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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.6 n.11 Barbacena dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Psicopatologia da imagem corporal: causalidades e consequências

 

Psychopathology of the corporal image: causalities and consequences

 

 

Ana Maria Costa da Silva Lopes* ; Jésus Santiago**; Roberto Assis Ferreira***

UFMG

 

 


RESUMO

Para fins de estudo e investigação sobre a imagem corporal na adolescência definem-se quatro eixos teóricos básicos: a imagem especular, a autopunição, a passagem ao ato e os fenômenos de corpo. Os dois primeiros – imagem especular e autopunição – constituem elementos de definição do objeto de investigação, aqui proposto, enquanto o terceiro e o quarto se inscrevem como consequências. A hipótese principal visa demonstrar o que ocorre no momento da constituição psíquica do sujeito quando se define a estrutura clínica – neurose ou psicose – em casos em que predominam alterações psicopatológicas da imagem corporal.

Palavras-chave: Imagem especular, Psicoses, Duplo especular, Passagem ao ato, Autopunição, Paranóia.


ABSTRACT

For purposes of studying and probing into our body image in adolescence, four main theoretical pillars have been defined: the speculate image, self punishment, passage to the act and the body phenomena. Speculate image and self punishment are elements that define the object of research proposed in this work, while the third and fourth pillars fall represent its consequences. The main hypothesis aims to demonstrate what happens at the moment of the subject’s psychic constitution when the clinical structure is defined - neurosis or psychosis - in cases where psychopathological changes in body image predominate.

Keywords: Image speculate, Psychosis, Double speculate, Dassage to the act, Self punishment, Paranoia.


 

 

INTRODUÇÃO

Atualmente, é significativo observar como a prevalência dos sintomas contemporâneos está absolutamente associada a uma era em que se verifica a supremacia do imaginário. Em outros termos, diante da falência dos grandes ideais, o sujeito busca a identidade pessoal, centrada na imagem de si mesmo. Podemos dizer, então, que não só se tem uma identidade, mas se é sujeito de uma identidade, já que, como produto de uma sucessão de identificações, ela tem necessariamente um caráter imaginário. Nesse sentido, a busca de identificações, por vezes, define parcerias imaginárias que encontram expli¬cações no campo da psicanálise, nas formulações sobre o processo de cons¬tituição do eu e do sujeito, momento inaugural que revela a supremacia imaginária, presente nesse momento constitutivo da imagem corporal.

Nessa perspectiva, a psicopatologia da imagem corporal pode explicar uma série de fenômenos clínicos frequentes na contemporaneidade, como: as parcerias sem dialética entre adolescentes que definem os comportamen¬tos em bandos ou gangues; os atos de violência extremos; as alterações da imagem corporal que têm na anorexia e bulimia expressões, por vezes, radicais; e os excessos de modulações sobre o corpo via tatuagens, piercings e, até mesmo, mutilações.

Na prática clínica, observamos a crescente demanda de pacientes insa¬tisfeitos com a sua aparência, que apresentam queixas em relação ao corpo. Às vezes, essa insatisfação com o aspecto é exagerada e faz com que o sujeito eleja dietas rigorosas, excesso de exercícios físicos e medicamentos milagrosos. Esses sujeitos buscam a perfeição de uma imagem ideal e de um padrão estético de beleza, determinados pela sociedade de consumo e pela supremacia da mídia contemporânea. Porém, essa busca desenfreada da satisfação pela imagem afasta o sujeito das amarras simbólicas da própria subjetividade e o lança no circuito marcado pela pulsão mortífera, que se fundamenta no mito do Narciso, paixão mortal. Tornam-se imperativos o padrão estético e a tentativa de uma reparação narcisística, localizada na autoimagem, na aparência física.

Nessa perspectiva do ideal narcisista, o sujeito se depara com a impos¬sibilidade de atingir um ideal de si mesmo, uma singularidade própria, o que define a distorção da própria imagem corporal, causando uma crise de identi¬dade e até mesmo uma despersonalização, em casos graves. As tentativas de alcançar o ideal de si mesmo são sustentadas pelo desejo de restaurar o laço narcísico com o objeto, busca irreparável que remete à ferida narcisística e às primeiras identificações, que já se perderam para sempre. Segundo Freud, em “O ego e o id” (1923), o ego pode ser considerado como a projeção mental da superfície do corpo e, além disso, ele representa a super¬fície do aparelho psíquico. Nesse sentido, a imagem corporal tem papel importante na primeira fase da vida, no desenvolvimento da identidade e da constituição do eu.

