SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 número13A construção de ofícios terapêuticos em saúde mentalA cidade que o crime construiu: breves considerações sobre o ambiente urbano a partir da linguagem índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Mental

versão impressa ISSN 1679-4427

Mental vol.7 no.13 Barbacena  2009

 

ARTIGOS

 

“O que é isto (ou isso?) o inconsciente?”

 

“What is it (or this?) the unconscious?”

 

 

Renata Damiano Riguini*

Faculdade Pitágoras

 

 


RESUMO

Neste artigo, parte-se do texto de Lacan intitulado “O engano do sujeito suposto saber” para revisar o conceito freudiano de inconsciente. Neste percurso, a título de transmissão, será colocado o conceito de chiste, ou tirada espirituosa como preferia Lacan, como formação do inconsciente privilegiada neste texto, uma vez que garante a surpresa.

Palavras-chave: Inconsciente, Engano; Chiste, Significante, Cadeia, Análise


ABSTRACT

In this article, we depart from the text of Lacan entitled “The mistake of the supposed subject knowledge” in order to revise the Freudian concept of the unconscious. In the course of this task, for the sake of transmission, we will utilize the concept of jocosity, or witty statements as it was preferred by Lacan, as formation of the unconscious privileged in this text, once it ensures the surprise

Keywords: Therapeutic workshops, Making of art, Repetition.


 

 

Nenhuma pretensão de conhecimento seria aceitável aqui, visto que nem sequer sabemos se o inconsciente tem um ser próprio1, e que foi por não ser possível dizer “é isso” que ele foi chamado pelo nome de isso (Es em alemão, ou seja, isso, no sentido como se diz “isso não tem cabimento” ou então, “isso vai acabar mal” (LACAN, 2003, p.i333).

Partindo desta citação de Lacan, em ‘O engano do sujeito suposto saber’ (1967), bem como grifando a impossibilidade de conhecimento de um ser do inconsciente, pretende-se, neste breve artigo, pontuar algumas questões lançadas pelo autor sobre o inconsciente. É interessante apontar que, tendo visto a impossibilidade de um conhecimento do que é o inconsciente, na primeira frase desse mesmo texto há um chamado e uma advertência feita por Lacan aos psicanalistas, nos seguintes termos: “O que é o inconsciente. A coisa ainda não foi compreendida” (Ibidem, p. 329). E continua, “Tendo o esforço dos psicanalistas, durante décadas, sido o de tranquilizar quanto a esta descoberta (do inconsciente) (...): por terem querido tranquilizar-se a si mesmos, eles conseguiram esquecer a descoberta” (Ibidem, p. 329). Cabe a nós, portanto, retomar o texto para discernirmos o que Lacan está chamando aqui de inconsciente nos termos da descoberta freudiana, discernimento advertido pela impossibilidade de conhecimento do ser do inconsciente, o que já indica sua própria estrutura de não saber, de engano – méprise2. Ora, o que está em jogo aqui é justamente a dimensão desta experiência e suas implicações em uma análise, mais ainda, na condução de uma análise.

Então, o que é possível saber sobre isto? Ou sobre isso? Mais uma vez a Psicanálise nos convoca a contornar, pela via do saber, algo que é e permanecerá inapreensível. Entretanto, por ser o inconsciente indefinível não seremos, ainda assim, wittgeinsteinianos, nos isentando de dizer sobre: calar não é a solução diante do que não é pacífico ou tranquilizador, diante do Unheimlich. Não é com isto que lidamos em uma análise? Pois faça falar, isso fala! Mas engana...

Nesse texto, Lacan enfatiza a descoberta pela via da tirada espirituosa, que Freud apontou tão bem, destacando-o como a “própria articulação do inconsciente” (ibidem, p. 330), na medida em que se torna possível tal articulação pelas leis da própria linguagem, ou seja, as leis do significante. Assim, o que estaria grifado senão a dimensão do inesperado, o caráter pulsátil, a surpresa que faz rir?

 

A TIRADA ESPIRITUOSA NA INSTÂNCIA DA LETRA

As palavras são um material plástico, que se presta a todo tipo de coisas (FREUD, 1905, p. 41).

