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IGT na Rede

versão On-line ISSN 1807-2526

IGT rede vol.11 no.21 Rio de Janeiro jul./dez. 2014

 

ARTIGO

A Presença, a relação, o afeto e o afetar. Observando práticas grupais

The Presence, the relation, the affection and affecting. Watching group performances

Marcelo Pinheiro da Silva*

UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro / IGT - Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar - Rio de Janeiro, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO:

Nesse artigo faço o relato de um trabalho de grupo realizado com uma turma de especialização em psicologia clínica. Esta atividade teve como tema o trabalho com sonhos desenvolvido em grupo dentro de um referencial gestáltico. Discuto nuances deste trabalho, apontando o sentido das intervenções realizadas. Focalizo em especial aspectos ligados ao afeto e ao afetar nesta dinâmica. Utilizo a colaboração da autora Vinciane Despret para auxiliar nesta discussão.

Palavras Chave: Gestalt-Terapia; Grupo; Sonho; Afeto; Afetar; Ator-Rede

 


ABSTRACT:

In this article I report a group work performed with the clinic psychology post-graduation class. This activity had as main subject the work with dreams developed in a gestalt reference. I debate the nuances of this work, pointing out the sense of the interventions performed. I focus on special aspects attached to the affection and affecting in this performance. I resort to Vinciane Despret's help in order to fulfill this discussion.

Keywords: Gestalt-Therapy; Group; Dream; Affection; Affect; Actor-Network


Este artigo tem como tema o afeto e o afetar nas relações estabelecidas em um trabalho realizado durante o treinamento de uma turma de especialização em psicologia clinica. Meu objetivo é investigar aspectos da vinculação afetiva e do processo de afetação/transformação experimentados nesta situação. Para tal, coerente com a perspectiva Ator-Rede, parto da descrição detalhada de minha experiência na coordenação do trabalho realizado. Nesta descrição busco observar em especial a dinâmica afetiva, isto é, o afeto e o afetar, a partir de minha relação de coordenador com os membros deste grupo. Após esta discrição busco interlocução com um dos trabalhos de Vinciane Despret para auxiliar na discussão de algumas nuances importantes encontradas em minha investigação.

Estávamos em Mendes com uma turma de quarto semestre de curso de especialização1. Este grupo era composto por 9 alunos 7 mulheres e 2 homens. Na parte da manhã eles trabalharam com a coordenação de outra psicóloga. Eles fizeram um trabalho com o que chamamos de escultura2. Este tipo de atividade é muito interessante no sentido de facilitar com que cada um identifique nuances de sua forma de interagir dentro do grupo. É um trabalho que tende a mobilizar afetivamente as pessoas de forma intensa. Assumi a turma na parte da tarde, após o almoço e um intervalo de descanso. Convidei o grupo para trabalharmos no salão de jogos - um grande salão no qual temos uma mesa de sinuca, uma mesa de pingue-pongue e duas mesas para jogos de carta.

Eu sabia que naquele dia eles já haviam vivido uma série de emoções juntos e sem a minha presença. Por mais que eu conhecesse bem aquela turma, e me sentisse muito a vontade com aquelas pessoas, era como se estivesse "pegando o bonde andando". Senti necessidade de chegar devagarzinho. Precisava conseguir me conectar com o grupo, estabelecer uma relação. Eles estavam compartilhando um determinado campo relacional desde cedo, eu não queria me aproximar de forma abrupta. Não queria estabelecer um corte, mas sim entrar no bonde, isto é, me apropriar do clima existente e a partir daí levar o grupo para o trabalho que precisava desenvolver.

Eu tinha a nítida sensação de que destruir aquele contexto emocional para construir um novo seria muito menos produtivo, no que se refere aos objetivos que eu tinha naquele momento, do que conseguir me conectar àquele campo afetivo que já existia. Esta sensação ficou presente em mim em função das informações que recebi sobre a intensidade da dinâmica que havia sido realizada na parte da manhã e em função do clima intimista que percebi imediatamente quando entrei na sala para iniciar meu trabalho.

