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Mental
versão impressa ISSN 1679-4427
Mental vol.8 no.15 Barbacena dez. 2010
ARTIGOS
"Antes do nome": articulações entre a angústia e os fenômenos psicossomáticos em Freud e Winnicott
"Before the name": articulations between anxiety and psychosomatic phenomena in Freud and Winnicott
Gustavo Vieira da SilvaI; Nadja Nara Barbosa PinheiroII
IGraduado em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)
IIDoutora em Psicologia Clínica pela PUC-RJ, Professora Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná, Coordenadora do Laboratório de Psicanálise da UFPR
RESUMO
O artigo apresenta a relação entre angústia e fenômenos psicossomáticos em Freud e Winnicott. Destaca que Freud indica uma participação sexual somática na origem da angústia, situando-a na fronteira entre o somático e o psíquico, como um afeto que funda a subjetividade. Nesse sentido, Winnicott apresenta uma interface entre as noções de angústia impensável e integração psicossomática ao destacar a necessidade de existência de um ambiente que ofereça uma sustentação ao bebê e que possibilite a emergência de um delineamento corporal e uma integração psicossomática. Essas considerações indicam a possibilidade de sofrimentos que se manifestam na fronteira entre a psique e o soma para os quais a interpretação, como instrumento clínico, torna-se inapropriada. Finaliza apresentando reflexões clínicas dos fenômenos psicossomáticos.
Palavras-chave: Angústia; fenômenos psicossomáticos; Freud; Winnicott.
ABSTRACT
The paper presents the relation between anxiety and psychosomatic phenomena in Freud's and Winnicott's work. Freud indicates a somatic sexual participation in the origin of anxiety, locating it on the border between soma and psyche, as an affect that funds the subjectivity. Winnicott presents an interface between unthinkable anxiety and psychosomatic integration by stressing the necessity of an environmental holding to make it possible the rising of a body limit and a psychosomatic integration. So, it is proposed that some sufferings are related to the border between soma and psyche for which the interpretation, as a clinical tool, becomes inadequate. At the end, some reflections on psychoanalytic clinic to psychosomatic phenomena are presented.
Keywords: Anxiety; psychosomatic phenomena; Freud; Winnicott.
1 INTRODUÇÃO
É com relativa frequência que ouvimos que a clínica contemporânea apresenta padecimentos que não foram considerados de forma aprofundada por Freud, na medida em que ele se concentrou sobre a teoria e a clínica das psiconeuroses. Por esse motivo, seria necessário recorrermos aos autores pós-freudianos para encontrarmos nestes aquilo que faltou a Freud desenvolver. Tal assertiva nos parece, simultaneamente, correta e incorreta. Pois, se é fato que Freud tenha se dedicado mais extensamente às neuroses, não o fez, entretanto, com exclusividade. Encontramos ao longo de sua obra considerações específicas que nos parecem portas entreabertas à compreensão de outras formas do sofrimento psíquico se expressar que não as psiconeuróticas, como nas neuroses atuais (FREUD, 1996 [1895a]) ou na esquizofrenia (FREUD, 1996 [1911]), por exemplo. Nesse sentido, recorrer aos autores pós-freudianos nos parece interessante e necessário, na medida em que possamos perceber as relações destes com aquilo que ficou entreaberto, mas não profundamente desenvolvido por Freud.
Assim, retomar o texto freudiano nos parece ser igualmente necessário para podermos entender as contribuições que lhe sucederam, tomando-as pela via do desdobramento e não do abandono. Logo, nossa proposta, no presente trabalho, será a de nos debruçarmos sobre um tipo de padecimento que se expressa por meio do corpo, o qual, contudo, se distingue do sofrimento histérico, uma vez que se apresenta extremamente resistente à simbolização proposta pelo processo clínico. Para concretizá-lo, tomaremos como base as contribuições de Winnicott sobre os adoecimentos psicossomáticos, porém iniciando por um retorno a Freud. Tal movimento indica que estamos compreendendo as obras desses dois autores pelo viés da descontinuidade e não da identidade ou da ruptura. Ou seja, se há algo que se apresenta como novo, singular e genuíno em Winnicott a respeito dos adoecimentos psicossomáticos, como condição de possibilidade, há algo de antigo e de compartilhado, que já estava presente na obra freudiana, como fundamento.
