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Mental
versão impressa ISSN 1679-4427
Mental vol.10 no.19 Barbacena dez. 2012
O cuidado em saúde mental em zonas rurais
The mental health care in rural areas
Victor Hugo Farias da SilvaI; Magda DimensteinII; Jáder Ferreira LeiteIII
IPsicólogo e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
IIDoutora em Saúde Mental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Professora Titular do Departamento de Psicologia da UFRN
IIIDoutor em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da UFRN
RESUMO
Por meio deste estudo, objetivou-se conhecer os modos de atenção em saúde mental operados por familiares de portadores de transtornos mentais severos residentes na zona rural do alto sertão paraibano. A pesquisa foi desenvolvida com onze familiares moradores de comunidades rurais. Metodologicamente, realizamos visitas em domicílio e entrevistas semiestruturadas. Os resultados indicaram o uso de recursos religiosos, laborais, medicamentosos e comunitários no cuidado aos Portadores de Transtornos Mentais Severos (PTMS). A falta de suporte financeiro, de transporte e de internação afastam os familiares da rede de atenção psicossocial, especialmente do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) local. Essa pesquisa destacou a importância do cuidador familiar e as dificuldades impostas na organização da rede de atenção psicossocial quanto à acessibilidade e à resolutividade em zonas rurais.
Palavras-chave: Saúde mental; atenção psicossocial; família; população rural.
ABSTRACT
This study aimed to identify ways of mental health care operated by relatives of severe mental disorder patients/SMDP living in rural zone located at the backwoods of Paraiba. The research was developed with eleven families in rural communities. Methodologically, we conduct home visits and semistructured interviews. Results indicated the use of religious, occupational, pharmacological and community resources, along to carriers to SMDP. The lack of financial, transportation and hospitalization resources put away relatives from psychosocial support network, especially the local CAPS. This research has highlighted the importance of caregivers and the difficulties imposed on the organization of the network of psychosocial support as accessibility and as resoluteness in rural areas.
Keywords: Mental health; psychosocial support; family; population rural.
1 CONTEXTOS RURAIS E SAÚDE MENTAL
As características dos espaços rurais hoje vão além de uma mera associação com a ideia de atraso, isolamento e oposição aos espaços urbanos. Nosso imaginário é povoado de tais representações, o que escamoteia a diversidade sociocultural de que são dotadas as zonas rurais de nosso país. De acordo com Teixeira e Lages (2010),
o espaço rural não é mais o que ele era. Existem espaços rurais diversificados, dinâmicos e em permanente mutação. As paisagens e as populações rurais se transformam profundamente. (TEIXEIRA; LAGES, 2010, p. 454).
Para autores como Abramovay (2000), a zona urbana e o campo são territórios identificados por suas continuidades socioculturais, entendimento reforçado por Rosa e Ferreira (2010) quando indicam que "esse 'continuum' rural-urbano significa que não existem diferenças fundamentais nos modos de vida, na organização social e na cultura, determinados por sua vinculação social" (ROSA; FERREIRA, 2010, p. 195). Contudo, historicamente, a zona rural é um espaço que ainda apresenta taxas lastimáveis de pobreza, de baixos níveis de escolaridade e de atenção do poder público, no que tange ao desenvolvimento social. Além disso, a zona rural, tradicionalmente, é um lugar com pouca atuação governamental relativa à promoção da saúde e assistência social. Assim, Pignatti e Castro (2010) sinalizam que as desigualdades sociais configuram as paisagens das zonas rurais. Destacam que determinantes de saúde, tais como as necessidades básicas de nutrição, infraestrutura, dentre outros, anunciam que a zona rural carece - muito mais do que a cidade - de atenção e cuidado por parte dos gestores municipais, estaduais e federais.
Embora tenhamos um sistema de saúde universal e público, um dos grandes desafios é fazer com que suas ações se efetivem em todo o território nacional, em espaços de difícil acesso, onde as condições de infraestrutura (estradas, transporte, postos de saúde) impedem uma oferta qualificada dos serviços. Os habitantes das zonas rurais têm sofrido com a ausência das políticas de saúde em seu cotidiano, especialmente se considerarmos a atenção primária e saúde mental.