Estamos falando de uma espécie de campo afetivo, um tipo de conexão afetiva que estava presente entre aquelas pessoas. Este tipo de afeto com certeza tem relação com a história daquele grupo, mas também diz respeito a algo local, a algo daquele momento, é uma espécie de ligação afetiva que estava intensa de forma singular naquele instante e que, porque era daquele instante, não se manteria da mesma forma posteriormente, por mais que de certo deixaria rastros nos momentos futuros.

Quando entrei na sala a turma estava reunida em um canto, as luzes estavam apagadas, tornando ambiente um tanto sombrio. Optei por não acender as luzes e me aproximar do canto onde estava a maioria das pessoas. Convidei os que estavam mais distantes a fazer o mesmo.

Dentro deste contexto busquei introduzir nossa próxima atividade. Iríamos trabalhar com sonhos. Conversamos por cerca de meia hora naquele ambiente de penumbra, falando ainda de forma teórica sobre as várias maneiras possíveis para fazer trabalhos com sonhos dentro de uma perspectiva gestáltica3.

Meu objetivo neste primeiro momento foi tanto de passar um conhecimento teórico para aqueles alunos como também, e principalmente, de começar a criar liga para o que viria depois. Aquela troca verbal me permitiu identificar pistas sobre o clima do grupo e sobre a presença e a disponibilidade de cada um dos membros para estar naquela sala fazendo um trabalho vivencial com sonhos. O escurinho da sala ajudava a trazer o clima onírico.

À medida que eu ia descrevendo diversas formas de trabalho com sonhos, foi possível perceber a curiosidade de vários deles se intensificando. Gradativamente fui percebendo a turma se envolvendo naquele tema. A coisa foi se dando num crescente e o movimento para experimentar na prática o que estávamos falando na teoria se deu de forma extremamente natural.

Em uma segunda etapa, já insinuando algo mais vivencial, pedi, de forma cuidadosa, para que os alunos lembrassem de sonhos significativos. Depois disso solicitei a que as pessoas que se sentissem confortáveis, contassem para o grupo sobre os sonhos que recordaram. Vários deles contaram seus sonhos. Alguns sonhos bem antigos, alguns sonhos recorrentes, outros ligados a acontecimentos mais recentes.

Até este momento eu estava trabalhando com a turma toda junta, isto é, ninguém estava ocupando um papel diferenciado. A turma estava envolvida, eu já experimentava uma conexão firme com um grupo. O campo de trabalho já estava pronto para seguirmos adiante.

Escolhi trabalhar o sonho de uma das integrantes do grupo. Fiz esta escolha com firmeza suficiente para definir o caminho, mas me coloquei com uma postura de consulta em relação ao grupo, de forma a que os vários integrantes pudessem falar da adequação da escolha. Meu o objetivo naquele momento foi de dirigir, mas sem deixar de escutar os membros do grupo.

Os fatores que definiram minha escolha foram: o primeiro teve a ver com a pessoa que trouxe o sonho. Optei por uma pessoa centrada que tem uma vinculação bastante consistente com a maioria dos membros do grupo. Percebia também uma vinculação afetiva bem forte entre ela e eu. Este contexto me dava bastante segurança para trabalhar com ela. Sabia que conseguiria me fazer entender com facilidade em nossa interação e sabia também que ela se sentia segura na relação comigo e com o grupo.

O segundo fator foi o próprio sonho que ela havia trazido. Era um sonho que tratava de questões bastante atuais e que mexia com aspectos da forma como ela se relacionava com algumas pessoas que faziam parte do seu dia-a-dia. Existia uma probabilidade muito grande de este sonho trazer condições para um trabalho interessante e produtivo.

Após checar a disponibilidade desta aluna para trabalharmos com seu sonho, solicitei que ela narrasse o mesmo no presente, como se estivesse acontecendo naquele momento. Durante a narrativa, busquei identificar as partes do sonho que pareciam mais importantes, isto é, que trazia uma carga emocional mais intensa, e ou um potencial simbólico que me parecesse mais rico, levando em consideração o que eu já conhecia sobre aquela aluna.