Em nossa hipótese de trabalho, tomamos a noção de angústia como a porta entreaberta por Freud que nos permitirá percorrer um caminho específico que se inicia na postulação freudiana sobre a "neurose de angústia" e se desdobra nas "angústias impensáveis" tal como concebidas por Winnicott. O sentido de nosso caminhar se justifica não só na busca de uma compreensão teórica sobre os adoecimentos psicossomáticos, mas também na possibilidade de arriscarmos uma perspectiva de instrumentalização clínica, na medida em que podemos entendê-los como uma defesa que se impõe a falhas ambientais precoces.
1.1 A angústia nos primeiros escritos de Freud
Em suas primeiras obras, Freud dedica-se a estabelecer uma distinção nosográfica das diferentes afecções neurológicas encontradas por ele no contexto da clínica médica. Para tanto, ele estabelece uma distinção fundamental entre duas categorias de neurose: as psiconeuroses, causadas por conflitos entre representações psíquicas; e as "neuroses atuais", que tinham a sua gênese no âmbito somático. Em relação a estas últimas, nos interessa aqui a proposição feita por Freud (1996 [1895a]) de um tipo específico de "neurose atual" denominada por ele de "neurose de angústia". Nesta, o paciente padecia de sintomas que Freud relacionou diretamente com o afeto de angústia a partir dos quais podemos perceber uma ligação intensa entre os campos psíquico e somático, na medida em que o autor destaca, nesses sintomas, o entrelaçamento de sensações afetivas e perturbações corporais. Freud informa que, na neurose de angústia, os pacientes apresentavam uma sensação de angústia não definida, uma expectativa pessimista como se algo ruim fosse acontecer em suas vidas, medos sem causa aparente como, por exemplo, de sair à rua ou de ficar doente etc. Concomitantemente, tais sensações afetivas eram acompanhadas por alterações corporais, tais como vertigem, tontura, sudorese, taquicardia, diarreia, náusea, vômito, dores corporais intensas, tremores, calafrios etc.
Pode-se perceber, portanto, que nos sintomas da "neurose de angústia" o padecimento encontrava-se, na maioria dos casos, na relação do paciente com o seu corpo. Entretanto, esses sofrimentos somáticos eram distintos dos encontrados na histeria (uma psiconeurose), já que a origem dos sintomas neste último caso encontrava-se no conflito entre representações psíquicas e, na "neurose de angústia", por mais que Freud buscasse no trabalho clínico, não conseguia relacionar o momento de eclosão dos sintomas a vivências específicas e conflitivas.
Analisando as diferentes pessoas acometidas pela "neurose de angústia", Freud (1996 [1895a]) deparou-se com a presença, em todas elas, de alguma perturbação na condução da vida sexual, expressando a presença de uma tensão sexual que não encontrava satisfação. Desta forma, ele concluiu que o estado encontrado na afecção da "neurose de angústia" era decorrente da transformação de uma excitação somática sexual acumulada em afeto de angústia. Freud afirma: "a neurose de angústia é criada por tudo aquilo que mantém a tensão sexual somática afastada da esfera psíquica" (1996 [1895b], p. 123). Em nossa opinião, tais considerações parecem indicar que Freud apresenta a angústia como um afeto na fronteira entre o somático e o psíquico, pois ele é engendrado no domínio somático, mas sua expressão também se dá no domínio psíquico.
Contudo, pôde-se perceber que uma importante questão ficou em aberto no modelo explicativo da "neurose de angústia" apresentado por Freud: como a tensão somática sexual (uma quantidade) poderia se transformar em um afeto (uma qualidade que tem expressão no psiquismo)? Acreditamos que, a fim de lidar com tal dificuldade na relação entre a psique e o soma, Freud forja o conceito de pulsão. Esse construto teórico o permitiu romper com uma lógica dualista que estabelecia uma distinção rígida entre corpo e psique, assim como romper com uma temporalidade linear na compreensão dos fenômenos psíquicos (PINHEIRO et al., 2009).