Sendo assim, por essa via, ou seja – a imagem corporal –, define-se a primeira hipótese, que justifica a presente investigação: se no processo de constituição da relação mãe-criança é possível localizar índices da problemática da constituição do eu e do sujeito, que se articulam aos fenômenos concer¬nentes aos distúrbios da imagem corporal; em um segundo momento, se alguns elementos da alteração da imagem corporal como autoscopia, sósia e duplo podem ser considerados correlatos da Unheimlich freudiana, do não reconhecimento da imagem especular, articulando-se Unheimlich e as formas de resposta ao signo do espelho como um índice que possa orientar o diag¬nóstico diferencial entre neurose e psicose. Por fim, postula-se que as novas formas de sintomas contemporâneos em que prevalecem as supremacias do imaginário podem ser consideradas formas de estabilização, formas de suplência, ou seja, uma tentativa de solução para a precariedade simbólica, que se observa tanto na psicose como também em casos graves de neurose.

Nessa perspectiva, para fins de estudo e investigação sobre a imagem corporal, definem-se quatro eixos teóricos básicos: a imagem especular, a autopunição, a passagem ao ato e os fenômenos de corpo. Os dois primeiros – imagem especular e autopunição – constituem elementos de definição do objeto de investigação, aqui proposto, enquanto o terceiro e o quarto se inscrevem como consequências. A hipótese principal visa demonstrar o que ocorre no momento da constituição psíquica do sujeito quando se define a estrutura clínica – neurose ou psicose – em casos em que predominam alterações psicopatológicas da imagem corporal. O que se visa é investigar as manifestações sintomáticas que se evidenciam por meio da psicopatologia da imagem corporal e que possam ser elevadas à categoria de índices clínicos. Nesse sentido, o objetivo do presente artigo é percorrer algumas das referên¬cias teóricas que possam fundamentar o “estudo de caso”, articulando os índices clínicos e o conceito de imagem corporal e suas alterações psicopatológicas com ênfase na problemática da constituição do eu e do sujeito.

 

IMAGEM ESPECULAR

O tema da imagem especular é introduzido por Lacan com o caso Aimée (1932), inscrito por ele no campo da paranóia e no qual também se observa a fenomenologia da folie à deux. Sabe-se que o sujeito paranóico pode, na ausência de sua divisão pelo significante, desdobrar-se especularmente e mesmo falar com o seu duplo. Este fato pode ser demonstrado pela tendência, não rara nesses casos, de o paranóico quebrar vidraças e espelhos, na medida em que estes lhe mostram o duplo do seu eu, sem a mediação do outro simbólico.

Nessa perspectiva, as elaborações de Lacan sobre o estádio do espelho respondem a questões por ele formuladas na tese de 1932, em que define o caso Aimeé como uma forma particular de “paranóia de autopunição”, porque sua etiologia, seu desencadeamento, sua estrutura e seu mecanismo de cura são decididos por uma pulsão autopunitiva, que será pelo autor articulada à problemática da imagem. O tema do delírio de Aimée não é nada mais que a imagem de uma forma moderna de participação social, como a vedete do teatro ou a personagem do livro. Tal como no caso Aimée, a imagem serve de motivo comum ao ideal e ao ódio (LACAN, 1932, p. 325). Todas as perseguidoras de Aimée são apenas imagens. Isola-se, assim, o segundo eixo teórico básico de investigação, aqui proposto: a autopunição, que com a imagem especular se inscreve como elemento de definição concei¬tual do objeto de nosso tema de investigação – imagem corporal.

Nesse eixo teórico – da problemática da imagem especular –, é importante assinalar que, imediatamente após a tese de 1932, Lacan retoma o tema das identificações e estabelece os parâmetros subjetivos da constituição do eu e suas condições de alteridade, em sua apresentação no Congresso de Marienbad, no texto “O estádio do espelho como formador da função do Eu”. Nele, Lacan consolida o conceito de estádio do espelho com base nas referências de Wallon - jogo de alternância, fenômeno de transitivismo. Assim, a tese de 1932 precede a invenção do estádio do espelho e a distinção entre o imaginário e o simbólico.