No momento seguinte convidei-a para que juntos escolhêssemos a parte do sonho que iríamos trabalhar. Para tanto utilizei as informações que obtive de minhas observações enquanto ela narrava o sonho, somadas a percepção da própria aluna. Era fundamental que a parte do sonho a ser trabalhada fosse importante para a aluna e que também fosse instigante para mim. Nós dois iríamos trabalhar juntos com aquele sonho. Quanto mais cada um de nós estivesse conectado ao que iria acontecer, maior seria a probabilidade de que o que viesse dali fosse algo enriquecedor.

Não vou entrar em detalhes sobre o sonho. Trabalhamos a partir de uma dramatização na qual ela escolhia entre os membros da turma pessoas para fazerem os personagens de seu sonho. Os personagens poderiam ser pessoas, objetos, sentimentos ou qualquer outro aspecto que tivesse aparecido no sonho e que viesse a parecer importante no momento em que ela narrou o sonho antes de encená-lo.

Por acaso, os personagens escolhidos desta vez eram todos humanos. Incentivei-a a selecionar seus atores escolhendo entre seus colegas aqueles que, por seus traços de personalidade, se encaixavam mais com cada um dos personagens.

A escolha dos atores a partir das características dos personagens fez com que cada um dos membros daquele grupo se percebesse envolvido no processo. Esta dinâmica colocava em cena nuances sutis das percepções que aquela aluna tinha a respeito de cada um dos membros daquela turma. Até as pessoas que não foram escolhidas para ocupar os papeis de personagens centrais também estavam envolvidas, já que até o fato da não escolha tinha algo a contar sobre a forma com que nossa personagem principal as enxergava.

Personagens definidos, atores escolhidos, solicitei que ela dirigisse sua cena e ao mesmo tempo participasse, interpretando seu próprio papel na dramatização. A direção da dramatização já foi bastante mobilizante. A dramaticidade da cena foi intensa, tive a impressão de que toda a turma se viu tocada naquela situação.

A partir da segurança daquele contexto, optei por dar um passo além. Um dos temas centrais do sonho tinha relação com ser agredida e agredir. Nitidamente ela só se identificava com o ser agredida. Convidei-a a assumir o papel de uma das agressoras. Era muito provável que ela tivesse dificuldades para representar este papel. Meu objetivo era que ela se aproximasse destas dificuldades dentro deste contexto de segurança.

Assim que fiz o convite, um dos alunos perguntou se ela teria condições de fazer aquele papel naquele momento. Optei por ignorar aquele comentário e assumi a direção da cena, colocando-a para interpretar o papel da agressora. Assim que ela fez as primeiras ofensas transbordou em choro. Neste instante interrompi a cena e convidei todos a sentarem para podermos trocar sobre o que foi vivido.

Existia uma comoção intensa no ar, busquei me sentar no mesmo lugar que havia sentado no momento que entrei na sala, no início de nossas trocas. Alguns fatores me levaram a manter esta postura: o primeiro foi dar suporte ao grupo como um todo. Esta atitude sinalizava para o grupo que estava tudo bem, que não existia necessidade de algum tipo de socorro urgente. Outro aspecto que definiu esta escolha teve relação com o fato de que as ofensas que apareceram no sonho traziam temáticas ligadas à conduta dela como mulher. Este era mais um motivo para que eu não buscasse uma proximidade física, o que já seria pouco provável, independente do tema em questão.

Da mesma forma que eu, todos se sentaram nos seus lugares de origem. Um aluno do sexo masculino que estava originalmente sentado ao lado dela, fez sinal para uma integrante do sexo feminino que tinha uma ligação marcante com nossa personagem principal trocasse de lugar com ele, de forma que as duas ficassem próximas. Não interferi neste movimento.