1.2 A relação entre a pulsão e o desamparo no desenvolvimento da psicanálise
Em seguida, Freud voltou-se para a investigação da relação entre a pulsão e a interação entre a psique e o soma. O autor (1996 [1915a]) apresenta a pulsão como um conceito identificado na fronteira entre os registros psíquico e somático - assim como o afeto de angústia situa-se entre esses dois registros. A partir dessa ideia, ele inicialmente elaborou uma explicação metapsicológica, por meio da qual relacionou pulsão e angústia. Segundo Freud, a pulsão constitui um estímulo advindo do âmbito somático que ganha expressão no aparelho psíquico como uma exigência constante de satisfação. De acordo com Freud (1996 [1915b]), quando uma representação psíquica da pulsão assinalasse um desprazer, por ser incompatível com o ego, seria recalcada. Nesse processo, o quantum de afeto inicialmente referente à representação ficaria livre e, assim, se transformaria no afeto de angústia.
Apresentando os casos clínicos do "Pequeno Hans" (FREUD, 1996 [1909]) e do "Homem dos Lobos" (FREUD, 1996 [1918]), o autor relaciona as fobias encontradas nos dois pacientes a uma angústia decorrente do processo de recalcamento, classificando o conjunto de seus sintomas como uma psiconeurose - a "histeria de angústia". Assim, tanto nas neuroses atuais quanto nas psiconeuroses, a angústia emergiria da transformação de uma quantidade de excitação sexual em uma qualidade psíquica.
Em um momento posterior de sua obra, no qual o conceito de pulsão de morte é forjado (FREUD, 1996 [1920]), prenunciando a elaboração da segunda tópica, o autor lança mão de novos conceitos teóricos que irão reorientar a sua compreensão acerca da angústia. Freud (1996 [1920]) se depara com o fenômeno da compulsão à repetição na vida psíquica. Dessa forma, ele conclui que, em todo processo de vida, existe um grupo de pulsões que se dedica à criação e à reunião (pulsões de vida), enquanto outro grupo de pulsões tende ao retorno do estado inorgânico, buscando a constância e a desintegração (pulsões de morte). A partir dessas considerações, Freud (1996 [1923]) apresenta um novo modelo de aparelho psíquico, representado por meio do conflito do ego com três instâncias: o mundo externo, o id (instância representando as exigências pulsionais) e o superego (instância de controle e punição do ego, resultante da identificação paterna durante a infância). Neste contexto, Freud (1996 [1933]) explica que a relação do ego com as ameaças operadas por cada uma das instâncias engendra um tipo específico de angústia: a ameaça do mundo externo sobre o ego gera a angústia realística; a ameaça do id sobre o ego gera a angústia neurótica; e a ameaça do superego sobre o ego gera a angústia moral ou culpa. Contudo, é interessante notar que Freud postula uma angústia mais primitiva, subjacente aos três tipos de angústia acima citados.
Em suas pesquisas clínicas, Freud (1996 [1926]) se depara com a presença da angústia antes do processo de recalcamento enquanto um sinal que antecedia o recalque e que o disparava. Dessa forma, ele ressalta que os estados afetivos mantêm sua origem em experiências muito primitivas e que a angústia remontaria a vivências dos primeiros momentos de vida. Portanto, Freud desloca a sua ênfase da angústia como consequência da censura e do recalque para alocá-la nos estágios mais primitivos da constituição subjetiva.
Para compreender a angústia, Freud (1996 [1926]) ressalta, então, a função do desamparo na constituição subjetiva. De acordo com o autor, antes de a criança poder sentir o perigo da perda de objeto (presente, por exemplo, na ameaça de castração), ela se depara com o perigo da possibilidade de uma não satisfação de suas necessidades vitais. Tal situação corresponderia, em termos de economia psíquica, a uma sobrecarga de excitação que não poderia ser psiquicamente elaborada, consistindo em uma situação de desamparo. Considerando a separação física da criança de sua mãe como o paradigma para compreender a situação de desamparo, Freud assevera que a angústia reemergiria em diferentes momentos da constituição subjetiva como um sinal do perigo do possível desarranjo da organização psíquica estabelecida até então.
