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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.4 n.6 Barbacena jun. 2006

 

SEÇÃO CLÍNICA: PSICANÁLISE E INSTITUIÇÕES

 

Reforma psiquiátrica e ação psicanalítica

 

The psychiatric reformation and the psychoanalitical action

 

 

Carlo ViganòI,*; Roseli Cordeiro Pereira (Tradução)

I Associação Mundial de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo questiona como as instituições psiquiátricas, a partir da lei italiana nº 180, lidam com as mudanças da sociedade e como a psicanálise pode contribuir com a prática nas instituições. Analisa a tendência atual à privatização dos serviços em que anula-se o sujeito e surge o capital. Verifica que, ao transformar o tratamento em bem de consumo protege-se a sociedade, mudando o objetivo do tratamento (tratar o sujeito). Propõe uma clínica integrada ao colocar o biológico no circuito da palavra, comportando uma ética da falta: não reduzível a um saber científico, tampouco a um texto de lei.

Palavras-chave: Reforma psiquiátrica, Instituições, Psicanálise, Integração, Sujeito.


ABSTRACT

The article talks about the way the psychiatric institutions deal with the society changes after the stablisment of the Italian law nº 180. It also shows how the psychoanalysis can contribute with the practices in the institutions. It analyzes its services privatization, in which the citizen is annulled and the capital appears. It confirms that when the treatment is transformed into a consumer good it protects the society, changing the treatment objective (to treat the citizen). It considers a clinic that integrates the biological factor and the word. This kind of clinic allows the ethic of the lack and this ethic is not limited to the scientific knowledge neither to the law.

Keywords: Psychiatric reform, Institutions, Psychoanalysis, Integration, Citizen.


 

 

No parlamento foram depositadas diversas propostas de reforma da lei 180. Nenhuma delas leva em conta a experiência psicanalítica nem se preocupa em responder às razões do profundo mal-estar que as instituições psiquiátricas atravessam. Creio que seja interessante relacionar esses dois esquecimentos.

Recentemente, J. A. Miller falou, em seu curso, de uma "ação analítica" que a prática da psicanálise aplicada pôs em evidência. Parece-me que se deva partir dessa ação, caso se queira encontrar o fio da meada das dificuldades da psiquiatria atual. De fato, suas raízes não estão na lei 180, mas no abuso que se fez do poder dos fármacos no tratamento da doença mental. Como observava Freud, é difícil para o homem não abusar de um poder que lhe é dado. Esse é o caso da psiquiatria (não obstante dos psiquiatras), que pensou na química como resolução de todos os problemas postos pelo mal-estar psíquico, com o resultado de reduzir-se a operador de uma maquilagem farmacológica do bipolarismo humoral (promovido a paradigma contemporâneo da doença mental) e à sucursal da polícia frente ao progressivo aumento da violência dos comportamentos.

A premissa para uma análise crítica desses fenômenos foi posta pelas intervenções sobre as transformações do discurso social que produziram mudança na maneira do sintoma se apresentar. Ora, nós devemos perguntar como as instituições, que fazem parte da sociedade atual, souberam deter o passo dessas mudanças e quanto a psicanálise, em sua orientação lacaniana, pode contribuir para adiar a clínica que se pratica nas instituições.

O desejo do analista se traduz em criatividade de novos lugares institucionais e, por isso, atribui à psicanálise um dever de crítica do existente e de empenho na mudança. Isso vale tanto para a reforma da lei psiquiátrica, há muito buscada, quanto para o acerto organizativo (que é, também, cultural), hoje em ato no tratamento e na assistência.

 

A lei

Como dizia Pirfo, toda organização de saúde mental tem uma origem, seja histórica ou estrutural, que se baseia na medicina legal. Nós estamos aqui para discutir sobre reforma dos tratamentos psiquiátricos e, nesse percurso, façamos referência a dos desenhos de lei, antes mesmo que à pesquisa científica ou à da clínica. Creio que a razão disso foi esclarecida quando Lacan individualizou um elemento que a psicanálise introduziu na "causalidade psíquica" da doença mental que resguarda a ordem jurídica. Ele fez disso a raiz da estrutura da psicose, ao desenhá-la com termo legal: a forclusão (que traduzimos, em italiano, com o equivalente jurídico, preclusão), que é a impossibilidade para um sujeito de fruir em um processo de uma faculdade. O elemento forcluso ao sujeito psicótico no processo do vínculo social é a função paterna, resumida na não disponibilidade do significante Nome-do-Pai.

