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Mental
versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X
Mental v.5 n.9 Barbacena nov. 2007
ARTIGOS
Toxicomania: um modo fracassado de lidar com a falta estrutural do sujeito e com as contradições da sociedade
Drug addiction: a failed way to deal with the structural lack-to-be of the subject and with the contradictions of the society
Raul Albino Pacheco Filho*
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Brasil
RESUMO
Neste artigo é proposta uma reflexão a respeito da toxicomania, concebendo-a como modo fracassado de o sujeito lidar com aspectos estruturais do existir humano e com as contradições da sociedade. Nascido sob a égide do desamparo (Hilflosigkeit) e tendo seu desejo alienado no campo do Outro, o drama do sujeito, na linguagem, é a falta-a-ser constituinte da estrutura em que emerge. Propõe-se que o toxicômano tente escapar à impossibilidade estrutural de nomeação e conquista do objeto do desejo, por meio da redução do enigma da relação entre desejo e objeto a um pretendido gozo das propriedades reais do objeto-droga. Discute-se como numa sociedade fundamentada no fetichismo da mercadoria, em que a legitimação das relações sociais é efetivada por meio da generalização de rituais de devoração de objetos de consumo, o toxicômano pode ser concebido como uma espécie de modelo ideal de consumidor do capitalismo, em sua prática regida pelo imperativo de gozo. Ao particularizar a análise para o caso da sociedade brasileira, propõe-se que a toxicomania receba um impulso adicional do excedente de violência real e simbólica encontrado nas condições específicas do capitalismo brasileiro. Ao entrar no debate sobre as questões proibição versus legalização e criminalização versus descriminalização, apresenta-se o que parece decorrer dos pressupostos éticos da psicanálise, a respeito da implicação do sujeito com seu ato. Finalmente, apresenta-se o processo analítico como modo alternativo de se lidar com a falta do sujeito e com as contradições e a violência da sociedade na instalação de um dispositivo que propõe ao toxicômano uma interrogação a respeito de sua prática de consumo.
Palavras-chave: Psicanálise, Toxicomania, Droga, Capitalismo, Sociedade brasileira.
ABSTRACT
The present paper proposes a reflection in respect of the drug addiction, conceiving it as a failed way of the subject to deal with the structural aspects of the human to exist and the contradictions of the society. Born under the helplessness shield (Hilflosigkeit) and having its desire aliened in the Other's field, the drama of the subject, in the language, is the lack-to-be constituter of the structure in which he emerges. It proposes that the drug addicted tends to escape from the structural impossibility of nomination and conquest of the desire object, through the reduction of the enigma of the relation between desire and object to an intended jouissance of the real properties of the object-drug. Is debates how, in a society based on the goods fetishism, in which the legitimacy of the social relations is effected through the generalization of the rituals of eating up consumption objects, the drug addicted can be conceived as specie of an ideal model of capitalism consumer, in his practice lead by the jouissance imperative. Particularizing the analysis to the Brazilian society case, it proposes that the drug addiction receives an additional impulse from the exceeding of real and symbolic violence found in the specific conditions of the Brazilian capitalism. Entering the debate about the questions prohibition versus legalization and criminalization versus decriminalization, it presents what appears to take place from the ethical presuppositions of the Psychoanalysis, in respect of the implication of the subject with his act. Finally, it presents the analytical process as an alternative way of dealing with the lack of the subject and with the contradictions and violence of the society, in the installation of a device that proposes to the drug addicted an interrogation in respect of his consumption practice.
Keywords: Psychoanalysis, Drug, Drug addiction, Capitalism, Brazilian society.