Para tocarmos, então, no que Lacan enfatiza, será feito um breve percurso pela teoria do chiste, ou melhor, da tirada espirituosa, começando pelo texto “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (LACAN, 1998). A referência à tirada espirituosa na “Instância da Letra” é breve. Lacan se refere, em um parágrafo (LACAN, 1997, p. 512), ao trabalho de Freud (1905) sobre o Witz para dizer que o sentido emerge no não senso, assim como o encontramos na tirada espirituosa, pois que opera tendo como elemento principal a substituição metafórica. É através de um exercício da linguagem que poderemos observar o movimento do inconsciente. Mas este parágrafo permanece enigmático para entendermos a novidade trazida pelo Witz.

Lacan também chama a atenção, no seu Seminário 5 “As formações do inconsciente” (1957-58) 3, para o fato de ser justamente na hiância, o centro radiante, que existe na impossibilidade de um nome designar a coisa, que acontecem as formações do inconsciente. Estas últimas, se somos freudianos, constituem-se nos mecanismos de deslocamento e condensação. Ou seja, as formações do inconsciente obedecem a esses mecanismos próprios da lingua¬gem para fazer surgir sentido, ou, como apropriadamente chamou Lacan, as formações do inconsciente são dadas pelas leis primordiais da linguagem, as leis do significante (metáfora e metonímia). No citado seminário, Lacan vai se deter na tirada espirituosa para expor o que é próprio ao incons¬ciente: a princípio, sua relação com a linguagem, com o significante. Neste ponto vale lembrar o texto de Freud.

 

A TIRADA ESPIRITUOSA EM FREUD

Freud (1905, p. 42), desde as primeiras páginas de “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, garante que há uma característica da qual uma tirada espirituosa não pode prescindir a despeito de não ser mais uma tirada espirituosa: “o fato de que as mesmas palavras prestam-se a usos múltiplos”. Neste sentido, ele coloca com propriedade, através de seus exemplos, que as palavras, em conexões diferentes, perdem seu sentido original para construir outro – esta seria a plasticidade da palavra. Para tanto, seguindo Freud, quem cria uma tirada espirituosa utiliza como técnica principal o processo de condensação, mas utiliza também, tal como observou anos antes nos sonhos, o deslocamento, o raciocínio falho, o absurdo ou a representação pelo oposto. Toda esta técnica serviria para enviar uma mensagem inconsci¬ente, já que a tirada espirituosa é, como os sonhos, atos falhos e os sintomas, uma formação deste. Além disto, Freud pôde reconhecer o prazer arrancado da tirada espirituosa e nos aponta que este tem duas fontes: a própria técnica e seus objetivos4.

O prazer retirado de duas técnicas será ilustrativo neste trabalho. Parece-nos interessante Freud destacar que uma das técnicas consistia em focalizar a atitude psíquica em relação ao som da palavra, sua imagem acústica, em vez de privilegiar o sentido, e em outra técnica, o processo ocorreria quando de um absurdo, de uma concatenação de ideias nonsense, surgisse uma significação nova, algo que faça sentido para quem o escuta. Ora, o que Freud destaca, para falar em termos lacanianos, senão a autoridade e a autono¬mia do significante quando se privilegia o som e a metáfora como geradora de sentido a partir do nonsense?

E de onde vem o prazer dessas técnicas? A resposta de Freud está na economia da despesa psíquica. Para nossa primeira técnica, Freud destaca que esse é um procedimento confortável, do qual as crianças, em seu processo de aquisição da linguagem, já usufruíam como fonte de prazer, ou como em alguns “estados patológicos da atividade do pensamento” (FREUD, 1905, p.i117); ambos tratam as palavras como coisas, reconhecendo a insistência dos sons em detrimento do sentido. Na segunda técnica, o sujeito “reúne palavras, sem respeitar a condição de que elas façam sentido, a fim de obter delas um gratificante efeito de ritmo ou rima”. Assim é que a criança brinca com a língua materna, extraindo daí um óbvio prazer que lhe vai sendo retirado para que fiquem apenas as combinações significativas das palavras, combinações que permitem a comunicação. Na tirada espirituosa este prazer pode ser resgatado. Entretanto Freud considera, além do jogo da técnica e do prazer daí advindo, imprescindível que, no fim, a tirada tenha sentido e, para tanto é preciso que alguém o reconheça.

