazer em seguida? Aqui está uma resposta: haverá uma conferência, em julho, da nova Rede Paranóia, em Manchester, na Universidade. Essa conferência será uma reelaboração e a extensão de uma experiência, de 1995, de uma conferência acadêmica. Será aberto um espaço na Universidade para permitir desafios à autoridade dos "peritos" nas vidas de outras pessoas.
O envolvimento na conferência é, claro, um tipo de pesquisa ação, mas existem perguntas específicas que a rede faz sobre como nós pensamos a produção do conhecimento. Por exemplo: qual seria o papel de entrevistas e observação em um movimento que tem razão para ser suspeito de pesquisadores que querem saber mais sobre ele? Como as narrativas, que são criativas e iluminadas, poderiam ser produzidas, sem se intrometer em experiências que as pessoas podem querer manter confidenciais? Quando os enfoques discursivos seriam úteis ou vãos como meios para tratar as teorias, os peritos e "peritos por experiência" produzem meros discursos em lugar de reivindicações para a verdade? O movimento de sobreviventes do sistema de saúde mental é uma das bases novas para a pesquisa ação, para a qual os psicólogos qualitativos precisam olhar, e ao menos nós precisamos poder questionar nossas suposições sobre os tipos de métodos que são dominantes na disciplina, se formos fazer da pesquisa algo relevante para o mundo fora das universidades.
O discurso psicopatológico
O discurso psiquiátrico tem muito sucesso aqui, freqüentemente, porque pode nos persuadir de que não se faz o emprego de sistemas teóricos complexos para selecionar certos tipos de comportamento e organizá-los em categorias de diagnóstico. E muitos psiquiatras encantam-se com a idéia de que o que fazem é fundamentado em observação empírica concreta, livre de qualquer estrutura teórica. Isso também é, aparentemente, o motivo de tantos psiquiatras demostrarem surpresa quando são desafiados, o motivo pelo qual recorrem à patologia para aqueles que discordam de suas observações, e o motivo pelo qual são um perigo a si mesmos, assim como a outros.
A psicopatologia é uma construção, contada a partir de uma gama de textos psiquiátricos em forma de livros e diários que excedem os números de pacientes diagnosticados, e sedimentada em práticas que fazem isso parecer significativo e real. Mas, da mesma maneira que foi construída, também pode ser desconstruída. Essa tentativa, algumas vezes, é representada como completamente intuitiva ou espontânea, o que é compreensível, dado o papel poderoso que o conhecimento especializado tem na vida de muitas pessoas na cultura contemporânea. É igualmente compreensível que, quando as pessoas se aproveitam do poder para dar sentido a suas vidas e a suas relações, constroem essa atividade como sendo, de algum modo, anti-teórica. Não é, contudo. Quando nos tornamos especialistas em nossas próprias vidas, tal como médicos qualificados, inibidos e reflexivos do discurso ao qual toleramos como aqueles que são pagos para escutar ou aqueles que pagam para falar, nós também nos tornamos teóricos.
Uma compreensão da construção e da desconstrução da psicopatologia requer, desse modo, um momento de reflexão sobre os recursos teóricos que permitem sua existência e, ainda, sua contestação. Eis a razão pela qual nós escrevemos o livro A desconstrução psicopatológica.1
Se estávamos falando sobre psicopatia, paranóia ou psicose, um tema ainda continua. Foi onde alguns de nós tentamos uma reversão desconstrutiva muito simples da prioridade que, normalmente, é dada ao discurso psiquiátrico. O que normalmente acontece é que o sistema psiquiátrico e seus dependentes nos persuadem de que os psicopatas estão lá fora, nas ruas, e que nós precisamos, por exemplo, repensar o cuidado com a comunidade, e concordar que precisamos recolher os psicopatas e, assim, resolver o problema. Ou há certas pessoas que são paranóicas, e que de alguma maneira temos que conseguir que elas vejam que não há conspirações em massa, que estão organizando suas vidas. Ou que pessoas loucas, que falam um tipo de palavra-salada esquizofrênica, estranha, cujo discurso psicótico pode ser estudado e identificado e conectado a certos tipos de desordens de pensamento na cabeça das pessoas.