Introdução
Iniciei um texto anterior sobre a questão das drogas (PACHECO FILHO, 1998/1999) lembrando as proposições freudianas sobre as relações entre sujeito e sociedade, apresentadas em "O mal-estar na cultura" (FREUD, 1930). Segundo Freud, a vida dos humanos é árdua demais para ser suportada, em função dos sofrimentos e das infelicidades provenientes de três fontes principais: a) o nosso próprio corpo, condenado à decadência e dissolução; b) o mundo externo material, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; c) a sociedade e a cultura. Conseqüentemente, buscamos caminhos alternativos para suportar o peso da condição humana. Freud enumera algumas possibilidades:
• a aniquilação de nossos próprios desejos, por meio de alguma prática de ascese espiritual;
• a reorientação dos objetivos das pulsões para evitar frustrações. É o caso das sublimações como, por exemplo, a produção de obras de arte. O trabalho pode se enquadrar nessa categoria, quando não se tratar apenas de meio para garantir a satisfação de necessidades;
• distanciamento da realidade, por meio da fruição de obras de arte;
• "abandono" da realidade, por meio da loucura;
• a busca de "objetos de amor" para os quais dirigir a pulsão libidinal;
• a deformação do mundo real, por meio de um delírio de massa, como no caso das religiões. Aqui, paga-se o preço da intimidação da inteligência e do infantilismo psicológico;
• a mais grosseira, porém a mais eficaz: a droga. A droga tanto aumenta o prazer quanto diminui a sensibilidade ao desprazer. E se oferece como meio para atingir um alto grau de independência do mundo externo e da realidade, proporcionando refúgio em um mundo próprio.
Fica claro que, para Freud, o gozo absoluto é impossível, e somente doses moderadas de prazer se oferecem como viáveis. A busca dessa felicidade moderada se apresenta como um desafio considerável: cada um de nós tem que encontrar, por si próprio, um caminho particular que conduza à meta desejada. Alguns fracassarão nesse trajeto e, como alternativa de prazer, recorrerão a trilhas substitutas: a neurose, a psicose, a religião. Ela oferece seus delírios coletivos (seus sintomas grupais "prêt-à-porter") que podem ser empregados em substituição à elaboração de sintomas individuais. E é na condição de outra alternativa que o recurso às drogas é tematizado por Freud.
A toxicomania como modo malogrado de lidar com a falha estrutural do ser humano
Do mesmo modo que as religiões e os outros modos mencionados de evitar a dor de existir, as drogas destinam-se a proteger os sujeitos e os membros das sociedades de três condições humanas essenciais: o desamparo (Hilflosigkeit), a culpabilidade fundamental e a falta de provisões narcísicas.
Nascido desamparado, inteiramente dependente de outrem para sobreviver, o bebê destinado a ser um humano sai do útero para um mundo construído pela cultura, que tem a marca indelével da linguagem. Recebe a proteção e os cuidados que garantem sua sobrevivência, mas ao custo de entregar o destino de seu desejo nas mãos do Outro de quem depende a sua vida. Desejará o desejo do Outro ao qual se verá alienado.
O desamparo radical, portanto, não decorre apenas das agruras do contato com o mundo exterior: surge também do interior de seu próprio ser, do insuportável da intensidade das pulsões. Aliás, é também de um excesso formidável de excitações internas, e da angústia por ela desencadeada, que se convoca o recalque. E ele provoca a cisão do sujeito, aliena o desejo no campo do Outro e produz a impossibilidade de tudo dizer. A palavra já nasce como meia verdade, ao mesmo tempo clara e obscura, e com estatuto análogo ao sintoma. E sempre cumpre apenas parcialmente sua função de dominar o que Freud chamou de caos do mundo pulsional. Para usar a máxima de Jacques Lacan: "[...] o drama do sujeito no verbo é que ele experimenta ali sua falta-a-ser [...]" (LACAN, 1960, p. 661). A falta-a-ser é a falha estrutural do humano - a ser concebida no sentido do ser do desejo -, decorrente da captura imaginária do ser pelo desejo do Outro: desejo que o determina, mas que lhe é desconhecido. Não foi à toa que o cineasta Luís Buñuel escolheu para título do último filme por ele realizado, em 1977, "Esse obscuro objeto de desejo".