Nesse ponto, Freud será bem claro: ninguém se contenta em fazer um chiste para se rir sozinho, diferentemente de quando acontece algo cômico. A comicidade inclui duas pessoas, uma que observa o acontecimento e a outra que é objeto do cômico. Já na tirada espirituosa, alguém, uma terceira pessoa que estaria de fora do processo, diz Freud, precisa avaliar se o objetivo foi alcançado, “como se o eu não se sentisse seguro de seu julgamento” (FREUD, 1905, p. 139). Com Lacan veremos qual é o estatuto dessa terceira pessoa, ou, como já estamos familiarizados, do outro.

 

UMA LEITURA DE LACAN DO “ESPÍRITO” DE FREUD

O inconsciente, justamente, só se esclarece e só se entrega quando o olhamos meio de lado. Aí está uma coisa que vocês encontrarão o tempo todo no Witz, pois tal é sua própria natureza – vocês olham para ele, e é isto que lhes permite ver o que não está ali (LACAN, 1998, p. 25).

Tal como encontramos no Prefácio do Editor das obras de Freud, a palavra empregada por ele, Witz, encontrou problemas em sua tradução. Optou-se, visto os impasses causados, por traduzir no inglês para joke, o que levou a tradução por ‘chiste’ em português. No entanto, a palavra acaba deixando de lado algo que Freud evocou como sendo o ‘espírito’ destes, não simples, jogos de palavras. Em seu texto encontramos a seguinte citação:

(...) a elaboração do chiste não está ao dispor de todos e apenas alguns dispõem dela consideravel¬mente; estes últimos são distinguidos como tendo ‘espírito’. O espírito aparece nesta conexão como uma capacidade especial – mais do que como uma das velhas faculdades mentais; parece emergir intei¬ramente independente das outras tais como a inteli¬gência, imaginação, memória, etc. (FREUD, 1905, p. 135).

Para Lacan, sempre muito atento e cuidadoso com o texto freudiano, é preferível falar, então, em tirada espirituosa, considerando o espírito no sentido em que falamos de um homem espirituoso, obturando, assim, a ideia depreciativa que possa advir do simples chiste, e diz: “Esse espírito, nós o centraremos na tirada espirituosa, isto é, no que nele se afigura o mais contingente” (LACAN, 1997, p. 22). Esclarecidos os termos e garantindo o espírito para além da técnica, podemos dizer que a tirada espirituosa, segundo a leitura de Lacan do texto de Freud, teria três elementos de definição:

1) haverá, sempre, uma transgressão da linguagem como código, como linguagem compartilhada;

2) o outro, como lugar do código, deverá sancionar a mensagem; e

3) o Witz tem sempre relação com a verdade.

Então, primeiramente, Lacan vai dizer que a mensagem extraída do Witz situa-se numa produção significante, que se distingue do código. Este é o mecanismo elementar da tirada espirituosa: há uma ligeira transgressão do código e a mensagem se instala exatamente nessa diferença. Essa transgressão só se faz possível no próprio plano do significante, tal como o temos elaborado, ou seja, quando o significante escapa a tudo que até então ele pôde abranger em termos de criação do significado, a partir do equívoco essencial da lingua¬gem que nunca traz uma mensagem unívoca. A partir desta brecha da lingua¬gem é possível aparecer algo (de) novo. 5

A definição que lhes proponho para a tirada espirituosa baseia-se primeira¬mente nisto, em que a mensagem se produz num certo nível da produção significante, que ela se diferencia e se distingue do código, e que assume, por esta distinção e esta diferença, um valor de mensagem. A mensagem reside em sua diferença para com o código (LACAN, 1998, p. 28).

É nesse nível que encontramos a metáfora como principal recurso da tirada espirituosa, juntamente com a metonímia. Com efeito, a possibilidade de substituição é inerente a qualquer significante, mas o que está em jogo na metáfora, e na tirada espirituosa, é o engendramento do sentido por uma criação significante que não foi feita para designar algo, mas para apontar um para-além (Ibidem, p. 71). Partimos então de uma referência paradoxal ao emprego usual de uma palavra, dando-lhe um emprego inesperado que faz, de imediato, uma injeção de sentido que não sem intenção faz rir. Para Lacan, é isso que é ser espirituoso.