Assim que sentamos, convidei-a a ficar com seus sentimentos e dentro do possível a nos contar o que estava experimentando. Pouco a pouco, ela foi retomando o controle e tivemos a oportunidade de experimentar uma troca íntima segura e produtiva. O grupo todo pareceu ter sido tocado por aquela experiência.

No dia seguinte tivemos a aula de avaliação do workshop, neste novo contexto tivemos a oportunidade de trocar experiências sobre o acontecido e os relatos foram bem interessantes.

O aluno que havia perguntado se ela estaria em condições de assumir o papel de agressora, no instante em que ela se mobilizou de forma intensa, em um primeiro momento achou que eu havia cometido um erro, porem, à medida que as coisas foram se desenrolando após a mobilização, ele foi se dando conta de que o que ocorreu depois foi interessante, produtivo e que ela saiu muito bem da experiência vivenciada.

Na avaliação do processo tivemos a oportunidade de conversar sobre o quanto este tipo de trabalho só cabe em situações seguras, como a que aquela turma, que já estava junta há bastante tempo, podia proporcionar.

No momento em que fiz esta discrição escrita daquela experiência, tive condição de identificar o sentido de uma série de decisões que tomei ao longo do processo. Muitas escolhas que fiz foram pré-reflexivas. Isto significa que agi antes para depois pensar no sentido de minhas ações. De forma alguma isto significa que estas ações se deram de maneira inconsequente. Toda a minha história como psicólogo, o acúmulo de minhas experiências anteriores se fizeram presentes nos momentos de minhas decisões.

Um psicólogo experiente e bem posicionado pode tomar decisões extremamente coerentes no desenvolvimento de seu trabalho, mesmo sem ter condição de naquele exato instante descrever os motivos de sua escolha. Estou chamando de bem posicionado o psicólogo que não está diante de algum ponto cego4 ou que não esteja por algum motivo fora de seu centro.

O processo de aproximação em relação ao grupo que descrevi envolve justamente esta busca de estar centrado e presente na relação com o grupo. Esta presença, este estar conectado, vigilante e atento é fundamental para conseguir acompanhar o grupo, para estabelecer relação com um grupo. É uma espécie de ajuste fino onde uma certa dança se estabelece.

A metáfora da dança é muito adequada para tratarmos deste tema. Para que uma dança a dois seja harmônica, é fundamental que exista interação e ao mesmo tempo espontaneidade. Se existir a interação e não existir espontaneidade a dança será mecânica e sem brilho. Se existir espontaneidade e não existir interação, a dança não será harmônica. Isto é, o caminho de um não influenciará diretamente o caminho do outro. Cada um seguirá seu rumo, sem que uma sintonia se estabeleça. As escolhas de um não afetarão as escolhas do outro.

A presença envolve justamente este estar sensível de forma a se deixar tocar pelo outro, porém ao mesmo tempo estar presente no sentido de participar de forma coerente e espontânea da definição dos caminhos. Não estamos falando de um acompanhar passivo e, sim de uma troca ativa onde eu acompanho e me faço acompanhar.

Na descrição acima eu cheguei devagar, sem muito alarde e aos poucos fui conduzindo grupo por terrenos delicados e intensos. Nós tivemos a oportunidade de experimentar juntos sentimentos muito fortes. Isto só foi possível pela firmeza da dança que se estabeleceu. Dança que envolveu os membros do grupo, envolveu a mim como coordenador, envolveu o local em que estávamos, as estradas que já havíamos caminhado juntos, o fato de as pessoas estarem alimentadas e descansadas e inúmeros outros fatores. Todo um caminho precisou ser trilhado junto ao grupo para que as condições necessárias para o que pudemos viver estivessem presentes naquele momento.

Tivemos também actantes5 não humanos que compareceram por terem sido convidados e outros que estiveram presentes por simples casualidade. As luzes apagadas não estavam no script, porém contribuíram de uma forma marcante para construção do clima que vivenciamos. A pousada originariamente era um sítio de família para onde muitas vezes mobílias antigas foram levadas. No salão de jogos poltronas antigas convivem com cadeiras de plástico, mesa de pingue-pongue, uma mesa de sinuca tradicional daquelas enormes, quadros antigos, entre outros objetos. De certa maneira este ambiente mesclado também colaborava com o clima onírico que experimentamos.