Dirigimo-nos para o Outro, para a sociedade e a cultura na busca interminável de "reencontrarmos" o nunca antes contatado objeto do desejo. Fazemos isso em uma tentativa impossível de repararmos a rachadura do nosso ser. Uns suportarão melhor que outros essa falta estrutural da existência. Todos nós, porém, sentiremos como traumáticos os abalos ou as insuficiências do universo simbólico, sempre que pressentirmos sua precariedade para lidar com a formidável força do mundo pulsional. As crises de angústia que constituem condição ontológica da existência humana, e que são atribuídas, de forma equivocada, a uma condição mórbida rotulada como "transtorno do pânico" pela psiquiatria contemporânea, servem para exemplificar os momentos de proximidade desse desamparo traumático radical.
A psicanálise defrontou-se, em sua prática clínica, e elaborou, por meio de sua teoria, aquilo que os artistas sensíveis sempre souberam: que o objeto que causa o desejo é impossível de ser atingido e mesmo de ser nomeado. E é bom que assim seja, pois o contato direto com ele seria mortífero, da ordem da pulsão de morte freudiana, gozo com o qual o cineasta Nagisa Oshima teceu a alegoria no filme "O império dos sentidos". Daí o porquê de a condição humana ser atingida pela barragem do gozo absoluto e pela ordenação da Lei.
Em Freud, encontramos isso em "Totem e Tabu" (1912-1913), em sua teorização de que o acesso ao objeto é ordenado e regulado pela lei que inaugura a cultura. O banquete totêmico representa a celebração da morte do pai imaginário - aquele todo poderoso e liberto de qualquer interdito - mas também a ascensão e a nomeação do pai simbólico, representante da Lei e da ordenação das relações entre os sujeitos. Ele regula o gozo, que só pode ser parcial, e legisla sobre o acesso aos objetos, que apenas simbolicamente articulam-se ao objeto primordial que constitui a origem do próprio desejo.
Dada essa falta estrutural da existência humana, que gravita ao redor (sem nunca atingir) daquilo que denominamos objeto do desejo - "isto em torno do que se fixam, se condensam todas essas imagens enigmáticas cujo fluxo se chama, para mim, meu desejo" (LACAN apud DOR, 1989, p. 189) - podemos nos perguntar, então, sobre o modo pelo qual os toxicômanos lidam com essa condição. Qual é o estatuto metapsicológico do objeto droga para eles? Não estamos falando, em nossa reflexão, de toda e qualquer forma de uso sobre o consumo de drogas como maneira de abrandar a dor humana do existir. Seria equivocado incluir todo consumidor de drogas na condição mórbida que se costuma denominar toxicomania ou drogadicção. Para tomar apenas um dos exemplos possíveis, considere-se o caso do consumo de bebidas alcoólicas: o bom senso nos leva a crer que nem todo consumidor pode ser considerado alcoólatra. Nossa reflexão tem como foco o toxicômano: aquele que foi siderado pela droga.
Do ponto de vista psicanalítico, todo objeto resulta da articulação entre real, imaginário e simbólico. A questão da toxicomania é que a participação do aspecto real da droga na produção do gozo (o efeito bioquímico no sistema nervoso, alheio à ordem simbólica) obscureceria a falta da existência e desencorajaria o sujeito da busca do sentido ausente. Na toxicomania, a droga tenderia a dirigir o sujeito no caminho da alienação de um gozo solitário, mesmo quando o seu consumo tenha se iniciado como uma prática em grupo. E isso se revelaria na clínica com os pacientes toxicômanos, no âmbito da formação dos laços transferenciais com o analista:
Na clínica com toxicômanos e alcoolistas, constatamos uma recusa das formações inconscientes, relacionada com o uso repetitivo de drogas, obstaculizando a emergência do discurso do inconsciente, gerando conseqüências no estabelecimento da transferência, com dificuldade na suposição de saber no Outro (GROSSI, 1997, p. 155).
Entendo que isso responderia pelo uso, um tanto enigmático, de uma frase tantas vezes repetida entre os psicanalistas de que, diferentemente dos objetos simbólicos, a droga é um objeto real. Ao quase reduzir a questão do desejo à satisfação do encontro com o objeto-droga, o drogado se afastaria do enigma da relação entre desejo e objeto, ao entendê-lo como passível de decifração pelo gozo das pretensas propriedades reais do objeto: isto é o que se instalaria no lugar da misteriosa relação entre o objeto e a singularidade do desejo do sujeito.