Entretanto, e esse é o segundo elemento de definição da tirada espirituosa, o que garantiria que tal produção geraria uma mensagem? O código. E o lugar do código é o Outro, o Outro como “companheiro da linguagem”, como o parceiro do sujeito em toda fala e em toda sorte de relações simbólicas a quem o sujeito dirigirá sua demanda6 – portanto ele tem de estar implicado. É o outro, como tesouro do significante, que sanciona o dito como tirada espirituosa, é ele quem diz: “Ah! Sim, isto é uma tirada espirituosa”.

Assim, podemos inferir que o que está colocado na tirada espirituosa são os significantes pertencentes a esse tesouro do qual, supostamente, o Outro conserva, latente, todas as possibilidades de criação significativa. O Outro, aqui, funciona como o suporte dessa transgressão do código, ou seja, “só me dirijo a ele na medida em que suponho já repousar nele aquilo que faço entrar em jogo em minha tirada espirituosa” (LACAN, 1998, p. 121). É neste sentido que Lacan vai poder dizer ainda que para uma tirada espirituosa provocar o riso é preciso que algo seja compartilhado. Este “algo”, este pertencimento a uma paróquia, é poder compartilhar um código7.

Nesse sentido, a tirada espirituosa faz emergir o que é do significante, tornando claro seu caráter essencial e até primitivo, nos termos de Lacan em 1958, que ele tem em relação ao sentido, uma vez que impõe a este último um toque de arbitrariedade. O sentido existe na cadeia significante; o significante, por sua vez, se antecipa ao sentido.

O terceiro elemento de definição da tirada espirituosa, por sua vez, é sua relação com o que na “Instância da Letra” Lacan chamou de “dimensão de álibi da verdade”. Essa assertiva se inscreve na descoberta freudiana, já que o que ela assinala é justamente a condição humana que se refere à impossibilidade de saber a verdade, porquanto ela é “não toda”, ou melhor dizendo, ela não pode ser toda dita. E isto por apenas um motivo: não há correspondência entre a palavra e a coisa, fato que instaura uma dessimetria fundadora do inconsciente.

A tirada espirituosa, como formação do inconsciente, vai fazer surgir o que até então estava guardado, atingindo o sujeito em outro ponto, desnudando, de um só golpe, a verdade da descoberta e um novo sentido para algo repisado pelo sujeito. Em poucas palavras, o chiste dá à verdade uma oportunidade de aparecer, de ser, ao menos, meio-dita. Não é a toa que marcadamente, ou melhor, necessariamente, encontramos o efeito de surpresa do Witz e “é a partir daí que nos situamos então no nível do inconsciente” (LACAN, 1998, p. 118). O que Lacan enfatiza neste ponto é que o Witz “designa, sempre de lado, aquilo que só é visto quando se olha para outro lugar” (LACAN, 1998, p. 29).

Portanto, o que Lacan recolheu em Freud no livro dos chistes para nos acrescentar em uma leitura do inconsciente estruturado como uma linguagem é pontual e crucial. De um lado temos o jogo do significante em sua materialidade e autonomia em relação ao sentido, bem como o efeito prazeroso de sua prática. Logo em seguida, o Outro é colocado em questão na medida em que só ele, como lugar do código e parceiro do sujeito, poderá ser interrogado a respeito do sentido. Por último, já que reconhecemos na tirada espirituosa as leis do inconsciente como maquinaria simbólica com o jogo dos significantes, devemos também reconhecer que nela está a verdade freudiana ou o espírito de Freud, ou, como podemos ainda chistear, trata-se de reconhecer o espírito da coisa.

 

DE VOLTA AO ENGANO...

Lacan se opõe, desde então, aqui à ideia que circulava entre alguns leitores de Freud que se autorizaram a representar o inconsciente, representá-lo, especificamente, em um caldeirão. Primeira incompatibilidade: o inconsci¬ente não pode ser representado, pois se assim fosse Freud não teria gasto tanta retórica. Por tal motivo, também aqui exploramos os caminhos da tirada espirituosa, a fim de alcançar algum efeito de verdade e uma transmissão.

Ora, é preciso falar, é preciso retórica, é preciso contornar pelo saber o nosso objeto indefinível que só pode ser isso8. Entretanto, é preciso apontar o que d’isso é possível falar, mas não é possível atingir uma verdade absoluta que o defina e circunscreva. Neste sentido, o inconsciente não pode ser compreendido, mas somente tocado por um ato que revela, como no ato falho, a verdade de um sujeito, subvertendo-o. Aqui, momento fugaz, não há engano.