O estádio do espelho resume-se no processo pelo qual o bebê assume a imagem de seu corpo como sua, ou seja, identificando-se com ela. O bebê fica capturado por essa imagem - momento fundamental para a constituição do eu, que não existe desde o nascimento, mas é constituído num determina¬do tempo lógico, em que a criança não se vê mais aos pedaços, e sim como uma unidade. Na verdade, é uma construção, uma invenção necessária, pois o que realmente existe é o vazio deixado pela mãe, que é tamponado por algo.

Verifica-se, então, nessa linha de análise, que Freud já havia tratado, de forma lateral, a questão da imagem no espelho em dois textos: “O Estranho” (1919) e “Além do princípio do prazer” (1920). Neste último, como anexo ao jogo do fort-da, acrescenta, como nota de rodapé, a questão da percepção pela criança de sua imagem no espelho, relacionando o jogo e a imagem com a descoberta de um método utilizado pela criança de fazer desaparecer a si mesma (FREUD, 1920, p. 27). Segundo Freud (1914), o que se ama é, na verdade, uma imagem de si mesmo.

Nesse sentido, na elaboração teórica do estádio do espelho, Lacan descreve o momento do jogo especular, a brincadeira da criança de fazer desaparecer a si mesma diante do espelho, não como um instante pacífico, mas como marcado por um certo horror. O bebê, ao se ver no espelho, pensa que o eu é o outro semelhante e rivaliza com a sua própria imagem: “O sujeito não se distingue da própria imagem” (LACAN, J., 1938, p. 38). Assim, antes que o eu afirme sua identidade, ele se confunde com a imagem que o forma. A imago do duplo, a ilusão da imagem, não contém o outro.

 

AUTOPUNIÇÃO

A partir da ideia de que a natureza da cura demonstra a natureza da doença, Lacan introduz de forma original a entidade clínica – “paranóia de autopunição” –, por meio da análise da causalidade do duplo especular em Aimée, que arrebata na atriz a imagem de si mesma, sua própria duplicidade e a necessidade de autopunição, na medida em que ao golpear a atriz golpeia a si mesma. Na luta pelo objeto de desejo, alguém precisa morrer, porque nesse lugar só há espaço para um. Há o desejo de um autocastigo e o sentimento de culpa. Aimée atinge, em sua vítima, seu ideal exteriorizado, o próprio duplo, a mulher que sonha ser, com valor de puro símbolo - não sente, porém, com seu gesto nenhum alívio. Devido à ausência do outro simbólico, a paciente ataca seu eu ideal localizado em um pequeno outro, ou seja, a atriz de teatro. A autopunição explica o sentido do delírio: “Eu fiz isso porque queriam matar meu filho” (LACAN, 1932, p. 249-252).

Porém, não há um alívio imediato que se segue ao ato - somente após 20 dias, algo muda do lado do agressor. Entretanto, é com seu gesto que se torna culpada diante da lei, atingindo a si mesma. A satisfação pulsional inclui a intencionalidade de um crime, o sentido de uma punição, uma atitude subjetiva de culpa. O mecanismo de cura se dá via a satisfação da pulsão autopunitiva.

Verifica-se que no caso Aimée encontram-se índices clínicos das novas formas de sintomas que predominam na contemporaneidade, como os atos violentos, as parcerias sem dialética, entre outros. Sendo assim, faz-se possível relacionar autopunição e imagem especular, tendo como referência a questão do pulsional introduzido por Lacan, em termos de causalidade, e retomando as elaborações de Freud sobre o mecanismo da erotomania, via fixação narcí¬sica e pulsão homossexual. Na expectativa de elucidar o fenômeno da autopu¬nição Lacan recupera, em Freud (1922), a concepção libidinal das psicoses, buscando compreender a autopunição por meio da “fixação narcísica” e da “pulsão homossexual”.