Você pode desafiar esses modos psiquiátricos de moldar problemas sociais reduzindo as distinções que a psiquiatria faz entre o louco e os "normais". Você pode fazê-lo mostrando que a sociedade moderna encoraja o comportamento insensível e manipulativo. Você pode desafiar o discurso psiquiátrico dizendo que não faz muito sentido isolar certas pessoas (tal como o psicopata) usando esses critérios ou mostrando que muitas conspirações com as quais as pessoas estão preocupadas se apresentam, para realmente ter alguma base, de maneira que se torne perigoso culpar aqueles que são suspeitos com relação à ordem das coisas. Semelhantemente, você pode mostrar que as palavras-salada são muito difundidas na literatura vanguardista e falam sobre esquizofrênicos, mas que é, na verdade, muito difícil achar uma conversa assim. O modo como as pessoas falam quando são supostamente loucas seguem, mesmo assim, as regras normais de fala.
Alguns de nós quisemos ir um pouco mais adiante, e eis onde os argumentos começaram. Alguns de nós queríamos dizer que, se você olha para o modo que o discurso psiquiátrico, e os próprios psiquiatras, operam, eles parecem, de certo modo, mais psicopatas do que aqueles que sestão tratando.
Este, especialmente, poderia ser o caso de os psiquiatras, e possivelmente o sistema psiquiátrico inteiro, parecer patologicamente suspeito sobre o comportamento de pessoas comuns. Igualmente, o modo com que psiquiatras falam, quer dizer, o uso do discurso psiquiátrico, parece tão afastado da experiência cotidiana que chega às raias do psicótico.
O problema é que os psiquiatras, e os psicólogos clínicos que desejavam ser psiquiatras, trabalham em instituições e grupos de conhecimento que legitimam o psicopata, o paranóico, o psicótico - o que fazem para outros, e o modo como eles falam, é tratado com tal reverência que, qualquer um que os questione, é entendido como sendo louco. Outros de nós, do grupo, insistiram: não, vocês não podem dizer que os psiquiatras são os loucos. Claro que uma desconstrução tem que ser um pouco mais sutil que isso. Assim, lutamos em cima da pergunta do discurso psicótico, como um exemplo, e chegamos em um tipo de acordo, que é o tipo de fala e escrita que conduz à diagnose psiquiátrica: "é psicótico". O medo de psicose em textos psiquiátricos e estudos de caso reproduzem o medo da loucura, que estrutura a psiquiatria e a psicologia clínica, e constitui essa loucura como algo que fica situado dentro de cada uma das pessoas.
O discurso psicótico não é produzido por psiquiatras porque eles são os loucos. Estrutura, isso sim, a maneira pela qual os psiquiatras são posicionados como oradores sensatos, que têm controle sobre aqueles que possuem a loucura. A desconstrução não nos fala, simplesmente, que o que pensávamos era a origem de alguma coisa que é, realmente, apenas efeito de alguma coisa, mas nos ajuda a ler textos que mantêm em separado a origem e o efeito. Por exemplo: não nos recusamos a aceitar visões tradicionais de pensamento apenas porque queremos substituir o privilégio do pensamento individual sobre o diálogo público e reivindicar que não há tal coisa como o pensamento individual. O que nós precisamos fazer é localizar tais oposições nos sistemas de poder. O que uma desconstrução prática faz é desenvolver uma mudança de oposições conceituais, presas num lugar pelo poder, e localizar o problema de modo que o discurso opere em instituições. Nós precisamos desconstruir a estrutura acadêmica na qual fazemos nosso trabalho de desconstrução. A participação pessoal que temos em investigações psicológicas pode, então, de fato, ser transformada em pesquisa ação genuinamente política.
Recebido em 05/07/2004
*Professor da Manchester Metropolitan University, Inglaterra. Editor de Annual Review of Critical Psychology, é autor de vários livros, como Psychoanalytic culture (1997), Critical discursive psychology (2002) e Slavoj Zizek: a critical introduction (2004).
1 PARKER, I., GEORGACA, E., HARPER, D., McLAUGHLIN, T. and STOWELL-SMITH, M. Deconstructing psychopathology. London: Sage, 1995.