Pode-se compreender, portanto, que a emergência da angústia desde o nascimento seria o fundamento da constituição subjetiva, por ser a partir da sua ação, em termos de impor uma exigência de organização, que os movimentos psíquicos se estabelecem. Entretanto, a partir desse exame da obra freudiana, ainda ficam algumas questões em aberto, dentre as quais destacamos duas.
Primeiramente, fica pouco claro o porquê de Freud manter a distinção entre psiconeuroses e neuroses atuais até o final de sua obra, uma vez que a distinção etiológica entre ambas - fundada em uma separação precisa entre energia sexual somática e energia sexual psíquica, relacionadas, respectivamente, à vida adulta e à infância - torna-se improcedente. Levantamos como hipótese de trabalho a ideia de que Freud teria percebido a existência de condições de sofrimento trazidas pelos seus pacientes que não diriam respeito a um conflito de caráter psiconeurótico. Nessa linha de pensamento, encontramos contribuições de alguns pesquisadores contemporâneos.
Gurfinkel (2007), por exemplo, afirma que a presença das neuroses atuais no pensamento de Freud indicaria para uma relação diferente de temporalidade na emergência do sofrimento. Nesses casos, não existiria a mediação simbólica fazendo emergir uma representação recalcada, mas haveria a consequência de um sofrimento decorrente de um impacto atual e sentido no corpo, sendo esse movimento o fundamento de uma afecção psicossomática.
Ferraz (2004), por sua vez, ressalta que Freud percebeu o fator atual de algumas neuroses, mas não conseguiu ir muito à frente, buscando a sua origem na insatisfação sexual na vida adulta. Nesse sentido, o autor assinala que algumas abordagens em psicanálise pós-freudiana dedicaram-se a compreender a etiologia das neuroses atuais, abrindo mão de uma explicação fundamentada na noção de não-satisfação da libido.
A segunda questão, estreitamente relacionada com a primeira, refere-se à falta de um maior aprofundamento na obra freudiana quanto à possibilidade de as angústias vividas nos primeiros momentos de vida da pessoa acarretarem alguma forma de sofrimento que circunscreva as fronteiras entre o psíquico e o somático. Ou seja, o exame de sofrimentos que por não se inscreverem na mediação simbólica, permaneceriam atuais ao longo da vida dos pacientes.
Encontramos no trabalho de Pinheiro e Maia (2008) algumas considerações a respeito do assunto. As autoras, tomando o conceito de angústia como operador na compreensão dos adoecimentos psicossomáticos, propõem que estes constituem defesas primitivas relacionadas ao momento do desamparo originário que pode se reatualizar a qualquer momento da existência.
Diante dessas questões suscitadas pela investigação da obra freudiana, voltamo-nos para a pesquisa dos conceitos de angústia e de psique-soma na obra de Winnicott. Essa escolha deveu-se ao fato de esse autor aprofundar-se no estudo das angústias primitivas (vividas nos primeiros momentos de vida do infante) e de relacioná-las com a constituição subjetiva e com o processo de integração entre corpo e psique.
1.3 As angústias impensáveis e a conquista de uma unidade psicossomática
Winnicott apresenta uma relação estreita entre a emergência da angústia no bebê e a tendência deste em se dirigir a uma unidade psicossomática. Para Winnicott (2000c [1949]), é importante distinguir a angústia propriamente dita e o que a criança sente nos primeiros momentos de vida. Ele afirma:
o indivíduo deve ter alcançado certo grau de maturidade e a capacidade para a repressão antes que o termo 'ansiedade' possa ser adequadamente empregado. (WINNICOTT, 2000c [1949], p. 262).
Dessa forma, o autor apresenta a ideia de "angústias impensáveis" e, posteriormente em sua obra, "agonias primitivas", a fim de descrever os sentimentos da criança diante de irritações e intrusões ambientais (impingements). Essa distinção se deve à condição inicial do bebê, que, antes de haver conquistado a capacidade de recalcar, organizar um ego e estabelecer relações objetais, sentiria as falhas em seu ambiente como uma ameaça de aniquilação completa que é sentida no corpo. Portanto, para possibilitar uma experiência de "continuidade de ser" para o bebê, faz-se necessária uma mãe-ambiente suficientemente boa, ou seja, um contexto ambiental que possibilite que as vivências de aniquilamento sejam as mais diminutas possíveis.
