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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.4 n.6 Barbacena jun. 2006

 

RESENHAS

 

Rafaela Machado de Carvalho*

UNIPAC-Ubá

 

 

QUINET, Antonio. A lição de Charcot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 152 p. ISBN 85-7110-841-2.

Antonio Quinet é psicanalista, psiquiatra e doutor em Filosofia pela Universidade de Paris VIII. Além de A lição de Charcot, escreveu Um olhar a mais (Jorge Zahar, 2002), A descoberta do inconsciente (Jorge Zahar, 2000), Teoria e clínica da psicose (Forense Universitária, 2000), As 4+1 condições da análise (Jorge Zahar, 1991), entre outros.

Em A lição de Charcot, Quinet apresenta uma peça de teatro na qual ilustra a questão da histeria abordada por Dr. Charcot, no final do século XIX, quando Freud vai à Paris e tem contato com as grandes lições sobre a hipnose e a histeria no Hospital La Salpêtrière. A peça se desenvolve em dois planos: o da realidade e o da Outra Cena; este último se refere ao comando da histeria, o inconsciente.

No período estipulado pelo autor, de novembro de 1885 a 1888, vários médicos e personalidades vão se encontrar e viver a questão da histeria, seja ao sentir e apresentar os sintomas no corpo, seja ao assistir e discutir suas origens. Dentre os principais personagens, alguns reais e outros fictícios, estão os Doutores Jean-Martin Charcot, Joseph Babinski, Sigmund Freud, Paul Richer Dark (uma junção de Ricchetti e Darkchevitch, amigos de Freud no tempo em que esteve em Paris), Léon Daudet, Mlle. Bottard, Blanche Wittmann, Mme. Charcot, Jeanne Charcot, Sarah Bernhardt, Adelina Patti, D. Pedro II, Guy de Maupassant. A história nega o encontro de Freud, Babinski e D. Pedro II, apesar de eles se encontrarem na peça.

Tratar a histeria como fenômeno cênico, dotado de arte e complexidade, é o que busca Quinet ao inter-relacionar o teatro com os princípios psicanalíticos, demonstrando a força e poder do inconsciente, ou seja, aquilo que existe além do óbvio, o plano da Outra Cena. "O sujeito histérico é ator de uma peça que desconhece, pois sua escrita é inconsciente [...]. Ao subir ao palco com o corpo, a histeria capta o olho e solta a voz; dá-se em espetáculo e grita, geme, vocifera, reza e canta" (p. 16). Em suas lições, o professor Charcot compreendia a histeria e baseava suas explicações a partir do ponto de vista descritivo, atribuindo a esse fenômeno, o "Grande Ataque de Histeria", quatro fases: epileptóide; período das contorções e dos grandes movimentos ou período do clownism; período das atitudes passionais e, por último, período terminal. Tais momentos eram reproduzidos pelo professor por meio da técnica de hipnose, que era admirada e, ao mesmo tempo, contestada pelo público de médicos e leigos que lhe assistia. Assim, Charcot desenvolveu a nosologia da histeria como um tipo clínico particular.

Como conseqüência de seu estudo, recebeu inúmeras críticas que contestavam o caráter anátomo-clínico da histeria pregado por ele. Seus críticos se opunham à sua teoria, ao afirmar que a histeria era uma invenção do Professor ao utilizar a sugestão. Charcot, ao promover a ruptura com a tradicional visitados médicos ao leito dos pacientes, passou a examiná-los em seu gabinete e a fazer apresentações dos doentes ao seu público. Nas noites de terça-feira, junto de sua esposa, recebia grandes médicos, escritores, artistas, políticos e pacientes nobres de outros países no salão de sua mansão, o Hôtel de Varangeville, no Boulevard Saint Germain. Tais ambientes compõem a peça teatral em que Charcot conquistou enorme entusiasmo de alguns ao presenciar o "espetáculo" da histeria e o dispositivo da hipnose, como demonstrado por Richer que, em uma de sua falas, diz maravilhado: "Veja Babinski, esse grupo de pacientes em estado hipnótico. Com um gongo ficaram catalépticos; os membros inertes, o sentimento abolido. Estáticos. Hipnose de massa. Ideal para se tirar uma foto" (cena II, p. 25).

Por outro lado, o Professor despertou indignação e, às vezes, ira, como na ocasião em que Léon, em tom de provocação, rebate Dr. Charcot ao acusá-lo de fabricar a histeria e contestar seu caráter descritivo: "Mestre, descrever não é sugerir?" (cena III, p. 29). Babinski também se exalta diante do método do Professor e levanta dúvidas ao tratar do fato como ato simulado.