A temperatura agradável, que existia naquele dia, permitiu que pudéssemos nos instalar confortavelmente naquele ambiente. Se tivéssemos em um dia quente de verão isto não seria possível. Outros caminhos seriam percorridos, e o que viria desta nova condição, não temos como saber.

A dança em si terminou sendo fundamental para a construção de um certo conhecimento muito especifico acerca de cada um dos participantes da mesma. De certo modo a harmonia e a intensidade da troca estabelecida naquele contexto permitiu, entre outras coisas, que aspectos marcantes da forma com que cada uma daquelas pessoas habitaram aquele espaço ficassem explícitas. Na medida em que trocamos verbalmente após a experiência, várias pessoas conseguiram estabelecer relações entre a postura que experimentaram naquele instante e suas formas de estar no mundo de maneira geral, em especial a pessoa que trouxe o sonho.

A partir de uma experiência local, desenvolvida em uma situação única e impossível de ser repetida, uma série de conhecimentos foram construídos e estes conhecimentos transformam vidas. Foram conhecimentos construídos sob medida, acerca daquelas determinadas pessoas em um determinado momento especifico. Foram conhecimentos desenvolvidos a partir da ação, no movimento. Foram conhecimentos que não se forjaram apenas a partir de uma aproximação teorizante, com isto não são conhecimentos planificados. São conhecimentos brutos que dão margem a inúmeras novas construções, como as que estou fazendo neste momento ao redigir este texto. Enquanto estou redigindo, estou mapeando o terreno, explorado e conseguindo dar nome a várias nuances interessantes das experiências vividas.

As atitudes tomadas parecem se manter vivas como actantes, atuam influenciando diretamente as palavras que brotam em minha mente à medida em que busco me aproximar daquela experiência vivenciada. Parece existir uma qualidade especial neste conhecimento construído a partir do ato. Acredito que Despret pode contribuir com nossa discussão neste momento.

"Um dos exemplos mais explícitos é analisado pela filósofa Donna Haraway, quando ela evoca o trabalho de campo da primatóloga de babuínos Barbara Smuts. Quando ela iniciou seu trabalho de campo em Gombé, na Tanzânia, Barbara Smuts quis fazer como lhe haviam ensinado: para habituar os animais, era necessário aproximar-se progressivamente. A fim de evitar influenciá-los era preciso agir como se ela fosse invisível, como se ela não estivesse lá (Reação). Tratava-se, como ela explica, "ser como um rochedo, não disponível, de tal sorte que ao final os babuínos se dedicariam a seus assuntos como se o humano coletor de dados não estivesse presente." Os bons pesquisadores são portanto aqueles que, aprendendo a ser invisíveis poderiam ver a cena da natureza de perto "como através de um furo num muro". Entretanto, praticar a habituação tornando-se invisível é um processo extremamente lento, penoso, freqüentemente condenado ao fracasso; todos os primatólogos concordam. E se é assim, é por uma simples razão: porque ele aposta no fato de que os babuínos serão indiferentes à indiferença. O que não podia escapar a Smuts no curso de seus esforços é que freqüentemente os babuínos a olhavam e que quanto mais ela evitava seus olhares menos eles pareciam satisfeitos. A única criatura para a qual a cientista por assim dizer neutra estava invisível era ela própria. Ignorar os índices sociais é tudo menos ser neutro. Os babuínos deviam perceber alguém fora de toda categoria - alguém que finge não estar lá - e se perguntar se este ser podia ser ou não educado segundo os critérios do que faz um hóspede polido entre os babuínos.