Com a Reforma Psiquiátrica e a Estratégia de Atenção Psicossocial em curso há mais de 20 anos, tem havido um esforço considerável para substituir o modelo manicomial de cuidados para uma perspectiva territorial e comunitária. Nesse sentido, um novo lugar para os familiares de Portadores de Transtornos Mentais Severos (PTMS) é construído na tentativa de reconstrução dos laços sociais e de inserção desses usuários nos espaços de circulação cotidiana (DIMENSTEIN; SALES; GALVÃO; SEVERO, 2010). As famílias, no contexto da Reforma Psiquiátrica, são parceiras e essenciais no cuidado de seus membros (PINHO; HERNÁNDEZ; KANTORSKI, 2010; DIAS, 2010). Contudo, observamos que "as famílias ainda não se veem como parte importante da assistência ao portador de transtorno mental, e os serviços de saúde, por sua vez, tem dificuldades em levá-la a se ver como tal" (PIMENTA; ROMAGNOLI, 2008, p. 75).
É inegável o crescimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), especificamente de CAPS em todo o país. Contudo, a realidade da atenção em saúde mental no campo ainda se configura como um problema, principalmente para os moradores de comunidades rurais. O acesso aos serviços é extremamente difícil, bem como a dinâmica organizacional dos mesmos não facilita a participação desses moradores na rede de atenção psicossocial.
Com vistas a modificar tal realidade, instituiu-se pela Portaria nº 2.866, de 2 de Dezembro de 2011, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta (PNSIPCF) que objetiva
contribuir para a melhoria da qualidade de vida das populações do campo e da floresta, incluindo articulações intersetoriais para promover a saúde, envolvendo ações de saneamento e meio ambiente, especialmente para a redução de riscos sobre a saúde humana. (PNSIPCF, 2011, p. 5).
Dentre as suas principais diretrizes, destacamos:
Valorização de práticas e conhecimentos tradicionais, com a promoção do reconhecimento da dimensão subjetiva, coletiva e social dessas práticas e a produção e reprodução de saberes das populações tradicionais. (PNSIPCF, 2011, p. 6).
Essa e outras diretrizes tornaram-se desafios não somente para a Reforma Psiquiátrica e para a atenção psicossocial, como, também, para a saúde pública de forma geral; pois, no contexto da zona rural "os estudos atuais e disponíveis não dão conta de descrever concretamente como as famílias cuidam e que critérios usam para o cuidado em saúde de seus membros" (GUTIERREZ; MINAYO, 2010, p. 1499). Além disso, as famílias que residem na zona rural "não tem recebido a devida atenção pelas políticas públicas de saúde mental" (RIBEIRO; MARTINS; OLIVEIRA, 2009, p. 134); principalmente aquelas que cuidam dos PTMS. A definição desses quadros está relacionada, segundo Ribeiro (2003), à duração dos problemas, ao grau de sofrimento emocional, ao nível de incapacidade que interfere nas relações interpessoais e nas competências sociais. De acordo com com Ribeiro (2003):
A clientela em questão tem um conjunto de necessidades muito complexas que não se resumem ao controle da sintomatologia psiquiátrica ativa. Estas necessidades envolvem a sua integração na sociedade e o desempenho de papéis sociais de forma adequada. Necessitam de suporte para enfrentar as exigências da vida cotidiana e melhorar sua qualidade de vida (p. 4).
Desse modo, com o presente trabalho, tiveram-se como objetivos conhecer os modos de atenção em saúde mental operados por familiares de PTMS residentes na zona rural do alto sertão paraibano que não fazem uso da rede de atenção psicossocial e investigar os fatores relacionados a não utilização de serviços substitutos.
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Esta foi uma pesquisa de cunho qualitativo realizada com famílias residentes à nas s zonas rurais das cidades de Cajazeiras, Bom Jesus e Joca Claudino, alto sertão do Estado da Paraíba, cidades essas que compreendem parte da 9ª Regional de Saúde. As cidades de Bom Jesus e Joca Claudino estão localizadas a 17,8 e 74 km da cidade polo, Cajazeiras.
O município de Cajazeiras apresenta uma população de 58.446 habitantes, segundo dados do último censo do IBGE (2010), sendo que 81,27% vivem na zona urbana e 18,73% na zona rural. O Esse município constitui-se economicamente em função da agropecuária, indústrias e serviços, sendo este último a maior alavanca de riquezas da cidade. Cajazeiras destaca-se como um dos municípios de importante influência econômica, social e cultural da Paraíba. Bom Jesus, cidade com uma população de 2.400 habitantes (IBGE, 2010), apresenta uma economia também voltadas aos setores agropecuários, indústrias e serviços, tendo o município de Cajazeiras como uma referência econômica e cultural. Já a cidade de Joca Claudino tem registrada uma população de 2.615 habitantes (IBGE, 2010) e, assim como Bom Jesus, tem em Cajazeiras como um polo de influência econômica e cultural.
No momento da investigação, a referida região era composta por uma rede de atenção psicossocial (RAPS) constituída por um CAPS II, um CAPSad (Álcool e Drogas) e um CAPSi (Infantil), além de um Hospital Regional, um Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e duas equipes de Serviço Ambulatorial Móvel de Urgência (SAMU).
O presente estudo foi realizado em duas etapas: a primeira compreendeu pesquisa documental realizada em um CAPS II e teve como objetivo mapear prontuários de usuários: 1) que residiam na zona rural e possuíam histórico de, ao menos, uma internação no Hospital Psiquiátrico "Clínica Santa Helena", localizado no município de Cajazeiras; 2) que tinham deixado de fazer uso do serviço de referência de saúde mental (CAPS) há, pelo menos, um ano; e 3) ter hipótese diagnóstica de Transtorno Psicótico (compreendidos nos códigos F20-F22, F24, F25, F28-F31, F32.3 e F33.3). Usou-se o Microsoft Excel e o Pacote Estatístico (SPSS - versão 18) para organização e sistematização desses dados.
Após esse levantamento, 11 usuários e seus respectivos familiares residentes em três cidades circunscritas nos limites territoriais (curta, média e longa distância) do CAPS II de referência, foram delimitados como participantes para a segunda fase que consistiu na realização de visitas domiciliares, uso de diário de campo e entrevistas semiestruturadas com os cuidadores. As entrevistas foram gravadas e transcritas, considerando-se os aspectos éticos descritos no TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) para fins de sigilo e confidencialidade dos participantes da pesquisa. As narrativas foram analisadas de acordo com a perspectiva da Psicologia Social Crítica, bem como das discussões empreendidas pelos teóricos da Saúde Coletiva e Antropologia da Saúde.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.1 Sobre as famílias: um panorama
Dos 11 cuidadores participantes da investigação, seis eram mulheres e cinco homens. A faixa etária variou de 47 a 84 anos, mas há uma prevalência de familiares idosos participando ativamente da atenção aos PTMS. Quanto ao nível de escolaridade, predomina o ensino fundamental incompleto ou sem estudos. A maioria sobrevive com renda familiar de um salário mínimo. Em relação à situação laboral, todos(as) os onze são agricultores(as), porém, as mulheres acumulam funções, já que além de agricultoras, cuidam diretamente dos PTMS e dos afazeres domésticos.
Quanto à composição, as famílias não são numerosas, variando de dois a quatro membros. Em relação ao número de pessoas com transtornos mentais, identificamos que, em geral, há mais de uma pessoa sendo cuidada por família, com histórico há mais de 10 anos.
3.2 Recursos utilizados pelos familiares no cuidado em saúde mental de Portadores de Transtornos Mentais Severos
· Religião
A religião liga as pessoas ao plano do sagrado e de uma divindade que opera cuidados e cura. Tal expressão de fé e devoção é encontrada nas novenas, nos santos milagreiros, nas rodas de reza e nos ritos religiosos. Nessa direção, observamos que alguns cuidadores operam o cuidado em saúde mental à luz de suas tradições religiosas.
Dantas (2008) ressalta que a experiência religiosa é extremamente potente para explicar a comunhão entre as pessoas e a natureza ou com a própria divindade. Para a autora, a experiência religiosa é uma atividade subjetiva que interfere na vida social por motivar comportamentos e atitudes para o sagrado. A religiosidade é matéria-prima para algumas instituições, como as igrejas, e, por isso, são importantes socialmente, pois, "modelam" a ordem social das famílias na zona rural.
Entre os participantes o que se observa é que a religiosidade opera em duas frentes: a espiritual e a psicossocial. A primeira, caracteriza-se pela forma divina e sobrenatural com que os familiares percebem, cuidam e tratam seus membros; e a segunda, nas possíveis articulações sociais, feitas por eles e os PTMS com intuito de participarem das missas nas igrejas, nas procissões ou nas romarias.
Todo ano a gente freta um carro ou uma van pra levar a família [...] assistir a missa lá e ver meu Padre Cícero e Nossa Senhora na romaria [...] (familiar).
Segundo Dias (2010), a espiritualidade é uma força usada pela família na resolução de problemas relacionados aos transtornos mentais de seus membros. A autora comenta que a religiosidade ajuda na promoção da saúde mental, além de potencializar as competências e valores. Vecchia e Martins (2006) indicam que
os recursos informais (igrejas, agremiações religiosas, seitas) estabelecem uma relação de complementariedade a partir da insuficiência do serviço público em saúde mental de resolver as necessidades de saúde dos usuários de forma integral. (VECCHIA; MARTINS, 2006, p. 166).
Diante disso, outra estratégia utilizada por familiares como mediadora de cuidados centra-se na figura do rezador.
Eu levei e levo se for preciso ela pra todo canto! tudo que é canto! rezador, tudo! tudo! [...] O que era de rezador que o povo dizia eu levava e levo... ele passou o remédio, fica bom !![...] (familiar).
Para Mota (2007), os rezadores são detentores de conhecimentos religiosos e terapêuticos diversos, considerados como "tratadores de doenças", especialistas em cuidar de situações mais simples, como "mau-olhado" ou um "mal-estar", são agentes autorizados a dar uma resposta rápida às dores ou às demandas de saúde das pessoas. Já Junges et al. (2011) comentam que
ao optar por um curandeiro popular, as pessoas estariam optando por uma explicação mais inteligível do que é saúde, qual a causa da doença e qual o tratamento necessário e condizente a sua compreensão de tratamento. (JUNGES et al., 2011, p. 4392).
O aconselhamento, as rezas e a prescrição de remédios são algumas das estratégias de ação dos familiares que os procuram.
Entendemos que o acesso a essa e outras estratégias religiosas promovem enriquecimento às "dimensões da saúde integral" (ALAMEDA FILHO, 2011, p. 10) de familiares e dos PTMS, pois, recorrer aos santos, às rezas, aos rezadores, às missas, às romarias e às procissões, pois, de acordo com Laplantine (2011), em análise sobre a medicina popular e o contexto religioso que as envolvem, tais vivências
nos permite [...] captar de modo notável a relação estreita entre o doente e seu grupo, entre a doença e o sagrado, entre a medicina e a religião, entre a saúde e a salvação. (LAPLANTINE, 2011, p. 225).
Esses aspectos precisam ser incorporados nas práticas de cuidado operadas pela RAPS, pois segundo a Política Nacional de Saúde Integral das populações do campo e da floresta (2011), devemos
incluir no processo de educação permanente dos trabalhadores de saúde as temáticas e os conteúdos relacionados aos saberes, às práticas, às necessidades, às demandas específicas dessas populações, considerando-se a situação intercultural na atenção aos povos e comunidades tradicionais. (PNSIPCF, 2011, p. 23).
"Com isso, pode-se evitar uma descontextualização cultural da doença e uma ocultação da ligação do doente com a sua sociedade" (LAPLANTINE, 2011, p. 225).
· Trabalho
O trabalho no terreiro, na terra ou com os animais é uma das principais características de quem vive na zona rural. Trata-se de um excelente instrumento para transformação da terra em que vivem. De acordo com a Comissão Nacional Sobre Determinantes Sociais da Saúde (2008)
as condições de vida e trabalho e seus efeitos psicossociais constituem um dos principais mediadores através dos quais a estratificação socioeconômica influencia a situação de saúde dos indivíduos ou grupos. (CNDSS, 2008, p. 58).
Alguns familiares sinalizaram contar com a ajuda dos PTMS no cotidiano de trabalho na roça ou dentro de casa:
Rapaz, eu trabalho na roça, "né"? nós luta com um gadinho que tem aí e trabalho na roça, na agricultura!!! Ele limpa mato, broca. E limpa, planta; sabe assim? [...] nós trabalha em cerca também, "né"? (familiar)
Arar a terra, brocar, plantar ou criar animais são atividades que ligam os PTMS à terra e ao seu contexto sociocultural. Limpar o "terreiro", colher frutos, lavar a casa, debulhar feijão e abastecer a casa com água são atividades laborais típicas da vida no campo. Além disso, "é do trabalho realizado sobre a terra que os rendimentos são extraídos, seja em forma de produtos de subsistência, seja em forma de produtos para a comercialização" (BAGLI, 2010, p. 88).
Entendemos que o trabalho é um determinante social de saúde. As atividades laborais exercidas pelos PTMS reforçam suas sociabilidades, enriquecendo repertórios de aprendizagens, de relações, de convívio com outros familiares ou com vizinhos. Seja na construção de uma cerca, de um poço artesiano, de cisternas, de cercas ou quaisquer atividades relacionadas à transformação da terra, os PTMS ampliam seus repertórios laborais e ajudam no sustento e na manutenção do equilíbrio financeiro da família. Ou seja, o trabalho exercido pelos PTMS no contexto da zona rural contribui para o processo de ressocialização deles, ao aferir participação ativa e sentimento de pertença ao coletivo ou grupo familiar. O trabalho retira-os do sedentarismo, da monotonia e ajuda-os, principalmente, enfrentar os efeitos colaterais das medicações tomadas,aspecto bastante relatado pelas famílias.
· Medicação
Os participantes sinalizaram o uso de psicotrópicos de longa duração. Foram relatadas muitas dificuldades na aquisição dos medicamentos por meio do serviço público de saúde, o que implica sobrecarga no orçamento familiar. Tal informação encontra ressonância nas discussões feitas por Rosa (2011), ao constatar que
no provimento de cuidado ao PTM, o que em primeiro lugar pesa no orçamento doméstico são as despesas relacionadas a seu tratamento [medicação, transporte e roupas], vindo a seguir aquelas relacionadas à sua manutenção física e biológica. (ROSA, 2011, p. 310).
Sabemos que os familiares não fazem uso da RAPS, pois deixaram de frequentar o CAPS II de referência. Não é difícil perceber que a maioria das prescrições ou receitas médicas é feita no único serviço de saúde privado com internação psiquiátrica da região. Tal serviço não oferta outras formas de cuidado senão o uso irrestrito da medicação. Pelo menos, é dessa maneira que uma entrevistada relata as orientações recebidas na consulta médica: "continue com o mesmo remédio até o fim da vida dele, enquanto vida ele tiver" (familiar).
Sem suporte adequado e integral dos serviços substitutivos, as famílias consideram que só o remédio tem "poderes" suficientes para tratar e cuidar de seus membros. Porém, o uso da estratégia da medicação, como único recurso de cuidado e tratamento não possui força suficiente para ajudar no processo de reinserção social, desinstitucionalização ou ressocialização de PTMS, pois, entendemos que no contexto da atenção psicossocial "a medicação passa a ser encarada como mais um recurso - e não como o único e principal artefato ao redor dos qual todos os demais orbitam" (DIMENSTEIN et al., 2010, p. 1213); ou seja, Isso não é suficiente para garantir, além das melhoras clínicas, a inserção social, a autonomia, o estabelecimento dos laços sociais, humanos, econômicos e civis dos PTMS.
· Suporte dos parentes, vizinhos e da comunidade
Um dos recursos mais utilizados pelos participantes no cuidado em saúde mental dos PTMS é a ajuda de alguns familiares, parentes, vizinhos e outros personagens da comunidade. Não existe produção de saúde sem que esses planos (sujeito-sociedade) estejam conectados. Ao articular-se com vizinhos, amigos, comunidade, parentes próximos ou distantes, os familiares enriquecem suas conexões sociais e operam de forma mais potente em termos de cuidado aos PTMS. Corriqueiramente, os participantes acionam outros personagens do próprio grupo familiar ou da vizinhança para ajudar no cuidado aos PTMS: "Ah! os vizinhos, os vizinhos chega tudo, e os dois filhos nosso casado quando é pra ajudar" (familiar). "Os vizinhos sempre ajudam nós e ele, são muito bons!!!" (familiar)
As redes sociais construídas pelas famílias com parentes, vizinhos ou outros representantes da comunidade são extremamente importantes: "A textura dessas redes podem enriquecer a convivência e dinamizar as trocas sociais do PTM" (ROSA, 2011, p. 330). Em famílias cujos membros necessitam de atenção e cuidados mais intensos à solidariedade é prática que caracteriza tais redes. Segundo Rosa (2011), algumas formatações familiares, imersas em um contexto de obrigações, direitos e deveres, podem ser denominadas de "rede de parentesco". De acordo com a autora, tal formatação é a mais colaborativa no que diz respeito ao cuidado, constituindo-se com base em divisões de trabalho ou em funções específicas dentro do grupo. A autora ainda destaca que os parentes consanguíneos são os que mais colaboram para efetivação do cuidado, mas que nem todos contribuem proporcionalmente. As mulheres oferecem um cuidado mais próximo, afetivo, carinhoso. Os homens (pais, tios, irmãos) geralmente complementam a ajuda feminina no fomento do alimento ou na compra de outros mantimentos para a casa, mesmo que a mulher seja a responsável por receber a aposentadoria ou a pensão.
Os pactos acontecidos entre familiares, vizinhos e outros parentes de primeiro ou segundo graus potencializam e rejuvenescem o modelo de atenção psicossocial porque trazem, em sua grande maioria, trocas que valorizam os laços sociais, as conexões entre diferentes personagens dentro do corpo comunitário, favorecendo o fortalecimento do poder de contratualidade entre os PTMS e a sociedade "de modo que [eles] possam construir laços, participar da vida cotidiana e circular nos mais diversos espaços sociais" (DIMENSTEIN et al., 2010, p. 1213).
3. A rede de atenção psicossocial em foco: a não utilização de serviços substitutivos pelos Portadores de Transtornos Mentais Severos residentes nas zonas rurais
· Falta de internação na rede de atenção psicossocial
A rede de atenção psicossocial da região que compreende a cidade de Cajazeiras (PB) está fragmentada e a implementação de outros dispositivos, como o CAPS III, a Residência Terapêutica, o Programa de Volta para Casa, Consultório de Rua, Centros de Convivência e Cultura direcionados aos PTMS, não parece estar nos planos da secretaria estadual e municipal. Quando perguntados sobre a razão de não frequentarem o CAPS ou os serviços da RAPS, um familiar indica:
Porque só fica bom lá (referindo-se ao hospital psiquiátrico); às vezes, passa 15 dias, 20 dias, um mês, mais de mês, aí, ele vai recebe a alta, e eu vou buscar [...]. Eu levo pra lá porque outro canto ela não melhora. (familiar, grifo nosso)
A fala anuncia a urgência da implantação do CAPS III no território que compreende o consórcio de saúde ou outro dispositivo de média complexidade, em saúde mental que atenda às especificidades locais dos familiares que residem na zona rural. A atenção psicossocial opera cuidados a passos lentos. Preocupados com a qualidade e com a eficácia dos cuidados prestados no território, muitos familiares, pressionados pela ausência de apoio dos serviços substitutivos, recorrem aos internamentos oferecidos pelo hospital como um dos poucos recursos de suporte à crise de seus membros, contribuindo para reprodução do modelo asilar na região.
· Falta de dinheiro e de transporte
Tendo-se lugar central na Reforma Psiquiátrica, a presença dos familiares nos CAPS é fundamental. Para que isso aconteça, as famílias que residem na zona rural precisam dispor de transporte. Alguns familiares sinalizam que não frequentam o serviço porque:
No CAPS tem aquela situação que dá mais certo pra quem mora na cidade, porque vai passa o dia, quando é pra vim, volta pra casa, quem mora na zona rural não tem condição, né? É gasto! (familiar)
O CAPS tem características de um serviço eminentemente urbano. O familiar não se considera fazendo parte do CAPS mesmo, pois além de servir melhor às pessoas da cidade, para usá-lo, requer "investimentos" diários. As comunidades rurais, historicamente, sofrem com a falta de recursos que lhes permitam circular nos espaços da cidade onde estão grande parte dos equipamentos de saúde, de assistência e educação, voltados à população em geral.
Observamos que todos os familiares não possuem dinheiro suficiente ou transporte (à disposição) para fazer uso frequente dos serviços substitutivos. Alguns alegam que o dinheiro e/ou o transporte são fatores decisivos para que seus membros frequentem os CAPS: "Tá pagando transporte não tem condição! Pra ir todo o dia no CAPS, não pode!!". Evidentemente, não há como garantir o acesso aos serviços sem esses recursos. Sem a contrapartida dos municípios ou dos próprios serviços, a situação se agrava e o acesso integral e universal dos familiares aos serviços não acontece. Nessa situação, "a família fica restrita a um papel periférico de informante e visitadora, restando-lhes apenas aguardar os produtos da ação médica" (ROSA, 2011, p. 343).
4 Considerações Finais
Conhecer práticas de cuidado em saúde mental por familiares residentes das zonas rurais ajudou-nos a problematizar o "poder de alcance" dos serviços substitutivos, além do alinhamento desses dispositivos às diretrizes de integralidade e intersetorialidade do SUS. Verificamos dificuldades nesse sentido, especialmente quando se trata da atenção psicossocial.
Quanto aos recursos utilizados, constatou-se que algumas das práticas de cuidado estão ancoradas no modelo asilar, pois reproduzem modos de atenção à saúde mental que privam, prendem, isolam ou destituem os PTMS de sua liberdade/autonomia. Verificamos também estratégias que favorecem a convivência coletiva, enriquecida pelos aparatos culturais e sabedoria popular. Assim, é de extrema importância que os serviços de saúde conheçam os cuidados praticados por famílias das zonas rurais, a fim de construírem estratégias mais eficientes de suporte ou apoio às demandas desses usuários. Em relação aos fatores de não utilização dos serviços substitutivos pelos PTMS, verificou-se que boa parte dos familiares não usam tais dispositivos por motivos relacionados a não oferta de internação nos CAPS. Além disso, constatou-se que a falta de dinheiro e, consequentemente, de transporte, impossibilitam os familiares de irem constantemente aos serviços substitutivos. Com base em Dimenstein, et al. (2010), considera-se que as equipes de saúde locais precisam criar dispositivos para que os familiares tenham informações claras, atualizadas e consistentes sobre a política de saúde mental e o funcionamento dos serviços. Além disso, os autores destacam que:
É preciso ajudar as famílias em termos da estruturação da sua vida cotidiana e convívio com seu familiar, orientá-la em termos de estratégias práticas de manejo da enfermidade, esclarecer sobre as propostas terapêuticas, compartilhar informações sobre diagnóstico, medicação, o que fazer em situação de crise, dentre outros aspectos. Estimular a família acerca da participação nas diversas redes de suporte social e comunitário que possam existir no seu entorno, bem como em associações de familiares e usuários de saúde mental... É preciso discutir as condições em que se encontra essa família, sejam financeiras, sociais, econômicas, etc. para daí traçar as reais possibilidades de suporte familiar (DIMENSTEIN et al., 2010, p. 1223).
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Endereço para correspondênciaI:
Rua Eng. Nelson Matos, Edf. Delos, 1839, apto. 301, Nova Descoberta - Natal, RN
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Endereço para correspondênciaIII:
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Artigo recebido em: 28/05/2013
Aprovado para publicação em: 30/07/2013