Nesse sentido, na análise do caso Schereber (FREUD, 1911), ele recorre aos diferentes temas do delírio na paranóia, por intermédio da análise gramatical da proposição “Eu o amo”, ou seja, as principais formas de paranóia conhecidas podem ser representadas como contradições da proposição única, “eu (um homem, ou uma mulher) amo (um homem, ou uma mulher)”, e que exaurem todas as maneiras possíveis em que tais contradições poderiam ser formuladas. Observa-se, nessa análise, a oposição entre a denegação e a dimensão libidinal. Em “Eu o amo”, é objeto de amor homossexual. A primeira denegação - “Eu não o amo. Eu o odeio”, projetada secundariamente em “Ele me odeia” -, fornece o tema da perseguição. A segunda denegação - “Eu não o amo. É a ela (objeto do sexo oposto) que eu amo”, projetado secundariamente em “Ela me ama” – fornece o tema erotomaníaco. A terceira denegação - “Eu não o amo. É ela quem o ama” - fornece, com ou sem inversão projetiva, o tema do ciúme. A quarta denegação - “Eu não o amo. Eu não amo ninguém. Amo somente a mim” - fornece o tema da onipotência e da grandeza, que chega a um estádio completamente primitivo do narci¬sismo. Assim, o perseguidor principal é sempre do mesmo sexo que o sujeito e é idêntico ou, pelo menos, representa a pessoa do mesmo sexo a que o sujeito se liga por sua história afetiva.

Nessa perspectiva, isolam-se pela via da erotomania vários tipos de saídas para a problemática do amor. Entre elas, a passagem ao ato, que define nosso terceiro eixo de investigação proposta, tendo-se como referência o registro do imaginário, para possibilitar a análise das consequências do duplo especular.

 

PASSAGEM AO ATO

Sabe-se que a expressão “passagem ao ato” tem sua origem na psiquiatria articulada à criminologia e é utilizada para se referir, de forma exclusiva, a atos violentos, delituosos. Na tese de 1932, Lacan introduz algumas hipóteses que vão orientar a investigação. Uma de suas referências é a psiquiatria francesa dos anos de 1920, que introduz a passagem ao ato como solução mecanicista, liberadora do Kakon, palavra grega que significa “dor”, “desgraça” (VON MONAKOW; MOURGUE, 1928). A exemplo dessa formu¬lação, Guiraud (1931), com base no corpo teórico da psicanálise, faz uma distinção entre os assassinatos imotivados, que se classificariam como crimes do ego - em que entram todos os crimes ditos de interesse - e crimes do id - em que entram os crimes puramente pulsionais. Lacan (1932) acrescenta a esses um outro tipo: os crimes dos delírios dos querelantes e dos delírios de autopunição, que são crimes do superego (LACAN,1932, p.i307). A exemplo, Aimée agride uma mulher famosa, a quem odiava por representar o ideal que tinha para si mesma.

Nessa perspectiva, os sintomas contemporâneos que se inscrevem como psicopatologias do ato em situações de supremacia imaginária nos remetem ao seminário sobre a angústia, em que Lacan concebe o acting out como dirigido ao outro e a “passagem ao ato” como o instante em que o sujeito se coloca no lugar de puro objeto. A concepção adotada por Lacan na tese de 1932 – “Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade” –, quando aproxima a passagem ao ato ao mecanismo liberador do Kakon (LACAN, 1932, p. 236), é modificada em “Formulações sobre a causalidade psíquica” (LACAN, 1946), quando Lacan reconhece que ao atingir no objeto que ele fere o Kakon de seu próprio ser o sujeito passa ao ato para liberar-se do seu mal interior, ou, por um imperativo superegoico, atinge no outro a imagem de si mesmo (LACAN, 1946, p. 176).

O termo Kakon é empregado de modo diferente por Guiraud e Lacan. Para Guiraud, há uma certa imprecisão a respeito da passagem ao ato em alguns sujeitos esquizofrênicos. Já Lacan indica que o inimigo interior de Aimée é puramente especular e permanecesse no registro imaginário, ao mesmo tempo em que intervêm tendências autopunitivas (TENDLARZ, 1998, p. 126-128). Nesse momento da elaboração teórica de Lacan, ele parece recorrer ao termo grego Kakon pela necessidade de nomear de alguma maneira o que ainda não elaborou teoricamente (que integra principalmente o simbólico e o imaginário). Lacan considera que Melaine Klein, ao nos mostrar a primordialidade da “posição depressiva”, o extremo arcaísmo da subjetivação de um Kakon, alarga os limites em que podemos ver em ação a função subjetiva da identificação e, particularmente, permite-nos situar a formação primária do supereu (LACAN, 1948, p. 118). Nesse sentido, o Kakon é um objeto extimo, Aimée golpeia no exterior o seu ser mais íntimo, não se trata de uma projeção. O inimigo exterior que Aimée golpeia representa a si mesma. O Kakon é seu próprio ser identificado ao objeto a como mais de gozar. No “Seminário livro 10 – A angústia”, é que Lacan articula a Unheimlich freudiana e a noção de imagem especular. A passagem ao ato representa o instante em que nenhuma mediação é possível e visa promover uma separação radical com o outro. O sujeito “deixa-se cair”, sai de cena (LACAN, 1963, p. 118).