Vamos agora nos afastar um pouco da teorização psicanalítica sobre a toxicomania como modo malogrado de o sujeito lidar com a falha na sua própria estrutura para refletirmos sobre ela como, também, modo fracassado de o sujeito tentar lidar com os dilemas e as contradições da sociedade capitalista.
A toxicomania como modo fracassado de lidar com dilemas e contradições do capitalismo
No capitalismo, é cada vez mais difuso e ambíguo o centro irradiador da autoridade e da Lei, à medida que se enfraquecem as formas tradicionais de autoridade (o monarca, o imperador, o senhor proprietário de terras, a nobreza feudal etc). Weber (1921-1922) teorizou sobre essa questão em suas reflexões sobre a substituição da dominação tradicional pela dominação racional-legal no capitalismo. E os psicanalistas têm contribuído para pensar sobre esse tema, a partir dos seus próprios instrumentos teóricos, falando a respeito das transformações históricas ocorridas com a imago paterna, que dá consistência imaginária ao pai simbólico (Nome-do-Pai) e da perda da sua potência na cultura. Conseqüência importante de tais mudanças é o fato de as instituições representativas da Lei estarem visivelmente desgastadas e desacreditadas no capitalismo.
É verdade que, junto a reflexões teoricamente rigorosas e relevantes para o esclarecimento da questão, às vezes são encontradas algumas análises que parecem misturar e confundir a instância simbólica do pai (Nome-do-Pai) com a instância imaginária que lhe dá consistência. Isso faz com que muitos apelem nostalgicamente pela volta ao passado, como espécie de remoto paraíso perdido: proposta reacionária e inútil! Mesmo porque não se pode esquecer que o capitalismo impulsionou transformações históricas nas forças produtivas e nas relações sociais que, se não constituem garantia, ao menos ensejam possibilidades de novos avanços na direção do que se poderia chamar de progresso histórico-social. Se a humanidade vai ou não continuar seu movimento histórico para além da estrutura social do capitalismo ou se vai cair no engodo do "fim da História", como o desejam seus sinistros apologistas1, trata-se de uma questão sobre a qual não pretendo me deter no momento.
O fato é que, no presente histórico da civilização ocidental, a essência da sociedade se legitima na base da "mercadorização" das relações sociais, com os sujeitos unidos em rituais de devoração de objetos de consumo. Porém, diferentemente do ritual do banquete totêmico descrito por Freud em "Totem e Tabu", o Pai forte, que verdadeiramente legitima as mercadorias como objetos simbólicos de desejo, tem seu nome velado e dissimulado pelos outros pais fracos, que recebem nomeação explícita e consciente. E que se mostram cada vez mais fragilizados e impotentes. O outro, o Pai forte velado (o Mercado), tem seu culto regido pelos seus sacerdotes (publicitários e marqueteiros), que definem os signos-objetos a serem consumidos na veneração da sociedade capitalista e dos seus ideais. E líderes e ídolos de épocas históricas anteriores apressam-se a render sua submissão à lógica do Mercado - novo Pai despótico, que não admite contestação - como mostram as inúmeras instituições religiosas que se reorganizam como empresas capitalistas e oferecem, aos novos fiéis, "pacotes" que incluem a abundância material, o sucesso nos negócios e a salvação na eternidade.
A dominação já não depende da mistificação das relações entre os homens, mas da mistificação das relações entre os objetos: aquilo que Marx (1867) chamou "fetichismo da mercadoria". E até mesmo os produtos-mercadorias terminam por perder seu valor no mercado das trocas, pois as marcas publicitárias é que passam a determinar o valor social do que quer que seja (e de quem quer que seja): a grife é que constitui o essencial. Não importa mais, por exemplo, em que lugar do mundo - Brasil, China, Filipinas ou Tailândia - ou por qual fabricante um tênis tenha sido produzido; para o sujeito do capitalismo, importa apenas que ele tenha pago royalties à Nike, à Adidas, ou a outra marca de prestígio, e receba a chancela de uma grife famosa.