Freud, por sua vez, foi um dos respeitáveis admiradores de Charcot, o que contribuiu para sua busca pelo que residia além das manifestações histéricas. Ele não se conteve com as leis e as teorias vinculadas à neurologia, que tanto se especulava, para fechar uma explicação sobre a "doença dos nervos". Apesar do respeito e da admiração pelo Professor, Freud também o questiona e reflete sobre a causa, afirmando, categoricamente, que "Um lance de dados jamais abolirá a causa!" (cena III, p. 27). Antonio Quinet dispõe parte de seu livro para a apresentação de anexos, de suma importância, dividida em: considerações "sobre os personagens" principais; "observações" do primeiro, segundo, terceiro e quarto atos; "concepções da histeria"; "histeria já!"; "a histeria encharcou..."; e, por fim, figuras e fotografias que retratam Dr. Charcot e sua equipe, o Hospital La Salpêtrière, o Salão de Charcot no Hotel de Varengeville e as figuras que captam a histeria em seus momentos coreográficos, dentre outras ilustrações.

O autor aborda as concepções da histeria desde os tempos antes de Cristo, no Antigo Egito, quando os fenômenos histéricos eram, primitivamente, considerados problemas de saúde relacionados ao útero. A questão passa por diversas hipóteses ao longo do tempo e chega até os dias atuais, quando a histeria é designada em suas diferentes formas, condizentes com o contexto sóciocultural da contemporaneidade.

No século XIX, foi considerada "doença detestável" por Wilhelm Griesinger, que se referia aos histéricos como "seres insuportáveis para o meio em que vivem" (p. 96). Charles Lasègue a trata como um fenômeno caótico que foge ao controle: "as leis que predominam nas evoluções patológicas não se adaptam a ela" (p. 97). Por outro lado, há aqueles que atribuem à histeria a dignidade que merece, como Paul Briquet que compartilha a idéia de que a reprodução dos ataques histéricos está vinculada a sentimentos e a situações vivenciadas anteriormente.

Entretanto, é Jean-Martin Charcot quem proporciona à histeria existência clínica, regida por leis próprias, e, dessa forma, digna de estudo, atenção e respeito. Charcot se concentra mais na descrição da doença do que em suas causas e simplifica sua etiogenia a aspectos hereditários e neurológicos ao acreditar em uma efetiva lesão no cérebro que chama de "lesão dinâmica".

Nesse mesmo século XIX, é feita uma série de críticas a favor e contra a existência da doença e aos fatos relacionados à sua compreensão. Na entrada do século XX, na "grande virada secular", Sigmund Freud desenvolve a psicanálise, um novo saber, a partir de sua busca pela origem mais profunda do sintoma histérico. Com isso, vislumbra a instância do desejo e de cenas traumáticas recalcadas, o Inconsciente, cujo poder de produzir sintomas é incrível.

Naquele período, Jaques Lacan tem expressiva participação na compreensão da histeria como forma de laço social, uma maneira de se relacionar despertando o desejo do outro: "toda a forma de vínculo entre as pessoas em que um trata o outro de forma sedutora, exibida, ou provocadora com palavras, atos, sintomas, tomando o outro como suposição de saber, está no discurso histérico." (p. 106). Além de, assim, definir a histeria, Lacan promoveu a formulação da idéia de "histeria perfeita, ou seja, assintomática", com a despatologização da mesma.

Na Psiquiatria, a histeria foi expulsa, bem como a subjetividade do ser humano que "foi substituída hoje por pseudotranstornos do corpo cujo tratamento é medicamentoso e comportamental" (p. 107). Porém, na vida cotidiana ela se revela de diversas maneiras, ao tomar o corpo como objeto na procura incessante da beleza e do modelo estético do outro, imposto pela sociedade, o que pode acarretar doenças como anorexia e bulimia, práticas excessivas de ginástica, utilização ilimitada dos recursos de cirurgias plásticas, algumas das formas de expressão histéricas atuais.

No entanto, Quinet, com esse livro, traz à tona a histeria como questão a ser pensada nos dias de hoje, dá a ela a atenção necessária e busca compreendê-la em suas mais diferentes formas de "encenação". Assim, "A Lição de Charcot" é direcionada aos profissionais que estudam a mente, aos amantes da arte e do teatro e àqueles que buscam conhecimento e aprendizado sobre o ser histérico.

 

 

* Aluna do 5º período do curso de Psicologia da UNIPAC - Ubá.

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