A referência jurídica na definição da psicose não é para ser entendida no sentido puramente metafórico; não se trata de uma alegoria, mas de uma estrutura que incide na habilidade social do sujeito. Diferentemente do sujeito neurótico, o psicótico não tem, como tendência, a condição de investir tempo e dinheiro no processo de reabilitação da função paterna, isto é, de entrar na dimensão da demanda de tratamento. É o "abc" da clínica analítica da psicose, do tratamento da transferência psicótica.

Daqui surge uma primeira indicação que o psicanalista deve dar para a reforma: substituir o Outro da palavra por um Outro institucional, de maneira que sejam, sempre e necessariamente, coagidos. Não é terapêutico, mas radicaliza a forclusão, ao deslocá-la da função paterna ao sujeito como tal. A via clínica de reparação é, em vez disso, a da suplência do Nome-do-Pai, isto é, a de encontrar, junto com o sujeito, um outro significante que possa reestabelecer a função que deveria ser a do pai, reabilitar a ordem simbólica na sua função de representação do sujeito (por um outro significante).

Poder-se-ia dizer que a intervenção da lei deva passar do Direito Penal (a instituição e penalização da doença) ao Civil (favorecer os circuitos de acompanhamento do sujeito, alternativos ao familiar, e, por isso, financiar os projetos por sujeito).


A reforma

Uma outra contribuição da psicanálise foi sugerida por meio da afirmação de Lacan, reportada na quarta de copertina de Escritos: "o leitor aprenderá o que se demonstra aqui: o inconsciente é feito de pura lógica, vale a dizer de significante. Aqui a epistemologia será sempre em defeito, se não parte de uma reforma que é subversão do sujeito. Esta não poderá acontecer se não se produz realmente em um lugar que atualmente têm os psicanalistas" (sic). Estou convencido de que qualquer reforma no campo da saúde mental será tal se somente vir a tocar o real da doença mental, estabelecido como o limite da subversão subjetiva.

Não se trata de acolher a contribuição da doutrina psicanalítica a propósito da "dinâmica" na clínica, mas, muito mais, de exigir de quem se ocupa dela uma posição ética que se responsabilize por produzir a subversão do sujeito. Só assim, também, o psicótico poderá entrar no circuito do discurso social, a condição que o sujeito vem remetido sobre suas bases como criação no real, a partir do jogo dos significantes, da ordem simbólica.

O que atualmente se opõe a uma subversão do sujeito não são os fármacos ou a pesquisa genética, mas a perspectiva psicologista da qual se utiliza a biologia. Colocar o biológico no circuito da palavra é um dever ético dos operadores de saúde mental. A ética, de fato, não exige empuxo epistemológico e, justamente por isso, pode gerar um critério para avaliar os atos do tratamento, quando se devem decidir os critérios de financiamento. Dito em outros termos, a exigência de cortar a despesa, a escassez dos recursos, não é novidade, mas um dado estrutural da economia. O problema surge quando nos conscientizamos de que se está seguindo uma lógica de mercado, que tem transformado o tratamento em bem de consumo, e que o objetivo tornou-se proteger uma sociedade centrada sobre a idolatria do eu, e não a de tratar o sujeito.

A reforma torna-se, então, do intelecto, e o debate deve chegar a colocar em confronto as maneiras de entender o tratamento e o sujeito que é o protagonista dela.

 

O sujeito

Neste ponto é fundamental saber como o debate sobre reforma da saúde mental movimenta, necessariamente, a concepção da subjetividade na cultura atual. De fato, deixar velado ou completamente escondido tal discussão é muito real para não suscitar as paixões. Como evitar que sejam desviadas sobre objetos secundários?

O problema é encontrar a retórica adequada, as palavras para dizer do que aquilo se trata. Nos anos 60 e 70, o tema social veiculou a questão do sujeito. As utopias socialistas e a revolução das instituições estavam certas da necessidade de se oporem à marcha do capitalismo que, progressivamente, tolhia toda a criatividade do sujeito. Paradoxalmente, isso levou a uma forte rejeição por toda exigência que se vestia de instância social.