Em resumo, a passagem ao ato, tendo-se como referência o registro do imaginário, nos possibilita a análise de um dos eixos do que se define como consequências do duplo especular. Até aqui, é possível formular a questão que se constitui nosso quarto eixo de investigação – os fenômenos de corpo – que nos remete à etimologia grega, “fenômeno” é o que aparece, o que causa surpresa e pode se constituir como um sintoma para o sujeito.

 

FENÔMENOS DE CORPO

Na vertente das psicoses ordinárias temos os excessos de investimento no corpo próprio fora do registro da imagem fálica, modo pelo qual o neurótico se serve de seu corpo. Para Lacan, o homem tem um corpo e este é prévio ao ser. É o ser que preside o ter, ou seja, através do ser, via a linguagem, o homem pode se arranjar com o corpo que tem (LACAN, 1979, 2003, p.i561). Nesse sentido, o que se verifica em relação aos sintomas atuais é que as manifestações no corpo e sua resposta à intervenção do analista nos permitem localizar o modo de relação do sujeito ao nome-do-pai. A histérica recusa em reconhecer em seu corpo a castração, via a recusa em tomar o corpo como enigma e via a recusa do corpo do outro, especialmente do outro sexo (MILLER, 1999, p. 65). Aqui, o gozo pulsional subjacente à afecção corporal está sob recalque, é o corpo simbólico que é afetado. Por sua vez, os efeitos do corpo provocados pela recusa psicótica se manifestam, sobretudo, em situações em que não se tem o desencadeamento clássico da psicose, mas sucessivos desligamentos e religamentos do sujeito ao outro, evidenciando a ausência da referência ao nome-do-pai (MILLER, 1999, p.i70). Na psicose o gozo pulsional está foracluído do simbólico e retorna como acontecimento de corpo no real. No ponto de ausência do saber do outro que nomeia, e assim simboliza o sujeito, que o Outro vai responder como corpo, em nível do real.

Podemos dizer que os fenômenos corporais, que não são efeitos de recalque, se manifestam, por vezes, como efeitos da desorganização imaginária como tentativa de solução. Nesse sentido, considerando que o suporte funda¬mental das imagens dos corpos dos outros e do corpo próprio é a ação do nome-do-pai, isolamos na clínica da anorexia, das parcerias sem dialética, dos novos sintomas em que predominam a problemática da imagem corporal, uma possibilidade de retorno aos primórdios das elaborações lacanianas sobre a folie à deux, campo propício à análise da supremacia imaginária e que a nosso ver despertou o interesse teórico-clínico de Lacan e possibilitou as elaborações de questões que culminaram nas formulações teóricas sobre a tópica do imaginário e da clínica das psicoses que se evidenciam ao longo de seu ensino. Ou seja, o tema da folie à deux, ao nos permitir isolar a problemática dos atos homicidas, das passagens ao ato e da supremacia do imaginário, torna-se um campo metodológico propício à investigação dos novos sintomas à luz do percurso teórico de Lacan.

 