E talvez o toxicômano chegue perto do modelo ideal de consumidor capitalista: próximo ao objeto que dá origem ao desejo e, portanto, próximo do gozo absoluto e da morte. Como eu disse em outra ocasião:
A droga, na modernidade, é como uma ponta de cigarro em um capinzal seco: o desastre alastra-se rapidamente e faz grande estrago. E isso não ocorre à toa: "a toxicomania é o paradigma do que é a tendência do mundo no que diz respeito às relações sujeito-objeto."2 Como foi lembrado anteriormente, quase toda cultura reserva lugares e momentos para o consumo de drogas. O que faz a diferença, em termos de intensidade, freqüência e do modo de consumo de drogas no capitalismo, é o fato de acontecer em uma cultura fundamentada no imperativo do consumo. "Constata-se que sempre houve uso de drogas, em todas as sociedades e em todos os tempos, mas não em um mercado estruturado que coloca como imperativo: 'Consuma!', 'Goze!', 'Faça-se!'3 (PACHECO FILHO, 1998/1999)
No âmbito dos laços sociais formados pelo capitalismo, a drogadição tornou-se modo privilegiado de articulação entre objeto e pulsão. Da mesma maneira que a Revolução Francesa marca o êxito da instauração do modo de produção capitalista e o fracasso dos seus ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, a toxicomania atesta o sucesso do ideal de consumo e a falência do que esse ideal insinua como promessa.
A toxicomania como tentativa desesperada de lidar com o excedente de violência simbólica e real do capitalismo brasileiro
Consideremos agora a toxicomania como tentativa desesperada de lidar com o excedente de violência real e simbólica das condições particulares do capitalismo brasileiro. Eu disse em outra ocasião que:
Em se tratando do Brasil e dos demais países chamados "emergentes" (expressão que busca apenas encobrir a tendência econômica real que os capitais financeiros globalizados nos têm forçado a seguir), a globalização em ritmo forçado tem produzido uma macabra combinação de um adicional de repressão dos desejos e de alienação dos sujeitos, nos moldes do aparato usual de violência simbólica da modernidade e do capitalismo neoliberal, com formas arcaicas de violência física (no sentido literal do termo), mais características de períodos históricos anteriores ao próprio capitalismo (PACHECO FILHO, 1998).
Em conseqüência, como propõe Marta Conte, "[...] o traficante acaba ocupando um lugar de suplência da função paterna" (1995, p. 84). Isso é exemplificado em abundância pela consulta às crônicas e notícias policiais nas quais constatamos, com apreensão, o modo pelo qual traficantes e bandidos poderosos passam a ser estimados e admirados pelas populações pobres oprimidas pelo sistema econômico e desassistidas pelo Estado capitalista. Bandidos e traficantes passam a assumir a aura falsa de "robins hoods" dos excluídos e de modelos de identificação para jovens sem oportunidade de inserção social significativa.
Em texto bastante difundido, "Pacto edípico e pacto social: da gramática do desejo à sem-vergonhice brasílica", o psicanalista Hélio Pellegrino (1983) alertava para os riscos do que denominou "sociopatia grave", que ameaçava a sociedade brasileira. Sua análise buscava articular a lei estrutural que interdita o incesto, constitui o sujeito, instaura o laço social e organiza o desejo (o pacto edípico) às leis históricas que organizam as relações sociais e de produção entre os sujeitos de uma dada sociedade (o pacto social).
Pellegrino denunciava as condições sociais aviltantes por que passava uma parcela enorme da população brasileira, na época, como indicadoras das proximidades de uma ruptura do pacto social. Sua hipótese era a de que as conseqüências dessa contingência histórico-social desigual e injusta, no nível intrapsíquico inconsciente dos sujeitos, poderiam ser uma espécie de retroação sobre os fundamentos do pacto primordial com o Pai simbólico e com a Lei da cultura. E isso ameaçaria de dissolução a barreira simbólica responsável pelas interdições, que fornece o solo estrutural sobre o qual se erguem as leis que organizam a estrutura social. E o sinal dessa condição seria o surto crescente de violência e delinqüência vivido na época em que o texto foi escrito, indicativo de esgarçadura do tecido social.