Como Smuts resolveu a situação é simples de dizer, bem menos de fazer; ela adotou um comportamento similar aos babuínos, ela adotou a mesma linguagem corporal que eles, ela aprendeu o que se faz e não se faz entre os babuínos. [...] Ela tomou emprestado dos babuínos sua maneira de se dirigir uns aos outros. Em conseqüência do que, escreve ela ainda, quando os babuínos começaram a lhe lançar olhares zangados que faziam com que ela se afastasse isto constitui, paradoxalmente, um enorme progresso: ela não era mais tratada como um objeto a ser evitado, mas um sujeito de confiança com o qual eles podiam se comunicar, um sujeito que se afasta quando alertado e com quem as coisas podem ser claramente estabelecidas. [...] o sociólogo Gabriel Tarde chamava de uma inter-fisiologia, uma ciência do agenciamento dos corpos. O corpo, nesta perspectiva, se liga à proposição spinozista: ele se torna o lugar do que pode afetar e ser afetado. Um lugar de transformações. De início, sublinhemos que o que Smuts coloca em cena é a possibilidade de tornar-se não exatamente o outro na metamorfose, mas com o outro, não para sentir o que o outro pensa ou sente como o propõe a incômoda figura da empatia, mas para, de alguma maneira, receber e criar a possibilidade de inscrever-se numa relação de troca e de proximidade que não tem em nada uma relação de identificação. Há, de fato, uma espécie de "agir com se" que leva à transformação de si, uma artefato deliberado que não pode nem quer pretender à autenticidade ou à uma espécie de fusão romântica freqüentemente convocada nas relações homem-animal.

Nós estamos certamente afastados desta versão romântica de um encontro tranqüilo. Smuts insiste no fato de que o progresso lhe apareceu claramente quando os babuínos puderam começar a lhe fazer entender a possibilidade do conflito, lançando-lhe olhares zangados. A possibilidade do conflito e sua negociação é a condição mesma da relação.[...]

É o que dá este gosto tão especial e particular a estes projetos científicos, aqueles para os quais aprender a conhecer aqueles que observamos se subordina ao fato de aprender, de início, a se reconhecer".(DESPRET, 2012, p290-293).

Neste fragmento a autora nos fala da importância do estabelecimento de relação para construção de uma forma de conhecimento que se produz na troca, na interação. Em contraposição a um conhecimento desenvolvido através do buraco da fechadura, de um conhecimento desenvolvido olhando de fora, como que de um ponto de vista privilegiado. Como que na busca do olhar divino, do olhar que enxerga as coisas como elas são. Como se no final das contas não tivéssemos sempre perspectivas, como se existisse a possibilidade de uma relação neutra.

Não existe um olhar neutro, só o que temos são pontos de vista, quanto mais nos apropriamos do que de fato temos, mais consistência podemos desenvolver. Da mesma forma que a primatóloga faz a opção de abrir mão da falácia da postura neutra, dentro de minha perspectiva de trabalho buscamos apostar na relação como terra fértil para que o afeto e o afetar se desenvolvam.

Em minha prática como Gestalt-Terapeuta busco ser um guardião da relação6. Fui convidado a trabalhar deste jeito por meus melhores mestres. Aprendi a trabalhar assim com meus clientes e alunos. Este caminho tem se mostrado extremamente gratificante. Existe uma beleza poética que sempre me comove quando acompanho pessoas, quando as percebo me deixando aproximar, quando as vejo comovidas e vivas. A possibilidade de tocar o outro e de ser tocado por este outro me faz sentir vivo e me transforma. Cria afeto e afeta.

No trabalho que descrevi, busquei ser uma espécie de guardião da relação, isto é, trabalhei em prol da construção de um ambiente de troca, de um ambiente em que existisse relação. Para existir relação foi necessário que existisse um encontro entre diferenças de forma e que os indivíduos se apropriassem de suas características à medida que se relacionassem com um ou vários outros entes. Minha busca foi de criar um espaço de relação e facilitar com que pudéssemos aprender com o que ocorreu neste espaço de relação. Foi de aprender com as trocas em andamento, com as relações em processo.