Winnicott (2000b [1952]) enfatiza grandemente a unidade ambiente - indivíduo no início da vida. Para ele, onde estiver um bebê estará também alguém cuidando desse bebê. Winnicott sugere que a angústia mais primitiva na formação do sujeito pode estar relacionada ao bebê sentir-se segurado de um modo inseguro. Para ele, o infante tem a necessidade de uma sustentação (holding) dada pelo colo materno e por um ambiente afetivo que lhe oferece segurança. Logo, é na relação entre a mãe-ambiente e o bebê que este escapa da ameaça de um colapso (breakdown) e pode efetivar as potencialidades inerentes ao seu amadurecimento emocional.
Para Winnicott (1990), a psique não pode ser tomada como um dado natural no recém-nascido. De acordo com ele, a localização da psique no corpo é uma conquista da pessoa, se dando também na relação entre o bebê e a mãe-ambiente. Ele afirma:
O processo de localização da psique no corpo se produz a partir de duas direções, a pessoal e a ambiental: a experiência pessoal de impulsos e sensações da pele, de erotismo muscular e instintos envolvendo excitação da pessoa total, e também tudo aquilo que se refere aos cuidados do corpo, à satisfação das exigências instintuais que possibilita a gratificação. (WINNICOTT, 1990, p. 144).
Dessa forma, o cuidado da mãe-ambiente possibilita uma elaboração imaginativa das funções corporais por parte da criança. Assim, gradualmente, o bebê passa a integrar as suas sensações corporais à psique, constituindo uma sensação de estar habitando o próprio corpo. Ao lado dessa sensação, o acúmulo de memórias e o desenvolvimento das expectativas futuras possibilitam o sentimento de eu. Logo, Winnicott indica para a importância dos cuidados maternos no sentido de oferecer um ambiente que possibilite a integração psicossomática (a conquista de um psique-soma) para que o bebê possa lidar progressivamente com as falhas ambientais que a mãe suficientemente boa vai, aos poucos, inserindo.
Ao lado da discussão acerca da integração psicossomática, Winnicott (2000a [1949]) levanta a questão do papel ocupado pela mente no amadurecimento emocional. O autor rejeita a ideia da mente como uma entidade realmente localizada em algum lugar no corpo e a considera como uma função especial do psique-soma decorrente das falhas da mãe-ambiente em suprir a dependência do bebê. Na saúde, a mente é o funcionamento intelectual que torna possível a compreensão das falhas da mãe-ambiente. Contudo, nos casos em que as falhas são demasiadas, a mente se oferece falsamente como um lugar onde a psique poderia residir e, consequentemente, ocorre uma primazia do funcionamento intelectual ("intelectualização"). Nesses casos, haveria uma cisão mente-corpo, a pessoa teria uma sensação de não habitar o seu próprio corpo, faltando-lhe um sentimento de eu (self).
A partir destas considerações, voltemo-nos ao papel da defesa psicossomática e dos transtornos psicossomáticos na teoria winnicottiana.
1.4 A defesa psicossomática
De acordo com Winnicott (1994a [1964]), a defesa psicossomática é o nome para a tendência herdada por cada pessoa de se desenvolver em direção a uma unidade entre a psique e o soma. Dessa forma, o autor considera que os transtornos psicossomáticos consistiriam no modo do corpo se mostrar presente na vida do paciente de modo a impedir que a integração psique-soma se desfaça em completude.
Winnicott (2000a [1949]) ressalta o problema de um amadurecimento emocional, no qual se estabeleceria uma "psique-mente" no lugar de um "psique-soma". Quanto a esses casos, o autor afirma: "um dos objetivos da doença psicossomática é o de retomar a psique da mente, e levá-la de volta à sua associação íntima original com o soma" (WINNICOTT, 2000a [1949], p. 345). Logo, para Winnicott, o transtorno psicossomático também teria um valor positivo em combater a "sedução" da psique pela mente.