Ao deixar de lado o que me parece ser um problema conceitual da análise, no sentido dela pressupor a possibilidade de uma espécie de rompimento da própria estrutura do sujeito (o que acho problemático), quero registrar os inequívocos méritos do texto, trazendo o pensamento psicanalítico para contribuir com a reflexão sobre um importante momento da sociedade brasileira, realçando-lhe incisivamente a condição social injusta e alertando sobre a gravidade das possíveis conseqüências sociais e subjetivas que daí poderiam advir.
Quero acreditar que a sociedade brasileira tenha aprendido algumas lições políticas importantes, desde então, ainda que isso não tenha acontecido na velocidade em que gostaríamos. O crescimento eleitoral de partidos e de políticos historicamente compromissados com as causas da população e as recentes punições de políticos corruptos exemplares (ainda que em menor número do que deveriam, de fato, ocorrer) nos dão alguma esperança de que, talvez, possamos, algum dia, corrigir, de modo consistente, as desigualdades e as injustiças sociais históricas em que vivemos. Mas ainda permanece uma esperança, pois é óbvio que essa situação não se reverteu substancialmente ao longo dos mais de vinte anos que se seguiram à publicação do ensaio mencionado. Mais do que uma explicação metapsicológica rigorosa para os fatos analisados (como já disse, acho que a teorização apresenta problemas conceituais), a hipótese lançada naquela ocasião é instigante por realçar as graves conseqüências da configuração social brasileira.
O surto de delinqüência que, no momento, cresce nas grandes cidades, de maneira assustadora, é uma resposta perversa à delinqüência mais do que perversa - porque institucionalizada - do capitalismo selvagem brasileiro. A criminalidade do povo pobre é - pelo menos - uma resposta desesperada, e se faz fora da lei - contra a lei. Pior que ela é a delinqüência institucionalizada dos ricos, dos banqueiros, dos que lucram 500 por cento ao ano, dos que se locupletam com a especulação desenfreada, dos que entregam a soberania nacional à voracidade da finança internacional (PELLEGRINO, 1983, p. 10-11).
E, sem incorrer na armadilha de se desresponsabilizar os sujeitos ao chamar a atenção para a relevância das circunstâncias histórico-sociais, acredito que a questão da toxicomania deva ser inserida na mesma contingência social apontada pelas análises de Hélio Pellegrino. Muitos se sentem impotentes para confrontar com propostas alternativas de elaboração de novos códigos, leis e formas de organização da vida social, econômica e política, os espúrios ideais, modelos de identificação e modos de vida de um laço social perverso, inerente a um capitalismo cuja "selvageria" exacerbou-se ao limite. E uma parcela desses indivíduos entrega-se a uma prática - a toxicomania - que oferece consistência ao modelo social que os gestou. Uma prática que não implique, obrigatoriamente, a presença de uma estrutura perversa do sujeito, mimetiza as condições da perversão.
Algumas reflexões a respeito do debate sobre descriminalização e legalização do consumo de drogas
Todas as vezes em que assisto a acirrados debates para decidir se é a proibição ou a legalização, a criminalização ou a descriminalização do consumo de drogas que poderá resolver o problema da toxicomania, lembro-me da resposta de Slavoj Zizek, em 1999, sobre o dilema entre bombardear ou não a Iugoslávia, então governada por Slobodan Milosevic, que promovia uma "limpeza étnica" contra a população de origem albanesa. Sua resposta - "as bombas não são suficientes, e elas vêm muito tarde" (ZIZEK apud DUNKER, 2005, p. 50) - partia do pressuposto de que "a verdadeira escolha livre é aquela na qual eu não escolho apenas entre duas ou mais opções no interior de um conjunto prévio de coordenadas, mas escolho mudar o próprio conjunto de coordenadas" (ZIZEK apud SAFATLE, 2003, p. 185).