DO FENÔMENO DO DUPLO A FOLIE À DEUX

O tema da folie à deux é reintroduzido por Lacan em sua tese de doutoramento em psiquiatria – “Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade” (1932) –, na qual, após uma vasta revisão dos fundamentos teóricos da paranóia, ele relata o caso Aimée e, nele, ressalta o valor representativo das perseguidoras dela, como os “duplos, os triplos e as suces¬sivas tiragens de um protótipo. Por essa via de investigação, Lacan discute a noção de folie à deux no âmbito da psiquiatria, a partir de um breve estudo da gênese do termo desde Legrand du Saulle, em 1871, que, em seu livro magistral – “Os co-delirantes”–, afirma que em todos os casos citados é notório estarem os pacientes unidos por um laço familiar ou uma vida comum antiga. Por sua vez, Lange, hostil a toda conclusão prematura sobre a heredita¬riedade das psicoses paranóicas, ressalta a frequência de similaridade do conteúdo do delírio nos ascendentes diretos de alguns sujeitos paranóicos, mas afasta a concepção de contágio mental. Ao recorrer à origem do termo, sabe-se que, em 1860, Jules Baillarger descreveu pela primeira vez essa síndrome, chamando-a de folie communiqueé, embora a primeira descrição seja atribuída, mais frequentemente, a Ernest Lasègue (1873) e a Jules Falret (1873), que a designaram folie à deux. Ao longo dos anos, esse transtorno recebeu outras denominações, como insanidade comunicada, insanidade contagiosa, psicose de associação e insanidade dupla, perturbação paranóide compartilhada; ou, em outras referências, psicose induzida, delírio induzido e transtorno paranóide induzido.

No artigo Folies simultanées (LACAN et al., 1931, p. 48-70), os autores analisam dois casos de delírios simultâneos em mãe-filha, mas independentes um do outro, em que uma reconhece o delírio da outra, situação que se opõe à concepção de contágio mental via indutor-induzido. Lacan considera, então, que essa descrição clínica aponta para a insuficiência da concepção psiquiátrica vigente de “contágio mental”. Ressaltam-se o estreito laço afetivo entre mãe e filha via erotomania e a frequência de uma anomalia psíquica similar à do sujeito no progenitor do mesmo sexo, que, na maioria das vezes, foi o seu único educador. Lacan refuta a perspectiva do indutor-induzido e enfatiza o paralelismo psicopatológico.

Lacan utiliza o termo “imaginário” para designar o registro psíquico corres¬pondente ao eu do sujeito, cujo investimento libidinal é designado por Freud de narcisismo. Nesse sentido, isola, na obra deste, a noção de imagem, tendo como ponto de partida o artigo “O estranho” (FREUD, 1919), que apresenta o problema da representação do eu e a imagem do duplo. Tanto Freud como, posteriormente, Lacan referem-se à obra de Otto Rank – Don Juan et le double (1914) –, em que o autor introduz os conceitos de imagem especular, duplo especular e identificação com a irmã. Com base nesse autor, Freud postula que a representação do duplo comporta um aspecto positivo distinto e, ao mesmo tempo, indissociável de um aspecto negativo. No texto de Lacan, as contribuições de Otto Rank tornaram possível a conceituação da identificação especular na formação primordial do eu.

Em seguida, Lacan inicia um percurso de elaborações, visando explicar a nosologia e a patogenia da paranóia, tendo como ponto de partida a folie à deux, bem como o enigma do duplo, e elabora uma sequência de trabalhos, em que constroi uma problemática própria centrada, em parte, na função da imagem. Trata-se da elaboração teórica de Lacan que se inicia com “Para além do princípio da realidade” (1936), passa pelos “Complexos familiares”, pelas “Formulações sobre a causalidade psíquica” (1946), “A agressividade em psicanálise” (1948), “O estádio do espelho” (1936), até a introdução teórica de “As funções de psicanálise em criminologia” (1950). A maior parte desses textos, elaborados no período de 1936 a 1950, está reunida nos “Escritos”. Assim, o imaginário é um dos grandes temas do ensino lacaniano, que irá representar a relação imaginária como especular e narcísica, ponto inicial do desenvolvimento teórico e clínico do retorno a Freud.

Via o enigma da folie à deux, Lacan analisa a inter-relação entre o mito de Narciso, a paixão mortal e o tema do duplo, considerando a questão da pulsão. Nesse ponto, remete-se às elaborações freudianas, em especial a “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914), que deve ser percorrida ao se investigar a questão de “o que acontece com a libido que foi afastada dos objetos externos na esquizofrenia? A libido afastada do mundo externo é dirigida para o ego e assim dá margem a uma atitude que pode ser denomina¬da de narcisismo” (FREUD, 1914, p. 91).