Pode-se perceber, então, que a abordagem winnicottiana dos fenômenos psicossomáticos enfatiza antes um exame da integração psicossomática que uma classificação dos quadros clínicos que deveriam ser tomados como psicossomáticos. Para Winnicott (2000a [1949]), não é o estado clínico em termos de uma patologia somática (por exemplo, colite, asma, eczema crônico, alergias) que deve ser tomado como o transtorno psicossomático, mas sim a persistência da cisão entre a psique e o soma no amadurecimento de uma pessoa.
1.5 Fenômenos psicossomáticos: falha ou excesso no funcionamento mental?
A abordagem de Winnicott traz uma contribuição original à psicossomática psicanalítica. A relação que é estabelecida entre as angústias primitivas e a cisão entre psique e soma enquanto um mecanismo de defesa oferece um recurso para compreender as afecções psicossomáticas no contexto do amadurecimento afetivo da pessoa.
Winnicott apresenta diferenças importantes em relação às abordagens de Pierre Marty (1993; 1998) e Joyce McDougall (1983; 1989; 1991), perspectivas que gozam de amplo reconhecimento na literatura psicanalítica contemporânea. Conforme Peres (2006), pode-se afirmar de forma concisa que tanto Marty como McDougall postulam que a somatização refere-se a um processo insuficiente de elaboração psíquica, devido a uma restrição na capacidade de mentalização e do uso de recursos da linguagem. Essa incapacidade se deveria à falha da mãe em não ter se oferecido como um para-excitações para proteger o bebê do desamparo implicado na excitação pulsional.
Em Winnicott, por sua vez, as afecções psicossomáticas não estão relacionadas a uma falha nos processos representativos da mente, mas, ao contrário, ao excesso de funcionamento mental ("intelectualização"). Isso se daria nos casos em que o processo de subjetivação incorreu em uma cisão entre psique e soma no lugar da elaboração imaginativa das funções corporais que permite a conquista da unidade psicossomática pelo infante. A partir dessa exposição teórica, voltamo-nos, então, para algumas considerações clínicas a partir de Freud e Winnicott.
1.6 A clínica psicanalítica e as afecções psicossomáticas
Ao se deparar com as neuroses atuais e, em especial, com a neurose de angústia, Freud percebeu as limitações do seu método clínico inicial, desenvolvido em torno das psiconeuroses, para atenuar o sofrimento encontrado em tais pacientes. Já no texto "A Psicoterapia da histeria", Freud (1996 [1895c]) apresenta o seu método fundado na livre associação de ideias em direção às representações que constituíam o núcleo patogênico da psiconeurose. Contudo, por não possuir uma gênese psíquica, "a neurose de angústia" não encontraria benefícios diretos nesse método clínico.
Contudo, mesmo sustentando essa limitação da técnica em termos teóricos, Freud verificou uma melhora indireta no tratamento clínico dos pacientes acometidos pela "neurose de angústia". Para Freud, tal melhora era devida ao reestabelecimento de uma vida sexual ativa como uma consequência dos atendimentos. Percebemos aqui a possibilidade de essa proposição de Freud ser compreendida de maneira mais ampla, a partir do pensamento de Winnicott. Para ele, a clínica com pacientes que apresentam um transtorno psicossomático relaciona-se ao acolhimento de um sofrimento não compreensível em termos simbólicos.
O manejo encontrado nos exemplos de transtornos psicossomáticos relatados por Winnicott (1994b [1969], 1994c [1970], 2000a [1949]) tem em comum a abertura em se receber, na clínica, a pessoa total de seu paciente, isto é, receber suas expressões passíveis e não passíveis de simbolização e de integração. Essa postura seria fundamental, justamente porque o sofrimento desses pacientes encontra-se na fronteira entre o somático e o psíquico e não poderia ser apreendido pelas metodologias tradicionais de saúde. Winnicott (1994b [1969]) assinala que a divisão nas disciplinas de saúde (médica, psicanalítica, psicoterapêutica, religiosa e terapias complementares) facilita para as pessoas com transtornos psicossomáticos utilizá-la, justamente para que a cisão entre psique e corpo se mantenha.