Seguindo a passos curtos o texto de Lacan, encontramos mais uma colocação pontual: “o inconsciente não é perder a memória; é não lembrar do que se sabe” (LACAN, 1998, p. 334). Sutil diferença, mas reflete um apagamento do sujeito que já não se reconhece em determinado significante. Demonstra a relação com um saber que o ultrapassa e, enfatiza Lacan, “Mas que se possa haver um dizer que se diz sem que a gente saiba quem o diz, é a isto que o pensamento se furta” (LACAN, 1998, p. 335), ou ainda, adver¬tindo e denunciando, “o que o psicanalista acoberta, já que ele mesmo se protege disso, é que se possa dizer alguma coisa sem que nenhum sujeito o saiba” (LACAN, 1998, p. 336). Diga-se de passagem, o modo que os analistas têm de se proteger é interpretando as mensagens cifradas da forma que entenderam, ou seja, colocando suas teorias e qualquer outra coisa que possa tapar os furos e buracos que, por ventura, aparecerem, confiando na neurose que atribuirá um saber absoluto a um outro, em uma demanda de análise, por exemplo, que saberia de antemão.

Portanto, não se livram somente da angústia da castração que aí se destaca por uma impossibilidade de verdade absoluta, como também encar¬nam a figura do outro que poderia preencher, com seu saber, o mesmo furo. Bom para os parceiros, pois “de um só fôlego (...) o furo é tapado no mesmo instante em que é transposto, e nem sequer se atenta para o fato de que, por este artifício, o próprio barulho serve de proteção para o desejo maior, o desejo de dormir” (Ibidem, p. 337). O tamponamento visa atribuir ao sem sentido das formações do inconsciente um só sentido, enquanto Lacan volta a realçar que, desta forma, trata-se de uma má apreensão do inconsciente, já que este deve ser tomado justamente pelo engano, pelo equívoco e pela tapeação. Ou seja, a interpretação deve visar um franqueamento, uma nova abertura, novas cadeias significantes, e não uma resposta.

É neste ponto que Lacan introduz o sujeito suposto saber adiantado no título onde é associado ao engano. Bem entendido: engano próprio à estrutura do inconsciente. Ou, como Lacan coloca alguns anos mais tarde em Televisão, o sujeito suposto saber “é uma manifestação sintomática do inconsciente” (LACAN, 1974, p. 541), ou seja, tomado por inerente à estrutura do inconscien¬te que sabe, o sujeito supõe no Outro um saber e até mesmo uma verdade sobre si que, mais tarde, poderá ser reconhecida como próprio saber: quando o próprio inconsciente for reconhecido como outro. Para tanto, o dispositivo analítico virá como artifício onde se dará tal subversão.

Podemos rever que Freud deixou bem claro que não é do que o sujeito sabe conscientemente que se revela um saber da verdade do sujeito. Muito pelo contrário, a verdade do sujeito só pode aparecer naquilo que do sujeito é engano. No entanto, doce suposição neurótica: este saber existe, apesar de não estar no sujeito. A crença sobre a existência de um saber, a promessa de significação, é o esteio do sujeito suposto saber que seria, afinal, uma crença no saber inconsciente.

Nesse sentido, Lacan coloca uma diferença entre o Deus dos filósofos e o Deus de Moisés, James Joyce e Mestre Eckhart, Deus que Freud soube bem marcar seu lugar. Com Mandil (2003), podemos pensar que o Deus dos filósofos é uma garantia dos saberes ao qual o homem remete suas perguntas. O outro Deus concede ao lugar do pai uma função: ordenar e delimitar o gozo sem o qual a própria linguagem seria desmantelada. Assim, em “O engano do sujeito suposto saber” encontramos duas fontes da qual a Psicanálise deve se distinguir:

(...) em um primeiro movimento, do delírio verdadeiro – preocupação presente desde Freud -, uma vez que, diante de situações que apresentam o vazio de significação, ela não tem por objetivo, como o delírio, construir uma tela protetora que encubra esse nada; em segundo, do saber “teológico”, isto é, de uma teoria que, diante do vazio e dos furos de significação, procure preen¬chê-los por meio da constituição de um sujeito su¬posto detentor da significação última, como o Deus dos filósofos de Pascal (MANDIL, 2003, p. 87-88).