São necessárias novas palavras de ordem e novos objetivos. Antes disso, é também preciso afrontar a paixão mais destrutiva, aquela do medo, que hoje estende um véu piedoso sobre o drama da loucura. Sua espetacularização em certos filmes, em particular os norte-americanos, ou nos talk shows televisivos, que colocam em cena os conflitos psicológicos de pessoas comuns, não são mais do que expressões desse medo e da máscara atrás da qual o saber tende a esconder dele o verdadeiro vazio.

A paixão pela ignorância, hoje, domina o debate sobre saúde mental. Não me parece que a melhor resposta seja a de fazer conhecer melhor a loucura, como faz o discurso interposto. O analista sabe que a paixão pela ignorância pode produzir transferência. É nesse ponto que o interlocutor pode tratar a valência do desejo de saber. A questão não é neutralizar o medo com um saber, mas torná-lo algo para se vivenciar e se elaborar.

 

A integração

Outro tema proposto por alguns psicanalistas americanos, como Gabbard, é o da "clínica integrada", que afronta o biologismo ao demonstrar a possibilidade de integrar as descobertas das intervenções neurológicas e químicas e, também, as de neuromodulação cirúrgica (eletroestimulação) com a intervenção psicanalítica. Na Itália, o professor Freni atuou como paladino desta integração que caminha em duas direções: de uma parte, a modulação química ou elétrica dos transmissores pode facilitar o acesso do sujeito ao discurso. Da outra, porém, a concepção do sujeito como resposta do real, do discurso como implicante, o real neurobiológico, torna-se necessária para uma correta utilização dos meios biológicos.

Em outros termos, integração não equivale a ecletismo; ao contrário, comporta uma difícil disciplina, uma ética da falta. Se se sabe interpelar a outra disciplina onde ela apresenta um vazio no saber, então pode surgir o lugar do sujeito. Integração não é o somatório de mais saberes, mas o ato de humildade com o qual os diversos saberes se mostram e convergem sobre a liminar do seu campo para melhor iluminar o lugar que nasce da subjetividade.

Licitra Rosa falava de integrar o ditado da lei (da 180, assim como daquela científica) com a promoção do vínculo social, do funcionamento discursivo. Devemos começar a interrogar a prática clínica, aquela que chamamos psicanálise aplicada, sob esta luz: como o instaurar de um vínculo de transferência e a sua manobra no tratamento conseguem integrar, preliminarmente, um tratamento das leis institucionais e do poder que repartem?

 

A política

Neste ponto deve-se perguntar qual é o sujeito político que se faz promotor de uma reforma dos tratamentos. Não devemos esquecer que, além de questões específicas da psiquiatria, hoje existe em ato uma radical transformação da sociedade civil, que nos deve advertir acerca do sujeito da iniciativa social. A exemplo do capitalismo avançado, está acontecendo uma tendência à "privatização" dos serviços cuja palavra de ordem é "empreendimento". Não se deve ser ingênuo para crer que isso dá lugar ao sujeito: o privado do qual se fala não é o sujeito e nem menos o indivíduo, mas o capital.

Lacan falou da transformação capitalista do discurso do mestre e mostrou como ela leva a uma ulterior invasão da esfera "privada", da parte do mercado e dos objetos que essa transformação produz, até fazer dela os equivalentes da verdade subjetiva, equiparando mais-valor e mais-gozo. O credenciamento de empresas para o tratamento e para a assistência não faz mais que conferir dinheiro público a um ente que é, simplesmente, privado dos critérios com qual empregá-lo.

Tais critérios são tidos como critérios de economia e tendem a fazer passar a ação analítica como de alto custo: isso nos demonstra que neste cálculo existe uma mistificação, a de medir o custo das prestações, prescindindo do resultado para o sujeito que sofre. Paradoxalmente, trata-se o sofrimento dos acompanhantes terapêuticos (mais facilmente quantificáveis) e não o dos "pacientes" (cujo algoritmo não é encontrável sem a contribuição da psicanálise).

O paradoxo do capitalismo é que o credenciamento dos privados torna o tratamento mais segregante do que aquele diretamente gerenciado pelo público. Por essa razão, o sujeito da ação analítica não deve ser um ótimo administrador, mas alguém que tenha uma cultura política capaz de pensar a clínica no contexto econômico atual.

 

A ação

Ao impulso antiinstitucional do movimento suscitado por Basaglia contribui, inicialmente, sua orientação existencialista, mas, em seguida, torna decisiva aquela derivada por uma visão social da clínica. Creio que essa concessão da clínica da doença mental em chave social requer, hoje, um adiamento.