Portanto, Winnicott (2000a [1949]) destaca a importância do analista em acolher o não-saber sobre a condição do paciente e permitir, com esse posicionamento, a presença do corpo do paciente no setting analítico. Em sua perspectiva, um manejo baseado em interpretações poderia ser usado para uma intelectualização ainda maior por parte do paciente quanto ao seu sofrimento, aprofundando, assim, a cisão entre a psique e o soma1. Além disso, Winnicott (1994c [1970]) demonstra a importância de o analista não tomar o adoecimento psicossomático como sendo uma deformidade ou patologia - o que repetiria a lógica do atendimento segmentado nas instituições de saúde -, mas adotar a postura de acolher o paciente, concebendo-o como alguém que, em termos potenciais, estaria inclinado à integração psicossomática.
Alguns autores contemporâneos apresentam contribuições ao manejo clínico diante do transtorno psicossomático a partir da psicanálise winnicottiana.
Abram (2000) destaca que um paciente que apresenta uma dissociação psicossomática está preparado para compreender - em um nível intelectual - algo a respeito de sua condição, pois foi a partir da intelectualização que este viveu até então. Para essa autora, a postura fundamental do analista seria a de "dar tempo" para o paciente, ou seja, permitir um ambiente que sustente, através do tempo, as condições para que o paciente se recupere da dissociação.
Segundo Tschirner (2002), o analista pode funcionar como um espelho para o paciente, integrando no decorrer do processo analítico os conteúdos que este traz, tendo cuidado para auxiliar o paciente a conseguir nomear os seus estados afetivos aos poucos. Dessa forma, o setting analítico possibilitaria a organização de um eu (self) baseado em experiências afetivas e próprias.
Conforme Pedrozo (1995), um manejo adequado por parte do analista pode ajudar a criar a sintonia que faltou entre a mãe-ambiente e o bebê. De acordo com a autora, assim, "o tato psicanalítico substitui o sorriso e o toque da mãe" (p. 94).
Pinheiro (2008), por sua vez, aponta para a possibilidade de adoecimentos psicossomáticos que lançam mão de uma identificação, via corpo, do paciente com um parente, sem a presença de uma mediação simbólica; diante de tal sofrimento, o analista pode atuar como uma mãe-ambiente, que auxilia o paciente a integrar-se com os seus próprios sentimentos e desejos.
Dessa forma, consideramos que, diante do transtorno psicossomático, o psicanalista deve se concentrar na possibilidade de oferecer um acolhimento ao sofrimento do paciente de uma forma não invasiva, o que, às vezes, é produzido por meio do uso de interpretações que visem alcançar a dinâmica inconsciente. Logo, ao entendermos esse tipo de transtorno como se situando em um espaço fronteiriço entre a psique e o soma, faz-se mister não reduzirmos tal padecimento a nenhum dos dois registros. O objetivo visado com essa postura é que se torne possível oferecermos uma escuta integradora e não fragmentária. Assim nos posicionando, talvez seja possível perceber que no transtorno psicossomático há, além do padecimento físico, um pedido de ajuda em direção à integração psicossomática, a qual, com a participação do psicanalista, seria facilitada.
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise realizada, pôde-se verificar nas obras de Freud e Winnicott a concepção da angústia como um afeto presente nos momentos mais primitivos da vida humana, a partir do qual todos os movimentos psíquicos - incluindo os mecanismos simbólicos da linguagem - advêm como uma resposta. Logo, ao nos voltarmos para a angústia, podemos iniciar um percurso na busca de compreender a emergência de sofrimentos que não estão mediados simbolicamente e que, portanto, podem aparecer na forma de adoecimentos corporais. Dessa forma, abre-se um campo de investigação para os fenômenos clínicos que se referem a um momento de subjetivação primordial, momento que, nos parece, Adélia Prado alude, belamente, por meio do poema "Antes do nome":
Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o 'de', o 'aliás',
o 'o', o 'porém' e o 'que', esta incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
Se poderá apanhá-la: um peixe vivo com mão.
Puro susto e terror (PRADO, 1991, p. 22).
REFERÊNCIAS
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E-mail: gustavovs.psicologia@gmail.com
Artigo recebido em: 16/09/2009
Aprovado para publicação em: 18/01/2011
1 Ressaltamos aqui que a questão dos limites da interpretação na técnica analítica em Freud e Winnicott é um tema muito mais abrangente, extrapolando os objetivos deste artigo.