Nesse ponto, deve-se ressaltar que Lacan, em nenhum momento, propôs uma analogia entre a nosografia psiquiátrica folie à deux e o que se define ao longo desta proposta de trabalho como “fenômeno do duplo”. Desta forma, a folie à deux se definirá em Lacan como forma fenomenológica de apresentação das parcerias imaginárias que se estabelecem quase como inerentes à paranóia e se constituem como metodologia de investigação do fenômeno do duplo, da imagem especular, dos primórdios do imaginário, da constituição psíquica do eu e do sujeito. Em suma, esse percurso da investi¬gação em Lacan nos remete a Unheimlich freudiana – correlato do duplo em Freud.

 

O DUPLO – CORRELATO DA UNHEIMLICH FREUDIANA

A problemática da supremacia imaginária tem como uma das expressões o duplo – correlato do Unheimlich freudiana – que se relaciona à questão da angústia e surge descortinando o véu da castração. O Unheimlich introduz a dimensão do real como uma tentativa de dar conta do estado de fenda, de Spaltung, manifestação da marca da divisão do sujeito que, como Lacan aponta, o psicanalista situa em sua práxis, de maneira cotidiana, bastando o simples reconhecimento do inconsciente para motivá-la.

Freud, ao inscrever o tema do estranho no campo da psicanálise, o faz via qualidades do sentir, conferindo ao tema um estatuto até então inédito. Cabe ressaltar, para além do ponto de vista linguístico, que o Unheimlich (o que está oculto e se mantém fora da vista, o que não é doméstico) desenvol¬ve-se na direção de seu oposto – Heimlich (doméstico, familiar e agradável). Freud postula que “algo tem que ser acrescentado ao novo e não familiar, para torná-lo estranho” (FREUD, 1919). A meu ver, Freud, ao isolar o Un da palavra Unheimlich como marca do recalque, define uma hipótese que parece poder explicar o gozo desregrado no mal, pois o cerne da sensação de estranheza remete ao recalque.

Nesse sentido, a ambiguidade inerente ao fenômeno do estranho torna-se um índice clínico da contemporaneidade, que se traduz como ambivalência pulsional e revela a dimensão real inerente ao estranho. A prática clínica revela o Unheimlich como um índice clínico importante. Salienta-se, em Freud, que o momento em que o Heim (familiar) torna-se Unheimlich (não familiar) corresponde ao momento em que a fantasia perde seu caráter de jogo (LACAN, 1962, p. 60). Lacan ressalta que há relação entre Unheimlich e a estrutura da fantasia que, segundo sublinha, já era assinalada por Freud, que enfatiza a função da fantasia de encobrir o encontro do sujeito com o real da castração.

A dimensão da fantasia traduz a forma de encontro do sujeito com o Outro, tal como ressalta Lacan: é no ponto situado no Outro, para além da imagem, que o homem encontra, exatamente no ponto que representa a ausência, a sua posição no desejo do Outro, ou seja, é a presença em outro lugar que produz esse lugar como ausência. Dessa forma, esse lugar situado no Outro para além da imagem se torna o “rei do jogo”, pois se apodera da imagem que o sustenta. A imagem especular transforma-se na imagem do duplo com o que traz de estranho; revela-se, aí, a não autonomia do sujeito, que se faz aparecer como objeto (LACAN, 1962, p. 58). O Heim (familiar) revela não somente o desejo do Outro, mas o desejo no Outro. Enfim, o desejo do sujeito entra nesse lugar no Outro sob a forma do objeto que é. Para Freud, a relação entre retorno do recalcado e Unheimlich não se eviden¬ciava rotineiramente na vida dos neuróticos, visto que o sujeito encontrava uma solução no sintoma. Por sua vez, em tempos de “forclusão generalizada”, de falência generalizada do recalque, o que se verifica é a série de sujeitos à deriva, mergulhados na supremacia imaginária das identificações labeis, dos excessos, das passagens ao ato. Unheimlich se inscreve como imaginário, mas revela o ponto exato em que o sujeito se defronta com o real. No Unheimlich, o sujeito se experimenta em sua não autonomia de sujeito, como puro objeto.

 

A MODO DE CONCLUSÃO

A imagem do corpo traduz a relação do sujeito com a castração. Na contemporaneidade, a busca irrefreada da perfeição estética do corpo é uma das formas de tentar velar a castração, que por vezes se apresenta como o sentimento de estranheza. Será a extração do objeto a como olhar que nos permitirá ter o sentimento de realidade perceptiva. Por sua vez, na paranóia a presença do olhar do outro se impõe. Nesse sentido, o analista em sua prática se depara cada vez mais com a generalização de um mau funcionamento da realidade perceptiva, um dos pontos que define o campo da psicopatologia da imagem corporal. Como exemplo, podemos localizar nos excessos de investimento no corpo próprio, fora do registro da imagem fálica, a vertente das psicoses ordinárias e, também, as implicações clínicas quando a cultura favorece a constituição da suplência pela via do corpo – da supremacia imaginária – em detrimento da cura pela vertente da palavra.