O 68 havia dado as palavras de ordem para a contestação das instituições que veiculavam os conteúdos de uma sociedade "disciplinar" (segundo uma terminologia foucaultiana). Tratava-se de combater as instituições sociais de fundação oitocentesca. Essas eram fundadas sobre o discurso do mestre, isto é, sobre um modo de afirmar a identidade subjetiva em oposição à alteridade do Outro ou, mais precisamente, à diversidade do gozo do Outro (racismo). Para Basaglia, assim como para o movimento daqueles anos, foi uma leitura marxista daquela sociedade que individualizava o sujeito "revolucionário".

Hoje vivemos na sociedade que aquele movimento contribuiu para transformar. É uma sociedade que vive na insígnia da tolerância, veiculada pela ideologia do mercado mundial. Assim se exprimem Hardt e Negri em O império (pág. 147): "a circulação, a mobilidade, a diversidade e as misturas são as suas condições de possibilidade. O comércio chama a reunião às diferenças, e quanto mais existirem melhor é". Retenho que também a clássica clínica social da doença mental, hoje, resta no "horizonte de uma noção disciplinar, pré-imperial, do gozo" (ibidem).

Devemos fazer as contas com este novo tipo de segregação (não mais "institucionalização") do mal-estar, baseado mais sobre nosografias estatísticas do DSM e sobre pluralização dos "distúrbios" que isolam os sujeitos nas classes em que pertencem, em que os sujeitos são impelidos a se identificar com seu distúrbio (coisa que, na maioria das vezes, fazem com boa vontade, com a idéia de auto-ajuda) e a praticar uma forma de automedicação química.

Em um contexto social semelhante não me parece que se possa atender, aí, a qualquer reforma de lei (também porque a 180 continua a ser uma boa lei). Deve-se, ao contrário, reencontrar ou recriar a série daquela transformação social que Basaglia retinha como essencial, além da idéia de lei: construir uma cidade que torne possível a vida ao louco e ao diferente.

Essa exigência torna atual a "Questão preliminar" posta por J. Lacan "a todo tratamento possível da psicose" (publicada em Escritos, em 1966). Só hoje se colhe, plenamente, a importância disso: trata-se, disse Lacan, de vencer o prejuízo social pelo qual um comportamento anormal (a alucinação, assim como a passagem ao ato) vem automaticamente preso e, por isso, tratado como marca de um sujeito (perigoso e, por essa razão, deve ser reeducado obrigatoriamente).

A experiência da psicanálise vem subverter a visão social da doença mental, porque pode demonstrar que seus sintomas são sem sujeito. E não é só isso; para que um sujeito nasça, venha a ser ali onde o distúrbio se manifestou, é preciso que intervenha um parceiro capaz de entrar em relação com a rede simbólica de cujos fenômenos anormais são o sedimento, efeito de um apelo a um sujeito em potencial, mas forcluso no ato.

Parece fábula, mas é realidade científica: só se no real social aquela rede simbólica encontra uma encarnação, um lugar vivente que pegue o ato dele, o ato se torna o interlocutor de uma subjetividade potencial e assiste ao ato de nascimento de um sujeito nunca nascido.

Fazer-se interlocutor de um sujeito em potencial é fruto de uma subversão ética, de uma decisão e de um ato que não são reduzíveis nem a um saber científico, nem a um texto de lei. O impasse presente nos serviços psiquiátricos, que são aqueles públicos ou aqueles sortidos no privado-social, é testemunha da urgência dessa transformação ética. Como reanimar esses serviços, como reabilitá-los a aquela interlocução com o mal-estar mental que seja criativa (poética) de subjetividade nova? E, por isso, digamos-lhe, daquela nova forma de amor que todos estamos procurando?

 

 

Endereço para correspondência
Carlo Viganò
E-mail: carlo.viganofastwebnet.it

Roseli Cordeiro Pereira
E-mail: barcia@barbacena.com.br

Artigo recebido em: 10/3/2006
Aprovado para publicação em: 30/3/2006

 

 

* Psiquiatra e psicanalista radicado em Milão. Membro da Associação Mundial de Psicanálise e da Casa Freudiana de Paris. Integrante da comissão de saúde mental da Associação Mundial de Psicanálise. www.forumpsi.it

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