À pergunta sobre remédios definitivos para males provocados pelo capitalismo, a Psicanálise talvez só possa oferecer uma única resposta sincera: não existem remédios definitivos, a menos que se pretenda discutir seriamente alternativas de transformações profundas e substanciais da própria sociedade. Tomar um problema focal (como é o caso da toxicomania) e buscar soluções particulares apenas para ele (sem modificações abrangentes e consistentes da própria sociedade) é uma tentativa de dissimular a origem real e a gravidade do problema. A Psicanálise propõe outra forma de laço social, que não o curto-circuito do sujeito com o objeto de gozo, o qual elide, de modo definitivo, qualquer possibilidade de mudança, seja no sujeito, seja na sociedade.
É apenas na aparência que a sociedade capitalista se apoia na concepção de sujeito responsável por seus atos, conforme seus ideólogos costumam acreditar. Basta olhar à volta para ter os infindáveis exemplos de que se pode lançar mão para contradizer essa mentira. Dos códigos penais ao aparato jurídico e policial, das multas de trânsito ao controle nas portarias dos prédios, das câmeras de circuito interno nos elevadores e corredores dos edifícios ao vexame das revistas nos recintos públicos e nas portas giratórias dos bancos: tudo indica que o cidadão é suspeito, até que se prove o contrário, e mostra que o tratamento apriorístico a dispensar-lhe passa longe, muito longe, da suposição de responsabilidade pessoal.
A psicanálise, por outro lado, tem como pressuposto ético a responsa-bilização do sujeito por seus atos. E concordo com Zizek, quando propõe que o gesto político fundamental implique apoiar as manifestações de resistência do sujeito à instrumentalização social do gozo. É por isso que entendo a não existência de sustentação para a proibição do consumo de drogas, a partir da Psicanálise, mesmo supondo que sua legalização não irá resolver definitivamente o problema da toxicomania na sociedade capitalista.
Só uma miopia decorrente do mais insensato moralismo pode deixar de constatar que a colocação das drogas na ilegalidade atrai inúmeros problemas. A lei seca norte-americana, que vigorou de 1920 a 1933 (VOLSTEAD ACT, 1919), alimentou o gangsterismo e incrementou substancialmente a corrupção do aparelho estatal em todos os níveis: policial, judiciário, executivo e legislativo. E o mesmo tem sido observado com a proibição atual de outras drogas. As proibições sempre criaram espaço fértil para o desenvolvimento do crime organizado: prostituição, jogo do bicho, tráfico de drogas, contrabando. Será que a rede do tráfico de drogas teria se tornado uma das organizações mais poderosas do planeta, sem o incentivo proporcionado pela "reserva de mercado" gerada pela proibição à produção e à comercialização das drogas? Trata-se de uma questão procedente. E quem se propõe à tarefa de administrar as mazelas do capitalismo deve, obviamente, refletir sobre ela. Aliás, em muitos casos, as proibições visam proteger os demais cidadãos de atos nocivos exercidos por determinados sujeitos. No caso das drogas, o problema é diferente, já que sua ação prejudicial se dirige contra o próprio sujeito que a utiliza. Será que vamos chegar a proibir o consumo de gorduras, de calorias em excesso e de chocolates? Também fazem mal à saúde. E que tal proibir o suicídio?
O que a psicanálise pode dizer a respeito desse assunto é que proibir algo é o melhor modo de lhe conferir um atrativo especial, principalmente quando a proibição consegue passar a impressão de que se trata de algo que produz um gozo especial. Foi e ainda é assim com o sexo. E também acontece, do mesmo modo, com as drogas. Aliás, toda vez que se discute sobre permitir ou não sua legalização, há momentos em que parece reinar uma grande confusão. Legalizar as drogas é algo que ainda não ocorreu? E o Prozac (a "pílula da felicidade")? E os antidepressivos, os ansiolíticos e os psicotrópicos em geral? Do que se tratam?
A respeito do que foi proposto acima, acho admissível que as dúvidas possam angustiar quem se dedica a pensar, com seriedade, sobre a questão da proibição ou da legalização das drogas. Já o caso da criminalização dos usuários de drogas e das tentativas de responsabilizá-los pelos problemas do tráfico parecem medidas inequivocamente cruéis, hipócritas, ineficazes e desarrazoadas. Assemelham-se a véus que pretendem encobrir a corrupção das instituições do Estado e os problemas estruturais do capitalismo: ideologia moralizante dissimuladora.