Com isto finalizaremos, tentando rever as determinações e consequências do texto que seguimos, bem como os objetivos propostos pelo presente artigo. Esclarecemos, portanto, a impossibilidade de conhecimento do inconsciente como algo que é. Assim: incompreensível, inapreensível, incomensurável, indistinguível, indefinível, o inconsciente só poderia ser nomeado por um substantivo precedido pela partícula in- (o un- em alemão) e mesmo qualificado, de forma ainda assim precária, por adjetivos também precedidos pelo in-, denotando seu caráter inominável e inominado antes da descoberta de algo novo, a descoberta freudiana.

O que Freud sustenta, e que chamamos descoberta, é a existência de um saber não sabido que só poderia ser tocado pela via do engano, do erro, da tapeação e do equívoco próprios da linguagem – muito bem visíveis nos sonhos, nos atos falhos, nas tiradas espirituosas e nos sintomas que enganam o saber. Neste sentido, o inconsciente só pode aparecer pulsando, e ele se abre para as possibilidades significantes, e não para ganhar uma resposta fixa, pois há, aí, uma incompatibilidade estrutural. Assim, o inconscien¬te se revela por “uma teoria que inclua uma falta, a ser encontrada em todos os níveis, inscrevendo-se aqui como indeterminação, e a formar o nó do ininterpretável (...) (LACAN, 2003, p. 338). Isso, o inconsciente, revela a falta, o furo da própria língua por ser inapropriada para fazer uma equivalência entre a coisa e o seu conceito, entre significante e significado, furo tocado na experiência e na condução de uma análise. Talvez, depois de Lacan, os analistas tenham apreendido alguma coisa sobre isso, mas para isto, tomara que tenham se enganado.

 

 

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas de Sigmund Freud. 3. ed. Rio de Janeiro-RJ: Guanabara, 1990.         [ Links ]

___ Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Vol. VIII.         [ Links ]

LACAN, Jacques. O Seminário livro 5: As formações do inconsciente (1957) Versão: Marcus André Vieira. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. 2.ied. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1997.         [ Links ]

__. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957). In: ___. (Ed.). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 496-536.         [ Links ]

__. O engano do sujeito suposto saber (1967). In: ___. (Ed.). Outros escritos. Trad.: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 329-340.         [ Links ]

__. Televisão (1974). In: ___. (Ed.). Outros escritos. Trad.: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 508-543.         [ Links ]

MANDIL, Ram. Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce. Belo Horizonte-MG: Contracapa Livraria, 2003.         [ Links ]

 

 

Artigo recebido em: 31/8/2009
Aprovado para publicação em: 11/3/2010

 

 

1 Grifos meus.
2 Traduzido por engano, mas que evoca ainda os termos equivocação, tapeação, enganação, confusão, conforme esclarecido em nota de tradução na sua publicação em português nos “Outros Escritos”.
3 Seminário que ministrava quando fez sua exposição intitulada “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, portanto é aqui evocado a fim de esclarecer melhor o ponto mencionado.
4 Freud destaca que a tirada espirituosa poderá ter um fim em si mesma, o que ele chama de “chistes inocentes”, entretanto, existem os “chistes tendenciosos”, que são assim chamados porque efetivamente têm uma finalidade, quais sejam: os obscenos, os agressivos, os cínicos, os blasfemos, os críticos e os que atacam a própria certeza. Para esta discussão, consultar Freud (1905, p. 91-114).
5 Vale lembrar que Lacan atribui a este movimento de criação de significado pelo significante o progresso da própria língua.
6 A demanda é parte crucial da formação do aparelho psíquico e de um aparelho de fala. Com efeito, dirijo-me a um outro para falar e é dele que espero minha própria mensagem invertida. Para esta discussão, conferir, por exemplo, as páginas 87 a 105 deste Seminário.
7 Esta paróquia, este compartilhar um código, é o que mais tarde teremos definido por Lacan como discurso, como semblante que possibilita o laço social, enfim, um referente.
* Psicóloga. Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFMG. Especialista em Clínica Psicanalítica pela PUC-Minas e em Psicanálise e Saúde Mental pelo IPSM-MG. Professora da Faculdade Pitágoras no curso de Psicologia. Atua em clínica particular. Rua Vitório Marçola, 394/101, bairro Anchieta, CEP: 30310-360, Belo Horizonte-MG, telefone: (031) 9298-0388, e-mail: rriguini@gmail.com.br

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons