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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.11 no.20 Barbacena jan./jun. 2017

 

ARTIGOS

 

O caminho trilhado por usuários de um Centro de Atenção Psicossocial do Estado do Pará: construindo itinerários na busca do cuidado*

 

The way taken by users of a Psychosocial Care Center in Pará state: building itineraries in search of assistence

 

El camino recorrido por usuarios de un Centro de Atención Psicosocial del Estado de Pará: construyendo itinerarios en la búsqueda del cuidado

 

 

Márcia Roberta de Oliveira CardosoI; Paulo de Tarso Ribeiro de OliveiraII; Pedro Paulo Freire PianiIII; Ana Cleide Guedes MoreiraIV

 

IMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA); Programa de Pós-Graduação em Psicologia; Psicóloga da Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará (SESPA).
IIDoutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP); Professor Associado I da Universidade Federal do Pará (UFPA); Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
IIIDoutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Professor adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA) na Faculdade de Medicina, área de Saúde Coletiva, e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, linha de Psicologia, Sociedade e Saúde.
IVPsicóloga; Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP); Professora do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Psicologia; Pesquisadora do Hospital Universitário João de Barros Barreto; Diretora do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará (UFPA), Pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida de Moraes sobre Mulher e Relações de Gênero (GEPEM); Pesquisadora-visitante do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Chercheurassocié à l’ Université Paris 7 Denis-Diderot. Membro da Réseau Internacional de Psychopathologie Transculturelle.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo buscou conhecer e compreender os caminhos percorridos pelos usuários de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do Estado do Pará na busca do cuidado. A metodologia utilizada foi de abordagem qualitativa, de cunho discursivo e etnográfico. Participaram do estudo 14 usuários cadastrados no CAPS. As entrevistas foram analisadas de acordo com as categorias que emergiram a partir dos discursos e das produções de sentidos dos entrevistados quanto aos seus itinerários terapêuticos, quais sejam: trajetória assistencial; o acesso aos serviços de saúde; religiosidade e saúde mental; usuários e a busca por cuidado quando estão em sofrimento. Os itinerários terapêuticos escolhidos pelos usuários levaram em consideração aspectos concernentes ao contexto sociocultural no qual estão inseridos, utilizando-se de recursos e estratégias ligadas ao próprio acesso aos serviços de saúde da rede formal, bem como aos recursos pertinentes à religiosidade e aos aspectos relacionados ao apoio da família e dos amigos.

Palavras-chave: itinerários terapêuticos; saúde mental; cuidado; centro de atenção psicossocial.


ABSTRACT

This paper aimed to know and understand the paths taken by users of a Psychosocial Care Centre of Pará state. The method used was qualitative, discursive and ethnographic. A total of 14 registered users were participants in this study. Interviews were analyzed according to the categories emerged from interviewed speeches and their sense of productions about therapeutic itineraries, which were: trajectory assistance care; access to health services; religiosity and mental health; users and their search for assistance when they are in distress. The therapeutic itineraries chosen by the users took in account aspects related to sociocultural context which they were involved, using the resources and strategies related to their own access in a formal health network service, as well as the relevant resources, religiosity and support offered by family and friends.

Keywords: therapeutic routes; mental health; care; psychosocial care center.


RESUMEN

En este artículo se buscó conocer y comprender los caminos tomados por los usuarios de un Centro de Atención Psicosocial (CAPS) del Estado de Pará, en la búsqueda de cuidado. La metodología utilizada fue el enfoque cualitativo, de naturaleza discursiva y etnográfica. Los participantes del estudio fueron 14 usuarios registrados en el CAPS. Las entrevistas fueron analizadas de acuerdo a las categorías que surgieron de los discursos y de las producciones de sentidos de los usuarios en cuanto a sus itinerarios terapéuticos, los que sean: trayectoria asistencial; el acceso a los servicios de salud; religiosidad y salud mental; usuarios y la búsqueda por cuidado cuando están en sufrimiento. Los itinerarios terapéuticos elegidos por los usuarios tuvieron en cuenta aspectos relacionados con el contexto sociocultural en el que se insertan, utilizándose recursos y estrategias inherentes al propio acceso a los servicios de salud en la red formal, así como los recursos correspondientes a la religiosidad y a los aspectos relacionados con el apoyo de amigos y familiares.

Palabras clave: itinerarios terapéuticos; salud mental; cuidado; centro de atención psicosocial.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Segundo relatório da Organização Mundial da Saúde e Organização Pan-Americana da Saúde (OMS; OPAS, 2001), são observados transtornos mentais e comportamentais em pessoas de todas as regiões, todos os países e todas as sociedades. Estão presentes em mulheres e homens, em todos os estágios da vida, assim como entre ricos e pobres, e entre pessoas que vivem em áreas urbanas e rurais.

Mari (2011) afirma que no Brasil o aumento da longevidade e a melhora dos indicadores de saúde das últimas décadas posicionaram os transtornos mentais entre os problemas mais importantes de saúde pública, aproximando-os do câncer, das doenças cardiovasculares e das doenças infectocontagiosas. O impacto estimado dos transtornos mentais na carga de doenças é de 18%, sendo possível acrescentar mais 10% devido a causas externas, principalmente homicídios e acidentes de trânsito. A elevada prevalência de transtornos mentais, combinada com uma carência de recursos humanos, implica na exclusão de tratamento de várias pessoas com transtornos mentais graves e incapacitantes.

No tocante à assistência em saúde mental, Ribeiro (2003) afirma que até há bem pouco tempo se organizava exclusivamente em torno das internações psiquiátricas, muitas vezes por longos períodos de tempo, não raramente por toda a vida, acarretando importantes efeitos secundários no nível da deterioração pessoal.

Ao longo das últimas décadas, entretanto, diversos países têm implementado políticas de atenção em saúde mental baseadas no elemento central comum de alteração do eixo da atenção do hospital para a comunidade, objetivando a continuidade do cuidado e a atenção integral (RIBEIRO, 2003). De acordo com Almeida (2002), o chamado campo da atenção psicossocial no Brasil vem, desde a década de 1990, delineando-se como um espaço cuja marca principal é a diversidade de linhas teóricas, propostas terapêuticas e objetivos, com mudanças significativas que o colocam na área do que se denomina Reforma Psiquiátrica, e com a disputa para transformar o paradigma asilar/hospitalocêntrico do tratamento.

Nesse sentido, para Amarante (2003), a Reforma Psiquiátrica configura-se como um processo social complexo, que engloba mudanças significativas nas formas de cuidado em saúde mental e no tecido sociocultural, bem como transformações jurídicas no que tange à conquista de direitos de pessoas portadoras de transtornos mentais. Mudanças ainda em pleno processo.

De acordo com a Portaria n.º 3.088 do Ministério da Saúde, de 23 de dezembro de 2011, que institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), os CAPS realizam o acolhimento e o cuidado das pessoas em fase aguda do transtorno mental, seja ele decorrente ou não do uso de crack, álcool e outras drogas, devendo, nas situações que necessitem de internação ou de serviços residenciais de caráter transitório, articular e coordenar o cuidado (BRASIL, 2011).

Considerando os CAPS dispositivos estratégicos da reforma dos cuidados em saúde mental no Brasil — configurando-se simbólica e numericamente como a grande aposta do Movimento de Reforma Psiquiátrica Nacional —, e considerando a aproximação entre a saúde coletiva e a saúde mental uma necessidade para a constituição de um campo interdisciplinar de saberes e práticas, Onocko-Campos e Furtado (2006) julgam as investigações especificamente dirigidas aos CAPS como potencialmente geradoras de subsídios para a Reforma Psiquiátrica brasileira e, ao mesmo tempo, propulsoras de um novo território de pesquisa no âmbito das políticas públicas e da avaliação de serviços de saúde.

A literatura em saúde mental tem explicitado o argumento de que a Reforma Psiquiátrica brasileira encontra-se, atualmente, em um impasse: se, por um lado, é claro que houve avanços significativos na construção teórico-clínica da assistência, especialmente no tocante ao modelo de gestão dos CAPS e no fortalecimento dos laços entre a equipe de saúde, por outro lado, também é possível perceber que, na dinâmica dos serviços de saúde mental, alguns pontos parecem levar à repetição de antigas práticas que não são mais desejadas. Como questão fundamental emergem as seguintes dúvidas: Como criar e ajudar a construir outros projetos de vida, outras possibilidades que não dependam dos serviços? Como evitar a prática de tutela, sem, no entanto, desassistir o cidadão?

De acordo com Dalmolin (2006), a saúde e a doença devem ser compreendidas como processo, pois estão vinculadas a situações singulares e complexas da existência humana, que, por sua vez, tem um caráter dinâmico, contraditório, de poucas certezas. Esse entendimento remete a biografias, culturas, histórias, enfim, a sujeitos concretos, com suas trajetórias e seus mundos subjetivos, que são muito mais do que sintomas, mais do que resultados obtidos em escalas padronizáveis, mais, talvez, do que possa dar conta uma ou outra concepção teórica.

Para Dalmolin (2006), a vivência de intenso sofrimento psíquico na vida da pessoa envolve uma gama de elementos que repercutem na sua história pessoal — quer sejam de ordem individual, familiar, política, religiosa, econômica etc. — transcendendo, assim, os momentos pontuais que caracterizam uma situação mais específica da "crise". Ainda segundo a autora, essa experiência é uma "condição humana" inerente à vida, geradora de sofrimento e que produz determinadas rupturas entre os mundos interno e externo, o dentro e o fora, provocando um descompasso entre o que é vivido pela pessoa e o que se espera dela naquela cultura, naquele momento social.

Dentro desse contexto, este artigo apresenta um recorte a partir dos resultados de uma pesquisa de Mestrado, cujo título da dissertação é "Com a voz, os usuários: discursos sobre as práticas de cuidado em saúde mental em um CAPS do Estado do Pará" (RODRIGUES, 2013). Nesse sentido, este artigo teve por objetivos conhecer e compreender os caminhos percorridos pelos usuários de um CAPS do Estado do Pará na busca do cuidado. Foi escolhido o itinerário terapêutico como recurso metodológico para conhecer os caminhos percorridos pelos usuários em situação de adoecimento, entendendo que o mesmo possibilita a compreensão do enfrentamento das questões de saúde e doença, que se modelam a partir do contexto em que os indivíduos vivem, bem como dos aspectos econômicos, sociais e culturais que organizam a vida coletiva e a vida biológica, resultantes de um espaço de ação e interação social (GERHARDT, 2007). É nesse cenário que as pessoas estabelecem relações de apoio, configurando redes sociais, as quais direcionam as práticas terapêuticas e auxiliam no enfrentamento de situações cotidianas (GERHARDT et al., 2009).

 

2 MÉTODO

O caminho metodológico escolhido está inserido no campo das abordagens qualitativas, de base discursiva e etnográfica. A pesquisa de campo foi realizada em um CAPS sob gestão da Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará (SESPA). Participaram deste estudo 14 usuários do CAPS, que estavam oficialmente cadastrados, no mínimo, havia três meses, e utilizando regularmente os serviços.

Na coleta de dados, foram utilizados os seguintes instrumentos: observação participante, pesquisa documental e entrevistas semiestruturadas, que foram gravadas e transcritas. A partir da transcrição das entrevistas, foram confeccionados, para a análise dos discursos, os mapas dialógicos, que, de acordo com Spink (2010), se constituem como um dos passos iniciais da análise e podem auxiliar pesquisadores em uma aproximação com os repertórios, na organização dos discursos e no norteamento da discussão. As entrevistas foram analisadas a partir da perspectiva construcionista, que compreende a linguagem como prática social e ação discursiva.

Nesse sentido, ainda segundo Spink (2010), as práticas discursivas e a produção de sentidos são estudadas por meio dos posicionamentos dos participantes em seu cotidiano e pela linguagem em ação. As categorias de análise que emergiram a partir dos discursos e das produções de sentidos dos entrevistados quanto aos seus itinerários terapêuticos foram: trajetória assistencial; o acesso aos serviços de saúde; religiosidade e saúde mental; usuários e a busca por cuidado quando estão em sofrimento.

Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Esta pesquisa foi realizada por meio de financiamento próprio e teve sua aprovação no Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Pará (UFPA), sob o parecer n.º 208.045/2013, cumprindo-se os preceitos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, conforme determinado pela Resolução n.º 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) (BRASIL, 2012).

 

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para efeitos deste estudo, entende-se por itinerários terapêuticos as diferentes práticas em saúde e os caminhos percorridos pelos usuários em busca de cuidado, nos quais se desenham múltiplas trajetórias — assistenciais ou não, incluindo diferentes sistemas de cuidado —, em função das necessidades de saúde, das disponibilidades de recursos sociais existentes — sob a forma de redes sociais formais e informais — e da resolutividade obtida. Destacase que as redes informais são constituídas por relações que não se estabelecem por instituições, mas por dispositivos sociais, como a posição e o papel social na comunidade/sociedade. Já por redes formais, compreende-se que as relações são estabelecidas em função da posição e do papel social na instituição (GERHARDT et al., 2009).

Assim, de acordo com Gerhardt et al. (2009), o itinerário terapêutico se constitui em uma prática avaliativa centrada no usuário capaz de revelar a complexidade das dinâmicas cotidianas nas quais os indivíduos se inserem. A partir do conhecimento dos itinerários terapêuticos, pode-se analisar as múltiplas redes tecidas pelo sujeito, evidenciando o modo como são estabelecidas e construídas as relações sociais, quais seus sentidos e significados. Ao mesmo tempo e complementarmente, a análise das redes sociais permite desvendar as lógicas, as possibilidades e as escolhas mobilizadas ao longo dos itinerários terapêuticos.

Ferreira e Silva (2012) apontam que as primeiras discussões sobre itinerários terapêuticos tiveram início por meio de estudos socioantropológicos na década de 1960 do século passado. Estes buscavam, de forma pragmática, compreender como os indivíduos orientavam suas escolhas de tratamento de saúde. A partir dos estudos de Mechanic e Volkart, Geertz e Kleinman (apud FERREIRA e SILVA, 2012), iniciou-se uma investigação mais apurada sobre como as pessoas e as sociedades elaboravam diferentes concepções médicas sobre causas, sintomas, diagnósticos e tratamentos das doenças, assim como as maneiras de busca de resoluções de seus padecimentos e maneiras de se comportarem nesses momentos.

Com a finalidade de identificar como os indivíduos pensam sobre o cuidado à saúde, suas opiniões, decisões, expectativas e avaliações, Kleinman (apud FUNDATO et al., 2012) propôs um modelo conceitual denominado sistema de cuidado à saúde. Esse sistema compreende três subsistemas: familiar, profissional e popular. O subsistema familiar é composto pela cultura popular, pelo senso comum. Participam dele o indivíduo e suas redes sociais — família e amigos; o subsistema profissional abrange os profissionais da área da saúde que são reconhecidos por lei, com embasamento científico e aprendizado formal; o subsistema popular é constituído por especialistas que não possuem reconhecimento legal, porém são reconhecidos pela sociedade. Servem de exemplo: benzedeiras, pastores e pais de santo. Essas pessoas, para prestarem o cuidado, podem utilizar recursos como: ervas, chás, rituais de cura, entre outros. Nesse sentido, as pessoas e suas famílias buscam atenção à saúde nesses três subsistemas, sem necessariamente seguir um mesmo sentido de percurso ou hierarquia (FUNDATO et al., 2012).

Os discursos dos usuários que representam a questão dos itinerários terapêuticos neste estudo foram captados por meio das seguintes perguntas:

  1. O que você fez desde que o problema começou?
  2. Qual o itinerário que você fez até chegar no CAPS? Foi fácil, a partir de sua demanda, ser encaminhado ao CAPS?
  3. Quem você procura quando não está bem?

Nesse caso, os usuários puderam descrever os caminhos pelos quais passaram até chegarem a ser tendidos no CAPS pesquisado, seja por meio da rede de serviços de saúde — pública e privada —, seja por meio de outros recursos que porventura tenham escolhido para amenizar os sofrimentos ocasionados pelo adoecimento, como ajuda espiritual e religiosa, por exemplo.

Dalmolin (2006) afirma que o sujeito é uma unidade complexa, que tem tramas muito singulares, construídas de redes sociais, afetivas, institucionais, que lhe possibilitam circulações diferentes, sendo passíveis de viver o caos e a reorganização, a ruptura e as conexões, a existência-sofrimento e a saúde em processo de interação e retroação contínuas.

Dentro desse contexto, as categorias de análise que emergiram a partir dos discursos e das produções de sentidos dos entrevistados quanto aos seus itinerários terapêuticos foram: trajetória assistencial; o acesso aos serviços de saúde; religiosidade e saúde mental; usuários e a busca por cuidado quando estão em sofrimento.

 

4 TRAJETÓRIA ASSISTENCIAL

Os usuários, enquanto narram as suas trajetórias pela busca de cuidado e solução para seus problemas de saúde, descrevem as facilidades e as dificuldades que enfrentaram ao longo do caminho; relatam, inclusive, como se sentiram e como reagiram perante os desafios encontrados.

Por trajetória, Dalmolin (2006) entende como expressões da produção subjetiva que possibilitam ao sujeito experienciar diferentes maneiras de perceber o mundo e de se articular com ele. Ressalta nas trajetórias a noção de que a subjetividade está sempre em movimento, por meio das diversas maneiras pelas quais os sujeitos e as coletividades se constituem e são constituídos, e cujos sentidos têm de ser descobertos nos contextos em que são produzidos.

Para alguns, o caminho foi mais longo e penoso do que para outros, que tiveram a resolução para seus problemas de forma mais rápida e efetiva. Para isso, contaram com a ajuda de pessoas próximas ao seu convívio, como a família, os amigos, os colegas de trabalho, os vizinhos e os próprios profissionais de saúde. Ao mesmo tempo, essas próprias pessoas, em determinado contexto, também desempenharam um papel negativo em suas trajetórias, dificultando o acesso aos serviços de saúde e a outros recursos.

Alguns usuários recorreram aos serviços particulares de saúde, especialmente as consultas com médico psiquiatra em um primeiro momento, e depois procuraram os serviços de saúde da rede pública. O atendimento médico particular se deu em momentos pontuais, em que alguns usuários, para amenizarem os sintomas decorrentes do processo de adoecimento, recorreram à consulta com médico psiquiatra para serem medicados. Não foi explicitado pelos usuários qualquer outro tipo de especialidade médica ou profissional de saúde a que tenham recorrido durante esse processo. Ressaltaram também que, mesmo após estarem sendo atendidos no CAPS pesquisado, precisaram, em determinados momentos, recorrer à consulta particular com médico psiquiatra, considerando que encontraram dificuldades em receber atendimento com profissional médico da equipe do referido CAPS, tendo em vista a necessidade de receita para aquisição da medicação. Apontaram que o número de profissionais médicos desse serviço é insuficiente para atender a demanda de todos os usuários, prejudicando seus tratamentos integrais.

Ferla (2010) aponta que o uso combinado dos serviços públicos e da assistência suplementar aparece no cuidado à saúde mental, assim como o acesso a serviços e tecnologias de diferentes naturezas. Diversos arranjos se estabelecem no cotidiano assistencial dos usuários quando procuram superar lacunas do acesso e da integralidade da atenção por meio de suas próprias escolhas, caminhos ou estratégias. O que reforça estudos que apontam a não existência de linhas de cuidado, de fluxos estabelecidos pelos serviços de saúde, deixando muitas vezes a busca do cuidado na responsabilidade do próprio usuário ou de alguém que vivenciou situação semelhante. O protagonismo do usuário, necessário muitas vezes para viabilizar o acesso ao cuidado e não apenas para configurar estéticas de cuidado mais adequadas, aparece como categoria empírica na análise dos percursos terapêuticos.

O contato com a rede pública de saúde se deu, na maioria dos casos, a partir do contato com a internação em hospital com referência em saúde mental que dispunha de emergência psiquiátrica, especialmente nos momentos de crise.

Antes mesmo de entrarem em crise, alguns usuários, ao reconhecerem que estavam em processo de adoecimento, já haviam procurado outros tipos de recursos terapêuticos, como os relacionados à religião, aspecto que será comentado posteriormente em outra categoria.

Dos 14 usuários entrevistados, 12 foram internados em hospital público com referência em saúde mental que dispunha de emergência psiquiátrica. Alguns passaram pela emergência desse hospital, sendo internados mais de uma vez; e outros apenas foram atendidos no ambulatório, sendo medicados e encaminhados para os demais serviços da rede, como o próprio CAPS.

De forma geral, os usuários passaram pela experiência de serem atendidos e alguns internados no referido hospital público por meio do auxílio da família ou de amigos, que após presenciarem momentos de crise dos mesmos acabaram por optar em levá-los ao atendimento no referido serviço, considerando ser referência em assistência psiquiátrica do Estado.

Dalmolin (2006) afirma que os hospitais gerais são a "porta de entrada" mais procurada pelos familiares que lançam mão desse tipo de recurso depois de terem recorrido a vários outros mecanismos informais e comunitários, como conselhos, rezas, bênçãos, chás calmantes e a presença mais sistemática de familiares e vizinhos junto à pessoa que sofre. Somente quando se percebe desorganização subjetiva extrema e sofrimento psíquico e quando esses mecanismos se mostram inviáveis, fazendo-os perder o "controle" sobre a situação, é que se inicia a busca pelo serviço de saúde. No hospital geral, na emergência, o usuário é medicado e, geralmente, referenciado para outra unidade da rede. Então, de forma geral, os sujeitos são "batizados" no mundo psiquiátrico, tendo a internação como a principal, senão a única, alternativa para conter uma situação de crise. Então é possível afirmar que, na primeira internação, a procura dos serviços deu-se em um momento marcado pela gravidade, em que havia necessidade de cuidados intensivos, pois o adiamento de uma intervenção dessa natureza acarretaria risco ao usuário.

Após serem "batizados" no mundo psiquiátrico, expressão utilizada por Dalmolin (2006), os usuários passaram a recorrer aos vários serviços disponibilizados pela rede assistencial de saúde — pública ou privada —, com o objetivo de atender suas necessidades. Alguns usuários foram encaminhados de uma unidade de saúde para outra, outros tomaram a iniciativa de procurar por conta própria alguma unidade de saúde que melhor os atendesse. Alguns nem tiveram a opção de ser encaminhados, ou mesmo tido a oportunidade de conhecer outros serviços, pois entraram em crise por falta de um cuidado adequado e acabaram sendo internados novamente no hospital público de referência ou em uma clínica particular.

Como afirmado anteriormente, até chegarem a ser atendidos no CAPS pesquisado, alguns usuários percorreram um caminho mais longo pela rede assistencial do que outros; porém, percorrer um caminho mais curto não significa ter suas necessidades atendidas com mais rapidez. Do total de usuários entrevistados, três passaram primeiramente pelo atendimento no hospital público de referência em saúde mental, e depois foram encaminhados diretamente para o CAPS pesquisado, configurando uma trajetória menor em comparação aos demais. Outros seis usuários passaram por no mínimo quatro locais de assistência à saúde até chegarem a esse CAPS e, com exceção de um usuário, todos passaram pelo hospital público de referência em saúde mental.

Ressalta-se que os usuários com idade superior a 60 anos explicitaram uma trajetória um pouco mais longa que os demais. Dentre eles destacam-se dois que passaram por um estabelecimento hospitalar psiquiátrico já extinto no Estado, considerado um grande manicômio.

Cinco usuários passaram por Unidades Básicas de Saúde (UBS), seis por outros CAPS antes de serem atendidos pelo CAPS pesquisado e cinco por outros hospitais públicos além do hospital público de referência em saúde mental.

Para uma melhor visualização, segue, abaixo, quadro com o resumo das principais unidades explicitadas pelos usuários durante suas trajetórias percorridas pela rede pública de saúde.

 

 

A partir das trajetórias narradas pelos usuários, é possível concluir que os itinerários terapêuticos são histórias, cada uma delas com seus enredos, personagens e desfechos próprios, pois não há homogeneidade nas experiências sobre o processo saúde e doença explicitadas pelos usuários. Para Pereira (2008), os itinerários terapêuticos são fenômenos que ocorrem em um determinado período de tempo e que sempre envolvem inicialmente a identificação de um problema que carece de solução, posteriormente os processos de tentativas — fracassados ou exitosos — de solução dessa necessidade e, finalmente, uma possível eliminação da dificuldade.

De acordo com Pereira (2008), diante do imperativo de se fazer algo acerca da doença que a acomete, o que a pessoa faz é buscar tratamento médico nos serviços de saúde. A partir de então se impõe a questão de como conseguir o atendimento adequado, se possível. O tratamento é visto como algo que ela não possui e que deve, para seu próprio bem, conseguir. Assim, as idas às instituições de saúde têm início quando a pessoa entende que, estando doente, precisa ser analisada por um profissional. Conseguir tratamento implica, para essas pessoas, na entrada em uma jornada que pode ser mais ou menos longa, mais ou menos danosa, mais ou menos exitosa, dependendo de inúmeros fatores.

Para Dalmolin (2006), esses cenários são geradores de busca de alternativas institucionais, no sentido de que as pessoas possam reaver o domínio sobre suas vidas, pois a existência-sofrimento leva a que os familiares envolvidos também se encontrem sorvidos pelas "rupturas" vividas pelo familiar, ou seja, o fato de se apresentarem comportamentos absolutamente estranhos e dolorosos desestruturam as formas habituais de a família lidar com os seus parentes, deixando-a em desespero e impotente ante a situação. Diante da necessidade de socorro, a família parte em busca de apoio para compartilhar e aliviar seu próprio sofrimento e o do seu parente afetado, tempo em que se trava uma batalha individual e solitária.

Ainda segundo Dalmolin (2006), a constatação de uma situação não mais contornável no âmbito doméstico desencadeia um conjunto de experiências marcadas por intervenções "de passagem" e, geralmente, pouco acolhedoras para um sujeito que se encontra psiquicamente fragilizado. O primeiro estágio dessa "passagem" pode ser o ambulatório de referência do bairro, que exerce a função tipicamente emblemática no cumprimento hierárquico do sistema de saúde. Em seguida, vem a "passagem" pelos postos de emergência dos hospitais da cidade. Geralmente, o mais procurado é a emergência dos hospitais, que após detectar o caráter "psiquiátrico" do caso, e não havendo outras intercorrências que caracterizem o risco iminente de perder a vida, faz a triagem para os outros serviços da rede, sob a alegação de que um tratamento clínico como merece o caso não necessita de todo o aparato tecnológico disponível no serviço de emergência, o qual deve ser reservado aos atendimentos mais graves.

Como ressaltado pelos usuários, a busca pela solução de seus problemas de saúde, bem como pelo tratamento mais adequado a sua condição, os levaram a percorrer diversos caminhos, e ainda a conhecer várias unidades de saúde, experimentando diversos tipos de tratamento e cuidados, nem sempre atendendo a lógica do fluxo de atendimento estabelecido no âmbito do SUS. Ferreira e Silva (2012) afirmam que, apesar de existirem protocolos e fluxogramas de atendimentos bem estabelecidos pela rede assistencial, os indivíduos desenham por meio de suas escolhas — emolduradas pelas suas próprias necessidades, concepções, estigmas e determinantes sociais — os seus próprios caminhos singulares, que definem diferentes modos de trilhar o sistema oficial.

 

5 O ACESSO AOS SERVIÇOS DE SAÚDE

Os usuários também trouxeram em seus discursos os itinerários terapêuticos relacionados à busca por tratamento de outros tipos de problema de saúde, além dos voltados à assistência em saúde mental. Discorreram sobre as facilidades e as dificuldades de acesso aos serviços de saúde, bem como ressaltaram como se deram as práticas de cuidado em saúde no cotidiano dos serviços. Segundo Benedetto Saraceno (2001), o conceito de acessibilidade é sistematizado por meio da geografia — local, fluxo viário, barreiras físicas; dos turnos de funcionamento — serviço único ou integrado; e do menu de programas — assistência, reinserção, lazer, hospitalidade e trabalho. Assim, esses serviços devem se inserir em uma determinada cultura, em território definido, com seus problemas e suas potencialidades, arena na qual as crises devem ser enfrentadas, resultados que são geralmente de fatores dos indivíduos e de suas famílias, eventualmente de seus trabalhos, e seguramente de seus meios sociais (ALVES, 2001, p. 170-171).

A maioria dos usuários explicitou que teve fácil acesso ao CAPS pesquisado, considerando que todos foram encaminhados por outras unidades da rede, que, após avaliarem suas condições de saúde, decidiram pelo encaminhamento ao CAPS mais próximo de suas residências, que, nos casos apresentados, foi o abordado neste estudo.

Os trechos extraídos dos discursos dos usuários, identificados pela letra "U" e um número, demonstram essa facilidade de acesso quando indagados se teria sido fácil chegar ao CAPS:

(...) foi fácil, eu acho que é fácil pra todos. Não é tão difícil. (U1)

Foi, eu fui bem atendida, graças a Deus, e eles me deram logo o acolhimento; foi tudo bem, graças a Deus. (U3)

Foi, foi fácil, acho porque esse CAPS aqui ele atende no Marco e eu sou morador do Marco, acho que foi por isso né. (U5)

Foi fácil porque eu tava passando muito mal mesmo, eu tava em desespero, aí eles me atenderam rápido. (U6)

Foi né, foi fácil por causa do medico né, clínico, encaminhamento, aí levei pra assistente social né, de lá do centro. (U12)

Ferla (2010) aponta que o acesso está diretamente relacionado à forma como a população que necessita do atendimento em saúde consegue se inserir em uma rede de cuidados em saúde. Esse acesso refere-se à própria localização do serviço, a sua área física e ao processo de trabalho dentro do serviço, que acaba por estabelecer regras de funcionamento que, por vezes, se tornam impeditivas da inclusão de novos usuários e novas demandas.

Alguns usuários expressaram que o acesso aos serviços do CAPS pesquisado não foi tão fácil quanto esperavam, principalmente porque precisaram passar por vários pontos da rede de saúde até serem encaminhados para o referido CAPS. Além disso, apontaram as dificuldades que encontraram durante essa trajetória. Entretanto, não chegaram a enfatizar que tiveram grandes entraves até serem atendidos pelo CAPS estudado.

Ferla (2010) ainda ressalta que os usuários chegam até o serviço de saúde de diferentes formas; as portas de entrada acabam se diversificando de acordo com cada situação e cada usuário e sua subjetividade. Assim, é necessária uma reflexão que envolva não só uma avaliação relacionada à garantia de acesso por meio do número de portas de entrada, mas também uma análise da qualidade dessas portas, pois a questão do acesso não está mais restrita aos usuários terem cobertura de serviços. Os exemplos citados mostram que os usuários chegaram aos serviços, mas não ficaram no estabelecimento de saúde do primeiro atendimento; tiveram que procurar outros locais para se sentirem atendidos em suas necessidades. Teixeira (2003) destaca esse fato ao afirmar que cada vez mais o acesso depende intimamente do tipo de modelo de atenção operante nos locais de atendimento, da discussão sobre o acolhimento, da problemática da qualidade do acesso e da recepção dos usuários nos serviços; assinala a migração do foco de tensionamento para a relação com o outro que aí se estabelece. Essa temática nos serviços de saúde vem requalificando a discussão a respeito do problema do acesso e da recepção dos usuários nesses tipos de serviços.

A compreensão sobre itinerários terapêuticos deve considerar, portanto, tanto o acesso aos serviços de saúde e a forma como são utilizados quanto as possibilidades socioculturais que viabilizam a experiência dessas trajetórias. É importante reconhecer que os usuários e suas famílias utilizam de maneira eclética todos os recursos e alternativas terapêuticas disponíveis em seu cotidiano.

Verifica-se, então, que para resolver seus problemas de saúde, segundo Silva-Junior, Gonçalves e Demétrio (2012), os indivíduos, nos mais diversos contextos socioculturais, recorrem às diferentes alternativas de tratamento conhecidas, as quais são escolhidas de acordo com a capacidade de responder às aflições, à disponibilidade de recursos e à cura. Desse modo, a escolha do tratamento à sua doença dar-se-á a partir da compreensão e do entendimento que cada pessoa terá do seu estado psicobiossocial junto às diferentes representações socioculturais em saúde-doença-cuidado construídas em tangência ao universo que está inserido, a qual realizará percursos e processos terapêuticos visando uma melhor resposta à sua aflição.

 

6 RELIGIOSIDADE E SAÚDE MENTAL

Nos discursos dos usuários, foram percebidos conteúdos relacionados à religiosidade como uma forma de dar sentido ao processo de saúde e doença. O objetivo neste momento não é o aprofundamento quanto a esse tema; entretanto, é importante ressaltar que o caráter da religiosidade foi um aspecto importante identificado pelos usuários na busca de solução para seus problemas de saúde.

Para Silva e Moreno (2004), em muitos casos, a procura por tratamento religioso é grande, visto que a explicação da doença pela religião é feita por meio de experiências concretas, sendo a linguagem médica mais rebuscada, fazendo com que o indivíduo não procure por primeiro esse tipo de atendimento. A religião assume um importante tipo de apoio social, na medida em que não constitui a solução do problema, mas, sim, uma modalidade de ajuda para o enfrentamento de adversidades, amenizando a dor e o sofrimento, diminuindo a ansiedade e a depressão, e tornando-os estáveis socialmente.

De acordo com Lotufo Neto, Lotufo Junior e Martins (2009, p. 71), Freud em seus escritos apresentou algumas ideias sobre religião:

1 - Tem a função de ajudar o homem a enfrentar melhor seu destino. Segundo Freud, a função da religião é auxiliar o homem a exorcizar os temores da natureza, reconciliá-lo com a crueldade do destino, principalmente a morte, e compensar pelos sofrimentos e privações que a vida civilizada nos impôs. A religião tem a função de preservar a civilização.

2 - É uma ilusão. As ideias religiosas seriam "ensinamentos e afirmações sobre fatos e condições da realidade externa (ou interna) que falam a uma pessoa sobre algo que ela não descobriu sobre si mesma e que servem como base para suas crenças." A religião é portanto uma ilusão, pois satisfazer um desejo é a base da sua motivação. A religião claramente realizou grande serviço à civilização humana, contribuindo muito para domar os instintos associais. Mas não foi suficiente, pois inúmeras pessoas estão descontentes e infelizes com a civilização.

3 - É a projeção da necessidade humana por uma figura paterna protetora das hipóteses de Freud sobre religião a que pode ser operacionalizada e estudada cientificamente foi a que sugere uma conexão entre a figura paterna e o pai divino. Foi primeiramente formulada em Totem e Tabu (1913) e repetida em O Futuro de uma Ilusão. Afirma: "Deus em todos os casos é modelado a partir da figura paterna, e nossa relação pessoal com Ele é dependente do nosso relacionamento com nosso pai físico, flutuando e mudando com ele, e que no fundo Deus nada mais é que um pai excelso."

Torres (2012), que apresenta um estudo a respeito da perspectiva freudiana sobre o fenômeno religioso, afirma que Freud investigou sua natureza no texto "O Futuro de uma Ilusão" (1927/1996a), com o objetivo de compreender a função das crenças religiosas no psíquico humano e de que modo as religiões são capazes de apreender a realidade. Nessa obra, Freud ressalta a natureza da religião, bem como mostra o que ela pretende fazer pelos seres humanos: oferecer informações sobre a origem e a existência do universo, garantir proteção e felicidade nos diversos momentos da vida e dirigir os pensamentos e as ações dos seres humanos, que se estabelecem com toda sua autoridade.

Para o ser humano, a vida é difícil de suportar, pois o sofrimento ameaça os homens a partir de três direções: do próprio corpo, do mundo externo e, por último, dos relacionamentos com os outros homens. Nesse sentido, Freud (1927/1996a, p.98) afirma que:

Foi assim que se criou um cabedal de ideias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana. Pode-se perceber claramente que a posse dessas ideias o protege em dois sentidos: contra os perigos da natureza e do Destino, e contra os danos que o ameaçam por parte da própria sociedade humana. (...) Tudo o que acontece neste mundo constitui expressão das intenções de uma inteligência superior para conosco, inteligência que, ao final, embora seus caminhos e desvios sejam difíceis de acompanhar, ordena tudo para o melhor – isto é, torna-o desfrutável por nós. Sobre cada um de nós vela uma Providência benevolente que só aparentemente é severa e que não permitirá que nos tornemos um joguete das forças poderosas e impiedosas da natureza.

Freud declara que essas ideias religiosas passaram por um longo processo de maturação e se configuram como uma necessidade de defesa psíquica por serem da ordem das ilusões, "realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade" (FREUD, 1927/1996a,p. 22).O autor ressalva, contudo, que a religião é apenas mais uma etapa do processo evolutivo humano, mas não descarta as vantagens que a doutrina religiosa traz para vida comunal do homem, como a possibilidade de refinamento e sublimação das ideias que tornam possível para ele livrar-se da maioria dos resíduos oriundos do pensamento primitivo e infantil. Ele afirma que o homem, quando exposto a situações de perigo ou quando se percebe apenas um joguete das forças da natureza ou do destino, tende a se amparar na busca de uma proteção divina e, nesse sentido, paterna.

Em 1933, na XXXV Conferência — A questão de uma Weltanschauung — Freud utiliza o termo alemão Weltanschauung, que literalmente quer dizer "visão de mundo", definido como:

uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo (FREUD, 1933 [1932]/1976, p. 193).

Nesse sentido, a força da Weltanschauung religiosa, de acordo com Maciel e Rocha (2008), consistiria em propor, aos que a ela aderem, três funções básicas: a primeira é saciar a sede humana pelo conhecimento, na medida em que lhe fornece explicações sobre todos os enigmas do universo; a segunda é consolar os homens diante dos sofrimentos e dissabores da vida, oferecendo-lhes a certeza de uma providência divina a reger tudo e todos, com a garantia de uma recompensa numa vida após a morte; a terceira é o controle das relações entre os homens, impondo-lhes proibições e restrições. Freud reconhece o quanto é difícil para a ciência competir com tais funções, pois seus propósitos em nada se assemelham aos benefícios prometidos pela religião. A ciência não explica tudo, nem consola o homem em suas tribulações; pelo contrário, deixa-o à mercê dela e não vela pela ética no sentido de ordenar as relações entre os homens.

Nos discursos de cinco usuários, foi possível perceber que, em suas trajetórias, alguns procuraram a religião como primeiro recurso para amenizar seus sofrimentos, mesmo que não frequentassem ou seguissem determinada religião. Além disso, procuravam entender por meio de explicações religiosas a causa de seu adoecimento, buscando então uma forma de obter uma possível cura para a doença.

Caroso, Rodrigues e Almeida Filho (1998), analisando os discursos que envolvem o itinerário terapêutico dos pacientes com transtornos mentais, observam que, contrariamente aos tratamentos psiquiátricos mais tradicionais, os tratamentos comunitário-religiosos podem resultar na atenuação do estigma.

No caso dos discursos de três usuários, houve uma peregrinação na busca por uma religião que atendesse aos seus anseios e às suas necessidades, na tentativa de realizar um tipo de tratamento espiritual que solucionasse o problema de saúde. Nesse sentido, experimentaram frequentar mais de uma religião, considerando que não obtiveram o sucesso esperado em determinadas religiões. Segundo Ferla (2010), os espaços religiosos servem de suporte, apoio espiritual para os usuários, refletindo, em alguns casos, na melhora da sua condição de saúde; entretanto, ressalta também que há uma migração de uma religião a outra, conferindo um novo sentido na busca do tratamento.

Dalgalarrondo (2007), após realizar uma pesquisa com o intuito de apresentar um panorama e fazer uma análise crítica da produção sobre saúde mental e religião no Brasil, chegou à conclusão de que inúmeros pesquisadores têm observado a presença do religioso na vivência do sofrimento mental e de que a procura pelo alívio desse sofrimento, por alguma significação ao desespero que se instaura na vida do doente, parece ser algo notoriamente recorrente nessa experiência, principalmente para as classes populares. A religião pode então ser vista como um dos meios usados para dar sentido à vida dos homens.

Outro aspecto a ser observado na narrativa dos usuários, principalmente na fala de três deles, é a atribuição da causa do adoecimento a problemas espirituais, decorrentes de uma influência negativa de uma entidade ou espírito de um ente querido já falecido; a partir dessas explicações, esses usuários também buscaram um tratamento espiritual para o problema de saúde. O componente espiritual é trazido por alguns autores como sendo uma possibilidade de entendimento da vivência de acontecimentos inexplicáveis: "utilizando-se de diversos elementos de distintas crenças, surgem construções da doença enquanto mal espiritual, decorrentes de obrigações não cumpridas, desavenças afetivas, karma ou destino" (VILLARES; MARI, 1998, p. 252). Essa forma de explicação traz conforto e resignação frente ao sofrimento a ser enfrentado (VILLARES; REDKO; MARI, 1999).

Dessa forma, Silva e Zanello (2010) afirmam que a religiosidade ajuda/ auxilia na interpretação e no enfrentamento do adoecimento psíquico, bem como permite aos pacientes e familiares a possibilidade de ocuparem um papel mais ativo no processo de "cura", respeitando seus contextos, buscando dar sentido ao momento vivido e partilhando seu sofrimento. Silva e Moreno (2004) apontam, ainda, que a religião "traz conforto e acena para a cura das enfermidades que são diagnosticadas como incuráveis e de muito sofrimento por parte do paciente e dos familiares" (p. 162).

Os recursos utilizados pelos usuários para resolver seus dilemas, amenizar seus sofrimentos, ou mesmo tratar seus problemas de saúde, devem ser respeitados e levados em consideração pela equipe de saúde, ou seja, é necessário que os profissionais busquem entender e valorizar os caminhos que o usuário e suas famílias percorrem diante do processo de adoecimento. Valorizar saberes e conhecimentos dentro das histórias de vida das pessoas possibilita outra perspectiva no cuidado. Nesse sentido, os profissionais devem construir uma forma solidária de cuidar, respeitando a subjetividade, os desejos e as escolhas dos usuários.

Cerqueira (2007) acredita que a religiosidade atua como um núcleo utilizado pelo indivíduo para expressar uma forma de dar sentido à vida, sobretudo diante da miséria e do desamparo. Assim, usuários almejam ser tratados como pessoas, e não como doenças; querem ser tratados como um todo, incluindo-se os aspectos físico, emocional, social e espiritual. Ignorar qualquer uma dessas dimensões acaba por tornar restrito o cuidado ao usuário.

Cabe ressaltar que os usuários não desvalorizam o tratamento realizado pelo sistema de saúde, porém encontram na religiosidade a possibilidade de uma acolhida singular frente ao sofrimento.

 

7 USUÁRIOS E A BUSCA POR CUIDADO QUANDO ESTÃO EM SOFRIMENTO

As experiências narradas pelos usuários quanto ao seu processo de adoecimento e as saídas encontradas para superar os desafios enfrentados perante a enfermidade demonstraram o caráter subjetivo, dinâmico e único do processo saúde e doença. Dalmolin (2006) afirma que a busca de recursos para a situação de sofrimento psíquico é ampla e abrange uma gama de possibilidades que vão desde o suporte afetivo no âmbito familiar e de vizinhança até as instituições e entidades de cunho religioso, de proteção aos direitos e de prestação de serviços de saúde, específicos para essa população.

Souza (2007) afirma que para as pessoas a ideia de doença e de saúde encontra-se muito próxima do que cada um considera "sentir-se bem", e isso varia de pessoa para pessoa; depende de sua cultura, do meio em que está inserida e do modo como sua relação com o mundo define seu modo de vida. Quando indagados a respeito de quem procuravam quando não estavam se sentindo bem, os usuários apresentaram a partir de seus discursos algumas possibilidades de busca por ajuda e cuidado.

Mângia e Yasutaki (2008) argumentam que a enfermidade mental constitui uma situação problema que demanda rearranjos no cotidiano dos sujeitos e de sua rede social. Sua compreensão e formas de enfrentamento são construções resultantes da interação do indivíduo com seu contexto, de forma que este tem participação ativa desde a identificação do problema até a orientação e a avaliação de escolhas terapêuticas.

Nesse sentido, como foi possível observar nos discursos dos usuários, a busca por ajuda nos momentos de maior sofrimento variou de acordo com o contexto vivenciado por cada usuário. Certamente essa variação tem a ver com o significado e o sentido que cada usuário deu para a experiência do adoecer, pois, segundo Melman (2002), a doença significa mais do que um conjunto de sintomas. Possui outras representações de ordens simbólica, moral, social ou psicológica para o doente e a família.

A maior parte dos usuários procura a família quando não estão se sentindo bem, pois são os familiares que provavelmente dão o apoio necessário, principalmente nos momentos de crise, sendo referência para o usuário na busca por cuidado. Ferla (2010) afirma que a família demonstra necessidade de conhecimento sobre a doença, seus sintomas e efeitos, passando a enfrentá-la com mais segurança e menos sofrimento. Nesse sentido, não se pode desvincular o indivíduo do meio em que vive, uma vez que a família, como grupo, previne, tolera e corrige problemas de saúde. Desse modo, não se pode separar a doença e o sofrimento do contexto familiar e, por ser um elemento tão imprescindível, a família deve ser compreendida como uma aliada da equipe de saúde para o usuário adquirir confiança e, assim, investir em seu projeto terapêutico. Dessa forma, nos serviços de saúde e estratégias em saúde mental, a família deve ser considerada como fator indispensável no sentido de cuidar e atender esses usuários em suas necessidades.

Para Silva-Junior et al. (2012), é importante saber que o itinerário terapêutico se relaciona ao projeto de vida de cada um. É a partir da experiência da enfermidade que cada pessoa faz suas escolhas, em um processo de negociação, considerando os contextos socioculturais aos quais faz parte, com o objetivo de reconstruir sua vida interpretando cada experiência diante do seu projeto de vida. Nesse sentido, é necessário reconhecer o caráter da subjetividade daquele que vive a experiência em meio às práticas de cuidado disponíveis, os aspectos socioculturais presentes no processo de sentir, entender e buscar por cuidados às suas aflições.

Como já discutido anteriormente, a religião foi um dos aspectos apontados pelos usuários como forma de lidar com o sofrimento, de buscar alívio para seus anseios e problemas de saúde. Alguns usuários disseram que primeiramente procuravam "Deus" antes de buscar qualquer outro tipo de recurso, seja o auxílio da família ou mesmo do cuidado disponibilizado pelos serviços de saúde.

Segundo Silva-Junior et al. (2012), o itinerário terapêutico é construído por caminhos diversos; não há uma regra que determine o que fazer e quando fazer. Algumas alternativas se aproximam ao modelo biomédico enquanto outras recaem no conhecimento pessoal, familiar, popular ou religioso. Desse modo, é importante contextualizar que a cultura, nesse cenário, aparece como pano de fundo dessas relações, pois muitos dos cuidados são pautados nos conhecimentos familiar e popular; porém os percursos acabam sendo construídos pela singularidade individual.

Outros usuários ressaltaram que quando não estão bem preferem procurar o técnico de referência do CAPS, pois se sentem seguros em compartilhar as situações de sofrimento, procurando acolhimento e escuta para seus problemas de saúde com o profissional de sua confiança.

Nesse sentido, Souza (2007) aponta que diferenças em épocas, locais, ou mesmo diferenças de camadas sociais, de instrução, ocupação, renda, religião, na mesma época e no mesmo local, mostram as diversidades na percepção do binômio saúde-doença. Mais do que isso, evidenciam também variação na percepção da necessidade de receber uma atenção para auxiliar a solução do eventual problema reconhecido. Essas diferenças ditam, ainda, a diversificação das normas por meio das quais tal atenção deva ser recebida, normas que variam desde buscar auxílio com parentes, amigos, compadres ou comadres, passando por benzedores, curandeiros, pseudofarmacêuticos, farmacêuticos, até atingir o profissional de saúde.

Dois usuários afirmaram que não costumam procurar ninguém quando não estão se sentindo bem, pois preferem tentar resolver seus problemas sozinhos, sem o auxílio de outra pessoa ou religião, considerando que se sentem fragilizados e sem autonomia ao perceberem que necessitam de ajuda, embora reconheçam a importância de procurar assistência.

 

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com Cabral et al. (2011), os itinerários terapêuticos são constituídos por todos os movimentos desencadeados por indivíduos ou grupos na preservação ou recuperação da saúde, que podem mobilizar diferentes recursos, que incluem desde os cuidados caseiros e as práticas religiosas até os dispositivos biomédicos predominantes — atenção primária, urgência etc. Referem-se a uma sucessão de acontecimentos e tomada de decisões que, tendo como objeto o tratamento da enfermidade, constrói uma determinada trajetória. Os diversos enfoques possíveis na observação de itinerários terapêuticos podem subsidiar processos de organização de serviços de saúde e gestão na construção de práticas assistenciais compreensivas e contextualmente integradas.

A opção por desenhos assistenciais centrados no usuário e em seu território, de acordo com Cabral et al. (2011), coloca à gestão em saúde o desafio de conhecer mais profundamente as características e os determinantes da busca de cuidado. Nesse sentido, a análise de itinerários terapêuticos pode ser uma estratégia complementar aos estudos quantitativos desenvolvidos com a finalidade de descrever o perfil do usuário ou padrões de utilização de serviços de saúde.

A compreensão sobre como as pessoas e os grupos sociais realizam escolhas e aderem ou não aos tratamentos, ou seja, como constroem seus itinerários terapêuticos, é fundamental para orientar as novas práticas em saúde, segundo Mângia e Muramoto (2008). No geral, as dimensões relativas aos contextos de vida dos usuários e suas histórias escapam aos serviços e aos profissionais de saúde, embora sejam elas que definem as possibilidades de oferta e acesso aos serviços de saúde. O acesso a essa experiência só é possível no contexto relacional e na possibilidade dos sujeitos contarem suas histórias.

Os itinerários terapêuticos percorridos pelos usuários levaram em conta aspectos relacionados ao contexto sociocultural, pelo qual os mesmos fizeram escolhas baseadas em suas experiências e histórias de vida. Não há uma homogeneização em relação às escolhas dos usuários pela busca por cuidados, entretanto, realizaram trajetórias parecidas ao percorrerem a rede assistencial de saúde, até mesmo pelo fluxo formal e padronizado estabelecido no âmbito dos serviços de saúde. Além disso, alguns usuários também procuraram apoio na religião e/ou nas instituições religiosas, na tentativa de conseguir respostas que explicassem a causa e uma possível cura para o processo de adoecimento, amenizando, assim, o intenso sofrimento psíquico decorrente desse movimento. Ressaltam, ainda, a importância do apoio da família e dos próprios profissionais do CAPS no cuidado e na escolha dos recursos terapêuticos.

Dessa forma, é necessário que todos os atores envolvidos no processo do cuidado à pessoa em sofrimento psíquico ou transtorno mental reconheçam e respeitem as escolhas realizadas pelos usuários referentes aos seus itinerários terapêuticos, pois as estratégias e os recursos adotados pelos mesmos traduzem uma forma de autonomia que deve ser apoiada e motivada nos diversos âmbitos da vida e, em especial, no cotidiano dos serviços de saúde.

A dificuldade de acesso a esses serviços de saúde, a não resolução de seus problemas de saúde, a falta de acolhimento e a precariedade no atendimento acabam obrigando o usuário a recorrer a outras formas de cuidado para além da rede formal de saúde. Considerando a trajetória dos usuários realizada no campo da rede assistencial de saúde, no próximo capítulo será apresentada a análise de como as práticas de cuidado foram percebidas pelos usuários no cotidiano dos serviços de saúde.

 

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Artigo recebido em: 14/08/2016.
Aprovado para publicação em: 31/10/2016.

 

 

* Artigo elaborado a partir dos resultados de uma pesquisa de Mestrado intitulada "Com a voz, os usuários: discursos sobre as práticas de cuidado em saúde mental em um CAPS do Estado do Pará", defendida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, em 2013. Declaramos que não houve conflito de interesses na concepção deste trabalho.

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