Coerente com que nos trouxe Despret (2012) em sua observação de que em certos projetos científicos "aprender a conhecer aqueles que observamos se subordina ao fato de aprender, de início, a se reconhecer" neste tipo de prática grupal quanto mais eu aprendo a me reconhecer na relação que experimento no contato com o outro, mais condição eu tenho de perceber este outro e de facilitar com que ele perceba nuances dele mesmo nas experiências que vivemos juntos.

Nesta forma de relação ambos nos transformamos. Eu me transformo à medida que também posso experimentar e muitas vezes até reconhecer reflexivamente aspectos meus na interação. O outro se transforma a medida em que vivencia seus próprios comportamentos e se apropria de nuances de sua forma de estar naquele encontro.

A relação humana (terapêutica) foi a terra fértil que facilitou o fluir da vida. Através da troca que experimentamos, transformações se deram. O encontro que vivemos, em algum nível, deixou rastros em cada um de nós. Existe algo de Belo nisso! Dá uma sensação de processo! De continuidade! De vida!

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DESPRET, V. Que diraient les animaux, si... on leur posait les bonnes questions ? Paris: La Découverte, 2012 Tradução: Ronald Arendt.         [ Links ]

HYCNER, R.; JACOBS, L. Relação e Cura em Gestalt Terapia - São Paulo: Summus, 1997        [ Links ]

PERLS, F. A Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia. LTC - Livros Técnicos e Científicos Editora S.A.: Rio de Janeiro, 1988        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Marcelo Pinheiro da Silva
Endereço eletrônico: marcelo@igt.psc.br

Recebido em: 23/07/2014
Aprovado em: 24/11/2014

 

NOTAS

*UERJ -Universidade do Estado do Rio de Janeiro / IGT - Instituto de Gestalt Terapia e Atendimento Familiar
Psicólogo Marcelo Pinheiro CRP nº 05/16.499 Gestalt-terapeuta, especialista em psicologia clínica pelo CRP, especialista em psicologia organizacional pelo CRP, especialista em atendimento de casal e família na abordagem sistêmica (I.T.F.- RJ),
Professor substituto de Psicologia da UERJ, Mestrando em Psicologia Social (UERJ), coordenador do curso Especialização em Psicologia Clínica - Gestalt-Terapia (Indivíduo, Grupo e Família), editor chefe da Revista Virtual IGT na Rede, coordenador do Centro de Documentação da Gestalt-Terapia Brasileira e sócio-fundador do IGT e Presidente do XIV Congresso Internacional de Gestalt-Terapia Rio 2015.
1Este curso "Especialização em Psicologia Clinica Gestalt-Terapia Individuo, Grupo e Família" tem duração de 5 semestres tendo o aluno mais um semestre para apresentar uma monografia.
2Escultura é um trabalho experimental no qual os membros de um grupo que tem uma história pregressa são convidados a produzir esculturas que, de alguma forma, explicitem aspectos fundamentais da dinâmica daquele grupo, focalizando em especial a inserção de cada membro do grupo no mesmo. Este trabalho normalmente é seguido de uma discussão verbal.
3Existem varias formas que, tradicionalmente, são utilizadas no trabalho com sonhos em grupos dentro de um viés Gestáltico, inclusive a forma que inspirou o trabalho que fiz com este grupo especifico. Ver mais em Perls (1988).
4Todo ponto de vista traz luz a um horizonte específico. A ideia de ponto cego aqui se refere a possibilidades de percepção que não se mostram possíveis a partir do ponto de vista de onde um determinado terapeuta está olhando. Dentro desta perspectiva a história pessoal deste terapeuta e suas características emocionais têm um papel muito importante na construção de seu ponto de vista.
5Actante - termo utilizado no lugar de "ator" dentro da tradição Ator-Rede em função da tendência a se associar o termo "ator" com a figura humana.
6O leitor pode encontrar uma discussão interessante acerca desta forma de experimentaram o processo terapêutico em Hycner(1997)

 

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