Lacan, ao isolar a paranóia de autopunição no cerne da folie à deux, a utilizou como uma metodologia que o permitiu elaborar a tópica do imaginário, estabelecer que não é por meio da imagem do corpo próprio que o corpo se introduz no campo do gozo, mas sim por intermédio do corpo dos outros. Nessa perspectiva, o processo constitutivo do corpo próprio é facilmente perceptível na clínica da folie à deux, que revela casos em que se estabelece uma parceria imaginária entre dois indivíduos – adolescente e adolescente ou mãe-filho (a) –, que exerce a função de estabilização da psicose, tal como indicado por Lacan em termos da causalidade psíquica que define essas parcerias, ou seja, a parceria imaginária que o psicótico estabelece com um indivíduo próximo melhora, mesmo que de forma precária, a doença. Sendo assim, a proposta de separação dos sujeitos envolvidos nem sempre se constitui como uma boa intervenção terapêutica.

Dessa forma, a estabilização da psicose pela parceria imaginária pode ocorrer entre um número maior de indivíduos, especialmente em situações de grupos de adolescentes que se unem por traços identificatórios comuns e em situações familiares em que um dos pais é o caso primário e os filhos, às vezes em graus variados, adotam suas crenças delirantes. Sendo assim, se a erotomania fundamenta a maioria das parcerias imaginárias, nossa hipótese é de que os atos violentos que se inscrevem via passagem ao ato são tentativas precárias de solução da erotomania mortífera.

Nesse ponto, a hipótese clínica a ser testada é se, nos casos em que predominam as parcerias imaginárias, a causalidade pode ser localizada no campo da constituição da imagem corporal, que fundamenta a constituição do eu e do sujeito. Se a criança, em nível subjetivo, ocupa a posição de objeto, como se dará através do outro a constituição do corpo próprio e quais as consequências clínicas diante dos impasses dessa constituição que passa pelo outro? Nesse lugar do objeto a, a imagem não se sustenta sem uma carga libidinal que deve ser regularizada, por meio da metáfora paterna que regulariza o gozo do lado da castração. Em suma, o suporte fundamental das imagens do corpo próprio é o nome-do-pai. A realidade perceptiva é funda¬mentada pelo nome-do-pai (MILLER, 1995, p. 21).

Evidencia-se que Lacan isola, a partir da clínica da folie à deux, o fenômeno do duplo como correlato da Unheimlich freudiana, que se articula à constituição arcaica do eu e que se apresenta como momentos de fugazes desamarrações dos três registros – Real, Simbólico, Imaginário – nas neuroses graves, ou na supremacia imaginária, que se revela por meio dos índices clínicos da psico¬patologia da imagem especular, da autopunição, da passagem ao ato e dos fenômenos de corpo.

Enfim, o mal-estar do sujeito contemporâneo o leva à busca de soluções imediatistas para suas angústias e o que se revela como sintoma são as marcas da precariedade simbólica, das dificuldades de construção da imagem corporal e da identidade, que definem uma série de patologias graves da atualidade, como dismorfismos corporais, anorexias e bulimias. Nesses casos em que se verifica a supremacia imaginária, por vezes o que se revela é uma tentativa de suplência no campo das psicoses e, por outras vezes, esses sintomas são índices clínicos das desamarras da contemporaneidade, que revelam a clínica da forclusão generalizada.

 

 

REFERÊNCIAS

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Artigo recebido em: 17/10/2008
Aprovado para publicação em:14/11/2008

 

 

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde – Saúde da Criança e Adolescente da Faculdade de Medicina UFMG e Mestre em Estudos Psicanalíticos/FAFCH/UFMG.
** Doutor em Psicanálise pela Universidade de Paris VIII e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Psicanalíticos/FAFICH/UFMG.
*** Doutor em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina UFMG e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde – Saúde da Criança e Adolescente da Faculdade de Medicina UFMG.

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