Na atualidade, tenho visto campanhas contra as drogas, apoiadas na idéia de responsabilização do usuário pelo tráfico de drogas. Pura hipocrisia, já que a proibição das drogas, que as torna ilegais, tem como fundamento a pressuposição de um sujeito não responsável por seus atos, não lhe cabendo, portanto, as decisões relativas ao seu próprio destino (como é o caso da decisão de consumir ou não as drogas). Assim, qual a base para responsabilizá-lo pelo que entendemos como conseqüências sociais de suas ações? Talvez seja necessário recorrer ao raciocínio pragmático e acreditar no efeito persuasivo de campanhas que atribuem ao usuário a culpa pela violência do tráfico de drogas. A psicanálise, porém, não se apoia na filosofia do pragmatismo e, além do mais, sua concepção de responsabilidade do sujeito é muito mais radical do que uma simples questão de eficiência de ordem pragmática.
A psicanálise: um outro modo de lidar com a "falta" do sujeito e com as contradições e a violência da sociedade
O que a Psicanálise tem a oferecer ao sujeito toxicômano é a proposta de levá-lo a se interrogar a respeito de sua prática de consumo de drogas. O que fundamenta essa proposta não é a questão de o toxicômano ser infeliz (embora quase sempre ele o seja) e, muito menos, o fato de ter escolhido uma via de busca de realização não aprovada pela sociedade. Se assim fosse, a psicanálise não se proporia a interrogar também os viciados em Prozac, os viciados em freqüentar academias de musculação ou os viciados em fazer compras. E, também, nada teria a indagar aos siderados por dinheiro e por bens materiais, aos fanáticos religiosos (que, provavelmente, irão dizer que se sentem muito felizes) ou aos workaholics. A psicanálise se dá o direito de interrogar os drogaditos pelas mesmas razões que se autoriza a interrogar todos os seres humanos e todas as sociedades: por seu posicionamento em favor da relevância da verdade do desejo do sujeito humano, que a leva a questionar as alienações de sua existência, derivadas tanto da sua condição estrutural de ser da linguagem quanto das circunstâncias contingenciais de sua inserção social e histórica em determinada sociedade. A verdade que ela persegue é sempre impossível, em seu sentido último e definitivo, mas jamais negligenciável ou secundária, quando se considera a importância de sua busca.
O sintoma do sujeito sempre é, para a psicanálise, um indicativo do insuportável do Real: uma formação do inconsciente. E convidar o humano a se interrogar sobre seu sintoma é o dedo indicador que ela oferece, apontando na direção da verdade mais fundamental e singular de seu desejo e do núcleo de seu ser. Esse convite à investigação, que parte da exposição explícita do sintoma em direção à obscura incerteza sobre aquilo que constitui sua causa, repousa sobre a base da proposta de que o sujeito assuma a tarefa de construir seu próprio destino. Tarefa que tem, como vetores de orientação, a verdade do seu desejo e as escolhas realizadas a partir de sua implicação e responsabilidade para com as conseqüências delas derivadas.
Para a psicanálise, a direção a seguir é sempre do sujeito. Não fosse assim, Freud teria escolhido, desde os primeiros momentos, a via mais fácil da sugestão e da diretividade psicoterapêutica. Em vez disso, sua obra mostra-se como um libelo incansável, à procura do que podemos chamar de busca da verdade singular do desejo do sujeito. Seria essa uma tarefa inútil? Será que belas e doces mentiras não seriam muito mais eficientes e rápidas, numa sociedade em que a busca de lucros e de acumulação de capitais não pode se dar ao luxo de perder tempo com atividades visionárias? Atividades como uma busca, talvez inútil, da verdade impossível do desejo?
Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.
João Cabral de Melo Neto
O Artista Inconfessável
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Endereço para correspondência
E-mail: raulpachecofilho@uol.com.br
Artigo recebido em: 20/9/7
Aprovado para publicação em: 5/10/7
*Psicólogo, psicanalista, professor titular da Faculdade de Psicologia da PUC-SP. Coordenador do Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP.
1Fukuyama (1992)
2CONTE, Marta (1995, p. 83).
3Ibid., p. 84.